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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.14 no.27 São Paulo  2009

 

DOSSIÊ
A ADOLESCÊNCIA ENTRE A PSICANÁLISE E A EDUCAÇÃO

 

Como os adolescentes das periferias (se) falam? Jogos na forma de se endereçar aos pesquisadores1

 

How do teenagers in the city outskirts tell (about)? An addressing game to researchers

 

Como los adolescentes (se) hablan? Juego de formas de hablar con los investigadores

 

 

Laurence Gavarini

Psicanalista, professora titular da Université Vincennes-Daint-Dennis (Paris VIII), França. laurence.gavarini@univ-paris8.fr

 

 


RESUMO

Apresentamos os resultados de uma pesquisa no domínio de uma clínica do social, desenvolvida na França – Copsy-enfant, 2005 – sobre a construção identitária adolescente relativa às referências de gênero e intergeneracionais. Foram realizadas observações em sala de aula, bem como organizados sete "grupos de palavra" em dois colégios de bairros da periferia. Avaliamos os efeitos do discurso social sobre essa construção adolescente. A indagação clínica foi possibilitada pela acolhida da palavra adolescente nestes dispositivos grupais que, em sua função de elaboração, permitiu que esses jovens pudessem se confrontar com o seu próprio dizer.

Descritores: clínica; grupos de palavra; sujeito adolescente; identidade sexual; discurso social.


ABSTRACT

We present results from a research work in the domain of the social clinic, developed in France – Copsy-enfant, 2005 – on the construction of gender and intergenerational identity among teenagers. We conducted classroom observations and organized seven "word groups" in two schools located in peripheral districts. We assessed the effects of the social discourse on this adolescent construction. The clinical exploration was made possible by a device of welcoming the adolescent word: the groups, on their function of elaboration, allowed these young people to confront their own saying.

Index terms: clinical approach; "word groups", adolescent subject; sexual identity; social discourse.


RESUMEN

Se trata de los resultados de una investigación clínica social desarrollada en Francia – Copsy-enfant, 2005 – sobre la construcción identitaria adolescente respecto a las referencias de género e intergeneracionales. Fueron realizadas observaciones en escuelas secundarias y organizados "grupos de palabra" (o grupos focales) en dos colegios de barrios pobres. Focalizamos los efectos del discurso social sobre esa construcción adolescente. La experiencia clínica fue posible gracias a la puesta en funcionamiento de grupos continentes donde cada uno pudo confrontarse con su propio decir.

Palabras clave: clínica; grupos focales; sujeto adolescente; identidad sexual; discurso social.


 

 

Um discurso social sobre os "jovens das periferias"

Há bem pouco tempo, produziu-se na sociedade francesa, um discurso pouco reluzente sobre a juventude das periferias urbanas, fazendo com que esses "jovens da periferia" se transformassemnum sintagma fortemente negativo. À esta parte da população francesa, se atribuiu todos os perigos, toda culpa pela violência dos bairros populares, todos os pequenos e grandes delitos. Hoje, eles são, também, sinônimo de "confusão" e de conflitos com a justiça. Essa imagem se enraizou nos espíritos, a partir de alguns episódios de guerrilhas urbanas e confrontos entre grupos de jovens encapuzados e policiais, que foram fortemente midiatizados. Este imaginário social sobre os jovens das periferias, foi desconstruído por sociólogos como Mucchielli (2001), que relativizam que a realidade dos fatos da violência organizada decorra de relações finas e complexas entre um mundo guetizado, poder político e sociedade.

Gostaria de apontar, a partir de uma experiência de pesquisa2, uma representação diferente: menos dramática, mas não relativista, fundada sobre uma clínica social elaborada do encontro com Sujeitos adolescentes. Estes Sujeitos, nós os observamos em sala de aula e os ouvimos por ocasião da criação de grupos de palavra3 em dois estabelecimentos escolares, um colégio e um liceu4; lugares muitas vezes vividos por esses jovens pela experiência do fracasso e da exclusão. A pesquisa de campo que realizamos com jovens da periferia norte de Paris nos distanciou da concatenação desta fórmula "jovens-de-periferia" que é tirada de uma sociologia profana e prematura, que ao isolar alguns particularismos, lhes caracterizaria como diferentes de todo resto da juventude, sem discutir seus traços específicos. Assim, nos caberá ainda nos distanciar da identificação antiga, feita por Rassial (1998), de um "psicopatologia das periferias" e das hipóteses sobre as quais se funda.

 

Os adolescentes que não são aquilo que deles dizemos

Esses jovens nos pareceram incomparáveis aos estereótipos e irredutíveis às representações que lhes são atribuídas, pelo simples fato de que suas modalidades de inscrição social e suas relações com seus pares e com os adultos são múltiplas. Além disso, o dispositivo mesmo que realizamos, a partir de nossa pesquisa, os fizeram existir de outro modo, ganhar consistência e forma singulares, não ficando aderidos aos estigmas nos quais eles tem tendência a se colarem.

Eles são, em sua maioria, vindos de famílias modestas, em outros tempos, qualificadas como proletárias ou operárias e que, hoje, são nomeadas "populares"; como se a dimensão econômica da classe social tivesse perdido, através dessa adjetivação mais cultural "populares", a força de sua discriminação. Por outro lado, esses jovens não se apresentam mais, ou poucos o fazem, através desses pertencimentos sociais e, logo que eles explicitam suas identificações, trata-se de reivindicar afiliações comunitárias ou culturais, a partir de enunciados fluidos, como desenvolverei mais adiante. A maior parte dessas familias passou por histórias de imigração e de exílio, muitas vezes dramáticas em razão das separações impostas.

Estas histórias são intrincadas, com problemas de precarização e desqualificação social e econômica, como são mostradas em diversos trabalhos sociológicos5. Nesses estabelecimentos escolares, estão concentrados, de maneira massiva, filhos e filhas de pais que carregam estes relatos migratórios, que puderam ou não serem ditos ou transmitidos; pais que são, eles também, Sujeitos vulneráveis economicamente e socialmente. Eles habitam os "quartiers6", como eles mesmo dizem e, em sua grande maioria, conhecem apenas esses espaços urbanos relegados, feitos de entrecruzamentos de zonas pavillonnaires e Cités. Ao contrário do discurso social que manifesta uma forte repulsão por esses quartiers, eles dizem, com um certo orgulho, "amá-los", pois são feitos de habitações agrupadas, lado a lado, onde não há vias que separem os prédios, e onde quase todos se conhecem. Um deles nos dirá mesmo que "em uma cité, não há conflito" Ele atribui uma imagem de mundo estável e fechado, onde não restaria dúvidas, a seu ver, da convivialidade desses laços, mesmo que eles tenham uma consciência astuta de que aquilo que eles apreciam é, no entanto, considerado pela sociedade, como algo "podre", em seu jargão.

 

Um jogo sutil de endereçamentos e interpelações

Essas periferais não são um lugar estrangeiro a nós pesquisadores implicados em nossa pesquisa. No entanto, nós nos colocamos um pouco além do ordinário, dois anos, no coração desses territórios urbanos onde esses estabelecimentos escolares parecem ter crescido como apêndices do habitat popular. Fomos acolhidos de "braços abertos" pelas equipes educativas, já que nossa proposta de pesquisa sobre a construção adolescente ia de encontro às suas preocupações e interrogações.

Nós pudemos compreender, segundo os diferentes dispositivos da pesquisa, as problemáticas dos Sujeitos adolescentes e constatar que elas se exprimiam, frequentemente, em situação escolar, sob a forma de tensões, de contradições, entre aquilo que faz parte de sua realidade subjetiva e social e suas obrigações e funções de alunos. Nossa atenção foi atraída pelo jogo, discreto, de observações recíprocas e de interações que nossa presença no colégio e no liceu, colocou em cena. Nós não fomos assimilados como adultos da equipe educativa. De acordo com as situações, as percepções dos alunos variavam. Para os alunos do liceu, éramos os "psis", ou pesquisadores; mas ficamos invisíveis, como que transparentes, para muitos desses alunos, não concernidos diretamente por nossa pesquisa. Estes restaram indiferentes a nossa presença dentro dos muros da escola. Para os do colégio, de acordo com o caso, podíamos ser, aos olhos dos "bons alunos", pessoas oniscientes, "como os professores de história"; "Inspetores" para os alunos marcados por seu fracasso escolar ; mas podíamos ainda, sermos tomados como "pessoas da universidade que fica ao lado da estação de metrô". No geral, nossa instituição tinha pouca importância para esses alunos já portadores de um não-futuro escolar!

