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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.14 no.26 São Paulo  2009

 

ARTIGO

 

A palavra através do espelho

 

The word through the looking glass

 

La palabra a través del espejo

 

 

Pedro Teixeira Castillho

Psicanalista, Mestre em Literatura e Psicanálise pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Doutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). ctcastilho@ig.com.br

 

 


RESUMO

A partir do texto O estádio do espelho como formador da função do eu procuramos demonstrar que as construções do imaginário não acontecem sem a ação do simbólico. Para que essa construção se configure, é necessária uma "Denegação" (Die Verneinung) seguida da afirmação primordial. Nesse sentido, recuperamos os debates de Lacan com Jean Hyppolite, nos anos de 1950, na França, para demonstrar que Lacan elevou para a filosofia as discussões sobre a gênese do simbólico. As consequências disso se desdobram na palavra que surge a partir da imagem, aparecendo aí o aparelho psíquico e as consequências do sujeito da enunciação.

Descritores: imaginário; simbólico; dialética; identificação.


ABSTRACT

We will search the construction of Jacques Lacan about the genesis of the subject in the text The stage of the mirror. For this construction is necessary that the symbolic comes from the imaginary. Is necessary a "Deny" for the construction of this which will come with the primordial affirmation. In this sense, the author of the article will show up the discussion in France during the 50's between Jean Hyppolite and Jacques Lacan about the origin of the symbolic. Therefore we will have the subject of the enunciation. The conclusion of this is the psychic device.

Index terms: imaginary; symbolic; aggressivety; identification.


RESUMEN

Del texto El estadio del espejo como formador de la función del yo que pretenden demostrar que las construcciones imaginarias no ocurren sin la acción de lo simbólico. El autor visa demostrar que el imaginario viene como una consecuencia de lo simbólico. Para tanto, es necesario que haya la génesis de lo sujeto pelo simbólico. Lacan hace uso de la filosofía para trabajar la concepción del sujeto. Las discusiones de Lacan son con la filosofía de Hegel a partir de Jean Hyppolite en los de 1950 en Francia. La consecuencia es el origen de la palabra que vene con la imagen surgiendo el aparato psíquico con el sujeto de la enunciación.

Palabras clave: imaginario; simbólico; agresividad; identificación.


 

 

Alice was beginning to get very tired of sitting by her sister on the bank, and having nothing to do: once or twice she had peeped into the book her sister was reading, but it had no pictures or conversations in it, "and what is the use of a book", thought Alice, "without pictures or conversations?" (Lewis Carroll, 1929)

 

Neste artigo, pretende-se recuperar o texto de Lacan, O estádio do espelho como formador da função do eu (Lacan, 1998), para diferenciar os registros do imaginário e do simbólico, visando a elucidar as vicissitudes desses registros para compreendermos o processo de identificação do infans. A referência ao texto de Lacan deve-se à primeira intervenção do psicanalista num Colóquio de Psicanálise em que estava presente Anna Freud. Deste modo, levando-se em consideração o contexto da época, pode-se dizer que Lacan se dirigia aos psicanalistas que estavam conduzindo o tratamento a partir de uma psicologia do ego, cuja maior expoente era a própria filha de Freud.

Primeiramente, trabalharemos o imaginário como experiência ilusória de completude e, em um segundo momento, vamos trazer as consequências da inscrição do simbólico no campo da identificação. Podemos inferir, já no texto de 1966, que o infans é reduzido ao circuito do imaginário ana', representado no esquema L (1998), não trazendo a ideia de um registro psíquico, uma vez que ele se revela juntamente com a instância simbólica.

 

 

Teríamos as imagens do corpo fragmentado transformando-se em uma totalidade ortopédica (Lacan, 1998, p. 100), uma unidade totalizante. É nesse ponto que podemos pensar o imaginário como uma gestalt. O infans entraria em estado de júbilo pela apreensão da totalização de sua imagem - expressão lacaniana do narcisismo primário de Freud.

