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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.14 no.27 São Paulo  2009

 

DOSSIÊ
A ADOLESCÊNCIA ENTRE A PSICANÁLISE E A EDUCAÇÃO

 

Escrever nas coisas: a utopia contemporânea na linguagem dos adolescentes

 

To write on things: the contemporary utopia on adolescents language

 

Escribir en las cosas: la utopía contemporánea en el lenguaje de los adolescentes

 

 

Fernanda Costa-MouraI; Anna Carolina Lo BiancoII

IProfessora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), psicanalista, membro do Tempo Freudiano Associação Psicanalítica, fcostamoura@infolink.com.br
IIProfessora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), psicanalista, membro do Tempo Freudiano Associação Psicanalítica, aclobianco@uol.com.br

 

 


ABSTRACT

The article deals with the practice of graffiti on streets, to examine the rules of these writings and refer them to the subversion of the ordinary language they operate. It is based on Walter Benjamin´s analysis of the language transformations that are on the base of modern social order. It argues that if science on the one hand reduces language to the point of turning it algorithmic, emptying its expressive potency, on the other hand, the youngsters these days rejoin the creative power of language. They exhibit on the city walls the incommensurability between what is shown on words and what can be read.

Index terms: psychoanalysis; adolescent; language; science; contemporaneity.


RESUMEN

El artículo aborda la práctica de grafito de los adolescentes en las calles. Se basa en los análisis de W. Benjamin sobre las transformaciones del discurso que ordenan nuestro funcionamiento social para discutir los efectos subjetivos de estas transformaciones. Sitúa una discursividad propia de estos escritos, referida a la subversión del funcionamiento ordinario del lenguaje que promueven, y argumenta que si la ciencia depura el lenguaje hasta el punto del algoritmo, vaciando su potencia expresiva, los jóvenes de hoy retoman a la fuerza el poder creador del lenguaje, ostentando en los muros de la ciudad la inconmesurabilidad entre lo que se muestra como palabra y lo que se puede leer.

Palabras clave: psicoanálisis; adolescentes; lenguaje; ciencia; contemporaneidad.


RESUMO

O artigo aborda a praticados adolescentes nas pichacoes de rua. Baseia-se nas analises de W. Benjamin sobre as transformacoes do discurso que ordenam nosso funcionamento social para discutir os efeitos subjetivos destas transformacoes. Situa uma discursividade propria destes escritos, referida a subversao do funcionamento ordinario da linguagem que promovem. Alem disso, argumenta que, se a ciencia depura a linguagem ate o ponto do algoritmo, esvaziando sua potencia expressiva, os jovens de hoje retomam a forca o poder criador da linguagem, ostentando nos muros da cidade a incomensurabilidade entre o que se mostra como palavra e o que se pode ler.

Descritores: psicanalise; adolescentes; linguagem; ciencia; contemporaneidade.


 

 

"Ler o que nunca foi escrito. Esse ler e o mais
antigo: um ler anterior a toda linguagem, cujo
objeto sao as entranhas, as estrelas, as dancas."
(W. Benjamin 1939/1971a, p. 52)

No muro de pedras ao pe do Corcovado, os nomes se confundem, superpoem-se em tamanhos e tipos diversos: Snugh, ... E um imenso e desordenado painel grafico, composto ainda de frases, datas, desenhos e algarismos romanos. O mesmo se repete nas fachadas dos predios, nas placas de rua, nos muros do Primeiro Batalhao de Choque (em frente ao Sambodromo no centro do Rio), da Sexta Delegacia na Lapa, assim como em quase todos os cantos do globo. Ostentando escrituras como enigmas, os graffiti1 tomaram, nas últimas décadas, inúmeras cidades do mundo. Ninguém pode propriamente explicar por que, nem como. O fato é que, a cada dia, surgem mais pichações... E BΞl! Nunca mais uma carteira de escola é somente uma carteira.