Eu me lembro de uma frase de um jovem aluno que nos recebia impreterivelmente, nos corredores do colégio, com um interrogatório sobre nossas origens: "de onde vocês vêm?", e que, um dia, após termos já respondido uma ou duas vezes a esta mesma questão, nos lançou uma interpretaçao radical: "Vai, vocês são da Inspeção7! Senão, por que vocês estariam interessados na gente, que somos menos que nada para todo mundo?". Esta desconfiança, repousada sobre uma fantasia ligada a nossa presença física em certas aulas que observávamos, apontava sem dúvida para a função escópica das observações de classe. Mas, o significante "Inspeção", dizia também qualquer coisa da função de controle e de intrusão desempenhada por esta figura administrativa que é uma autoridade de tutela para os estabelecimentos escolares e pode, no limite, pedir explicações à familia no caso de grande abstenteísmo escolar. Estes adolescentes desconfiavam que nosso interesse estivesse relacionado a um lugar de uma polícia administrativa. "Os menos que nada para todo mundo" demonstra, assim, que eles imputavam aos outros uma não consideração, um não-valor, retomando, assim, como a análise feita por Goffman (1975), em sua categoria de estigma.

Ao lado desta desconfiança, cheia de curiosidade como também de ambivalência, a atitude dos adolescentes, a nosso ver, sempre foi receptiva. Isso contrastou com seus enunciados recorrentes nos grupos de palavra sobre o fato de que não tinham, com os adultos, qualquer interlocução, nem alguém a quem confiar no caso de uma necessidade. Eles evocaram, por exemplo, o tema das violências intrafamiliares que eles podiam sofrer de seus pais ao exercerem um hipercontrole sobre as meninas, ou por seus irmãos mais velhos, que tentavam submetê-las a seu jugo. Evocavam também o "deixar fazer" parental, o que eles viviam como uma espécie de abandono; ou as chantagens ambíguas exercidas pelos professores sobre as meninas ao proporem ajudá-las nas provas em troca de beijos, ou, ainda, os problemas sexuais como uma gravidez indesejada que não se pode contar a mãe. Sobre esses pontos cruciais, eles dizem estar sozinhos, em todo caso, sem ajuda de uma figura adulta da família e da escola e que, assim, tinham que se virar entre eles. Mas eles fizeram de nós, nos grupos de palavra, os depositários de todas essas vicissitudes e sofrimentos de suas vidas adolescentes.

Assim, em nossa demarche clínica, fomos sensíveis a esses endereçamentos e as suas manifestações de sociabilidade, mesmo quando estivemos atentos aos gestos e aos discursos trocados em nossa presença, e que, às vezes, nos foram significados como uma espécie de mostração, algo para além de um endereçamento direto. Como exemplo, durante uma observação de um curso de educação física, assistimos a uma verdadeira mise en scene, no sentido de Goffman (1973), onde os corpos eram colocados fortemente em jogo diante de nossa presença, mulheres-observadoras de uma classe de alunos mista. Os alunos do colégio procuravam, manifestamente, informações para nos situar enquanto "parceiros" de uma interação, para nos testar e colocar a prova nossos códigos sociais e nossos anseios em relação à situação. Enquanto o professor tentava lhes explicar a ética do rugby – a fraternidade, igualidade durante o jogo – antes de irem à quadra de esportes, os meninos se colocavam em nossa frente e faziam um verdadeiro "negócio" entre eles, falando de dívidas e fazendo menção a altas quantias em dinheiro. Suas interações faziam alusão a uma outra cena relacionada a suas vidas de quartier e seu propósito era em tudo alheio ao que o educador tentava lhes transmitir sobre a ética no rugby! Nesta mesma aula – ainda em andamento –, de maneira um pouco menos barulhenta e verbal, as meninas se maquiavam tranquilamente. E o professor seguia falando... sozinho.

Retrospectivamente, pensei que essas comunicações sobre assuntos de dinheiro, dissonantes com relação àquilo que eram supostos a fazer na instituição escolar, lembravam o "Mercato", ou seja, a compra de jogadores pelos times esportivos, como se esse business durante uma exposição pedagógica trouxesse uma negação inconsciente ao discurso moral que o professor se esforçava a lhes explicar sobre o esporte, na tentativa de que eles fizessem um bom uso. Não podemos excluir que nosso dispositivo de observação silenciosa pôde gerar nessa situação alguns efeitos artificiais, mesmo que no plano comportamental os alunos dos colégios e liceus parecessem bem conformes à imagem dada deles por seus professores, ou seja, nossa presença não os traformou radicalmente. O esses que, no entanto, ela pôde modificar numa situação como esta, numa classe com os alunos mais perturbados, seria algo do registro simbólico: nós introduzimos o Outro, sustentados por nosso desejo de pesquisadores-clínicos, o que produziu manisfestações transferenciais sobre nós mesmos, "estrangeiros" à suas experiências e universos.

Assim, pudemos ver reverberar esta observação feita na aula de esporte em um lugar totalmente diferente, por esses mesmos meninos, em um grupo de palavra conduzido por um outro colega clínico. Esse episódio foi retomado pelos meninos para dizer de seu embaraço em estarem vestidos "diante de Mme. Gavarini, que anotava tudo em seu caderno", com uniformes de esporte cheios de manchas, cobertos de terra, com os quais outros meninos já haviam suado antes deles. A cena descrita no grupo de palavra não foi, de modo algum, aquela que pude observar "objetivamente". Um ligeiro deslocamento se introduziu em suas narrativas, resultado da atividade fantasmática inconsciente liberada por minha presença acompanhada por Mme. Ilaria Pirone, uma jovem doutoranda. Como se nós tivéssemos atualizado algo que podia circular entre eles, da ordem de uma homossexualidade latente revelada pela carga de afetos na qual eles investiam seus uniformes de ginástica e que o professor os forçava a assumir diante de nós. Todos esses elementos de mise en scène e de transferência nos pareceram relevantes para nosso approche clínico de pesquisa.

 

A ética da palavra e a questão da alteridade

Boa parte de nossa pesquisa8 foi a condução dos grupos de palavra junto a esses adolescentes; realizamos um total de sete grupos. Tratou-se de instituir um espaço-tempo de palavra coletivo, um espaço bem diferente dos tempos de expressão habituais do colégio e do liceu, durante o qual eles puderam (se) falar fora da presença dos adultos da instituição. Fomos, enquanto pesquisadores e clínicos, os portadores de uma certa ética, garantindo um cadre, um limite suscetível a favorecer a discussão e de possibilitar uma palavra protegida da vida institucional ordinária, garantindo assim, a confidencialidade dessas trocas. Desta forma, carregamos o desejo de favorecer uma forma de laço social entre eles, uma palavra subjetivada da qual eles não fossem ejetados enquanto Sujeitos, como de costume nos parece acontecer.

Já que os adolescentes se queixavam da atitude dos adultos, pais e professores, nosso dispositivo visava, então, a sustentar a palavra de cada um deles, autorizar a emergência de uma fala que fosse endereçada, que não pudesse ser "desentendida". Nós sustentamos o grupo como pesquisadores, a partir de nosso desejo de lhes escutar, elaborar aquilo que é de sua construção enquanto indivíduos sexuados, tema central de nossa pesquisa, e tudo isso ao tentar lhes ajudar a tecer os laços de sua história e de seu futuro – outro eixo temático de nosso trabalho. Os adolescentes ficaram bastante interessados por essa oportunidade que lhes foi oferecida: de um laço e de um tempo onde falar e de ser entendido. A grande maioria deles nos pedia para prolongar as sessões dos grupos de palavra para além das quatro sessões inicialmente previstas.

Um encontro se produziu, e poderíamos pensá-lo como o que Levinas (1985) propôs como o encontro do "olhar do Outro", pois esses adolescentes e essas adolescentes, ao ganharem consistência, realidade, nos marcaram, pesquisadores e clínicos, com seus dizeres – autênticas enunciações – e com sua presença; mas, sem dúvida, também, pela responsabilidade manifestada no grupo, o que contrastou com o traço vitimizado que lhes é constantemente atribuído pela sociedade e por seus educadores. A alteridade se manteve no encontro mesmo, no real, no limite da relação entre "não semelhantes": semelhantes não em idade, semelhantes não no estatuto, semelhantes não em relação ao lugar ocupado no grupo. No mesmo movimento, eles nos mostraram que nosso interesse, um em direção ao outro, podia ser recíproco e que o projeto de conhecimento que animava nossa pesquisa poderia ir ao encontro das sua problemática e de seus questionamentos. A diferença entre nossos mundos era clara, nós não procuramos reduzi-la por conveniência. Ela não se sustentava pelo "terreno" "distante", como poderiam reconhecer os etnólogos em suas missões, frente aos hábitos e costumes dos indígenas. Esta diferença, nós a significamos reciprocamente, simbolicamente, através de signos e de códigos de boa educação e de sociabilidade compartilhada. Um simples exemplo: nós mantivemos, todo o tempo, o tratamento mais polido, vouvoyer9, ao nos dirigir aos jovens, enquanto o usual seria de lhes tutoyer, ou seja, tratá-los de modo menos formal. Os adolescentes nos demonstraram, eles também, abertamente, os mesmos signos de distinção, sem que isso tenha alterado sua maneira generosa e abundante de nos falar deles, de (se) falar – falar deles mesmos e falar entre eles –, tomando sempre o devido cuidado, em serem precisos a responderam nossas interrogações.