Para Lacan, trata-se de uma armadura que reforça a impressão de uma rigidez alienada no outro - a a' -, um estádio especular da criança com aquele que a olha. A imagem que se reflete nesse espelho é a imagem que se condensa. A integração do corpo fragmentado tem como resultado o desenvolvimento da coordenação motora. Para Lacan, a função da alienação está ligada à construção da imagem do corpo próprio. Teríamos, então, o registro do imaginário como primeiro plano de identificação, estando aí o ponto de diferenciação do ser humano em relação aos outros animais. O fato de o bebê não nascer com a coordenação motora, com uma unidade corporal, mostraria a impossibilidade de ele possuir um moi fundado pelas funções biológicas. O psicanalista propõe, assim, a primeira experiência de satisfação como correspondente à perda do biológico.

É a partir desse ponto que podemos afirmar que o imaginário está do lado da sensação. Ele inclui todos os fenômenos de ordem sensorial de um conhecimento que é, a priori, ilusório. Esse registro é originário da "imago" de Freud. Lacan retirou de Henri Wallon a evidência de que, antes da coordenação motora ser neurologicamente possível, a criança já se reconhece no espelho. Por outro lado, essa construção de Lacan é também uma crítica a Wallon. Para o psicanalista, a gestalt da imagem da criança no espelho seria um engodo, diferentemente do que pensa o psicopedagogo, que propõe um processo tônico-postural. O fato de se reconhecer no espelho implica a noção de um moi entendido como unificado, sendo esse registro intermediário entre o estado larval e o organismo já constituído. A construção da imagem demonstra uma antecipação das funções psicológicas em relação às funções biológicas. A humanização da imagem do mundo onde o homem constrói sua casa a partir da noção corporal é a relação do sujeito com a formação imaginária do eu ideal. É aí que se nota uma inadequação estrutural entre o sujeito e a totalização especular da imagem vinda do outro; essa inadequação advém do fato de que o ideal que constitui o sujeito não se esgota na representação imaginária em que ele se precipita. O Eu é, então, entendido como a sensação de um corpo unificado.

Na teoria do estádio do espelho, o "eu" encontra-se produzido desde a imagem do outro: "O ponto importante é que essa forma situa a instância do eu, desde antes de sua determinação social, numa linha de ficção, para sempre irredutível para o indivíduo isolado - ou melhor, que só se unirá assintoticamente ao devir do sujeito, qualquer que seja o sucesso das sínteses dialéticas pelas quais ele tenha que resolver, na condição de [eu], sua discordância de sua própria realidade." (Lacan, 1998, p. 98).

Essa alienação no outro aparece de maneira invertida: aquele que bate declara ter sido batido. A imagem especular encontra-se na impotência motora vivida pelo infans, durante os primeiros meses de sua vida, de maneira invertida. Existe uma identidade não separável entre os dois - o infans e a mãe -; ainda não se sabe quem é quem.

A miragem do narcisismo se quebra com a entrada no simbólico. A posição do vetor S A é, como mostra a ilustração, o que faz suporte ao eixo imaginário, "uma linguagem que capta o desejo no ponto em que ele se humaniza" (Lacan, 1988, p. 295). Nesse segundo registro está a libido considerada por Lacan, no eixo imaginário, como narcísica. Para Lacan, a libido se mistura ao narcisismo. No esquema de Lacan, encontramos entre a e a' a libido que chamamos de gozo, de tal maneira que o eixo imaginário, na teoria lacaniana do estádio do espelho como formador da função do eu, é o eixo pulsional.

Em O seminário, livro1: Os escritos técnicos de Freud, que é contemporâneo ao referido texto, o psicanalista posiciona a libido do lado do imaginário e o desejo de reconhecimento do lado do simbólico. O objetivo de Lacan é de demarcar a influência da tendência americana em reduzir a psicanálise a uma psicologia do ego. Para Lacan, o simbólico não é mais um registro sensorial, ele é a mensagem enviada ao Outro.

A coordenada simbólica é a assunção do registro que faz a intermediação das relações. Contrapondo-se ao registro imaginário, teríamos o simbólico como desejo de reconhecimento do Outro. Esse desejo de reconhecimento se encontra no outro vetor S A. Nesse ponto, Lacan aplica a dialética hegeliana ao desejo do Outro, construção que nos permite fazer uma aproximação do Grande Outro.

