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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.14 no.27 São Paulo  2009

 

DOSSIÊ
A ADOLESCÊNCIA ENTRE A PSICANÁLISE E A EDUCAÇÃO

 

Formulações sobre o desejo e a economia da angústia na adolescência1

 

Formulations about the unconscious desire and the economy of anguish in adolescence

 

Formulaciones del deseo y la economía de la angustia en la adolescencia

 

 

Roséli Maria Olabarriaga Cabistani

Psicóloga e psicanalista, Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). roselec@portoweb.com.br

 

 


RESUMO

O texto desdobra questões desenvolvidas em nossa pesquisa de doutorado, dentro da temática da psicanálise e educação. Procuramos resgatar elementos do documentário Pro dia nascer feliz (Jardim, 2006), que aborda a educação entre os jovens brasileiros e suas perspectivas de futuro, para propor o desejo inconsciente como possibilitador de um compromisso com o amanhã; bem como o enfrentamento da angústia e do desamparo provocados pelas incertezas contemporâneas, como um tempo necessário à articulação de um percurso aberto à dimensão desejante. Nesse contexto, a primeira educação passa a ser interrogada, e o tema da parentalidade é um elemento fundamental para pensar a exogamia que a passagem adolescente requer realizar.

Descritores: adolescência; desejo; parentalidade; angústia; educação.


ABSTRACT

This paper expands issues developed in our doctoral research, included on the subject psychoanalysis and education. Our starting point is the documentary movie Pro dia nascer feliz, by João Jardim, about education of young Brazilian citizens and their perspectives for the future. We took some elements of the film in order to propose that unconscious desire makes possible to these youth a commitment with tomorrow, as well as standing up against anguish and abandonment, both aroused by contemporary uncertainties. In this context, first education is questioned and the issue of parenthood is fundamental to consider the exogamy that adolescence traversing requires to accomplish.

Index terms: adolescence; desire; parenthood; anguish; education.


RESUMEN

El texto desdobla las cuestiones desarrolladas en nuestra investigación de doctorado, en el tema del psicoanálisis y la educación. Recuperamos elementos del documental Pro dia nascer feliz, de João Jardim, que aborda la educación de los jóvenes brasileños y sus perspectivas de futuro, para proponer el deseo inconsciente como posibilitador de un compromiso con el futuro, así como hacer frente a la angustia y al desamparo causado por la incertidumbre contemporánea, como un tiempo requerido para articular un camino abierto a la dimensión deseante. En este contexto, la primera educación es interrogada y el tema de la parentalidad es un elemento fundamental para pensar la exogamia que la transición adolescente exige.

Palabras clave: adolescencia; deseo; funciones parentales; angustia; educación.


 

 

A escolha deste título nos possibilita deslizar por mais de um caminho. A inspiração inicial foi a propósito da noção de poupar-se da angústia, fazer economia da angústia, que é uma questão muito presente em nossos tempos. Nessa via, interrogamos, seguindo a metáfora da economia, sobre o custo subjetivo de poupar-se do trabalho com os sinais que a angústia envia. O outro caminho a que o título remete está relacionado à primeira teoria da angústia em Freud (1926/1980a); isto é, angústia como resultante da libido insatisfeita, por efeito do recalcamento. Vamos privilegiar mais a concepção da angústia sinal, segundo a teoria da angústia elaborada por Freud. Propomos pensar a produção da angústia e sua função necessária na economia do desejo, num momento muito especial da vida que é a passagem adolescente.

Jerusalinsky (2007) trabalha a questão da angústia na infância e a importância da temporalidade no tema da angústia, em especial na infância, uma vez que a identificação ao traço do objeto do desejo do Outro é crucial para as crianças que estão confrontadas com a transitoriedade e o deslocamento temporal. O sinal de alarme do sofrimento infantil diz respeito à perda do traço unário.

A redução da adolescência a uma etapa, que constituiria o último estágio da infância, pouco acrescenta, como afirma Rassial (1997), "pois a adolescência é menos uma crise única do que exemplar, que o adulto parece querer esquecer para sublinhar a barreira ilusória que o separaria da criança" (p. 13). Interessa aqui destacar esses elementos, pois ajudam a pensar a função da angústia na passagem adolescente, momento no qual, guardadas as diferenças com relação à criança, a transitoriedade e as incertezas também se apresentam.