O que contava, para nós, era o encontro com os adolescentes e, para isso, tivemos que manter à distância, em nosso pensamento, todos os preconceitos que lhes eram conferidos, mesmo pelos educadores mais dispostos ao entendimento com seus alunos. Estranhos movimentos de aproximações paralelas entre pesquisadores e adolescentes: nós estávamos situados, talvez, a seu ver, ao lado de um inquietante estranhamento. Eles se intrigavam conosco, assim com nós nos intrigávamos com eles! Assim, diversas vezes, suas questões nos chegavam a propósito dos laços existentes entre os membros de nossa equipe composta por universitários e por jovens doutorandos. Nós éramos, aparentemente, diferentes dos adultos que eles tinham o hábito de encontrar, além disso, os laços intergeracionais que se davam a ver no nosso grupo, assim como a transmissão que se operava, lhes eram enigmáticos, desta forma, eles não se cansavam de nos interrogar. Sem dúvida, esta alteridade – as fantasias, bem como, as projeções que esta alteridade polarizava –, permitiram que se criasse uma relação transferencial em nossa direção.

 

Entre si face aos outros

Como bons adolescentes, estes alunos, do colégio e do liceu, têm como ideia que a sua própria adolescência lhes transforma num "outro". Os sociólogos souberam muito bem descrever a dimensão tribal do modo de consumo dos adolescentes: eles se reconhecem em seu "style", palavra de uso múltiplo, que pode designar "a turma" na qual reconhecem e são reconhecidos por nossos pares, mas também, de forma mais banal, a escolha estética de combinar roupas e modas. Todos esses atributos, que remetem a diversas práticas, são profundamente sociais na medida em que são regras comuns e normas compartilhadas, e que têm claramente como função, incluir e excluir, até mesmo a nós pesquisadores, que eles habilmente integraram em suas trocas, mas que também souberam excluir quando queriam praticar uma novalíngua completamente impenetrável.

Eles se re-apresentam espontaneamente, ante nós, como um grupo tribal que compartilha entre si uma linguagem própria, que alia velocidade de ritmo à palavra, gírias e a inversão das sílabas; um grupo que "fala" através de gestos que acompanham ou escandem as interações linguageiras. Mas eles muito pouco se endereçaram a nós segundo essas modalidades de linguagem intra-grupais. Seu endereçamento se distinguia dessas modalidades linguageiras destinada à relação entre eles; com exceção de um ou dois jovens que nos capturaram nesse funcionamento, numa transferência bem particular, que consistia na negação da diferença de nossos lugares e de nosso estatuto; por exemplo, uma menina que usava o tu ao se dirigir a nós, numa espécie de desafio; uma outra fez o mesmo, em uma confusão linguageira evidente que tocava a temporalidade de sua narrativa, o endereçamento de seu relato, bem como o gênero das palavras. Os meninos, enfim, julgados "difíceis" por seus professores, insistiram nessa forma particular de falar, e incluíram ainda, a essa impossibilidade de se comunicar com todo adulto "esestrangeiro" à sua língua, um outro fator: eles falavam todos ao mesmo tempo, como se seu discurso individual devesse ficar inseparável e inaudito.

Nos grupos de palavra, certos adolescentes nos mostraram que podiam passar rapidamente da interação a um tipo de anomia linguageira, sabiamente organizada, e que lhes servia manifestamente como defesa ou recuo segundo a circunstância. Às vezes, o emaranhadado e o acúmulo de temas produziam um intenso blábláblá, que dava marcas de uma grande excitação oratória, de nível sonoro extremamente elevado. A multiplicação de falas e de proposições não endereçadas nos levou a pensar que o caos das palavras e o seu entrechoque tinham como função principal tornar inaudível cada um deles, e isso incluía também cada um de nós. Não apenas era impossível lhes acompanhar ou entender numa tal interação, mas eles produziam ainda uma indiferenciação, uma confusão generalizada. Ao re-escutar cada sessão que foi gravada para fins de pesquisa, e mesmo ao ler as transcrições, sentimos uma espécie de agressão sonora, magmática, na qual as individualidades se fundiam e desapareciam, na qual eles eram Um, todos juntos, indistintos. Uma cacofania da qual emergem, inevitavelmente, as interpelações do adulto "Msieur!", "Mdame! Mdame!", parece-me ser uma das modalidades das quais eles mais se servem, principalmpente, os meninos. Este é o nível de confusão sonora que pudemos observar, ao qual estão expostos os professores diariamente em suas aulas.

Era como se eles precisassem não ser reconhecidos enquanto Sujeitos singulares, mesmo participando ativamente de nossos trocas (Gavarini, 2009). Minha exposição a estas manifestações linguageiras extremamente confusas e barulhentas me fizeram pensar que, por um lado, tratava- se de uma espécie de catarse coletiva na qual eles conseguiam, finalmente, como no jogo surrealista do cadavre exquis10, constituir um tipo de melodia associativa interminável e sobretudo sem pontuação e, por outro lado, uma usurpação deliberada do território do outro, uma espécie de intrusão até suas fronteiras vocais, até suas palavras. Como se se tratasse de entrar em sua área intermediária. Mas em outros momentos, ao menos com sujeitos menos juvenis e menos pulsionais, nós tivemos o sentimento de um tipo de polifonia, onde eles falavam e se entendiam, como se procurassem a participar juntos de um Todo que fizesse identidade comum.

A alteridade que eles pareciam cultivar – diante da infância da qual eles dizem terem se afastado "já há muito tempo", dos adultos, pais, professores com os quais eles trocam "realmente pouco" –, se inscreve, precisamente, até o sentimento comum de ser "não compreendido", "não ouvido", e afinal, "não reconhecido". Uma jovem chega a dizer, disparando a aprovação das outras meninas, que os adultos os "detestam". Nisso, os jovens das periferias que encontramos se mostram exatamente idênticos aos demais jovens que pudemos escutar em outros grupos de palavra. No entanto, alguns se singularizam naquilo que lhes parece ainda resistir aos estragos mais marcantes do liberalismo ao qual eles não podem ou não querem assumir às injunções do gozo, notadamente, no que se trata ao consumo e a sexualidade.

De modo explícito, eles se colocam sob a autoridade do que chamam "tradição", que não se reduz, contrariamente ao que veicula o discurso social, à religião. Evocam, frequentemente, esta tradição, mas não conseguem defini-la, mesmo após nossas tentativas de retomada do tema. A palavra "tradição" tem, em todo caso, a função de designar um traço de união imaginária, que reagrupa diversos elementos heterogêneos, fazendo às vezes de um relato mítico das origens, de identidade. Os antropólogos trataram desta referência necessária à tradição, a uma história (Hobsbawn & Ranger, 2006), a uma cultura "inventada" sem cessar, com força de inscrição em uma "comunidade de ficção" (Benveniste, 1998). Esses adolescentes, quando falam de tradição, se remetem a categorizações referentes a uma etnia, ao nacional e ao local. Um "nós outros" conjugado com uma série de qualificativos de diferentes ordens: africanos, maleses, senegaleses, algerianos, marroquinos, kabiles, portuguses, guadalupeanos, o "bled11", ou uma Cité qualquer. O que faz "comunidade" e que tem força de lei, em seus relatos, são os objetos culturais compartilhados, as prescrições, as interdições, as formas de estar no mundo, as regras de aliança que estão intactas, inalteradas, mesmo anos após o tempo e o exílio.

Este posicionamento imaginário e esta relação às origens podem ser igualmente colocados no plano daquilo que Douville (2008) nomeia, a "construção mito-histórica que produz o adolescente, a fim de se orientar em sua existência". Esta ideia de Douville se alia, em minha opinião, a uma percepção que eles próprios têm – sem a pensar evidentemente nesses termos –, tomando de empréstimo a palavra "mito", a propósito de um certo tipo de funcionamento que eles reconhecem e interrogam no outro. Gostaria de mostrar algumas dessas construções mítico-históricas, a partir de dois casos, o primeiro de uma menina e o outro de um menino. Eles foram escolhidos dentre uma dezena de jovens, pois nos levaram a pensar os efeitos de singularização numa situação de grupo. Eles são, ainda, emblemáticos daquilo que pudemos compreender e ver. Aqui, eu me arrisco a considerar que as lógicas de vir a ser, de futuro, dos jovens que vivem nas periferias podem ser decifradas a partir dessas histórias singulares, trazidas nos grupos de palavra, pensadas em suas ressonâncias aos significantes do discurso social de nossa época. Estas "histórias", nós as "tecemos", pois esses adolescentes encontrados numa situação social particular (situação escolar e em grupo), nos quiseram dar a nosso conhecimento.