As consequências do simbólico marcam os caminhos da sexualidade, cuja realização necessita da lei fundamental do simbólico implicada no desejo do Outro, podendo, assim, aplicar-se à dialética de Hegel. A relação que se estabelece entre o Pai, a partir do grande Outro, passa a ser o paradigma de Lacan e, assim, pode-se pensar o Outro como garantia dos dizeres. Ele passa a ser a garantia da lei significante. Se Lacan desloca a figura paterna para a função paterna isso se deve ao fato do pai estar no registro do significante. Trata-se de um Pai que se define a partir de uma Lei relativa ao desejo, um Pai que pode responder a partir do desejo.

Se a questão do Outro passa a ser uma questão sobre a linguagem, isso se deve ao fato desta linguagem estar submetida às leis de uma determinada língua. Nesse sentido, é importante demarcar que a temporalidade vem acompanhada de uma espacialidade, isto é, de um "dentro" e um "fora", na formação do aparelho psíquico, surgindo dois tempos, sendo que a existência da temporalidade deve-se, entre outros aspectos, à marca simbólica. O esquema "L" mostra o imaginário e o simbólico com as duas instâncias que captam essa dimensão. Explicando a expressão do giro do simbólico, poderíamos vislumbrar a referência de Lacan a Santo Agostinho: "vi com meus olhos e conheci bem uma criancinha tomada pelo ciúme: ainda não falava e contemplava pálida e com uma expressão amarga, seu irmão de leite" (Santo Agostinho, citado por Lacan, 1998, p. 117).

Santo Agostinho cria uma imagem sobre a cena da criança ao lado de seu irmão recém-nascido e sua mãe. O registro escópico é bastante importante, pois permite perceber o instante em que o olhar se cega. É a partir desse registro que Lacan resgata o filósofo patrístico, que comenta o momento em que a criança se coloca em um estado de agressividade quando percebe a presença de seu irmão mais novo. Há, então, a confirmação de que todo o conhecimento do objeto vem do conhecimento do ciúme. O objeto passa a ser fonte de concorrência e de rivalidade. Podemos verificar que existe uma relação assimétrica de idealização contrapondo-se a uma relação simétrica de rivalidade. Na trama do ciúme, existe uma imagem que não se capta - reconhece-se o outro como igual, mas também como rival. Em outras palavras, o desejo do sujeito vai se consolidar a partir de uma rivalidade com o Outro, no campo da simetria e de uma idealização assimétrica.

As representações do Outro trazem a palavra para sustentar a imagem. O ciúme e a rivalidade do infans são a garantia dos dizeres que vêm do Outro. Existe um acordo que inclui a palavra. O processo dialético se situa na negação do que captura a imagem do "ou eu ou você". Para Lacan, teríamos duas subjetivações: de um lado, o eixo do imaginário, e de outro, o eixo do simbólico. Isso quer dizer que, em um primeiro momento, no eixo a?a estaria a intencionalidade agressiva; talvez aí possamos compreender a ambivalência freudiana, em que ainda não existe um reconhecimento do sujeito no Outro. A criança ainda assimila-se pela imagem. É em outro eixo - S A' - que teríamos o corte da relação especular incidindo no simbólico.

O valor da cena da criança olhando o irmão é o espetáculo imaginário, proporcionado pelo próprio sentimento de completude. Quando a criança parece ter ameaçada a imagem especular, uma experiência de não-especularização da imagem do infans faz desencadear o sentimento de ciúme, inaugurando o segundo simbólico. Na trama do ciúme, vem uma imagem que nos capta: reconhecer o sujeito como igual e, ao mesmo tempo, como rival. Essa experiência é o corte que o imaginário sofre pelo simbólico, o momento em que incide uma fissura no eu. A divisão do eu é, pois, a marca de um sujeito irremediavelmente cindido. Lacan, a partir dessa experiência, faz a distinção entre o moi (imaginário) e o Je (simbólico).

Quando a criança detecta sua relação com o irmão de leite, uma agressividade original é formada: o eixo imaginário a?a' inaugura o que Lacan denominou de "O estádio do espelho", constituindo a alienação do sujeito em sua imagem ideal. A consequência disso é a agressividade incompatível com o moi, a dificuldade do moi em alcançar os ideais como um corte narcísico do sujeito. Existe uma justaposição entre a castração erótica e a agressividade. A relação agressiva intervém na relação do moi. Ela é uma intenção agressiva que integra o funcionamento da imagem e, por isso, Lacan aponta o afeto do ódio como o que mais se refere ao ser.