Destacamos algo que muito temos escutado e que diz respeito a uma das escolhas colocadas aos nossos adolescentes, que é a da profissão. Não há problema algum que se espere tal coisa de um jovem, a questão está na forma pragmática e imperiosa dessa exigência que provém dos outros, dos adultos.

Segundo Meriti de Souza (2002), os ideais da sociedade em que vivemos nos lançam numa existência solitária, onde os méritos e os fracassos são atribuídos à competência ou à incompetência de cada um. Seguindo essa lógica, estamos legando aos jovens a solidão de uma escolha de projeto de futuro, onde a sociedade capitalista promete o que não pode cumprir, isto é, uma vida saudável para todos e emprego, dependentes da vontade e empenhos individuais.

A possibilidade de articulação do desejo de futuro não se dá porque os ideais sociais assim o determinem. A psicanálise nos ensina que a chance do bebê humano tornar-se um sujeito desejante, depende de que este seja tomado na rede desejante do Outro2 e, mais ainda, depois de ter encontrado significantes aos quais prender-se, é preciso que o sujeito se confronte com a falta, que se lhe apresenta primeiro como castração do Outro.

A noção de falta é então um ponto nodal da teoria psicanalítica, uma vez que é a partir da inscrição da falta no desejo da mãe e, depois, do pai, que o sujeito torna-se um ser desejante. A dimensão do desejo envolve sempre uma condição de perda, o que difere de leituras apressadas da psicanálise que confundem desejo e vontade. Tais interpretações não consideram que a dimensão do desejo é inconsciente, e que um ser humano só torna-se sujeito se atravessar o complexo de castração, através do qual terá suas pulsões subordinadas à lei simbólica – esta, por sua vez, possibilitada pela operação da função paterna, na história de cada pessoa. Isto está longe de ser o paraíso da vontade reinando soberana, num hedonismo sem limites.

 

A falta de objeto, o complexo de castração e o sujeito do desejo

A leitura dos escritos de Freud permitiu a Lacan, entre as muitas sistematizações que realizou, retomar as medidas utilizadas na defesa da civilização face às exigências pulsionais e atribuir-lhes um lugar no seu desenvolvimento sobre as três categorias da falta de objeto. Em O futuro de uma ilusão, Freud (1927/1980b) reafirmou sua tese, já enunciada anteriormente em vários trabalhos, de que, para viver em sociedade, importantes renúncias pulsionais são exigidas e nomeou essas faltas impostas ao ser humano como frustração, proibição e privação. Ele definiu como frustração o fato de uma pulsão não poder ser satisfeita. A proibição é o regulamento através do qual essa frustração é estabelecida e a privação é então a condição derivada da proibição. As proibições que estão na origem da civilização se mantêm e dizem respeito aos desejos inconscientes mais primitivos, aqueles cuja satisfação colocaria em risco a manutenção da vida em sociedade. Freud apontou serem eles o canibalismo, o incesto e o desejo de matar. A força da proibição indicaria a intensidade do desejo.

No quadro da temática edípica, Lacan tomou a noção da falta de objeto como central para avançar em torno do complexo de castração. Dos termos proibição, frustração e privação, propostos por Freud, Lacan (1995) manteve as palavras frustração e privação e substituiu proibição por castração. No seminário "A relação de objeto", Lacan(1995) desenvolve o tema da castração articulado aos três registros do aparelho psíquico, o Imaginário, o Simbólico e o Real. Segundo Kaufmann (1996), cada um desses três domínios ganhou o estatuto de categoria, uma vez que Lacan os articulou à estrutura originária do aparelho psíquico e à função paterna.

Retomamos aqui a concepção de Imaginário, bem como a dos dois outros registros, para que possamos acompanhar como Lacan os insere às três categorias da falta de objeto. O domínio do Imaginário é referido, em seu surgimento, à relação especular que o pequeno ser humano estabelece com a mãe; isto é, a partir da organização do estádio do espelho, onde a imagem do outro cumpre a importante função de articular o corpo dobebê à rede significante. É essa situação que inaugura o eu (moi), através de uma identificação imaginária, pois especular, apoiada na assunção de uma imagem. Trata-se do caráter dual, do narcisismo primário, que com a entrada do terceiro nessa dualidade, dá lugar ao aparecimento do Simbólico como registro psíquico. Tal situação não significa que o simbólico esteja ausente, pois se a criança ainda não fala, ela é falada, acolhida na ordem simbólica que a precede e onde o Outro primordial habita. Então, embora Lacan tenha elaborado a noção de imaginário nos seus primeiros escritos, ela vai ganhando novos contornos à medida que sua teoria avance e não se reduza a um momento, pois a dimensão da dualidade e da perda do si mesmo no outro, que surge em torno dos 6 e os 18 meses, pode se dar em muitos outros momentos da vida. Junto com o simbólico, o imaginário permanecerá sendo essencial no jogo do desejo, como afirma Garcia-Roza (1988).