"Como eles e elas se falam?"

É no plural que se conjugam os dizeres dos adolescentes que eu gostaria de apresentar aqui. Nós os acolhemos neste dispositivo de espaço-tempo formalizado que nomeamos: "grupos de palavra". Foi assim que se tornou possível que uma palavra coletiva fosse construída e pudesse circular entre eles, ao mesmo tempo em que abriu à possibilidade de eles (se) dizerem coisas sobre eles mesmos. Os grupos de palavra nos permitiu colocar em jogo uma "negociação", ou seja, um ajustamento permanente que todos esses jovens deverão operar nesse espaço social que é a escola, pois cada um deles deverá se situar em sua fala face aos valores e saberes – estes, muitas vezes antagônicos – da escola, dos pais, de seus pares, acerca de questões complexas como a sexualidade, a diferença de sexos e a diferença geracional.

Destes grupos de palavra, surge a figura de Mlle. O., que nos prendeu – pesquisadores e clínicos – por sua presença determinada nas sessões de grupo de palavra dos quais ela participou. Durante esses encontros efêmeros – pois Mlle. O. estava constantemente ausente na escola – ela me levou a pensar como o paradigma daquilo que pode produzir o discurso social atual pode se inscrever sobre um Sujeito. Sua maneira de se apresentar aos outros, ao grupo, aos clínicos que conduziam o grupo, nos evoca uma forma radical da nova economia psíquica identificada por Melman (2005). Ela parece, em todos os seus atos, estar incansavelmente atrelada a seu próprio gozo. Ela fala deste gozo, como se não fosse tocada, enquanto Sujeito, por qualquer operação de recalque. Nisto, me parece que esta jovem é menos representativa das periferias, do que das subjetividade contemporâneas marcadas pela mesma negação, carregando os estigmas de um "sem limite integral", para prolongar a fórmula de Jean-Pierre Lebrun (1997). Sua marca pessoal exibe, num contraste, de um lado, uma aparência viril – a entonação de sua voz, de sua fala e seu endereçamento ao outro –, e de outro lado, os signos de uma feminilidade ornamentada de branco e de ouro12 que ela deixa transparecer com uma fragilidade pouco disfarçada. Imediatamente desde o começo do grupo de palavra, ela coloca à prova a pesquisadora-clínica, colocando em cheque a possibilidade mesma de coordenar um grupo de palavra onde ela estivesse presente; em todo caso, a existência de um grupo no qual ela não seria nada além de uma entre outras. Mlle. O. nos demanda muita energia para lhe conter durante as sessões em que participa.

Agora, ao escrever, me vêm a mente, a fluidez de sua prosódia, marcada pelas influências musicais do Rap ou do R'n'b (Rhythm and blues/ R&B). Ela compartilha esta modalidade da palavra com outros jovens da periferia norte parisiense, e também uma "flutuação" de palavras e de ritmos que torna difícil distinguir uns dos outros quando escutamos as gravações das sessões dos grupos de palavra. Sua cadência é o Rap, seu falar é o Rap, sua tessitura é o Rap, seu ritmo é o Rap. Ao re-escutá-la, entendemos que ela parece se apaziguar nesse fundo musical que ela mesma produz, sorte de litania rebelde, uma música pessoal, que tem como efeito, desengajá-la da palavra, desinvestí-la. A forma tomada por seus enunciados dão mostras de seu pertencimento social às periferias populares.

Bem distante desta jovem de 15 anos, Cristophe, aluno de um liceu, que nos diz ter 16 anos – mesmo que ele nos pareça evidentemente mais velho –, é capturado por esta possibilidade de nomear, como nos diz Arendt, a tradição. Ele se distingue daquilo que os outros chamam "a Tradição" e que eu evoquei anteriormente. Trata-se mais de objetos culturais próprios a uma comunidade, de uma certa relação do sujeito ao passado e a história, uma relação que dá sentido ao futuro e ao presente. Cristophe é um jovem "com gravidade" em contraste ao Homem sem Qualidades descrito por Melman (2005). Ele nos descreve uma fórmula da sexuação à sua maneira, sutil. Para além disso, os efeitos de sua fala na troca com os outros jovens do grupo foram remarcáveis. Caminho feito, de um rosto a outro destes jovens, são também outros que começam a aparecer, tais como Melissa que insiste em colocar em jogo a marca da dependência materna e a possível devastação do maternal diante da ausência de uma figura masculina.

 

Mlle. O., uma "crápula"13 na escola, denominada "a chefe" por seus colegas

Assim que propus à direção do colégio montar dois grupos de palavra com uma turma do 4º. ano, apelidada no colégio, os "4-4", uma turma relegada de um estabelecimento escolar, ele mesmo, classificado em Zona de Educação Prioritária14, eu tinha em mente que principalmente os meninos deste grupo deveriam merecer os estigmas que lhes eram legados, como se fossem os duros e potentes "veículos 4X4". Eles eram, em todo caso, à toda prova, tanto sua resistência quanto sua agitação já haviam ficado evidentes durante as observações que fizemos nesta turma. Eu não havia percebido Mlle. O., "a grande ausente da turma", esta que suas colegas chamavam discretamente entre elas, "a chefe".

As meninas se mostravam um tanto apáticas, e a grande maioria empreendia um tipo de atividade subterrânea e paralela ao grande comércio sonoro e gestual dos meninos. Estes faziam reinar um bazar sabiamente orquestrado, de uma lado a outro do espaço da turma e do tempo da aula. Os professores se exauriam para lhes impor uma ordem relativa e sempre efêmera, a custas de reprimendas, gritos, ameaças, de registros nos livros de correspondência de disciplina e expulsão das aulas. No entanto, na primeira sessão do grupo de palavra com as meninas "4-4", "A Chefe" estava presente, me alertaram. Nós ficamos diante de um grupo de 6 jovens meninas. Esta assim designada é, por seu tamanho, uma das menores do grupo, o que não a impede de ser "a líder"; remarcável em seu modo de apropriação do espaço e da palavra: boa de garganta, ela irá nos mostrar com quem estamos lidando, num tipo de desafio/provocação endereçado às coordenadoras, através de um convite especial que faz aos outros alunos, convocando-os ao assentimento pelo riso, e colocando-os a seu serviço.

Ela provoca, constantemente, uma espécie de risada coletiva, pois ousa dizer em voz alta coisas surpreendentes. Ousa também se endereçar ao adulto, lhe transformar em destinatário de seu "grande número", o que hesitamos a qualificar como uma sedução ou um ataque permanente àquilo que faz de nós Sujeitos "faltosos". Falar dela mesma é, obviamente, um grande gozo para ela. Seus colegas não creem no que veem. E Mlle. O. sabe lhes satisfazer e o faz inúmeras vezes. Esta jovem mestiça, de fisico pouco à vontade com a insolência na qual ela se mete na frente de todos, todo o tempo: atenção, a palavra é dela!

A este propósito, me vem uma imagem, da qual fala o antropólogo Roger Bastide acerca do "encosto pelas divindades" no candomblé: é um pouco como se ela estivesse possuída por seu gozo, mas também por um narcissismo ao qual não quer renunciar. Ela escande suas falas com enunciados que não sei bem se ela lhes profere como numa vertigem ou como um tipo de lamentação. Ela diz "eu sou independente de meus pais", "eu sou livre" e, em um certo momento, ela lança essas formulações marcantes: "eu sou livre até a morte", "eu sou independente de mim mesma". O que ela convoca do Outro, ao falar assim, dela mesma no grupo?

Mlle. O. pertence a esta nova economia psíquica, na qual ela é lançada sobre seu gozo. Ela parece nada recalcar, se é que isto é possível, em todo caso, em seus dizeres no grupo: uma imediatez e uma liberdade integral é reivindicada. Esta é a mensagem que ela quer passar ao grupo. Ela não cessa de se exibir, ela embarca numa mostração aos outros. Este gozo ela impõe de inicio a seus pais, reduzidos em seu discurso a lhe serem obedientes, exigindo de sua mãe, por exemplo, que ela "lhe dê dinheiro". Aquilo que ela exprime, induzia em mim, a partir deste enunciado, uma fantasia de que sua mãe seja uma "prostituta" e ela, uma "cafetina" que tentaria lhe tirar dinheiro. Ela se impõe, a si mesma, este gozo, como um imperativo. Ela expõe sua receita aos seus colegas: ela diz tudo a seus pais, ela não lhes esconde nada, logo eles não podem, segundo ela, ficar desconfiados – estes são os termos que usa – e eles, então, lhe satisfazem como recompensa. Gozo da transparência aos outros... Em seu discurso, sua mãe é sua cúmplice em tudo.