É justamente no aparecimento da identificação simbólica que teríamos o desejo de reconhecimento. O Outro passa a coordenar o infans com seu desejo. A partir daí, podemos pensar que é esse desejo de reconhecimento que implica o corte do simbólico na imagem narcísica. O infans encontra, no olhar do Outro, seu próprio reconhecimento. A imagem não é mais totalizadora e, assim, o ideal do eu lança para fora o desejo de ser reconhecido no Outro, deslocando-se da imagem narcísica. Nessa perspectiva, O estádio do espelho como formador da função do eu apoia-se na noção do simbólico como necessária para a relação de aliança entre os pares, a partir da qual se instaura o sentido do desejo como desejo de reconhecimento, "de ser reconhecido na palavra e no simbólico" (Lacan, 1988, p. 280).

A partir deste ponto, podemos demonstrar as consequências desta força na gênese do aparelho psíquico. Lacan, sem nenhuma ingenuidade, traz o simbólico como troca afetiva entre os seres falantes. Se Lacan, desloca para o simbólico a experiência do inconsciente isso se deve ao simbólico como condição humana. O simbólico é a expressão onde o sujeito se sustenta para a experiência do inconsciente. A palavra é, para Lacan, a báscula do desejo. Esse desejo se revela ao sujeito como sendo o seu desejo (Lacan, 1979, p. 190). Existe um acordo que inclui o fato da palavra, incluindo-se o processo dialético na negação da captura narcísica. A imagem do desejo vai se fixar no Outro. Para a expressão do simbólico, é necessária essa inscrição. A partir do exemplo trazido por Santo Agostinho, podemos afirmar que essa experiência é fundamental. A partir daí, torna-se possível demonstrar que o sujeito seria a presentificação da completude pelo imaginário (moi) e a experiência da falta (Je) implicada no jogo dialético do simbólico. O filósofo do pecado original parece direcionar um caminho para Lacan quando a gênese do sujeito começa a ser articulada a partir da agressividade.

Feita a construção da incidência do simbólico na identificação, pretendemos explorar as consequências da "falta" implicada na natureza do simbólico para ultrapassarmos as teorias freudianas da castração e do Édipo. Nesse sentido, pretendemos demonstrar as vicissitudes do simbólico enquanto corte histórico para a ação da repetição enquanto marca indelével do inconsciente.

Lacan facilita o entendimento sobre a experiência simbólica se a transportarmos para o campo da linguagem. Como se pode apreender, o simbólico traz a constituição dos laços afetivos do sujeito na linguagem. As incidências de tal conceito, como tencionamos recuperar, é a própria divisão do eu (Spaltung). Para trabalharmos essa noção, será necessário desenvolvermos o mecanismo da dimensão simbólica a partir do texto A negativa (Die Verneinung), de Freud (1925/2003), que permite aproximá-lo de Lacan.

 

A operacão Die Verneinung

É importante lembrar que o texto de Freud, Die Verneinung, foi motivo de uma grande querela na década de 1950, abrindo questões desenvolvidas nos debates de Lacan com Jean Hyppolite. Sabemos que Lacan atribuiu fundamental importância ao conceito de negação em psicanálise para demonstrar as vicissitudes do simbólico. Por isso, pretendemos retomar a leitura lacaniana, principalmente em sua resposta ao comentário de Jean Hyppolite (1954-1955) sobre o artigo de Freud. Nossa abordagem estará centrada, em primeiro lugar, no texto dos Escritos intitulado "Resposta ao comentário de Jean Hyppolite", que foi uma elaboração escrita por Lacan a partir de uma lição de seu O seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud.