O registro do simbólico ou a ordem simbólica é demarcado no drama individual, pelo Édipo, que assinala a passagem do imaginário ao simbólico, isto é, o momento de inclusão do terceiro, que vem a cindir da dualidade imaginária, mãe-filho. Foi o que Freudapontou com o mito do Édipo. Através dessa posta em jogo da dialética familiar, o sujeito acede a um sistema simbólico que determina sua posição de sujeito. Porém, o simbólico, apesar de demarcado no drama individual, é exterior ao sujeito. Também essa noção de simbólico foi sofrendo mudanças ao longo da obra de Lacan. Até 1953, Lacan abordava o simbólico como equivalente ao símbolo no seu sentido clássico. Essa abordagem vai ser significativamente modificada com a influência de Lévi-Strauss no pensamento de Lacan, a partir da categoria de eficácia simbólica. Não será ainda, no entanto, essa sua forma final de conceitualizar o registro do simbólico ligado aos outros dois, o real e o imaginário. Através da compreensão do símbolo como significante, Lacan fará ingressar na psicanálise a noção de cadeia significante, a partir da linguística de Saussure e Jakobson e, com esse recurso, irá situar o inconsciente submetido à cadeia significante. Daí a formulação conhecida "O inconsciente é o discurso do outro", uma vez que o inconsciente estruturado como uma linguagem não se apresenta através do sujeito do enunciado, desse que diz "eu", mas através das formas que a cadeia significante permite ao discurso articular-se, produzir substituições, tropeços e combinações.

O Real é o que escapa à simbolização, surgindo a partir da concepção do desejo como uma falta impossível de ser preenchida, apreendido somente por intermédio do simbólico. Garcia-Roza faz um alerta a esse respeito: "O real não deve ser entendido aqui como o equivalente ao dado externo ou à coisa em si de Kant; o real é o barrado impossível de ser definido" (Garcia-Roza, 1988, p. 213). É o registro que equivale à pulsão freudiana, afirma o autor. O acesso à pulsão era, para Freud, da ordem do impossível, acessível somente através de representações, no domínio próprio da representação – em termos freudianos, Vorstellungsrepräsentanz – isto é, a partir da ordem simbólica, como a denomina Lacan.

Tendo essa precisão, podemos retornar às operações de castração, frustração e privação, relativas à forma de enlace do sujeito ao objeto (faltante), conforme propõe Lacan (1995), onde o psicanalista inscreve num quadro as funções do pai imaginário, simbólico e real.

 

 

O quadro acima, apresentado em O seminário, livro 4: A relação de objeto, é retomado no seminário do ano seguinte, e destaca a posição do pai simbólico, que é colocado por Lacan como um significante não representável, a não ser como mito em Totem e tabu (Freud, 1913/ 1980c). Sua retomada, em O seminário, livro 5: As formações do inconsciente, permitirá a Lacan (1999) identificar o pai simbólico à formulação do Nome-do-Pai, para explicar como o pai torna-se portador da lei.

Considerando as operações desenvolvidas no quadro, temos então:

A frustração, afirma Lacan (1995), como uma das categorias da falta, refere-se a um dano imaginário, uma falta de algo, que é desejado e não obtido, algo que é vivido como um prejuízo. Seu domínio é o da reivindicação, das "exigências desenfreadas e sem lei". Por situar-se no plano imaginário, o agente desse dano é a mãe simbólica, que interveio elevando o que era puro real ao nível do significante. Porém, a reivindicação própria ao domínio da frustração, traz a marca da alienação ao desejo do Outro, que presidiu seu nascimento subjetivo.

