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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.14 n.26 São Paulo  2009

 

FUNDAMENTOS

 

O Moisés de Freud: saber e transmissão na psicanálise

 

Freud's moses: knowledge and transmission in psychoanalysis

 

El Moisés de Freud: saber y transmisión en el psicoanálisis

 

 

Alessandra Tavares SilvaI; Anna Carolina Lo BiancoII

IMestranda do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiros (UFRJ). teoriapsi@psicologia.ufrj.br
IIProfessora do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiros (UFRJ), Membro do Tempo Freudiano Associação Psicanalítica. clobianco@uol.com.br

 

 


RESUMO

Partindo do texto Moisés e o monoteísmo, o artigo examina as características da religião judaica em sua relação com o Grande Homem que a inaugura. Reconhece a ênfase dada por Freud ao assassinato de Moisés, o qual dá relevo a um ponto de descontinuidade na cadeia de transmissão que, remetendo à falha no saber mosaico, indica também o seu lugar de causa da religião judaica; lugar no qual vemos o aspecto inovador de um sujeito que retoma a transmissão, porém, sob sua própria responsabilidade. Em seguida, mostra que esta formulação pode ser aproximada à da operação analítica, pois localiza nesse mesmo lugar o ponto em que, da queda do sujeito a quem se supõe saber, surge o analista em sua dimensão objetal. O analisante responderá à convocação feita pelo analista como objeto, momento em que advirá na cadeia como sujeito responsável por sua duração.

Descritores: tradição; transmissão; saber; sujeito suposto saber; religião.


ABSTRACT

The article examines Freud's text Moses and Monotheism to circumscribe the relation between the presence of the Great Man and the long lasting tradition of Jewish religion. Refers to the emphasis put by Freud in the murder of Moses, since it shows a point where the transmission chain is interrupted. The subject must come in this place of interruption as responsible to give the chain its continuity. The Freudian construction is then approached from the point of view of the psychoanalytical operation when the patient supposes the analyst has full knowledge of the circumstances. It concludes by saying that only when faced with the lack of total knowledge on the part of the analyst which occupies the place of an object that causes the patient desire will the latter recognize a place of his/her own in a chain of transmission.

Index terms: tradition; transmission; knowledge; subject supposed to know; religion.


RESUMEN

Empezando por el texto   Moisés y el monoteísmo, examina las características de la religión judaica en su relación con el Gran Hombre que la inaugura. Reconoce el énfasis dado por Freud al asesinato de Moisés revelando un punto de discontinuidad en la cadena de transmisión. Lugar donde va a ser novedad ver surgir un sujeto que retome la transmisión, sin embargo bajo su propia responsabilidad. Acerca la construcción freudiana de la operación analítica en   la cual también se supone que el analista posee saber completo. Concluye que aquel que hace el análisis sólo va a ocupar su posición en una cadena de transmisión cuando se depara con la falta del saber completo del analista, en este momento él va a surgir en la cadena como el sujeto responsable por su duración.

Palabras clave: tradición; transmissión; saber; sujeto suposto saber; religion.


 

 

Neste trabalho, partiremos do texto Moisés e o Monoteísmo onde Freud instaura a figura do fundador da religião judaica ao mesmo tempo em que se indaga sobre o que determina as características dessa religião que resistem ao longo dos séculos. Ao examinarmos a cadeia de transmissão em que se insere o Grande Homem Moisés, nos depararemos com um ponto em que tal cadeia se interrompe: o ponto traumático de seu assassinato. Momento em que seu saber revela uma falha, vale dizer, se descompleta. É ante o lugar de descontinuidade na cadeia que vemos o aspecto inovador de um sujeito que se responsabilizará ele próprio por retomar esta cadeia.

Numa aproximação com a operação analítica, veremos o analisante como aquele que também supõe um Grande Homem - o analista - cujo saber seria completo. No entanto, esse é o mesmo ponto em que na análise podemos falar na dessuposição de saber do qual restará o analista em sua face de objeto-causa do advento do sujeito. É, então, na aproximação com a operação analítica que podemos reconhecer, no momento traumático do assassinato, o lugar do encontro com o objeto. O objetivo do texto é enfatizar que, nesse encontro com a convocação feita pelo analista que ocupa o lugar de objeto, o sujeito do inconsciente virá a se responsabilizar por ocupar um lugar na cadeia que terá feito seu. Torna-se assim responsável por sua duração.

 

Moisés bíblico, Moisés freudiano

De acordo com os escritos bíblicos, a história de Moisés é contada, em breves linhas, da seguinte maneira: filho de família pobre, de servos judeus, ainda bebê é abandonado dentro de um cesto nas águas de um rio. A filha do faraó do Egito o encontra e passa a criá-lo como seu próprio filho, um herdeiro da nobreza. Ao crescer, Moisés se rebela contra a servidão imputada aos judeus, mata um egípcio que ferira um hebreu e, após o ocorrido, foge para a região de Midiã. É nessa região que Deus fala a Moisés, revelando-lhe sua missão, qual seja, a libertação dos judeus da escravidão. Assim, tem início a peregrinação rumo à terra prometida. Moisés torna-se o líder daquele povo, o homem que trouxe a revelação de Deus aos homens, os Dez Mandamentos (A Bíblia Sagrada, 1969).

O que surpreende no texto de Freud (1934-39/1996b) é a maneira como este o constrói, rompendo com esse registro escrito da Bíblia. Persegue os pontos obscuros da história de Moisés, as lacunas, o que ficara esquecido e apartado do registro, por assim dizer, oficial. Abandona a "escala de certeza"1 (Freud, 1900/1996a, p. 548) e constrói seu texto à medida que também constrói a história de Moisés, inserindo um ponto traumático em sua constituição e dele extraindo consequências.