Inicialmente, o que dominava eram as letras e, mais especificamente, a distorção das letras com as quais se desenhavam nomes ou apelidos. Aos poucos, a profusão de formas tipográficas e emblemas exibidos por toda a cidade no limite do ilegível se tornaram cada vez maiores, até aparecerem as primeiras pieces (abreviatura de masterpiece, "obra-prima") nos trens de Nova York (Ganz, 2004/ 2008 e Castleman, 1982). Hoje, os bandos agem em todos os continentes, arriscando malabarismo e perigo, para dar curso a uma peculiar pulsão gráfica.

Como estratégia de intervenção na cidade, os graffiti permitem estranhar o cotidiano urbano. A comunicação truncada, o entrecruzamento de marcas e traços embaralham a sinalética urbana. Desfazem a ordem esperada dos signos. Por um instante, somos pegos, tentamos ler a coisa e empacamos. A poderosa visada do sentido, a dimensão da representação, que marca cada espaço com uma definição, tropeça, cai, por força daqueles sinais estranhos. Poucas palavrinhas vazias tatuadas numa placa de rua instalam um curto-circuito da nossa racionalidade soberana. Um ponto cego no contínuo da linguagem, um oco, uma solidão – espécie de pulverização das frases, de imagens, de pensamentos. Suspensão violenta do sentido a partir do que, nenhum resta sólido.

É comum a recuperação dos graffiti. Podemos, aliás, perceber melhor o que eles implicam reconhecendo o que está em jogo quando eles são objeto da crítica (para além da repressão policial). De um lado, eles são recuperados como arte. Fala-se de "artistas grafitistas", de arte urbana, etc. (Ganz, 2004/2008)2. É a redução estética – a própria forma de nossa cultura dominante. Mas as pichações não são, em sua maioria, "artísticas". E o critério estético não diz muito sobre elas. O segundo tipo de recuperação de que os graffiti são objeto interpreta-os em termos de reivindicação de identidade oude liberdade pessoais, de "ser notado". É uma ação atribuída comumente à revolta de jovens sem perspectivas, cuja prática de pichar muros é remetida à interpretação humanista que parte do nosso individualismo burguês – "o ser único e incomparável" que somos – para afirmar que estes jovens reivindicariam, deste modo, o reconhecimento ou identidade que lhes fora subtraído pela vida na cidade. Ora, os graffiti, não são nem esboços, nem declarações; não têm personalidade a defender. O que cada uma das pichações nos diz é a sua realização. E o que é realizado ali é um exercício, uma prática de escritura. Estilhaços de linguagem espalhados sobre os muros; a sua presença é um luxo sem duração.

Para acompanhar este exercício, é preciso reconhecer o que os graffiti apresentam de modo selvagem e independentemente de qualquer intenção que se possa atribuir a eles. O que eles exibem, o que obrigam a ver e o que suscitam é sempre a mesma questão fundamental: a do sentido que falha em se constituir; fazendo com que a linguagem apareça como pura expressão do gesto que a produziu – fora de toda interpretação possível. Evocando para quem passa a pura presença do sujeito. Inusitada presença: "para o povo olhar e não gostar" (Caroline Pivetta da Mota – pichadora presa em flagrante quando pichava o pavilhão da 28ª. Bienal Internacional em São Paulo, enquadrada na lei de crimes ambientais, cuja pena é de 1 a 3 anos de prisão e que já responde a 2 outros processos por outras duas pichações – citada em reportagem de Freire (2008).

A questão que se impõe então e à qual a significação em termos de revolta ou reivindicação não responde responde verdadeiramente é a de tentar recolher no movimento dos graffiti, não o dito, mas o dizer que eles veiculam. O presente trabalho visa a situar uma discursividade própria a estes escritos, referida à subversão do funcionamento ordinário da linguagem que promovem.

Partindo da filosofia de Walter Benjamin que coloca o problema da natureza da linguagem como realidade última, argumentamos que estes escritos testemunham o esvaziamento da linguagem expressiva que está na origem de nosso funcionamento social contemporâneo ordenado pela ciência. Ao passo mesmo em que a ciência depura a linguagem até o ponto do algoritmo, os jovens de hoje retomam à força o poder criador que faz da linguagem a frágil salvação.