O que nos inquieta, de início, nesta menina é que ela se instala no centro das trocas grupais, quando ela não as impede de acontecer, com sua ambição em obter uma quase exclusividade de acesso à palavra. Mlle. O. não se endereça a alguém. Ela está em um não-endereçamento ao outro, o que faz pensar em uma "transferência irresistível": ela sustenta um discurso face aos outros; um discurso que marca os pequenos outros que são seus colegas. No entanto, remarquei que suas jovens colegas, totalmente aderidas aos seus dizeres, reagiam diferentemente quando ela não estava presente no grupo de palavra. Esta é sem dúvida a razão pela qual é nomeada "a chefe". Depois deste lugar no discurso, ela exibe seus nãolimites, como se fossem fatos gloriosos, relacionados, essencialmente, a seus pais. As outras meninas ficam literalmente fascinadas.

Em relação a saber como se passou o ano escolar que termina para todas, ela responde prontamente, impedindo que as outras se exprimam e impedindo também a emergência de um eventual enunciado de grupo: "eu fico entediada". Ela dita o tom de nossas trocas e ao que pode ser dito sobre a experiência escolar que tiveram: "na verdade eu passei um ano sem fazer nada!". "Na verdade já faz 3 anos que eu fico entendiada nas aulas", diz ela da altura de seus 15 anos. E ela lança essa frase pouco banal: "na verdade, o professor não fala para mim, ele fala talvez para os outros. Mas quanto a mim, o que ele vai dizer... passa longe...". Esta jovem nos diz que ela espera que o professor lhe fale, ou ao menos que ele fale "para ela". Isso me faz associar com o serviço que presta no grupo de palavra para desempenhar uma ascendência sobre as outras, inclusive sobre as coordenadoras, se possível. No momento em que ela é concernida por uma fala, e que ela pode ocupar, então, uma posição central em uma interlocução – que se transforma num solilóquio –, ela se interessa. Difícil de não reconhecê-la ao lado de uma "toda potência infantil" não desmascarada, o que nos faz sentir, diante do que seu professor qualificava como arrogância, o real desespero desse Sujeito. Mas até o fim estive presa a esta representação, de estar talvez, perdida nas explicações de Mlle. O., tal mobilizados ficamos subjetivamente com sua errância psiquica.

Ao reler a transcrição das sessões do grupo de palavra, o monólogo instaurado por ela é ainda mais evidente, como o fato de ela ter me levado a sustentar sua palavra se eu não quisesse que o grupo "fracassasse" ou "pegasse fogo" (essas foram minhas próprias palavras enquanto eu falava desse grupo e de Mlle. O. a meus colegas). Ela teve, a despeito de tudo, um papel regulador da palavra, já que esse grupo não conheceu os momentos caóticos que eu poderia esperar que acontesse. Como se ela, com sua palavra, ordenasse as falas dos outros e confrontasse às coordenadoras do grupo a suas defesas subjetivas.

Mlle. O. parece ter achado uma solução ao seu tédio escolar: ela anuncia que fará uma formação (uma espécie de estágio alternado: escola e prática profissionalizante) com "um chefe" de pâtisserie. Este projeto a encanta. Pergunto o que mais gosta neste projeto. Ela responde: "bom, tu não tem que fazer sempre a mesma coisa". Percebo esse seu modo de me responder, fazendo uso do pronome tu. Entendo que não me é endereçado especificamente, mas que constitui seu modo de expressão, uma maneira mostrar a todos a sua familiaridade, sua paridade conosco, seus interlocutores. Eu não tenho muita certeza deste seu não-endereçamento, pois para além de todos essas falas de desafios, ela sempre deixou transparecer uma confusa adesão ao outro. Será que ela recusaria a diferença de lugares e de estatuto que se impõe aqui a seus colegas? Isso nos parece verdadeiro. Em todo caso, ela tem o caráter de um futuro "chefe" pâtissier, isso não resta dúvida, ela já carrega aos olhos de todos esse significante!

Em seguida, as jovens meninas enumeram as matérias escolares que as entediam, as classificam quanto à sua utilidade/inutilidade para o presente e para o futuro, e dizem: "estamos pouco nos lichando!". Para algumas, a matemática, para outras história, para outra ainda, todas as matérias, o que acaba por causar um riso generalizado. Mlle. O. vai mais longe ao dizer: "não, mas história é uma matéria que eu nem sei mesmo como eles puderam inventar...". Sua curiosidade em relação à invenção da história não dura muito tempo e acaba por se tornar uma lamentação. Ela termina a discussão com uma fala brutal: "e depois, Louis XVI, nós não o conheceremos nunca mesmo ... não estou nem aí!". Retrospectivamente, me perguntei sobre sua escolha da figura deste rei da França: um figura real decaptada na Revoluçao Francesa. Este rei representa, no imaginário popular, o contrário de uma virilidade assegurada, bem como um caráter não muito forte. A sua queda, enquanto último monarca do Regime Antigo, está aderida à representação de um phallus atacado em sua potência, de um rei que vacilou diante do povo antes de ser destituído do trono. Mlle. O., para deixar claro seu descontentamento, insiste mais uma vez: "não, mas na verdade, ele está morto. E a coisa é que ele está morto, e que não tem nenhuma importância pra gente."

À propósito da utilidade da história, uma outra menina emite este enunciado engraçado, que mostra como esses adolescentes preveem que seus professores detêm um saber futurista de antecipação da história: "ao invés de nos falar do que vai se passar no futuro, eles nos falam do passado! Como se isso fosse nos servir...". O passado não faz sentido. Os mortos não fazem avançar os vivos. O utilitarismo teria virado, para esses adolescentes, o sentido daquilo que os liga à existência. Em todo caso, aqui, o sentido dado pela escola. Este utilitarismo que eles valorizam – o conhecimento deve servir a alguma coisa – pode ser interpretado sobre o aspecto sociológico das classes sociais: nos meios populares, de onde vêm essas jovens, o que conta é a relação do saber prático e concreto, enquanto elas se encontram em fracasso escolar pelos saberes científicos. (Gavarini & Pirone, 2009).

O significante da morte tem lugar nas falas de Mlle. O.: morte do rei, morte dela mesma quando diz que é "livre até a morte", morte por invalidez de seu pai "meu pai é contra tudo o que eu faço. Mas se minha mãe diz sim, meu pai está morto, ele já não tem nada a dizer!". Ela insiste em traçar um triângulo que vai do Rei ao Pai, passando por ela mesma. Ela fala da morte para dizer de sua irritação a propósito das inúmeras viagens da professora de inglês"nós não temos nada a fazer...nós vamos mesmo morrer na França sem nem mesmo ter ido... a Espanha!" Contar sua vida, suas viagens pelo mundo anglofônico, um mundo linguístico novo, de domínios geográficos sobre os quais essas jovens meninas estão em deficit de representação, lhes é insuportável. Este desgosto trazido pelas viagens da professora, não é, talvez, estranho a este fato: Mlle. O., filha de um pai da Guadalupe e de uma mãe italiana, nunca saiu da região parisiense. Seu futuro, ela parece não poder imaginá-lo, senão restrito às estreitas fronteiras da França metropolitana, sem ligação ao sentido do relato migratório de seus pais.

Vemos, talvez, o porquê de seu desinteresse agressivo pela história: uma construção de defesa entre suas origens familiares, que ela parece desconhecer, e a história nacional oficial e os programas disciplinares do colégio. A propósito das origens, seus colegas evocam o "le bled", como um lugar de destino das férias familiares, um "algum lugar" mítico no discurso dos pais. Este "algum lugar" pode, às vezes, constituir uma ameaça levantada pelos pais, se por acaso, o adolescente "terminar mal" na França: um retorno ao país de origem pode ser cogitado pela família.

Para além da maneira caricatural que Mlle. O. pretende negar toda a função do ensino de história na escola, fomos surpreendidos pelo fato de que esta disciplina e seus professores eram depositários de fortes afetos da grande maioria dos alunos. Afetos estes que iam da repulsão à fascinação pela onisciência que eles supunham desta disciplina: a história não tem fim, e aqueles que a ensinam são supostos a adquirir todo este saber interminável, como também a admiração dos alunos. Apenas os alunos em grande dificuldade escolar (como Mlle. O. e alguns de seus colegas próximos), e talvez também alguns alunos que têm de brigar com sua própria história familiar, com seus silêncios e não-ditos.

A única professora que é admirado por Mlle. O. e seus colegas é a de italiano, língua esta que sua mãe não lhe transmitiu, ou que ela, Mlle. O., não se deixou transmitir. Mas o que lhes interessa tanto nesta professora de italiano? Nos diz uma menina do grupo, "Ela é alegre". Por outro lado, a professora de inglês é caracterizada com termos bem duros: "por que ela ousa abrir a boca?" dizem eles, e Mlle. O. dá seu toque pessoal: "é uma covarde!". Esta desqualificação é, explicada por eles, pelo fato que de ela não lhes trazia nada dos países que visitava e dos quais ela falava sem parar em suas aulas. Sobretudo, ela não lhes presenteava com a comida local, e isto todos os outros professores de língua faziam. Ela os nutria apenas com seus relatos de viagens, ou melhor, com um imaginário distante e sem sabor. Dito de outro modo, ela não era uma boa mãe que lhes alimentava: é uma "picareta" que lhes frustra a oralidade.