A partir da inserção do traumático na história de Moisés, é forjada a ligação com a pregnância da religião judaica. Portanto, o ponto inegociável de corte e descontinuidade é aquele que une a história não oficial de Moisés à constituição do judaísmo: "E, aqui, segundo parece, cheguei à conclusão de meu estudo, que se dirigiu para o objetivo único de introduzir a figura de Moisés egípcio no nexo da história judaica" (Freud, 1934-39/1996b, p. 64).

Ressalta aqui a noção de construção a que recorre Freud: não se trata apenas de inventar esta figura do Moisés egípcio, sem que esta se prenda ao acontecer histórico. Ao contrário, Freud (1934-39/1996b) utiliza exatamente o termo "fóssil de referência" (p. 51) para denotar os traços esquecidos da história de Moisés a partir dos quais constrói seu texto. Como na clínica, é dos pontos de lacuna e esquecimento que extrai o material do qual se utiliza para a construção da singularidade da história de Moisés, implicando uma noção de tempo cujo conceito para a psicanálise traz uma característica especial. Trata-se de um tempo não linear ou contínuo, mas, uma temporalidade em que se estabelece "o caráter persistente dos traços inconscientes considerados indestrutíveis, incorruptíveis a que não se tem acesso direto, que se mantêm imunes à passagem do tempo e que tampouco obedecem a uma deliberação consciente" (Lo Bianco & Araújo, 2007, p. 361).

Afirma reconhecer o risco que sua investigação suscita, principalmente porque esta parte da premissa de que Moisés era egípcio, ou seja, torna o grande homem da religião judaica um estrangeiro. Frente ao horror que sua empreitada poderia causar, Freud (1934-39/1996b) sentencia: "Privar um povo do homem de quem se orgulha como maior de seus filhos não é algo a ser alegre ou descuidadamente empreendido, e muito menos por alguém que, ele próprio é um deles. Mas não podemos permitir que uma reflexão como esta nos induza a pôr de lado a verdade em favor do que se supõe serem interesses nacionais; além disso, pode-se esperar que o esclarecimento de um conjunto de fatores nos traga um ganho em conhecimento." (p. 19).

Assim, frente a todos os obstáculos que de sua investigação poderiam surgir, Freud não arrefece, aceita o risco, dá o mergulho. E o primeiro ponto levantado a respeito do caráter estrangeiro de Moisés dirige-se à origem do próprio nome. Freud (1934-39/1996b) afirma ser este um nome de origem egípcia, e acrescenta que não haveria sentido algum uma princesa egípcia dar um nome judeu à criança que fora por ela encontrada.

Neste momento, o referido texto argumenta a partir de uma série de conhecidos nomes que podem ter sua origem deduzida pelo próprio nome. O autor toma esse dado e o inclui da história de Moisés, concluindo, então, sua nacionalidade pelo nome que lhe fora dado.

Do nome, Freud (1934-39/1996b) parte para as sagas dos grandes heróis, o mito do abandono. Tradicionalmente, tais sagas são contadas numa estrutura que basicamente se constitui como: uma criança de origem pobre é abandonada, pois, geralmente, uma profecia alerta aos pais sobre o perigo que ela poderá causar-lhes. Esta é, então, encontrada por uma família de origem mais humilde, que se dispõe a criá-la. Após ter crescido, descobre sua verdadeira origem aristocrática, se faz reconhecer como tal, alcançando a nobreza.

No caso de Moisés, a saga é contada de forma invertida. Primeiro, a origem humilde, depois a família aristocrática, e, por fim, o retorno às raízes mais humildes. Essa é a sequência reconhecida pelos registros oficiais e que irá causar estranhamento a Freud (1934-39/1996b) por se contrapor fortemente às tradicionais sagas dos grandes heróis.

Por um lado, não haveria motivo, entre os egípcios, para manterem a origem egípcia de Moisés, visto que este não representa para eles um herói. De outro lado, não interessaria aos judeus aclamarem um herói de origem estrangeira, exatamente o dado que se pretendeu expurgar de qualquer registro oficial. Portanto, podemos afirmar que tal inversão na história de Moisés fora empreendida pelos próprios judeus com o objetivo de transformar seu grande homem num deles. Segundo Freud (1934-39/1996b): "que utilidade poderia ter para um povo uma lenda que transformava seu grande homem em estrangeiro?" (p. 25). É interessante observar que apesar da inversão ter sido rapidamente incluída e absorvida pelas fixações escritas, tal inclusão não se deu sem deixar restos ou marcas nas quais Freud irá se deter para, com elas, forjar sua construção.

Neste ponto, podemos levantar algumas questões que permeiam todo o texto, como por exemplo: sendo Moisés um egípcio, o que o levou a liderar o povo judeu? Com que objetivo teria abandonado a vida aristocrática, descido até o nível dos escravos para libertá-los e fornecer-lhes uma religião? Qual teria sido a base da nova religião? E, ainda, a pergunta mais fundamental: qual a peculiaridade da religião judaica que a faz se perpetuar por tanto tempo?

 

Religião egípcia e religião judaica

A religião egípcia é caracterizada como um politeísmo irrestrito, com adoração de vários deuses, crença na vida após a morte, culto a imagens, sendo que "atos, encantamentos e amuletos mágicos e cerimoniais dominavam a vida desses deuses, assim como governavam a vida cotidiana dos egípcios" (Freud, 1934-39/1996b, p. 31). Veremos que o que também fora esquecido da história egípcia, Freud (1934-39/1996b), com seu trabalho vem iluminar.