Nesse texto, Freud trata dos mecanismos operantes nas associações de sentido de seus pacientes. Para que esses mecanismos funcionem, é necessário uma Bejahung, afirmação, seguida de uma Verneinung, negação. Esses mecanismos funcionam como opostos necessários para a formação de um dentro e de um fora na montagem psíquica. Os dois termos são utilizados por Freud para encerrar uma ação dicotômica da afirmação e da negação implicadas no processo afetivo. É nesse sentido que pretendemos trazer as leis da linguagem para demarcar que Lacan utiliza o texto de Freud chamando a atenção para a dicotomia da presença e da ausência.

É nesse texto de 1925 que Freud faz uma demonstração da negação representando uma tomada de consciência do recalcado, verificando que a experiência do juízo de existência traz à tona o conteúdo do recalque pela negação.

Para que surja o aparelho psíquico, é necessária uma afirmação primordial, Bejahung.1 Na constituição da afirmação, há dois tempos: um juízo de atribuição e um juízo de existência. O juízo de atribuição seria a condição da formação do Eu como juízo prévio. Para Freud, haveria um juízo de atribuição anterior ao juízo de existência. A função de julgamento de existência não visa a encontrar na realidade externa um objeto correspondente ao objeto imaginado pelo juízo de atribuição, mas reencontrar o objeto que deixou marcas de satisfação na memória (Freud, 1925/2003, p. 255). O juízo de atribuição liga o organismo ao meio, distinguindo o que é bom do que é mau, como ocorre, por exemplo, no ato de se alimentar, quando uma criança faz uso desse juízo comendo o que é bom e cuspindo o que é mau.

Em seguida, surge o juízo de existência, conferindo existência àquilo que foi considerado bom e mau. Para que essa existência ganhe significação, é necessária uma afirmação primordial, aproximando o juízo de atribuição ao juízo de existência. Nesse ponto, a afirmação primordial, Bejahung, seria uma evocação ativa de um "sim", referindo-se a um momento anterior, juízo de atribuição, para conferir aos objetos uma existência. Essa afirmação seguida de uma negação é a referência de Lacan para demonstrar as vicissitudes da inscrição do simbólico. Essa ação é uma afirmação que vem confirmar um momento anterior.

No entanto, se a Bejahung dá a condição da existência, ela não ocorre sem a negação (Verneinung). "A polaridade de julgamento parece corresponder à oposição dos dois grupos de instintos que supusemos existir. A afirmação (Bejahung) - como substituto da união - pertence ao Eros; a negativa (Verneinung) - o sucessor da expulsão - pertence ao instinto de destruição." (Freud, 1925/2003, pp. 256-257).

A ação dessas duas forças revela o juízo de existência como uma nomeação a partir de uma afirmação primordial. Se a Verneinung circunscreve-se com o estabelecimento de um "fora", teríamos o juízo de existência como uma afirmação primordial, fazendo surgir algo da negação do lado de fora da afirmação. Desse modo, a negação primordial (Verneinung) está necessariamente ligada à afirmação, sendo a realidade percebida como puro prazer, opondo-se ao estabelecimento da enunciação da afirmação primordial, Bejahung,2 que inscreve o Eu na realidade desse juízo da existência.

Em A negativa, Freud capta o lugar da enunciação do pensamento enquanto expressão da afirmação primordial, força operante do juízo de existência. O autor relata o caso de um paciente que, após contar um sonho em uma sessão, afirma que a mulher, à qual se referia no relato do sonho, não era sua mãe. Esse exemplo nos oferece o inverso reflexo da negação. Para Freud, essa negação permite a enunciação de certa tomada de consciência do recalcamento, sem que o sujeito que relata o sonho aceite o conteúdo do relato - uma separação da função intelectual do processo afetivo. Freud poderá dizer que essa representação onírica do sonhador já é a tomada de consciência do recalcado e demonstra, com a neurose, que a operação de recalque requer uma afirmação primordial de um juízo de existência, implicando a castração em uma Bejahung - uma afirmação.