Todos essa insatisfação justifica, aos olhos de Mlle. O., seu desinteresse escolar. Ela nos resume seu percurso escolar: "... desde o maternal, eu fiz todos os tipos de besteiras em todos os estabelecimentos escolares". Ela considera que faz parte do rol dos "piores". Para nos convencer, ela masculiniza significativamente suas ações: foi expulsa de seu outro colégio, depois colocada na turma dos "bagunceiros" da escola; ela troca as palavras da língua, comete erros, um de seus colegas a corrige, incomodado com seus erros de linguagem – ao que ela responde para terminar com toda objeção a sua fala: "Deixe-me em paz! Eu falo o meu francês, não o seu". Vemos então Mlle. O. fazendo sua própria lei de uso dos gêneros: seu posicionamento de rebelde traz o feminino e lhe dá todos os direitos sobre a língua.

Podemos nos apoiar sobre seu caso particular e tentar compreender em que as leis da língua são subvertidas pelos efeitos do discurso atual. Aqui se situa toda o problema da relação entre um Sujeito singular portador de sintomas e aquilo que é do laço social contemporâneo. E em se tratando da questão da língua, uma pista merece ser explorada: Mlle.O. compartilha com outros jovens de sua geração, nascidos de configuraçães bi ou tri linguísticas, uma relação problemática com a língua francesa e, de forma mais geral, com relação a língua enquanto estrutura. A questão da transmissão familiar parece aqui desempenhar um papel central, mesmo que não possamos inferir uma causalidade única nos problemas da língua que apresenta um Sujeito como essa jovem menina. Pois sabemos que as configuraçães familiares multilinguísticas podem, ao contrário, ser de enorme valia a alguns indivíduos que se mostram extremamente à vontade na aprendizagem linguística escolar. O que se esgarça neste choque cultural e linguageiro vivido pela geração desses pais e, mais ainda, de seus ascendentes, que faz com que suas crianças "gaguejem" na língua, escamoteiem, e faz com que tenham enorme dificuldade de construir um récit?15

A fim de permitir ao grupo reagir diante do relato implacável de Mlle. O.,"eu falo o meu francês, e não o seu!", eu tento produzir uma brecha que lhe permita dizer algo mais. Eu lhe digo: "não deve ser muito fácil dizer tudo isso... Você entrou em um comportamento e depois não consegue mais sair dele". Ela vacila apenas um curto instante. E ela se reconstrói e diz que seu comportamento "finalmente" lhe "agrada bastante". E sua única concessão a dica que eu lhe dei consistiu em reconhecer que ela sabe bem o que faz: "algumas coisas de maluco nesses 3 anos" em seu colégio anterior. Mas essa é ainda sua forma de se vangloriar.

Através de sua epopeia, ela se constitui, aos olhos de seus colegas de classe, como uma figura relativamente heróica que resiste à lei escolar. Se sua atitude é tolerada por seus pais, é porque ela não lhes deixa escolha. Enquanto que os outros parecem duvidar da cólera de seus pais, dos golpes do pai ou do irmão mais velho, e às vezes mesmo do irmão mais novo, seu absenteísmo é marcado pelo colégio. Mlle. O. se dobra face a constatação realista da carência de seus pais: "deve se dizer a verdade, eu tenho pais que sempre cederam a tudo, principalmente minha mãe, e aí, deu no que deu ... eles não podem realmente dizer mais nada, agora é tarde demais!". Eu noto a forma denegativa de seu enunciado, que podemos interpretar como um chamado ao avesso. Ela não pode realmente evocar, como toda criança, as interdições e os limites contra os quais lhe seriam impostos, logo, ela nos diz que seus pais nunca lhe "colocaram a pressão". De toda forma, ela descreve cinicamente o assentimento de sua mãe: "quando ela veio me buscar, pois eu tinha sido expulsa três vezes em quatro dias... durante três minutos ela disse "bom, isso não é nada bom, você não vai recomeçar, né?", "e dois minutos depois, nós já estávamos indo comprar coisas para mim". Seus pais são presentes, mas pouco severos e isto não a desagrada. A queixa não é seu modo de expressão, nem uma lógica que lhe cabe.

Essa jovem possui, no grupo, uma espécie de alter ego. Uma jovem menina de origem portuguesa, que eu nomeei, entre pesquisadores, sua "assistente" em razão de sua estimulação permanente à provocação e ao acting out. Ela, também ausente e em fracasso escolar, se delicia num jogo de espelho com Mlle O. Esta a reconhece como uma semelhante ao nos declarar, de modo jubilatório, que elas são duas delinquentes, – o que desperta o riso de todo o grupo. As mães de ambas são também amigas, e elas lhes contam tudo de suas vidas. No entanto, o pai severo desta segunda menina a amedronta com seus golpes e ameaças. Ela pensa que ele é contra tudo o que ela faz. Em sua cabeça, sua mãe é obrigada a lhe ser conivente para esconder do pai um certo número de atos que ela comete e que iria expô-la a sua raiva. Segundo ela, sua mãe tem medo que o pai exerça seu estilo de autoridade sobre a filha. Ela nos diz que, se não houvesse o risco de seu pai ser advertido e que a locação familiar16 lhe fosse suprimida, ela não iria mais as aulas.

Numa via contrária, a mãe de Mlle. O., na representação da filha, dominaria o pai, com o que ela parece não ficar descontente. Ela vibra ao dizer que seu pai tem "um porta moedas pequeno, bem pequeno". Assim, nós não podemos deixar de pensar que ela faz referência, aqui, à potência fálica de seu pai, que ela lhe toma de empréstimo, reduzindo a algo bem pequeno. Sua mãe tem 54 anos e 5 filhos. Mas, ela nos diz, "a coisa é que ela tem 54 anos, mas se veste como eu". A palavra "coisa", da qual ela faz uso abundante, enquanto gíria na língua francesa, "truc", me remete ao seu sentido italiano: o "trucco" em italiano significa maquiagem, mas também o truque que faz o mágico. A mãe de Mlle.O. maquia, disfarça, apaga a diferença das gerações: "ela esquece a idade que tem", diz a filha. Como ela não sustenta um discurso de adulto, sua filha entra em pane. Ela continua: "Por exemplo, se hoje eu vou fazer alguma coisa (truc) bizarra, eu sei que eu posso entrar em casa tranquilamente! Meus pais irão me encher o saco por três segundos... depois tudo vai voltar ao normal e de noite eu vou sair para ir à festa! Mlle. O. sabe ser bem esperta com seus pais.

Eu tentei de novo dar-lhe uma deixa ao lhe dizer que entendia que ela se arrependia dessa relação com os pais. Ela me lança uma resposta radical, remetendo minha interpretação ao seu devido lugar: "não! porque mesmo sendo jovem, eu faço o que quero." Fazer o que quer é o mesmo que falar seu francês aproximativo, e se associa a ideia de poder "se safar" sempre, quando ela bem quiser. Ela nos diz, "não é uma pena a forma como fui criada, pois eu sei que se talvez eles tivessem me batido ou se eles tivessem sido mais rigorosos eu seria, talvez, de outro jeito, mas talvez poderia ser mais malvada ainda". Nesta anomia parental, Mlle. O. tenta se apegar a seu pai com o qual as trocas são limitadas, mas pelo menos ele, ela nos diz, "fala de seu projeto de futuro", de se tornar patissière. É assim que ela diz que ama seu pai, e também, quando a noite eles se encontram: ela chegando de suas festas, ele saindo para seu trabalho de manhã cedo.

Há uma forma de autoerotismo no seu modo de construir o relato que faz a seus colegas. Até o último minuto o grupo lhe deu a oportunidade deste mise en scène, e ela recusara todos os meus convites para sair desse seu papel. Pelos traços comportamentais e discursivos, esta jovem, que sua professora de francês nos dizia ser "mignonne", nos faz pensar nos "crapulosas" descritos por Stéphanie Rubi (2005). Ela seria uma "chefe" mas um tanto isolada e desertada por seu bando. Se as outras riem de suas provocações verbais, elas lhe mostram, diversas vezes que ela é "maluca" ou "mito17", pois ela lhes constrange profundamente com seus enunciados recorrentes sobre o assujeitamento de seus pais às suas lei. É provável que elas tenham achado uma certa graça do espetáculo de Mlle. O. nos colocando à prova a todo instante, e que elas tenham tido interesse daquilo que extraíamos de seus ataques, sem levá-los a mal como a maioria dos adultos que as cercam.