Em um momento rechaçado pelos próprios egípcios, o autor localiza a origem do monoteísmo judaico. Este momento teria ocorrido quando um jovem faraó, denominado Amenófis IV, sobe ao trono e impõe aos súditos egípcios uma religião que, em grande medida, contrariava as tradições politeístas milenares daquele povo.

A doutrina imposta pelo faraó introduziu, portanto, uma novidade entre os egípcios. Era a crença num deus universal e único, na presença do qual nenhum outro poderia existir. A radicalidade da doutrina faraônica foi ao limite. O faraó trocou seu próprio nome, Amenófis, por Akhenaten, pois, o nome anterior fazia referência ao deus Amun. Ao assumir o monoteísmo, nenhum outro deus poderia ser cultuado, a não ser o deus solar On, ou Aten, que pregava uma vida na Verdade e na Justiça, enaltecido pelo faraó como único deus (Freud, 1934-39/1996b, pp. 33-37).

Entretanto, a força impositiva do faraó não fora bem recebida, a nova crença não conquistara a adesão popular. Suas restrições, em especial a negação da vida após a morte, em tudo contradiziam as religiões cultuadas até então. Após reinar por alguns anos com extrema violência, o rei morre de forma obscura. As religiões do Egito são, então, restabelecidas e a religião de Aten, abolida. "A cidade real de Akhenaten foi destruída e saqueada, e a memória dele proscrita como a de um criminoso" (Freud, 1934-39/1996b, p. 36).2

O próprio Freud (1934-39/1996b) afirma que o pouco do que se pôde ter de acesso ao reinado de Akhenaten deriva de investigações sobre ruínas esquecidas daquele período. E é a elas que o texto freudiano se alia para a construção de um ponto de ligação entre a religião egípcia e a nova religião implementada por Moisés. Assim, Moisés dá aos judeus não a religião egípcia, mas uma religião egípcia, na qual sua origem pode ser vislumbrada neste monoteísmo imposto por Akhenaten. Vale dizer, para Freud "toda a novidade deve ter suas preliminares e pré-condições em algo anterior" (p. 33), e, posteriormente, acrescenta: "se Moisés era egípcio e se comunicou sua própria religião aos judeus, ela deve ter sido a de Akhenaten, a religião de Aten" (p. 38).

Além do monoteísmo de Akhenaten, Freud também se detém na prática da circuncisão como mais um traço de conjunção entre a religião judaica e a egípcia. Moisés não só apresenta uma nova religião aos judeus, como também, introduz entre eles o costume da circuncisão, hábito comum entre os egípcios, pelo qual sentiam-se orgulhosos e enaltecidos. Um costume de valor tão estimado como esse não poderia ser descartado por Moisés na formação do povo eleito.

"Se Moisés deu aos judeus não apenas uma nova religião, como também o mandamento da circuncisão, ele não foi um judeu, mas um egípcio, e, nesse caso, a religião mosaica foi provavelmente uma religião egípcia, que, em vista de seu contraste com a religião popular, era a religião de Aten, com a qual a religião judaica posterior concorda em alguns aspectos marcantes." (Freud, 1934-39/1996b, p. 40).

O costume da circuncisão entre os judeus vem, no texto freudiano, ressaltar ainda mais a validade de sua hipótese, a ideia de que Moisés, o líder e fundador do judaísmo, era estrangeiro. O autor, em vários momentos, mostra-se conhecedor da audácia e do horror que sua investigação carrega. Mas, em nenhum momento recua, e chega a afirmar "aquilo que é provável não é necessariamente a verdade, e que a verdade nem sempre é provável" (Freud, 1934-39/1996b, p. 29). O texto freudiano marca este paradoxo e tenta, não dissolvê-lo, mas trabalhar com ele na construção de uma verdade com restos e ruínas, portanto, uma verdade impossível de ser toda dita, uma verdade sempre fragmentária.

Com isso, a questão a respeito do que levaria um egípcio a liderar o povo judeu encontra um possível encaminhamento. Freud (1934-39/1996b) aproxima Moisés da dinastia de Akhenaton. Define-o como membro da casa real, ambicioso e enérgico, próximo ao rei e aderente convicto de sua religião. Com a morte do faraó e a destruição de sua obra, a permanência de Moisés no Egito passou a depender de sua completa rejeição ao monoteísmo de Aten, agora extinto. Porém, "a natureza mais enérgica de Moisés sentia-se melhor com o plano de fundar um novo reino, de encontrar um novo povo, a quem apresentaria, para adoração, a religião que o Egito desdenhara" (Freud, 1934-39/1996b, p. 41).

De acordo com o que tratamos até aqui, podemos afirmar, então, que Moisés encontra no povo judeu a possibilidade de fundar uma nova religião, na qual conseguisse preservar a característica fundamental da religião de Akhenaten, a crença num deus único todo-poderoso, acrescida, agora, de suas próprias características: o espírito enérgico, forte e dominador. Nessa nova religião, a circuncisão tem lugar de grande importância, uma vez que, sendo anteriormente uma característica que incutia nos egípcios o sentimento de serem povo elevado em relação aos outros, não poderia, agora, ser abolida da nova religião. Os judeus se constituíram como o povo escolhido, os filhos preferidos de Deus, reconhecidos pelo pacto da circuncisão, o povo diferente entre os demais. Não deveriam se sentir inferiores aos egípcios, nem a qualquer outro povo (Freud, 1934-39/1996b, pp. 40-43).