Esse momento foi designado por Freud da seguinte maneira: é necessário que haja uma negação (Verneinung) daquilo que é mau para haver uma primeira introjeção de algo que é bom. O que é representado dentro confere existência a sua representação a partir do que está do lado de fora. Essa ação fundante - a partir de um dentro e de um fora - é associada ao seu oposto, Ausstossung. Para que isso se efetue, é necessária uma expulsão, que uma parte do ser que não corresponde ao simbólico possa operar um processo inaugural. Desse modo, a Bejahung - como substituição da união - pertence a Eros, enquanto a Verneinung - sucessão da Ausstossung - pertence à pulsão de destruição, ao desligamento. "Agora não se trata mais de saber se algo percebido (uma coisa) deve ser admitido ou não no eu (moi), mas, se algo presente no eu (moi) como representação também pode ser encontrado como percepção (realidade). É como vemos uma questão de fora e dentro." (Freud, 1925/2003, p. 255).

Para Freud, a origem do processo intelectual do julgamento segue o princípio do prazer. No entanto, o que interessa a Freud é compreender qual é a primeira tentativa de diferenciação do eu e do inconsciente que tem como consequência a noção de dentro e de fora, criando aí sujeito e objeto: "a oposição entre subjetivo e objeto não existe desde o começo" (Freud, 1925/2003, p. 255). O eu, em um primeiro momento, cria sua identidade quando introjeta tudo o que é bom e leva para fora de si tudo o que é mau.

A simbolização primordial seria a Bejahung, que é quando o eu expulsa para fora de si tudo o que pode dirigir a um princípio de constância no nível de excitações do aparelho psíquico.

A linha freudiana de divisão entre dentro e fora, que define o juízo de atribuição, torna-se, com Lacan, a entrada do simbólico. Freud havia instalado, desde o "Projeto para uma psicologia científica", uma divisão da realidade entre um fora primeiro (das Ding) e um dentro, na qual se pudessem reproduzir ou encontrar as qualidades do objeto perdido; em seguida, opôs e associou Bejahung, que será aproximado à incorporação do primeiro corpo de significantes, instaurado pelo Outro, e a Ausstossung, que é a face negativa e a constituição do fora como impossível, sucedida pela Verneinung. O fato de que a afirmação primordial não ocorra sem negação implica a existência de uma negação prévia à Verneinung.

Recapitulando, para trabalharmos as implicações do simbólico na constituição psíquica, teríamos, no texto freudiano sobre a Verneinung, uma outra maneira de dizer não, um não que vem como uma afirmação. A partir deste ponto, a negativa seria uma forma de ter conhecimento do que outrora estava recalcado, como uma suspensão do recalcado, porém sem aceitação do que foi recalcado. Neste sentido, existe um reconhecimento do inconsciente pelo eu, mas esse reconhecimento se expressa como negativa. É para trabalhar as vicissitudes do simbólico que o presente artigo traz à tona a perspectiva da dialética. Aqui teríamos a dimensão de reconhecimento: no movimento de suspensão do recalque, o eu não admite o recalcado, porém, reconhece a não-admissão.

Lacan oferece outra via para pensarmos a constituição do sujeito. Um retorno a Freud, pelo viés filosófico, traz uma perspectiva para a fundamentação do sujeito. A filosofia de Hegel seria o carro-chefe nas mediações sobre o diálogo. O discurso freudiano pode, então, colocar a problemática da constituição do sujeito pela inscrição da linguagem.

A relação entre a filosofia e a psicanálise parece ser mais próxima do que alguns imaginavam. Lacan não hesitou em relacionar o pensamento filosófico e psicanalítico, tornando-se o primeiro pensador a efetuar uma síntese entre as duas grandes vias de penetração do pensamento freudiano na França. Em 1954, Lacan convida o filósofo Jean Hyppolite ao seu seminário sobre a técnica freudiana, para saber como um hegeliano interpretaria o texto de Freud Die Verneinung.

Primeiramente, é importante lembrar que Hyppolite concorda com a tradução do referido texto para "Denegação", mas, em seu comentário, propõe que "denegação" não seria a única interpretação do termo Verneinung. Para o filósofo, a destruição referida por Freud é substituída pela negatividade. Hyppolite faz a relação da dialética do senhor e do escravo, utilizando como recurso a presença de uma negação como afirmação intelectual. Nesse ponto, o texto freudiano introduz uma outra forma de não, um não que supõe uma negação. Nesse caso, a negativa seria uma forma de tomar conhecimento do recalcado.