A privação diz respeito à exigência do falo, impõe-se como uma falta real, uma vez que o sujeito sente-se "privado de algo que, por definição, ele não tem". O falo como significante da falta, não é um objeto real, mas no domínio da privação ele só pode ser representado como impossível, intervindo aí os registros do simbólico e do imaginário como formas de acesso, sempre insatisfatórias a esse "buraco" real. O exemplo do livro faltante na estante da biblioteca citado várias vezes por Lacan é ilustrativo e tem o mérito de trazer a simplicidade para tentarmos entender essa questão, sempre tão refratária a uma compreensão direta. Trata-se da situação de pedirmos um livro na biblioteca e obtermos a resposta de que o livro não está lá, ele falta em seu lugar. Só podemos falar dele no nível do simbólico; portanto, na privação, trata-se de um objeto simbólico – o real, em si, é inapreensível.

A castração, introduzida por Freud, segundo as palavras de Lacan (1995) "de uma maneira absolutamente coordenada à noção de lei primordial", isto é, na lei da interdição do incesto e na própria estrutura do Édipo, diz respeito a uma falta que é constituída por uma dívida simbólica. Nesse nível, se trata do objeto enquanto imaginário, a imagem de uma completude. A castração aí é dupla, diz respeito à limitação da mãe e da criança. Devido à castração, a criança renuncia a ser o que viria, imaginariamente, completar a mãe, ou, em outras palavras, renuncia a ser o falo imaginário da mãe. Para que isso ocorra, é necessário que um interdito seja sustentado por um sujeito real, independente de que se trate do pai ou da mãe, pois se trata da operatividade do significante paterno.

Como é possível concluir, o confronto com a falta, em vários níveis, faz parte do percurso de vida do ser humano, possibilitando o que ordinariamente chamamos de motivação, mas que, em psicanálise, denominamos desejo, uma vez que não depende da vontade consciente, mas daquilo que foi cifrado ao nível do inconsciente.

A falta de desejo de estudar, de buscar uma profissão aparece nos discursos atuais dos pais, dos professores e das instituições escolares, tema então que transcende a clínica, mas que a psicanálise pode ajudar a interpretar, no sentido de permitir sair de uma queixa que já tomou proporções de sintoma social e enfrentar a responsabilidade que tal situação implica.

Para abordar tal questão vamos nos valer do documentário Pro dia nascer feliz de João Jardim. Trata-se de um filme realizado entre 2004 e 2005 que tomou depoimentos e histórias de jovens em idade entre 13 e 16 anos, de vários estados brasileiros, produzindo um mosaico muito vivo, preocupante e instigante sobre a realidade educacional do ensino médio no país. Faremos um recorte do mesmo, no que pode nos auxiliar a pensar o que possibilita e o que faz impedimento a que esses jovens possam desassossegar-se da sua situação de vida e possam desejar algo mais além dos limites impostos pelo seu contexto e os ideais sociais que os cercam.

No filme, há muitas realidades diferentes e é preciso cuidar com as generalizações apressadas. Na sua maioria, os adolescentes entrevistados são de escolas públicas, do Nordeste e do Centro-Oeste do Brasil. Aparece apenas uma escola da classe média alta de São Paulo e é muito questionador o contraste que isso faz. De um lado, temos o descaso do Estado, a pobreza e a falta de condições para que alguém possa estudar com dignidade; temos também a face da violência associada a essas condições, quando o tráfico e o crime permeiam a vida desses jovens. Porém, tal situação de extrema pobreza não determina uma vida igual aos jovens das cidades nordestinas retratadas, nas quais o tráfico e o crime ainda não invadiram.

Há, no documentário, uma jovem chamada Valéria que, com sua poesia, constitui um elemento de sustentação do sonho de uma vida outra. Trata-se de uma menina de 16 anos que vive na cidade de Manari, em Pernambuco, uma das cidades mais pobres do Brasil. Ao falar de seu gosto por ler e escrever poesias, Valéria diz que seus colegas a acham estranha por suas preferências e completa: "Aqui, na maioria das vezes a gente não tem nem chance de sonhar". Chama a atenção que é justamente ela quem sonha, o que parece ser possibilitado por sua posição diferenciada frente aos ideais que fazem barreira às mudanças. Souza (2007) em seu livro Uma invenção da utopia, escreve que "A utopia tem a importante função de resistir aos imperativos do consenso que cada vez mais o laço social nos impõe" (p. 14).