Dessa maneira, tanto a origem do nome Moisés quanto a religião de Aten e a prática egípcia da circuncisão tiveram fortes motivos para se manterem rechaçadas da história oficial da religião judaica. Era importante que qualquer traço que indicasse proximidade entre o judaísmo e uma religião anterior fosse sonegado. Era preciso que o judaísmo se constituísse como a religião inovadora, daqueles escolhidos especialmente para levar adiante a sua mensagem. Para tanto, sua fundação não poderia ser manchada por vinculações com outras religiões, especialmente, o politeísmo egípcio, que possuía características severamente negadas pelo judaísmo.

 

Mensagem monoteísta e transmissão

O êxodo do Egito é, então, realizado sob a liderança de Moisés com o objetivo de fundar a nova religião. "Moisés abaixara-se até os judeus, fizera-os seu povo: eles eram o seu povo escolhido" (Freud, 1934-39/1996b, p. 57). Neste momento, podemos sublinhar a pergunta levantada por Freud (1934-39/1996b) sobre como a religião judaica - e, por conseguinte, a mensagem monoteísta veiculada por Moisés - pôde se perpetuar por tanto tempo.

Do momento do êxodo até o recebimento das leis no Monte Sinai, o autor reconhece um corte na história de Moisés, um ponto de ruptura que ficara ocultado pelos registros oficiais. Haveria o Moisés legislador - o egípcio, condutor do êxodo do Egito - e o Moisés midianita, mediador entre Deus e o povo, aquele que recebe a convocação de Deus, os Dez Mandamentos. A tradição que prevaleceu sobre a história de Moisés tem, assim, o caráter de uma conciliação entre os dois homens. Une o Moisés egípcio ao Moisés midianita, favorecendo a prevalência de uma história linear, sem cortes ou ruptura, uma montagem sequencial de grandes acontecimentos que, como dissemos, pode ser considerada como a história oficial.

Freud (1934-39/1996b) em sua investigação, no processo de construção de seu texto, não se deixa contaminar pela linearidade da história judaica. Ao contrário, a cada linha o autor ressalta o corte, o obscuro, a não-continuidade. Da conciliação do registro oficial, faz reverberar o heterogêneo da história mosaica. Veremos, a partir da clínica e do lugar ocupado nela pelo corte, que esse ponto implica o momento mesmo do surgimento da dimensão objetal.

Lacan (1959-60/1997), em O Seminário, livro 7: A ética da psicanálise, vem também ressaltar a heterogeneidade entre os dois Moisés, reconhecendo a importância dada por Freud (1934-39/1996b) a este ponto para a questão da transmissão da mensagem monoteísta. Quanto a isso, Lacan (1959-60/1997) afirma: "Moisés, o egípcio, é o Grande homem, o legislador, e também o político, o racionalista, aquele cuja via Freud pretende descobrir no aparecimento histórico, no século XIV a.C., da religião de Akhenaten, atestada pelas descobertas recentes." Faz ressoar a pergunta freudiana sobre a duração da religião mosaica, na qual nos apoiamos para estabelecer nosso percurso no presente texto, ao acrescentar: "essa é a concepção freudiana do que é o verdadeiro Moisés, o Grande Homem, do qual se trata de saber como sua mensagem nos é ainda transmitida" (p. 212).

Sobre o Moisés midianita, Lacan (1959-60/1997) assevera: "Ao lado havia Moisés, o midianita, o genro de Jetro, que Freud chama de o do Sinai, de Horeb, e cuja figura, ensina-nos ele, foi confundida com a do primeiro. É aquele que ouve surgir da sarça ardente a fala decisiva, que não poderia ser evitada, como o faz Freud.... - Eu sou o que sou, isto é, um Deus que se apresenta essencialmente como escondido" (p. 213).

Com o aparecimento do novo Deus de Javé, o Deus sem imagem da sarça ardente, tornou-se urgente glorificá-lo, fazer com que sua mensagem pudesse ser recebida entre os homens sem maiores obstáculos. Para tanto, foi necessário apagar traços de religiões mais antigas. Aqueles que haviam participado do êxodo do Egito, e que ainda tinham a figura do Moisés egípcio viva na memória, só se deixariam persuadir à medida que o varão Moisés fosse confundido, unido à memória do sacerdote de Javé, aquele que trouxera a mensagem monoteísta.

É interessante observar que, como veremos, o que Freud (1934-39/1996b) irá ligar à força da religião judaica é exatamente o que fora renegado de sua tradição. Para o autor, a fusão entre os dois Moisés, sua conciliação numa só personagem, serviu a intuitos deformantes que já se encontravam em ação antes mesmo de um registro escrito ser produzido, com o objetivo de glorificar e fortalecer o novo Deus, Deus único ao lado do qual nenhum outro poderia ser cultuado. Daí a extrema importância de unir os dois Moisés num único homem, em uma história contínua, para que a mensagem monoteísta não fosse questionada. Porém: "Em quase toda a parte ocorreram lacunas observáveis, repetições perturbadoras e contradições óbvias, indicações que nos revelam coisas que não se destinavam a serem comunicadas. Em suas implicações, a deformação de um texto assemelha-se a um assassinato: a dificuldade não está em perpetrar o ato, mas em livrar-se de seus traços." (Freud, 1934-39/1996b, p. 55, grifo nosso).