O. carrega uma errância solitária, o que não a impede de ter um namorado fixo, que passa as noites na casa da família. E foi no dispositivo do grupo de palavra que ela, sem dúvida, tocou os limites de seu poder de sedução e entrou em contato com sua devastação.

 

Christophe e sua gravidade alegre

Longe, bem longe da jovem O., desta "chefe", designada assim por seus colegas, Cristophe se impôs a nós por seu estilo e por sua presença forte no grupo de palavra de uma turma do 2º. ano. Ele me remete a um enunciado: ele é alguém com uma gravidade alegre. Este jovem rapaz de 16 anos é bem afiado sobre as questões que são as nossas: a sexuação e as marcas da diferença geracional. Eu decidi lhe evocar, pois ele mostrou uma certa determinação, uma energia para o riso, para descrever os outros alunos do liceu, outros adolescentes com uma identidade sexuada fluida, figuras típicas do tempo atual. Este jovem nascido em Angola cresceu no Congo. Ele teria visto seus pais serem assassinados em circunstâncias aparentemente ligadas a guerra e foi pego para criar por um tio que mora na região parisiense. Ele já tem uma longa história; Cristophe sabe ser sério, apresenta uma real gravidade diante de seus amigos do grupo, que vimos quando ele lhes conduz a grandes momentos de risos irrepreensíveis, sempre quando abordamos questões que lhes atordoam.

Nós os sentimos plenos de existência. Ele tem enunciados fortes sobre a responsabilidade: "para mim é uma obrigação ... ser responsável". E ele continua nisso que parece mais uma aproximação linguística ao dizer "Ser responsável por mim mesmo". Como se ele devesse de qualquer forma desenvolver, por ele mesmo, uma função de injunção de tipo parental. Ele pensa que esta responsabilidade não é universal nos jovens. Segundo ele, as diferenças de nascimento são determinadas em relação à responsabilidade: "as crianças nascidas na França, elas são muito ligadas aos pais; elas esperam que os pais façam isso, façam aquilo. Quando nascemos no estrangeiro ou naÁfrica ... mesmo quando somos pequenos já é diferente." "Nós já temos um pouco de responsabilidade. às vezes tem gente que morre de fome ou você mesmo nem tem o que comer. Mesmo quando se é pequeno, você já tenta se virar para achar qualquer coisa pra comer. Isto é uma responsabilidade". A "fome pela vida" estruturou alguma coisa de importante para Cristophe e determinou sua relação com o outro e a vida. Percebo também que ele usa o tu para se dirigir a nós, pesquisadores, mas que ele lhe coloca logo após ter usado o vous, o que acaba por nos implicar em seu propósito dramático, nos convidando à compaixão pela criança que ele um dia foi. A argumentação de Cristophe é compartilhada por Melissa, jovem menina, cujo os únicos elementos de vida que conheço é que sua mãe é de Guadalupe e que seu pai não vive em casa. Ela acompanha o discurso de Cristophe: "A França é um país que tem de tudo para as crianças. Tudo nos é oferecido... então depois cabe a nós escolher... é como se nos oferecessem um cesto cheio e que devemos saber o que pegar e o que deixar". Eu penso que ela evoca, nesta frase, a sociedade de consumo com suas ofertas e suas pressões que embaraçam o Sujeito adolescente. Ela acrescenta: "de fato o que pode dar medo é a autonomia".

Esta autonomia do adolescente deve ser aproximado daquilo que Melissa nos disse anteriormente a respeito de sua tomada de consciência de sua identidade. Ela descobriu a existência de um "outro mundo" aos três anos de idade, com a sua entrada na escola maternal. Ela fala disso como uma prova iniciática e simbólica que faz com que fiquemos "grande". Este salto no desconhecido desconcerta: "entre 2 e 3 anos, nos separamos de nossas mães pela primeira vez. Nós não nos sentimos à vontade, não nos sentimos seguros". Diante deste desconhecido e seus efeitos de revelação, ela rapidamente achou seu quinhão: os amigos, o conhecimento que ela jamais teria em casa. O significante escola – mesmo que associado a escola maternal, veio fazer corte para esta menina, face à figura tutelar de sua mãe e, também sem dúvida, com o universo dominante feminino de sua infância, pois esta jovem vive já há alguns anos apenas com sua mãe e suas tias. Ela vive numa família monoparental, assim como diversos outros adolescentes do grupo.

Mesmo que a escola maternal continue a ser uma instituição predominantemente feminina, a jovem não é boba: "na escola maternal só há a professora. Mas ela não é sua mãe. Não é alguém que a criança tem o hábito de ver desde que nasceu". A escola é boa para esta jovem, assim como para seus colegas que atestam, neste sentido, um encontro com a figura de um Outro.

Os meninos, de seu lado, com exceção de Cristophe, insistem sobre o fato de que a identidade e a autonomia para eles começaram bem mais tarde: "é no colégio que nos formamos", nos diz Denis. O salto no mundo do não familiar se produziu, segundo suas representações atuais, com sua entrada no colégio, aos 11-12 anos. Este "atraso" no crescimento com relação às meninas vale aos meninos algumas ironias destas últimas. Até o colégio, os meninos pertencem ao mundo encantado e lúdico da infância. Será então um novo significante – colégio –, o portador de uma forma escolar mais estrita e mais exigente – que terá esta função de separação deste despreocupado estágio infantil. Eles parecem não compartilhar e mesmo, não entender esta representação de corte com a mãe trazido por Melissa e pelas outras meninas. Em todo caso, as problemáticas do se tornar grande e da separação com a mãe não coincidem em seus espíritos. Compreendemos bem que Cristophe destoa, por sua história, mas sobretudo por seus dizeres, fazendo-nos recriar o sentimento de responsabilidade da infância.

Em diversas ocasiões, os jovens do grupo de palavra de Cristophe e Melissa mostraram que meninas e meninos não são iguais em sua tomada de consciência da identidade, termo que deve ser entendido aqui no sentido de sua individuação, particularmente no que diz respeito a tomada de consciência de uma identidade sexuada. "Não iguais", não tanto na relação ao outro sexo e principalmente a sexualidade, à "primeira vez", não iguais mas bem atentos e curiosos das representações do outro sexo. Eles pensam, ao contrário, que existiria um saber imedianto e evidente sobre os semelhantes, no seio de seus grupos sexuados respectivos. Sobre o tema da identidade sexuada e da diferença de sexos, várias sessões do grupo de palavra foram o palco de trocas movimentadas e, às vezes, de discussões polarizadas entre meninos de um lado e meninas e de outro.

Até no espaço físico, sistematicamente o mesmo, eles se colocavam de maneira bem distinta: meninos e meninas, face a face, em torno de mesas dispostas em retângulo. Uma modalidade de defesa manifesta dos meninos era o riso: de início embaraçado, um rir entre meninos, depois risos coletivos que se tornavam desestabilizadores ao ponto que Cristophe caiu de sua cadeira duas vezes, frente a evocação de pessoas de identidade sexuada pouco definida. Nesta sessão, a conversa era sobre meninas que faziam trabalhos de meninos (a construção, especificamente). Cristophe e Denis dizem que elas poderiam estar nos escritórios ou em casas de família, mas não na construção, que seria "perigoso" para elas. Eles pensam que essas "mulheres não devem ter marido", nos diz Cristophe, pois "os homens gostam das mulheres doces ao seu lado", completa Denis. Em seguida, uma séria de "papos" sobre a oposição doçura e músculos, sobre as meninas que seriam masculinas, viris, do "tipo que batem em marido", nos dizem eles. A grande maioria das meninas e meninos do grupo acham que isso não é lá muito atraente. Cristophe é o mais virulento sobre esse tema e não consegue reprimir uma crise de riso compulsiva que me evoca uma representação de sua própria confusão e sua vergonha de que estas questões sejam discutidas, assim, abertamente.

As meninas criam entre elas, uma discussão sobre os enunciados propostos pelos meninos sobre estes gêneros sexuais confusos, mal definidos. Umas banalizam o fato e sustentam que tudo isso é apenas uma coisa de imagem, de convenção ou de modas construídas pela sociedade; outras dizem de um certo desgosto pelas meninas musculosas, pois os músculos tirariam toda a sensualidade de uma mulher. Uma menina que se apresenta com uma aparência de menino, mais andrógina do que musculosa, manteria essa idéia da diferença de sexos balizada pela aparência: "se ela é musculosa, se ela parece mais com um "cara". Não dá certo. É um menino num corpo de menina". Num primeiro momento, eu achei estranho o contraste que esta adolescente, originária do Senegal, nosdava a ver e a entender simultaneamente com sua frase: "É um menino num corpo de menina". Pois eu me perguntei se em sua lógica, ela não seria mais "uma menina num corpo de um menino"? Então, para parafraseá-la, eu poderia dizer: "Não, isto não dá certo".