 

O verbo do homem

Habituados, como estamos, a tomar como dado o que levou séculos para se efetuar no tempo, ignoramos que, num mundo diferente do nosso, anterior à ciência como a conhecemos, o mundo falava. Videntes, testemunhando um ajustamento perfeito à ordem cósmica, podiam ler as correspondências entre o homem e o cosmos diretamente nas vísceras e nas estrelas. Segundo Benjamin (1916/1971b), as coisas é que eram objeto de leitura e, só depois, a palavra. Mas, na medida em que as antigas correspondências foram desaparecendo aos olhos do Homem, no lugar de um saber imediato, instaurou-se a linguagem comunicativa – que tem a palavra como mero instrumento – e o problema do dizível/indizível que a caracteriza.

Para Benjamin (1933/1985a), a linguagem em sua origem aparece, não como comunicação, mas como forma de imitação da natureza. Diversas teorias já concederam ao "poder de imitação" (Benjamin, 1939/1971a, p. 50) alguma influência sobre a linguagem. Entretanto, estas reflexões se reduzem, via de regra, ao estreito domínio da semelhança sensível; como ocorre com aquelas teorias em que se reconhecem os nexos de correspondência entre as palavras e as coisas, sob sua forma mais primária – a onomatopéia, como modo de explicação para a conduta de imitação presente no nascimento da linguagem.

Com o conceito de semelhança supra-sensível (ou extra-sensível), Benjamin avança em direção a uma concepção mimética de sentido mais amplo, que encontrará seu desdobramento numa teoria mística da linguagem como revelação – de que a linguagem humana é um caso particular, conforme veremos.

Em 1939, Benjamin desenvolve no ensaio Sobre a faculdade mimética3 (1939/1971a) – que retoma com algumas modificações um texto anterior A doutrina da semelhança (1933/ 1985a) – a tese de um estado prélinguístico, em que a comunicação humana não se baseava nos signos arbitrários da linguagem e sim num "dom da apreensão mimética"; dom de poder ver a semelhança, que faz a. o homem descobrir correspondências através das quais se desenvolve a linguagem (Benjamin, 1933/1985a, b. 109).

Esta temática é parte de uma teoria geral da mimesis que Benjamin desenvolve em sua filosofia da linguagem, mas cuja aplicação se estende a uma variedade de esferas, como a arte e a crítica da cultura. Segundo esta teoria, a natureza cria semelhanças sensíveis e extra-sensíveis (isto é, não sensíveis) que se inscrevem no mundo despertando o poder de imitação que o homem possui como resposta. Esta capacidade mimética original e a faculdade subjetiva que lhe corresponde (dom de produzir semelhanças e, com isto, conhecer) permitem que o homem descubra na natureza analogias e correspondências a partir das quais se desenvolve a linguagem. Em função disto, a linguagem, longe de ser um sistema convencional de signos, guardaria com as coisas uma relação não arbitrária que imediata ou mediatamente reflete a capacidade mimética. Estrutura dotada de uma necessidade interna de reprodução (mimesis) mimética das relações necessárias do mundo exterior: tal era a linguagem em sua origem. Não um puro meio, mas a língua-celebração – da relação viva do homem consigo mesmo e com o mundo.

Todavia, as forças e objetos miméticos se modificam ao longo da historia. As correspondências e analogias mágicas, tão evidentes aos olhos do primitivo aparecem no mundo atual apenas como resíduos; fracos restos de um dom de produzir semelhanças e de conhecê-las que outrora vigorava entre os homens e que se encontra, na modernidade, em crescente fragilidade. Hoje, as antigas correspondências reduzem-se ao que a linguagem pode evocar. A percepção moderna já não dispõe do que permitia aos antigos atribuírem à posição dos astros efeitos determinantes sobre a existência humana. Não obstante, as semelhanças ainda podem ser produzidas, pois em alguma medida elas encontram-se arquivadas na linguagem falada e nos símbolos da linguagem escrita.