E é sobre os restos esquecidos e menosprezados pela tradição aceita a respeito de Moisés que o texto freudiano irá se debruçar, articulando a força do judaísmo à não-linearidade da história mosaica. O método utilizado na construção do texto é também o método usado na construção da história do sujeito em análise, onde, a partir de fragmentos, de fósseis renegados pelo discurso coerente é possível descobrir que o que foi suprimido continua agindo de um outro lugar, despojado de seu contexto.

Mais uma vez, iremos ressaltar que Freud (1934-39/1996b) rompe com a aceita linearidade da história de Moisés, reacende os traços que viriam a dar força à ruptura de sua história, trazendo para o primeiro plano os vestígios que evidenciam a forçada coerência que une o legislador egípcio ao homem recebedor dos Dez Mandamentos. Entre um e outro, o autor faz valer o corte, ao afirmar que Moisés, o líder de origem egípcia, fora assassinado. A partir desta suposição, que para Freud (1934-39/1996b) encontra ecos na obra do autor Ernest Sellin, assevera: "O primeiro desses fatos descobertos por Ernest Sellin é que os judeus, que, mesmo segundo a descrição da bíblia, eram obstinados e indisciplinados para com seu legislador e líder, levantaram-se contra ele um dia, mataram-no e livraram-se da religião de Aten que lhes fora imposta, tal como os egípcios se tinham livrado dela anteriormente." (p. 74).

Como podemos ver, a construção do texto freudiano é realizada na valorização de uma suposição que demarca aquilo que tão reiteradamente sofreu repúdio.3

Apesar de todas as resistências, o autor faz vibrar em suas linhas o que foi rechaçado pelo discurso coerente a respeito da religião judaica. Ao mesmo tempo em que constrói seu texto, constrói também o real que terá estado na base do judaísmo, ponto de origem em que se mesclam a força da religião judaica e o assassinato de Moisés, onde Freud ao reconhecer "traços indeléveis e imortais do trauma, que insistem em não se deixar inscrever, reconhece, ao mesmo tempo, o poder da transmissão" (Lo Bianco, 2007, p. 131).

É nesse ponto traumático e obscuro da história mosaica que Freud constrói a chave para a explicação da pregnância milenar da mensagem monoteísta que constitui o povo judeu. A transmissão da mensagem monoteísta encontra sua força no trauma do assassinato de Moisés, ou seja, naquilo que, por não poder ser dito, é "cativado na obscuridade" (Freud, 1934-39/1996b, p. 63), no esquecimento, mas, ainda assim, produz efeitos no real, neste caso, a própria religião judaica, que surge com sua pregnância como efeito de um trauma. É necessário ver que neste momento está implicada a dimensão objetal instaurada pelo corte introduzido pelo assassinato. Nos deteremos mais detalhadamente nesta dimensão posteriormente, quando tomarmos a passagem de analisante a analista, com o que ela nos traz acerca do analista como objeto causa de desejo.

 

Tradição herdada e tradição comunicada: o trauma

Vimos, então, que Freud (1934-39/1996b) localiza a transmissão da mensagem monoteísta, com sua força milenar, no ponto de hiância da história de Moisés, naquilo que ficara apartado dos registros oficiais, o ponto traumático do assassinato do grande líder. Dessa forma, aproximamos a questão da transmissão do ponto de corte, trauma, ruptura com a simples extensão dos acontecimentos. Nessa via, o texto freudiano faz uma importante distinção entre tradição comunicada e tradição herdada (ver Lo Bianco & Araujo, 2007), onde, a partir desta última, poderemos encaminhar a operação da transmissão.

A tradição comunicada constitui a comunicação direta, linear. No caso da formação do judaísmo, as lembranças relatadas pelos mais velhos aos mais jovens sobre o êxodo do Egito, por exemplo. Sobre esta tradição, Freud (1934-39/1996b) assinala: "Esse caso não envolve problema algum. Segundo nossa teoria, uma tradição desse tipo baseava-se em lembranças conscientes de comunicações orais que as pessoas então vivas tinham recebido de seus ancestrais de apenas duas ou três gerações atrás, ancestrais, que, eles próprios, tinham sido participantes e testemunhas oculares dos acontecimentos em apreço." (p. 108).

O autor vem ressaltar que a profundidade da mensagem monoteísta, a força de transmissão que a fez ser perpetuada ao longo dos séculos e forjou a constituição de um povo, não pode ser explicada ou subsumida a uma tradição veiculada por um fluxo contínuo de comunicação, na simples divulgação dos fatos ocorridos. Para Freud, a mensagem monoteísta encontra sua força de transmissão justamente no ponto de ruptura com a linearidade discursiva, no ponto de trauma da história de Moisés, ponto que remete ao trauma da própria constituição do sujeito, sua entrada no mundo da linguagem, marcada pela castração, ou seja, pela incidência do trauma.

À tradição marcada pela ruptura, Freud dá o nome de tradição herdada, acrescentando que aquilo que opera na vida psíquica do sujeito se refere não apenas ao que ele próprio experimentou, mas também a coisas que se encontram inatamente presentes, ao que possui uma origem filogenética, em suas palavras, uma "herança arcaica" (Freud, 1934-39/1996b, p. 112). São os termos que encontra para falar de uma herança arcaica em conexão com o que é constitucional no sujeito, daí a referência à filogenia, ao inato, para denotar mais claramente a diferença em relação à tradição comunicada. A tradição herdada não pode ser aprendida racionalmente, por conteúdos logicamente encadeados a serem transmitidos a cada sujeito por uma via consciente. Trata-se, exatamente, daquilo que não pode ser apreendido por um saber. Para Freud (1934-39/1996b): "Refletindo mais, tenho de admitir que me comportei, por longo tempo, como se a herança de traços de memória da experiência de nossos antepassados, independente da comunicação direta e da influência da educação pelo estabelecimento de um exemplo, estivesse estabelecida para além de discussão. Quando falei da sobrevivência de uma tradição entre um povo, tinha principalmente em mente uma tradição herdada desse tipo, e não uma tradição transmitida pela comunicação." (p. 113).