Valéria escolhe uma poesia para recitar e, como se sabe, uma escolha nunca é gratuita. Ela toma um fragmento do poema Ausência, de Vinícius de Moraes, e inicia de uma forma muito singular, com seu sotaque nordestino, que só podemos lamentar não ser possível, neste artigo, dar a sonoridade que as palavras adquirem na sua voz. Recita ela:

Aqui é "A ausência"...
Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar seus olhos que são doces...
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres exausto...
No entanto a tua presença é qualquer coisa, como a luz e a vida...
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto...
E em minha voz, a tua voz...
Não te quero ter, pois em meu ser tudo estaria terminado...
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados...
Para que eu possa levar uma gota de orvalho desta terra amaldiçoada...

Nossa personagem também escreve muito e conta que vai mal em redação, porque as professoras não acreditam que ela seja a autora dos textos que escreve. Mas ela não deixa de buscar a poesia e, na poesia, uma forma de transcender os lugares que a seguram. E escreve: "Eu podia ser uma adolescente normal...". Trata-se de outro poema onde Valéria fala das contradições de ser como é, no lugar e no contexto em que vive, isto é, ela se pensa.

Temos então muitas responsabilidades a analisar, nesse contexto. Podemos afirmar que, "Na medida em que as teorias da educação tomam o educando como objeto de seu saber, posicionam-se fixando um ideal. Daí é apenas um passo para inserir uma "razão puramente instrumental" no processo educacional, segundo o modelo de fabricação de objetos, afirma Eidam (2005), que na discussão e defesa da maioridade contextualizada, propõe que a ideia deformação não pode ser entendida como moldagem. É nessa perspectiva que a pedagogia começa a falhar como articuladora do laço social. Nesse caso, só contam os ideais do educador e o educando não é um outro, com o qual se estabelece uma relação de respeito, um sujeito enfim, que pode advir mais responsável por suas ações e seus desejos." (Cabistani, 2007, p. 21).

Eis aí uma questão a ser enfrentada pela pedagogia, na parte que lhe cabe da educação das crianças e adolescentes. Escrevemos na tese anteriormente citada que: "Quando nos referimos à pedagogia contemporânea, cada vez mais subordinada aos ideais da ciência e da tecnologia, encontramos o conhecimento como algo impessoal, que está fora de nós e do qual devemos nos apropriar. O que domina é a concepção utilitarista do conhecimento, num sentido estritamente instrumental. Qual o efeito formativo que pode ter uma educação assim conduzida? Tal educação, promovida pela prática pedagógica instrumental, pode produzir experiência no sentido da formação, mais além da informação?" (Cabistani, 2007, p. 21)

É produtivo pensar então o contraste de Valéria e outros jovens como ela, com jovens de classe média alta, da escola paulista, incluídano documentário. É aí onde aparece a exigência da escola, a pressa em saber o que vai ser, frente às cobranças familiares. As meninas têm todo o apoio necessário para ter sucesso na vida escolar, para obterboas notas e ser aprovadas. É uma situação muito semelhante à questão que colocamos inicialmente. Esse é o discurso frequente enunciado pelos pais e educadores: "mas ele tem tudo, o que mais pode faltar?". Jovens que têm tudo, o que falta a eles, ou o que faz excesso? O imperativo que vem do ideal produz inibição, faz barreira aos caminhos que o desejo precisa para articular-se. A angústia dispara justamente quando o excesso de certezas ameaça a falta que possibilita desejar.

No laço social, encontramos essa exigência de não perder tempo com coisas pouco objetivas e a adolescência exige uma temporalidade outra, um tempo a "perder" com a fantasia, com o sonho, que dá suporte ao desejo. Nos sonhos diurnos dos adolescentes, deveria ser possível imaginar-se sendo o que quisessem, enfrentar o medo de não saber, com todos os ensaios possíveis para que, ao final desse tempo, que é singular e não há como não ser, pudessem articular algo de um percurso aberto à dimensão desejante.

Souza (2007), ao escrever sobre utopia e criação, afirma ser "impossível manter um compromisso com o amanhã sem o alimento da esperança. Sempre que o futuro se radicaliza em um projeto único uma sombra cai sobre o amanhã. Portanto, criar é sempre criar um futuro, que exige de nós uma liberdade para um fazer irreverente" (p. 27).