"Dessa forma, a linguagem seria o grau mais elevado do comportamento mimético, e o mais completo arquivo de semelhanças supra-sensíveis: um medium para o qual migraram inteiramente as antigas forças de produção e percepção mimética." (Benjamin, 1939/1971a, p. 52, grifo do autor)

Já em 1916, no ensaio Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana (1916/1971b), Benjamin, considerando a essência da linguagem à luz dos primeiros capítulos do Gênesis, especula sobre um estado original da linguagem, em que língua e a realidade última das coisas não se distinguem.

Segundo essa interpretação profana, o ato da criação se inicia com a onipotência criadora da língua, que se incorpora ao objeto criado através do nome. Deus cria as coisas nomeando-as – "Deus disse: Haja luz, e houve luz. Deus chamou as trevas noite e a luz dia. Houve uma manhã e uma tarde do primeiro dia" (Gn. I: 3-4) – e, com o homem, Deus partilha sua força criadora, fazendo surgir nele a linguagem que serviu a Ele como medium da criação.

A linguagem humana é a única que nomeia. Pelo nome, o homem está em comunhão com o verbo de Deus e é, ele mesmo, criador. O homem continua a obra da criação chamando as coisas pelo seu nome; "O verbo humano é o nome das coisas" (Benjamin, 1916/1971b, p. 90).

Essa linguagem adamítica – à qual o homem tinha acesso no Paraíso – não se destinava à mera comunicação. Nela, as coisas se revelavam, através do nome que correspondia à sua essência. Como linguagem original, nela a palavra é revelação – portando a essência do real, num saber efetivo que dispensa todas as mediações.

Neste registro da palavra, o homem pode ligar-se à linguagem das coisas (é o Paraíso) – acolher em si a linguagem muda da natureza que com ele se comunica, nomeando-a; e com isto atingir o saber imediato que é justamente o saber do nome.

"O ato adamítico de nomear está tão longe de ser arbítrio e jogo que é somente nele que se manifesta o estado paradisíaco, no qual o momento nominativo da linguagem não luta com o momento comunicativo." (Benjamin, 1925/1984, p. 59).

O Pecado original assinala o fim deste estado paradisíaco de ligação imediata com as coisas. Esvaziado de sua atualidade divina, no homem, o poder criador converte-se em conhecimento. O homem conhece na língua com a qual Deus criou. O conhecimento que promete a serpente, aquele do Bem e do Mal, é sem nome. Conhecimento exterior às coisas, imitação não produtiva do verbo criador. Que a palavra deva comunicar algo (fora dela mesma): esse é o verdadeiro "pecado original do espírito linguístico" (Benjamin, 1916/1971b, p. 93).

É o começo do verbo propriamente humano – no qual o nome não vive mais. Após a queda, o homem se perde do nome e passa a utilizar uma linguagem meramente comunicativa, que é a língua degradada; condenada à inconsistência da significação e à palavra polissêmica. Com o abandono da dimensão nomeadora da linguagem (dimensão simbólica), instala-se um privilégio da dimensão significativa e comunicativa da linguagem. O Nome transforma-se na palavra, mero fragmento semântico, coisa entre as coisas e que, por isso mesmo, não pode mais nomeá-las. A palavra incita à frase. O verbo que penetrava nas coisas e, através do que, elas falavam, dá lugar à proposição – graças a qual os homens falam sobre as coisas, numa mobilização profana (porque estéril) da língua dos nomes.

É que à queda do homem corresponde uma queda da palavra – da pura expressão para a esfera do sentido (que não chega) – e se desfaz a antiga contemplação em que se podia escutar a linguagem das coisas.

 

Homens implacáveis

Falando de língua original e queda na proposição, Benjamin tematiza o corte que é constitutivo do sujeito moderno. Em outro de seus ensaios célebres – Experiência e pobreza – descreve como os combatentes de 1914 e 18 tinham voltado silenciosos dos campos de batalha, "mais pobres em experiências comunicáveis" (Benjamin, 1933/1985b, p. 115). Uma geração que ainda fora à escola em bondes puxados a cavalo viu-se, de repente, sem referências para lidar com aquela situação do corpo castigado pela guerra de trincheiras, da economia corroída pela inflação... Um novo campo, de forças esmagadoras, cujas correntes explosivas depuseram as referências simbólicas que até então organizavam o mundo e produziram uma nova forma de miséria – ligada não à pobreza, mas ao extremo desenvolvimento da técnica.