A tradição transmitida pela comunicação está atrelada ao julgamento da consciência e à coerção do pensamento lógico. Sendo assim, não encontraria forças para determinar a formação do caráter de um povo. A formação de um povo, assim como a constituição do sujeito, está marcada por algo que não entra em conexão com o pensamento lógico-racional. Trata-se de uma incidência primeira vinculada ao trauma, e, por isso, apresenta efeitos tão poderosos, justamente por ser algo que não pode ser capturado por um saber, conserva-se em estado latente, tendo o trauma como causa.

Como dissemos, Freud (1934-39/1996b), em seu trabalho sobre Moisés, rompe com a linearidade dos fatos, fazendo valer a ruptura da história mosaica construída a partir dos fragmentos recolhidos como vestígios. A invenção freudiana se dá no ponto de maior submissão aos rastros elididos do que se configurou como a história oficial da religião judaica. No conformismo dos fatos, seu trabalho faz incidir o trauma do assassinato como núcleo da transmissão do monoteísmo, com seu vigor milenar.

Dessa maneira, a questão da transmissão é colocada na medida em que toca um ponto de impossibilidade, de corte com a integralidade, um ponto onde a incidência traumática da castração opera inaugurando a descompletude na qual um sujeito poderá advir, tomando seu lugar como herdeiro da tradição que o corte inaugura. Fazer valer a transmissão é trabalho do sujeito. Não se dá sem o passo ético do sujeito em se inserir na rede de causas que o constitui. É importante salientar ainda a temporalidade em jogo na tradição herdada. O ponto traumático localizado como causa é localizável apenas a posteriori. Não há uma ordem sequencial de fatos que garanta a constituição desta tradição. É somente a partir dos efeitos que a causa pode, então, ser construída.

 

Grande homem e suposição de saber

A transmissão da mensagem monoteísta se dá, então, pela via que Freud (1934-39/1996b) caracteriza como tradição herdada. Ou seja, não por uma aquisição de saber, mas sim a partir da incidência da marca traumática, de corte e divisão, a partir da qual a mensagem pode ser veiculada.

Em um determinado momento de sua investigação, Freud (1934-39/1996b) questiona sobre como foi possível a Moisés, isoladamente, formar um povo, dar-lhes um caráter definitivo, determinando, assim, seu destino por milhares de anos. Questiona o próprio lugar ocupado por Moisés na transmissão da mensagem monoteísta, atribuindo-lhe a denominação de Grande Homem. É sobre esta denominação que iremos agora nos deter.

Em seu texto, o autor rompe com a ideia de Grande Homem atrelada a um lugar de aquisição de saber, acúmulo de conhecimento, força física ou beleza. Afirma, ao contrário, que sua influência transcende a uma personalidade isolada, fazendo-o ocupar um lugar numa rede de causas.

É nesse ponto de inserção numa cadeia de transmissão que poderemos articular o lugar ocupado pelo Grande Homem freudiano e a suposição de saber presente numa análise. Pois, apesar de a ele ser atribuído um saber, por meio do qual se poderia garantir a felicidade e o fim do mal-estar, não é desse lugar que o Grande Homem opera. Como veremos, a operação se dá pela incidência do corte na cadeia e pelo valor de causa que passará a ter.

Operar a partir de um lugar de identificação ao saber é, desde já, descartar o trabalho pelo qual se constitui a transmissão. A identificação ao saber, como dissemos, é se manter no que Freud (1934-39/1996b) denominou de tradição comunicada, onde a aquisição de saber pela comunicação garante a dominação do patamar anterior, instaurando uma via progressiva que se estabelece na direção da cada vez maior acumulação de saber. A transmissão opera, ao contrário, na via que escapa ao saber, que não pode ser por ele apreendido. Desta forma, a inserção numa cadeia de transmissão é vislumbrada, pois não se trata de resolução, mas, ao contrário, de um passo ético de submissão à incompletude que constitui cada sujeito, de submissão à própria incidência da castração, passo esse que não pode ser antecipado ou garantido por nenhuma instância externa ou anterior ao próprio ato do sujeito, e que implica no confronto com o objeto que resulta daquilo que escapa ao saber.

Por outro lado, no entanto, o lugar do Grande Homem ou do suposto saber não pode ser descartado numa via de transmissão. É o que ensina a clínica analítica quando nos depara com a instauração do sujeito suposto saber, pois não será sem essa suposição que o analista ocupará o lugar de objeto em um tratamento. Ao nos aproximarmos de uma análise, vemos que aquele que a procura acredita que o analista possui o saber que lhe falta para se ajustar às exigências da vida. Acredita que o analista, um dia, lhe dará a fórmula que o manterá em paz com suas insatisfações.