As questões sobre o encontro da filosofia e da psicanálise parecem ficar mais claras no comentário sobre a Verneinung de Freud. Neste comentário, Hyppolite (1989) demonstra a diferença entre a negação lógica e a atitude de negação. Isso quer dizer que para o filósofo a Verneinung seria uma atitude fundamental de simbolicidade explicitada (Hyppolite, 1989, p. 55). A partir deste ponto, podemos afirmar que a negativa enquanto Verneinung e a negação lógica seriam duas diferentes formas de negação.

Assim, teríamos uma denegação de um não a partir de um "não" que segue a lógica formal. Isso quer dizer que "não" passa a ser um símbolo da enunciação. Enquanto a negação demonstra um princípio da contradição, não é possível que algo seja e não seja ao mesmo tempo, e sob as mesmas circunstâncias, a negação psicanalítica relaciona-se ao primeiro acolhimento (Bejahung). Na Verneinung, trata-se da relação entre o retorno do recalcado e a admissão ou destituição do seu conteúdo. Ambas as formas de negação não se excluem, pois estão situadas em campos diferentes.

Das conclusões de Hyppolite, Lacan demonstra que sentido do recalque é diferente da Verwerfung. No recalque, algo pode ser desconhecido pelo sujeito após ter sido verbalizado, então é preciso admitir que, atrás do processo de verbalização, há uma acolhida (Bejahung) primordial, uma admissão no sentido simbólico, que, mesmo contestada, é reconhecida nessa contestação.

Para Lacan, o fator linguístico é decisivo na Verneinung de Freud, pois a negação é constitutiva do conteúdo negado, de forma que o sujeito não tem mais poder sobre a existência desse conteúdo. Ou seja, o conteúdo existe, mesmo que não admitido pelo sujeito. O discurso do sujeito pode contestar o conteúdo, mas não abolir a propriedade fundamental da linguagem, que consiste em implicar que "algo" corresponde àquilo que se enuncia - algo, e não nada. Assim, Hyppolite, supõe uma distinção entre a Verneinung, a qual pertence ao campo da enunciação, e a negação lógica, pertencente ao campo da proposição. Na primeira, está em questão a verdade do sujeito; na segunda, a validade lógica de uma proposição. Se a Verneinung de Freud é correlativa de uma verdade que foi verbalizada, mas não admitida, estaria, portanto, suposta uma divisão entre um sujeito da enunciação e um sujeito do enunciado. Um conteúdo é verbalizado, isto é, simbolicamente reconhecido, mas não admitido como existente para o eu. A frase freudiana é clara: "Negar algo em um julgamento é, no fundo, dizer: 'Isto é algo que eu preferiria reprimir'." Lacan analisa a Verneinung a partir da relação com o outro e com o Outro. Em um primeiro momento, apresenta a relação com o outro, relacionada à especularidade e, portanto, como constitutiva do eu. É preciso considerar a Verneinung, afirma Lacan (1998), como: "Uma negação formal: em outras palavras, de um fenômeno típico de desconhecimento (méconaissance) e sob a forma invertida (inversée) ... forma cuja expressão mais habitual - Não vá pensar que... - já nos fornece essa relação profunda com o outro como tal, que valorizaremos no Eu (Moi)." (Lacan, 1998, p. 181).

Assim, se o que é submetido à Verneinung supõe um outro em relação ao Eu, é porque, antes disso, há um Outro, há um acolhimento simbólico, uma Bejahung primordial que permite esse movimento da Verneinung. Assim, o que foi submetido à Bejahung, mesmo recalcado, persiste, retorna na repetição (retorno do recalcado), é submetido ao movimento da denegação, é uma presença simbólica. É nesse sentido que Lacan se refere à presença do significante no Outro como uma presença vedada ao sujeito, na maioria das vezes. É vedada, mas acolhida, pois foi submetida ao recalque originário (Urverdrängung). A psicanálise, já com Freud, admite a hipótese de uma divisão entre sujeito do enunciado e sujeito da enunciação. Ou seja, a psicanálise reconhece essa divisão, ou melhor, o próprio eu reconhece essa divisão a cada vez que nega o que acabou de verbalizar. E, na lógica, como seria abordada essa hipótese de uma divisão entre sujeito da enunciação e sujeito do enunciado?