Essa miséria, sobreposta ao homem, distingue uma "nova barbárie" (Benjamin, 1933/1985b, p. 115). Uma barbárie positiva, posto que impele, a partir da pobreza, a construir com pouco, sem o espelho da experiência; mas, ainda assim, barbárie. Pois se trata do momento, posterior ao advento da ciência moderna, em que a ciência não mais simplesmente se acrescenta, enriquecendo a cultura, mas a suplanta.

Muitos autores já demonstraram (Hottois citado por Lebrun, 1997, p. 118; Koyré, 1961/1991 e 1966/1986; Kuhn, 1970/1998 e 1973) que a operação científica implica não apenas a substituição da linguagem natural pela linguagem formal matematizada, mas mais do que isto, que esta operação acarreta uma radical alteração de toda a nossa relação à linguagem. Costumamos pensar sobre a ciência sempre pela perspectiva do ganho que ela oferece, esquecendo que, quando se circunscreve a presença real dos astros numa lei matemática, a ciência não transforma apenas a realidade – possibilitando o cálculo, a técnica – mas incide também, diretamente na linguagem. Impondo-lhe certos modos operatórios que acarretam remanejamentos importantes no plano dos discursos.

Até o advento da ciência, como diz Koyré (1957/1973), o mundo era fechado. O real organizava-se numa familiaridade que fazia com que não houvesse distância entre o homem e o Cosmos – concebido como mundo finito hierarquizado concebido por Aristóteles como regido pelo sentido e lugares naturais de coisas e elementos dados. Em total descontinuidade com o universo infinito e avesso ao sentido descortinado pela ciência moderna.

Modernos, não estranhamos mais as transformações do discurso postas em marcha pela ciência, mas Lacan – guiado por sua aguda reflexão sobre a ciência cujo ponto de Arquimedes é a injunção ética colocada por seu lugar como psicanalista – se pergunta já em 1955 por que os planetas não falam mais. E responde dizendo que eles não falam porque a ciência os fez calar.

"O silêncio eterno dos espaços infinitos com que Pascal se apavorava é algo adquirido depois de Newton.... Só se fica definitivamente seguro que os planetas não falam a partir do momento em que se lhes arrolhou o bico, ou seja, a partir do momento em que a teoria newtoniana forneceu a teoria do campo unificado ... resumida na lei de gravitação ... numa linguagem ultra-simples que comporta três letras." (Lacan, 1987, pp. 301-302)

A análise de Benjamin ilumina o que está em jogo para o sujeito, neste corte constitutivo da modernidade. Na medida em que o saber cientifico substitui as antigas cosmologias pela precisão de um universo matematizável, abre-se um abismo: na falta do saber imediato proferido por um mundo bem ordenado que fala por si, devemos nós mesmos ordenar o mundo pela via do discurso. E fazer isso não mais por referência a um outro mundo – o paraíso para nós está perdido –, mas por referência ao mundo na imanência em que nos é dado. Mundo limitado pelo não sentido das determinações econômicas e sociais, por um lado, e pela operatividade da linguagem e dos laços sociais, por outro.

É aí que, a rigor, podemos falar de um sujeito que emerge como sujeito da ciência (Lacan, 1998). Podemos divisá-lo no bárbaro de que nos fala Benjamin – o bárbaro que ele mesmo reconhece entre os grandes criadores como Descartes e Einstein, que ele cita nominalmente ("homens implacáveis que operaram a partir de uma tábula rasa" Benjamin, 1933/ 1985b, p. 116); ou no homem comum. O homem que, não podendo mais espelhar suas questões na experiência coletiva da cultura, tem a seu encargo a responsabilidade inédita de construir suas próprias referências e saídas, muitas vezes à revelia dele mesmo e da ordem social ou familiar. A estes homens – que "devoraram tudo, a 'cultura' e os 'homens' e ficaram saciados e exaustos" (Benjamin, 1933/1985b, p. 118) – resta a via colocada em marcha pela própria ciência: ordem dos significantes; que funcionam e copulam independente do saber que podemos ter sobre eles.