Melman (2007), em seu texto "A Crença", discute as consequências clínicas da ideia à qual o sujeito se agarra: de que em algum lugar, "há alguém que sabe" (Melman, 2007). Para este autor, não cansamos de atribuir um sujeito ao saber inconsciente e desconhecido, que nos sabe sem que a ele tenhamos algum acesso. Em suas palavras: "nós não deixamos de atribuir-lhe um sujeito, quer dizer que esse saber, para nós, se presta à suposição de que existe um sujeito que tem sua mestria, e é esse o sujeito que Lacan chamará de sujeito suposto ao saber" (Melman, 2007). Assim, "o sujeito suposto saber na análise é o analista" (Lacan, 1964/1998b, p. 213). É a ele que o sujeito dirige seu desejo de saber, seu desejo de, em algum momento, alcançar o saber que lhe falta para ter o controle de sua vida, atingindo o patamar que considera ideal. Portanto, ao se dirigir a um analista, o sujeito está dirigindo-se também ao suposto saber.

Sobre a relação do psicanalista com o desejo de saber do psicanalisante, Lacan (1969-70/1997) afirma: "além do mais, não é mais ele quem o suscita, ele se oferece como ponto de mira para qualquer um atacado por esse desejo particularmente problemático" (p. 112). O significante mira sobre o suposto saber em sua relação com o lugar do psicanalista, repete-se no texto lacaniano. Em Proposição de 9 de outubro de 1967 - sobre o psicanalista da Escola, o autor menciona "a posição de miragem em que se assenta a posição do psicanalista" (Lacan, 1967/2003, p. 258).

Neste momento, é valioso nos determos na dimensão de miragem de que Lacan reveste o lugar do analista. Esse lugar, como mencionado, é o ponto de mira do desejo do analisante. É para ele que o paciente dirige, direciona, remete, endereça o seu desejo de tamponar o furo que o atravessa causado pelo saber inconsciente que lhe escapa. É importante, no entanto, enfatizar que esse mesmo movimento traz a dimensão de engodo que o suposto saber presentifica. Por isso, Lacan (1951/1998a) ressalta que "esse engodo é útil, pois, mesmo enganador, reativa o processo" (p. 225).

Podemos dizer que o suposto saber reativa o processo, que aqui entendemos como a fala dirigida ao analista, operação sobre a qual uma análise se dá, na medida em que comparece de modo a frustrar a demanda do analisante. Essa frustração se transforma em motor do tratamento, "o verdadeiro motor da cura", como observa Rocha (2003, p. 124), advertindo que para essa transformação ocorrer, é preciso que o analista "encontre uma certa resposta, que não lhe seja simétrica, essa resposta cujo conceito Lacan produziu como o desejo do analista".

Caso o analista se identifique com a suposição de saber e responda desse lugar de saber, é certo que uma clínica que contradiz radicalmente a proposta da clínica psicanalítica irá se configurar. Ao se confundir com o suposto saber, o analista não promoverá nada além de uma comunicação de conteúdos a serem, então, julgados pelo paciente. Resumir-se-á, assim, a um saber que, ao ser apropriado pelo paciente, este pode, ou não, aplicá-lo em sua vida.

 

Considerações finais

Voltando à leitura do texto freudiano Moisés e o monoteísmo, havendo discutido a implicação do Grande Homem para a transmissão, temos agora subsídios para voltarmos a esta questão tendo em vista o dispositivo analítico. Vimos que a força de transmissão da religião judaica não é devedora de uma repetição consciente dos fatos que permearam sua constituição. Sua pregnância milenar encontra veemência justamente naquilo que foi renegado por sua tradição escrita - o trauma do assassinato de Moisés. Com a sua morte, instaura-se uma interrupção na cadeia de transmissão. Acreditamos que a religião judaica subsistirá da tomada de posição de cada um de seus membros frente a este acontecimento traumático. Dessa maneira, o Grande Homem opera como lugar de convocação à transmissão, comparecendo com o trauma que marca sua própria finitude, abrindo espaço para que cada sujeito, a partir da incompletude prometida por sua deiscência, venha, em nome próprio, se inscrever na cadeia de transmissão que marca a religião judaica.

Para fazermos essas afirmativas, valemo-nos da aproximação com a clínica analítica. Da mesma forma como na transmissão mosaica não encontramos a transmissão direta de conteúdos positivos, na clínica tampouco a formação do analista se constitui mediante a aquisição de conhecimentos técnicos. Ela só terá acontecido no âmbito de uma experiência. Como afirma Lacan (1964/1998b) ao analista "deve ser transmitido, e numa experiência, aquilo de que ele retorna. Esse ponto pivô é o que eu designo... pelo nome de desejo do psicanalista" (p. 218). Trata-se então de ter o desejo implicado através de sua análise pessoal. É preciso que ele passe por essa experiência para que não lhe reste nenhum saber que não seja o saber da transferência. Ou seja, ele não se forma sem o saber, mas sua formação está além do saber, ela implica o desejo do analista.

Daí a análise pessoal se configurar como o terreno nuclear de sua formação. É através dela que o analista poderá vir a ocupar o lugar de causa do sujeito do desejo. É apenas a partir dessa experiência que vê a que chega um sujeito a quem se supõe o saber: a queda que "atinge o sujeito suposto saber, e que no final é ele, o analista que dá corpo ao que esse sujeito se torna sob a forma de objeto pequeno a" (Lacan, 1967-68, Lição de 10/01/1967).