Se opera claramente nesse grupo, um tipo de condensação entre meninas viris e homossexualidade, o que parece se conjurar apenas no âmbito masculino com suas fantasias. Como se essas jovens, meninas masculinas, impusessem uma negação radical da diferença de sexos, lhes fazendo pensar numa impossível heterossexualidade.

Os meninos não conseguiram reprimir suas confusães diante destas representações confusas da sexuação, inconscientemente angustiantes. Vale dizer que a figura das meninas masculinizadas é constante nesta periferia onde elas recebem o nome de "bons homens" em razão de sua forma de se vestir e sua aparência . Ele nos diz, Denis: "tem que haver diferença !", como um grito que faz corte na conversação, como uma escansão que produz interpretação.

Por outro lado, causa o mesmo incômodo a menção dos meninos que seriam afeminados, que se ocupariam muito de seu físico, ostentando os atributos do outro sexo. Mas a intensidade dos risos e a paixão das discussões são menores do que logo que são justapostos masculinidade e mulher, assim que eles escutam o masculino na mulher: neste caso, a mistura é explosiva. O uso do string pelos homens, mesmo se Cristophe que aí "vamos longe demais", parece para a grande maioria deles, um novo acessório da moda, com certeza um pouco "afetado", mas não condenável. Seria um sinal de que os homens se cuidam. Esta sua reação me faz pensar se a feminilidade do homem não é mais tolerada porque ela já está integrada na lógica do mercado, onde "tudo é permitido", uma lógica que se apoia em um discurso social que lega um grande lugar a feminização.

Diante da minha pergunta do que seria o masculino e o feminino, eles se opõem entre eles sobre a influência respectiva de três categorias de identidade sexuada, que eles identificam como: anatômica, mental e social. Estas categorias não estão articuladas em suas mentes, mas têm cada uma a força de um determinante absoluto. Eles tecem, todos juntos, uma ideia de sexuação ligada à problemática da identidade e da alteridade (alteridade que eles nomeiam "diferença", ou "outro sexo").

A identidade e a alteridade estão relacionadas, para eles, num além do sexo anatômico, da influência dos outros e de uma espécie de porosidade das experiências que tiveram do ambiente quando crianças, assim como dos laços privilegiados com os representantes de seu próprio sexo e do outro sexo com o qual o individuo viveu. Os mecanismos aos quais eles pensam são efeito do mimetismo e da impregnação, mais do que dos processos de identificação.

Cristophe intervém neste debate e apresenta sua fórmula da sexuação, que lhe gerou de início a gozação de seus colegas, mas depois uma certa admiração. Ele nos dá o exemplo de um amigo: se eu lhe chamo por um outro nome que não o seu e ele me responde, isso quer dizer que ele não se reconhece em sua identidade". Ele é obrigado a usar pelo menos dois exemplos usando os nomes dos colegas presentes para que eles pudessem compreender: "você se chama Paula e na rua eu te vejo e te digo, oi Nicole! Você não vai me responder porque você sabe quem é você!". A identidade sexuada consiste em uma resposta a um chamado, a um endereçamente que vem do exterior. Diante da resistência de seus colegas a compreender, Cristophe reforça sua teoria com a fórmula decisiva: "é uma coisa como um comprimido que nos foi dado: você é isto! você é aquilo!" Em outros termos, o Sujeito não pode responder a um significante que não é o seu. Ele é assujeitado e não pode se virar, se virar para um outro chamado. Na falta deste assujeitamento que Cristophe acaba de expor, o Sujeito se acha com uma identidade confusa, como indivíduos vazios, sem gravidade e prontos a se virar para não importa qual interpelação do Outro. Cristophe, está longe das teorias dos Gender Trouble, de Butler que sugere que a sexuação diz da escolha de um significante para o Sujeito, segundo uma lógica performática puramente liberal.

Em segundo plano destas figuras remarcáveis, diversas problemáticas se anunciam. No entanto, o traço comum destas duas vinhetas, para além da singularidade das pessoas e das questões de estrutura do Sujeitos, é de nos permitir entrever os efeitos do discurso social liberal sobre a construção das subjetividades adolescentes, em particular do ponto de vista de seus futuro enquanto Sujeitos sexuados.

Nós vimos uma variedade de posicionamentos subjetivos, com as adesões de uns, os conflitos de outros, as resistências e as formações reativas de quase todos. Esta exploração clínica não teria sido possível sem o dispositivo que nós desenvolvemos para acolher a palavra dos adolescentes, sem os grupos e sua função elaborativa e de contenção, sem a exigência ética que supõe a discussão, no senso de Habermas, que nós trouxemos para que sua palavra pudesse ser entendida... e por nós mesmos.

 

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NOTAS

1 Título original: "Comment des adolescent-e-s des banlieues (se) parlent? Un jeu d'adresses aux chercheurs" [N.T. ].

2 Esta pesquisa (ANR, Appel Blanc, "Copsyenfant, 2005"), sob a direção de S. Lesourd (Unidade de Pesquisas em Psicologia Subjectivité, Connaissances et Lien Social de l'Université de Strasbourg) foi conduzida segundo uma abordagem específica para a região de Ile de France pela equipe "Approches cliniques en éducation" (L. Gavarini, dir.– Equipe Education, Socialisation, Sujets, Institutions, Université Paris 8). O tema central foi a construção da identidade de crianças e adolescentes e suas marcas para a diferença entre os sexos e a diferença de gerações face às mutações dos laços sociais e das configurações familiares contemporâneas.

3 Para maiores informações sobre o desenvolvimento sobre os grupos de palavra com adolescentes, ver Gavarini, L. (2009). Des groupes de parole avec les adolescents: l'émergence d'une parole "autre". Cliopsy: revue électronique, 1, 51-68.

4 Les collèges sont des établissements qui correspondent au premier cycle de l'enseignement secondaire, d'une durée de quatre années; ils scolarisent des élèves, filles et garçons, ayant entre 10 ans et 15 ans. Les lycées, second cycle de l'enseignement secondaire, d'une durée de trois ans, se spécifient en lycée professionnel ou général et accueillent des élèves de 16 à 18 ans.

5 Notadamente, Paugam (1997) ou Stébé & Marchal (2007).

6 A tradução literal dos quartiers para o português, seria o equivalente aos bairros. No entanto, o sentido trazido pelo texto faz referência ao seu uso exclusivo feito aos bairros da periferia. Assim, da mesma forma, o sentido da palavra Cité, não é apenas, a cidade. Ela diz de um certo aglomerado de habitações populares da periferia destinado às famílias de estatuto social e econômico precários nas grandes cidades francesas.

7 Na França, a Inspeção corresponde a autoridade de tutela, uma representação do Ministério da Educação dentro dos estabelecimentos escolares. Para além de sua função administrativa e institucional, é desta instância que dependem os alunos em forte dificuldade e a advertência do absenteísmo escolar aos organismos sociais ligados às alocações familiares. Estas são uma sorte de ajuda do Estado francês às famílias com um mínimo de dois filhos.

8 Estes grupos concerniram cerca de 50 jovens, entre 14 e 18 anos, com os quais desenvolvemos entrevistas clínicas aprofundadas, observações de classe que tratavam de temáticas como: o corpo, a puberdade, a sexualidade, a contracepção, as relações entre sexos, e gêneros). A co-condução desses grupo de palavra foi assegurada por colegas clínicos de orientação psicanalítica ou socio-clínica: Eric Bidaud, Jean Cahors, Gilles Monceau, François Petitot, Frédéric Rousseau, Annie Benveniste. Bem como Ilaria Pirone e Milvio Meuci, estudantes que co-conduziram alguns grupos.

9 Na língua francesa, é sinal de educação e respeito se dirigir a alguém, que não faz parte de nosso círculo mais próximo, usando o pronome pessoal na 2ª pessoa do plural: vous. Quando se trata de pessoa próxima, o usual é o emprego na 2ª pessoa do singular: tu.

10 Este jogo consiste na composição de uma farse ou um desenho por diversas pessoas, sem que eles saibam das produções precentes feitas por outras pessoas. O princípio deste jogo é de que cada participante escreva uma parte de uma frase, na ordem sujeito-verbo-complemento, sem saber o que o precedente escreveu.

11 "bled ", termo genérico que designa a terra de origem, que não é necessariamente o Maghreb, já que o termo é árabe.

12 Mlle O. veste-se, dos pés a cabeça, com roupas brancas ou rosa e adorna-se com bijuterias douradas.

13 Faço referência, aqui, à terminologia de Rubi (2005).

14 Zonas onde estão situados os estabelecimentos escolares dotados de estratégias e recursos diferenciados para fazer face às dificuldades de ordem escolar e social de seus alunos.

15 Ver o trabalho de Pirone (2007).

16 Ver nota 5.

17 Referência ao termo mitomaníaco.

 

 

Recebido em julho/2009.
Aceito em setembro/2009.

 

 

Tradução: Viviani S. C. Catroli
vivianisc@gmail.com

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