Na continuidade de seus argumentos, Souza (2007) acrescenta que a utopia diz de uma insatisfação do presente e de um desejo de transposição. Ao tentar determinar o percurso a seguir, estaríamos aniquilando o fundamento mesmo da criação necessária ao agir. Garantir o resultado que os filhos vão obter com estas ou aquelas escolhas é uma forma de tentar controlar o futuro, "burocratizar o amanhã", nas palavras do autor. Isso impede que nossas crianças e jovens possam construir projetos de vida, de futuro, mais além dos padrões de êxito financeiro e social, corpo perfeito, imagens padronizadas e estranhas a si mesmos.

Trata-se então de uma questão fundamental para interrogar sobre o que obtura a possibilidade de desejar daqueles que tem, aparentemente, oferecidas todas as condições para construir um futuro garantido, segundo expressões muito usuais. Quando isso ocorre, a angústia com frequência comparece, sinalizando o mal-estar que não encontra palavras para se expressar. Não é nenhuma surpresa que os quadros de pânico, tão em voga na atualidade, venham a denunciar tais impasses.

Lacan (1998), em Formulações sobre a causalidade psíquica, trabalho que ele recomenda a leitura no seu seminário sobre a angústia, a respeito da articulação entre o estádio do espelho e o significante, destaca a contribuição genial de Freud ao captar o valor revelador dos jogos de ocultamento, nas primeiras brincadeiras das crianças. Escreve ele: "Todo mundo pôde vê-las e ninguém antes dele havia compreendido, em seu caráter interativo, a repetição libertadora de qualquer separação ou desmame como tais que nelas assume a criança" (p. 188).

A expressão repetição libertadora de qualquer separação ou desmame é o que cabe neste contexto destacar, pois diz respeito à relação do sujeito ao Outro, da passagem do lugar de objeto para o Outro, ao lugar de sujeito de desejo. Tal passagem implica, como bem indica Lacan (1995), antes de tudo, um limitação do gozo caprichoso do Outro primordial de seu rebento e é essa limitação que possibilita-nos, de início, entrar no jogo do desejo; isto é, a falta no Outro leva-nos à entrada em cena do que causa o desejo, a função que Lacan denominou de a, objeto causa de desejo. A separação necessária, apontada anteriormente, não diz respeito apenas ao momento do desmame em stricto sensu, mas à possibilidade de bancar os riscos de deixar que os adolescentes andem sós, esburaquem as certezas e façam o processo exogâmico de saída da casa paterna, que as famílias tendem a conservar mais quentinhas e acolhedoras, como forma de manter os filhos próximos, no engodo de garantir proteção contra o mundo lá fora, violento e ameaçador. É preciso então perguntar como podem esses filhos desejar algo mais além dessa "bolha", conforme uma expressão usada pelas adolescentes do filme, e como podem não viver os sintomas de sufocamento, palpitações e desânimo, tão descritos nas crises de pânico que vêm a ser irrupções do real, sob as "cobertas da bolha familiar", tão protetoras quanto mortíferas? A referência à morte, neste contexto, diz respeito, principalmente, à morte do desejo; este desejo que é condição necessária, em sua positividade, para que um ser humano passe da posição de objeto à posição de sujeito de desejo. Eis aí uma angústia que não deve ser economizada, mas tomada como a possibilidade de uma repetição libertária, necessária para fazer um furo, uma ruptura, na acomodação que essa situação gera.

Voltemos a Valéria, como uma adolescente emblemática de algo que o documentário procura mostrar; isto é, uma jovem que destoa, que se coloca de forma crítica frente às dificuldades e que dá lugar as suas angústias, na linha de tempo que precisa para elaborar um porvir. A poesia de Vinícius que ela escolheu traz a dimensão do que Lacan trabalha como objeto cedível, o que nos faz desejar, porque refratário a toda a significação, ao fechamento: "Não te quero ter porque tudo em mim estaria terminado..."

Lacan (2005) ainda nos diz a respeito da função de a, que ele "inaugura o campo da realização do sujeito e nele conserva, portanto, seu privilégio, de modo que o sujeito como tal só se realiza em objetos que sejam da mesma série do a, do mesmo lugar nesta matriz. Eles são sempre objetos cedíveis, e é a isso que há muito tempo chamam obras" (p. 344, grifo do autor).