Dizemos que uma análise teve início pelo endereçamento ao sujeito a quem se supôs saber sobre aquilo que nos escapava. Esse é o ponto de mira que inaugura uma análise. Entretanto, terá havido analista se ele não tiver se identificado com o saber que lhe é suposto. Porém, ao mesmo tempo, também não lhe cabe rechaçá-lo, pois é a partir de seu ponto de mira que o endereçamento transferencial terá se constituído. Podemos afirmar que, ao se oferecer como mira, o analista dirige o tratamento em direção ao ponto limite em que a suposição de saber feita a ele é elidida. Sendo assim, resta ao analista receber a suposição de saber, sem a ela se identificar, suportando o real da dimensão transferencial que, então, se desenrolará.

Ainda que a psicanálise envolva o que poderíamos ver como dois parceiros - o analista e o analisante - ela leva em conta um terceiro termo que é o significante. O suposto saber alçado ao lugar de significante expressa toda a diferença na qual a clínica psicanalítica opera. Como significante, o suposto saber não é mais um lugar de fechamento e completude, um alvo a ser realmente alcançado, e, assim, superado. Ele é, em vez disso, esvaziado de qualquer possibilidade de ser encarnado pelo analista, cabendo a este a responsabilidade de operar com o suposto saber, fazendo valer a dissimetria, a incompletude e a convocação que vigoram a partir da submissão à dimensão significante. Para suportar a demanda do amor transferencial, o pedido voraz pelo objeto ideal, o analista conta apenas com seu desejo, com seu próprio ponto de falta, com a incidência de sua própria castração -, vale dizer, com sua análise.

É apenas a partir da experiência de sua análise pessoal que um analista sustenta receber uma suposição de saber sem dar a ela consistência ou preenchimento. Porque nessa experiência, caso tenha chegado ao seu fim, o analista foi confrontado com a queda do sujeito suposto saber, logo, confrontado com a inexistência de um saber positivo que definitivamente obture a perda ineliminável que marca sua posição. Como afirma Lacan (1967-1968, Lição de 10/01/1967), "o final da análise consiste na queda do sujeito suposto saber, e sua redução ao advento desse objeto a, como causa da divisão do sujeito, que vem ao seu lugar".

Com a derrisão da instância do sujeito suposto saber, o que aparece é a queda de um ideal a ser alcançado. E, da queda do ideal, o que resta não é outra coisa senão a dimensão do objeto a. Daí Lacan afirmar que, "no nível do pequeno a, a questão é inteiramente diferente daquela do acesso a algum ideal" (Lacan, 1960-61/1992, p. 381). A queda do sujeito saber tem como produto o objeto causa do desejo (Lacan, 1969-70/1998c, p. 135). É na confrontação com esse ponto limite de constituição do sujeito que se dá a presentificação da dimensão objetal.

É na posição de objeto que o analista de Grande Homem suposto saber passa ao lugar de causa do sujeito. Assim se enuncia a operação de uma análise. Assim se daria a transmissão de analista a analisante. No entanto, encontramos aí a impossibilidade de analisar, ou de fazer desejar. Momento em que Lacan (1978/1995) assevera: "Tal como hoje chego a pensar, a psicanálise é intransmissível. Isso é bem desagradável. É desagradável que cada psicanalista seja forçado - já que é preciso que ele seja forçado a isso - a reinventar a psicanálise." (p. 65).

Não há continuidade na cadeia. É nesse momento que vemos a contingência aí envolvida e também o viés de invenção que a transmissão impõe. Cabe ao sujeito inventar a sua maneira singular e inantecipável de submissão ao que o antecede. Dessa forma, podemos afirmar que a transmissão não é anterior ao passo do sujeito, ao contrário, se dá no mesmo passo em que o sujeito cria, forja sua maneira forçada de advir determinado pela cadeia que o constitui, apropriando-se da herança que ela traz.

Concluindo com a menção ao Moisés de Freud, o que o assassinato nos aponta é a impossibilidade de uma transmissão integralizada num saber, e o que ela nos indica é que ali opera uma dimensão de corte que justamente aproximamos da dimensão objetal. É neste lugar que o sujeito é chamado a se posicionar garantindo o funcionamento da cadeia. Assim, um analista age de maneira a convocar o aparecimento de um sujeito do inconsciente. A partir do ponto de impossível marcado pela incidência da castração que o analista objeto a deve fazer valer, resta ao sujeito o passo ético de a ela se submeter, arriscando o passo inantecipável de advir marcado pelo desejo inconsciente que o constitui.

 

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NOTAS

1 Aqui, trazemos a indicação presente em "A Interpretação dos Sonhos", onde Freud (1900/1996a) adverte que "a mais ínfima possibilidade de que possa ter ocorrido algo... seja tratada como uma certeza completa" (p. 548). Acreditamos que o texto sobre a história de Moisés é tecido seguindo esta mesma indicação (ver também Lo Bianco, 1999).

2 Aqui, temos mais um exemplo do caráter visceral do trabalho freudiano: mesmo com todas as evidências apontando para um caminho, ele não cede em sua investigação, o que permite nos aproximar um pouco da dimensão desejante de Freud presente nas linhas do seu texto, cuja leitura nos fisga até hoje. Posteriormente, trataremos do quão imprescindível é a presença da dimensão do desejo para a transmissão. E guiado por esta determinação implacável, Freud localiza na religião egípcia um período de monoteísmo que terá, então, servido a Moisés como inspiração para sua nova religião.

3 Nesse sentido, é interessante conferir o trabalho de Brigitte Lemérer (1997). A autora afirma tratar-se do "desmentido". A morte de Moisés figurando como o desmentido, ou seja, o que foi rechaçado da "tradição escrita", vai operar efeitos no real: a própria sobrevivência do judaísmo.

 

 

Recebido em outubro/2008.
Aceito em janeiro/2009.

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