Este termo de Freud, "negação", é, para o sujeito, a constituição do universo simbólico como escolha do infans a partir do reconhecimento. A força desse momento ganha um fôlego maior quando Lacan afirma que "essa criação do símbolo deve ser concebida como um momento mítico" (Lacan, 1998, p. 384).

As dificuldades desse debate estão no fato de que, no caso Bejahung-Ausstossung, trata-se de um mito sobre a origem, que supõe preexistir aquilo que presumivelmente a constitui. As tentativas lacanianas de esclarecer essa experiência da Bejahung promovem a experiência do simbólico: como o significante que se referirá a Bejahung primordial.

Na verdade, a Ausstossung vale para o sujeito em geral, faz parte do processo da Bejahung, separando o Outro, tesouro dos significantes, a partir da negação. Nesse aspecto, Lacan precisa que a existência comporta uma dimensão estritamente ligada à negação: se nada existe a não ser sobre um fundo de ausência, a simbolização é primitivamente uma negação. Essa negação primordial faz parte do processo da instituição do significante para o sujeito.

A negação torna-se, assim, uma denegação. Essa operação vai implicar na divisão psíquica (Spaltung), uma produção que surge como estado de suspensão. Se a Bejahung constitui uma inscrição necessária à entrada do sujeito no simbólico, isso se deve ao fato de ser uma criação do símbolo e de concernir a uma relação do sujeito com o ser (Lacan, 1998, p. 382).

É aqui que podemos entender os poderes da palavra para além da imagem. Lacan, no seu retorno a Freud, demonstra as vicissitudes do simbólico a partir do texto de 1925, confirmando as hipóteses presentes em "O estádio do espelho na formação da função do eu". A preexistência da linguagem em relação ao sujeito, para Lacan, implica que o sujeito só pode entrar na linguagem à custa de uma negação, de uma rejeição, de uma exclusão de gozo chamada por Freud de Ausstossung. A dupla operação Bejahung-Ausstossung se faz com o mesmo gesto, pois a incorporação do simbólico - Bejahung - não se faz sem a rejeição - Ausstossung.

Essa experiência é designada por Lacan como a própria revelação da palavra, que cumpre uma função ôntica. A construção do dentro e do fora traz uma interpretação sobre o ser. O sujeito passa a se reconhecer no desejo do Outro. O juízo de uma existência é o próprio nome. A palavra, agora, interpreta o ser em um lugar no mundo, a casa do sujeito é o próprio símbolo, que traz um nome para seu corpo: o sujeito realiza seu corpo na palavra (Lacan, 1998, p. 901).

Se Lacan elevou o texto freudiano de 1925 à gênese do sujeito, isso se deve às noções de realização e revelação que se conjugam na emergência do ser. É nesse momento que o significante surge como exceção. Para Lacan, a construção sobre o ser implica o sujeito na dimensão do próprio simbólico. É aí que a questão do inconsciente, em Lacan, passa a ser uma questão sobre o simbólico, para além da imagem.

Neste sentido, a contribuição de Lacan à psicanálise deve-se à maneira que o psicanalista atribuiu os poderes à palavra para além da imagem. O deslocamento do Édipo freudiano para o esquema "L" deve-se às investigações de Lacan sobre o seu tempo. Assim, Lacan, diferentemente de Freud, tinha em mãos as proposições sobre o poder da palavra diante da imagem.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS

1 O substantivo Bejahung e o verbo Bejahen são traduzidos, respectivamente, por "afirmação" e "afirmar".

2 Para Lacan, os textos decisivos de Freud para a construção das estruturas clínicas são: "A negativa" (Die Verneinung) e "O fetichismo". Esses textos revelam saídas subjetivas do sujeito em relação ao falo: o recalque do simbólico, a denegação e a forclusão, que seriam os mecanismos da neurose, da perversão (o fetiche como aquilo do imaginário que escapa ao simbólico, surgindo o objeto/imagem) e da psicose, respectivamente. A partir desse ponto, vamos dar inicio à verificação de que Lacan se apropria desses textos de Freud, inaugurando o conceito de falta.

 

 

Recebido em novembro/2008.
Aceito em janeiro/2009.

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