O documentário encerra com Valéria, falando de suas criações poéticas. Conta ela que, um dia, a professora pediu que fizessem uma "intertextualidade" com o poema Canção do exílio, de Gonçalves Dias. Ela, a partir da solicitação da professora, mudou a letra do poema, fez uma paródia, tomando a posição de alguém que está exilada, e falou de Manari, sua terra:

Minha terra por ventura merece tal descrição
Lá a vida é menos dura
Qualquer um lhe estende a mão
O céu é menos cinzento
Lá não há poluição
Só existe um argumento que me parte o coração
Ver o povo madrugar e seguir para o roçado
Mas se a chuva não chegar
Se perde o que foi plantado
Eu agora exilada
Não encontro o que me motive a viver
Mas falar da minha terra,
Ah isso me dá prazer
E mesmo aqui tão distante
Tenho algo a pedir
Quero agora neste instante
Voltar para Manari
Pois não quero morrer sem ir lá me despedir.3

A jovem "sai" de sua terra, sente saudades e, a partir dessa posição, escreve. Só pode imaginar-se em outro lugar quem sonha com outra vida, quem pode exercitar esse sonho de ir e vir e sair do "aconchego doméstico". A obra de Valéria não responde a nenhuma exigência do que constitui valor social instituído, mas é uma inscrição de sua criação no espaço público; isto é, um ato significante em nome próprio. Trata-se de um ato necessário, no caminho da autonomia possível que a passagem adolescente requer. O adolescente precisa fazer muitas passagens, de seu corpo de criança a um corpo de adulto, de um lugar de onde era falado a uma posição de enunciação, do brincar ao sonhar e ensaiar. Essas passagens requerem uma temporalidade que não pode ser a mesma para cada um, uma vez que a subjetividade, embora construída no laço social, é singular. A interrogação que cabe fazer é se a educação tem permitido esses ensaios de independência, invenção e utopia, necessários às voltas que o desejo precisa para se articular.

O documentário Pro dia nascer feliz foi realizado em dois anos e mostra o que aconteceu com vários jovens até o final do trabalho do filme. Valéria então já estava cursando o magistério, seguindo seu sonho de ser professora. A questão que guiou este ensaio foi: Por que uma menina oriunda de uma terra onde os sonhos parecem escassos pode desejar um futuro e lançar-se para fazê-lo acontecer, enquanto adolescentes que "tem tudo", encontram-se em tantas dificuldades, com sua capacidade de desejar tão fragilizada?

Essa interrogação não vale apenas para pensar o futuro dos adolescentes das camadas mais favorecidas economicamente, mas também o porvir dos jovens que ficam à margem dos sonhos e da construção de projetos de vida, aqueles com os quais todas as propostas educacionais mais elaboradas fracassam, por não conseguir produzir uma experiência realmente significativa, impedidas pelos ideais totalizantes que comportam.

Procuramos lançar algumas hipóteses neste trabalho, tentando pensar interrogações que a clínica psicanalítica com adolescentes levanta; questões que se enunciam nos discursos familiares e educacionais. Apresentamos algumas contribuições que a psicanálise pode dar à educação de jovens e suas perspectivas de futuro, bem como aos desafios que esse trabalho apresenta. Esperamos poder avançar mais com o debate que o texto propõe.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Vallejo, A & Magalhães, L. C. (1979). Lacan: Operadores da leitura. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

 

NOTAS

1 Este artigo resgatou alguns elementos teóricos desenvolvidos na Tese de Doutorado da autora, embora se proponha a desenvolver outra temática.

2 Encontramos, na obra de Lacan, a função do Outro em vários momentos de sua elaboração. O Outro, escrito com maiúscula, refere-se a um lugar e não a uma entidade. O uso do termo lugar diz respeito a uma ordem de elementos significantes que são os que articulam o inconsciente e marcam a determinação simbólica do sujeito. Conforme Vallejo e Magalhães (1979): "O discurso do Outro é o sistema de convenções significantes que compõe a mítica do inconsciente e que marca o indivíduo prefigurando sua localização desde o nascimento. É um sistema parental e simbólico que determina a posição do sujeito" (p. 105). O Outro encontra-se em uma relação de exterioridade com o sujeito, como uma outra localidade, no sentido da ordem simbólica, lugar do significante, da ordem inconsciente.

3 Transcrição literal da poesia recitada no documentário.

 

 

Recebido em agosto/2009.
Aceito em outubro/2009.

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