A ciência isola no mundo significantes que já não querem dizer nada a ninguém. Podemos, a partir da emergência da ciência, encontrar no mundo significantes que se organizam, significantes que respondem a leis, mas estes significantes não estão relacionados a um sujeito ou a uma essência que se expressaria por seu intermédio. Trata-se do mesmo significante que, exatamente por não ter significação natural, Freud encontra compondo o sonho e constituindo o sintoma em sua equivocidade (Freud, 1900/1976a e 1917/1976b). Mas, como alerta Benjamin, esta é uma via cheia de percalços – onde sentido e não sentido convivem, dizível e indizível se confundem e a referência está perdida.

A transformação da fala expressiva em discurso equívoco é o que constitui para o espírito linguístico – todos nós, os falantes – a expulsão do paraíso. Banidos, perdemos de vista a fala original e estamos condenados a ouvir em cada palavra a multiplicidade. Isto é, a polissemia: multiplicidade de falas sobrepostas que, longe de atestar uma riqueza de linguagem, é o índice de sua queda e fragmentação; sinal do mutismo de uma natureza que os homens não podem mais escutar.

Neste contexto, em que os signos se confundem (é a equivocidade da linguagem ordinária), no lugar vazio do nome instaura-se o interdito (ao saber imediato das coisas) e a superdenominação com a qual as diversas linguagens humanas – e, especialmente a ciência – tentam (de novo) se relacionar ao objeto.

A fala como expressão imediata e criadora de um sentido pleno resta para o sujeito, no entanto, como utopia, para a qual a filosofia benjaminiana da linguagem aponta. Sem dúvida, nas condições atuais, marcadas pela queda e o pecado original que advieram com o conhecimento do bem e do mal encarnado no saber científico, essa função expressiva não pode se dar como antes. À queda e fragmentação do espírito linguístico corresponde a proliferação das línguas – as línguas históricas têm que expiar a transgressão, e o castigo que lhes cabe é justamente serem históricas: passageiras, datadas. Restarem obnubiladas por sua vocação instrumental para a transmissão de conteúdos, perdurarem numa espécie de maldição semântica que as obriga a significar: "Se o trabalho é o preço social da desobediência, seu preço cognitivo é a opacidade das coisas às palavras, o calvário da abstração" (Rouanet, 1981, p. 122). Mas, se o Paraíso está perdido (e está: nossa condição testemunha isso); elecontinua, entretanto, presente como promessa. É a promessa do sentido que incita à fala, como é a promessa do Paraíso que move a história (Benjamin 1940/1985c) – a lembrança do que poderia ter sido. O sentido perdido persiste sob a forma oculta de todos ossentidos possíveis. É o que nos diz a polissemia. Ela é o apelo que o passado da linguagem dirige ao presente; em que um sentido – que jamais é o Sentido (aquele pleno, imanente ao nome) está, não obstante, entronado. Este naturalismo que obscurece a polissemia é a evidência de que o passado (o sentido, quando havia) pesa como fardo morto dominando as línguas; subjugando o presente a uma direção (a dos vencedores).

"O passado arrasta consigo um índice secreto que o remete a salvação. Será que não nos tange então uma lufada daquele vento que girou em torno dos ancestrais? Será que não há em vozes que escutamos um eco de vozes agora silenciadas?" (Benjamin, 1940/1985c, pp. 154-155).

 

Velocidade do relâmpago

A sobrevivência do presente (quando a fala está aprisionada em discurso como significação); sua realização em outras possibilidades que não a imposta pelo sentido único, oficial, depende da contingência de um encontro – que só pode dar-se na linguagem – com a multiplicidade de sentidos do que poderia ter sido.

A dignidade da palavra, seu poder nominativo, permanece como potência na linguagem, mas não é no elemento comunicativo, instrumental da linguagem que se poderá reencontrá-la e sim em seu elemento expressivo, que apenas toma a comunicação como veículo. Mas como fazer saltar da linguagem comunicativa, da linguagem que pretextando falar das coisas não remete senão à linguagem (isso é a significação) – esta dimensão expressiva, que é criadora?

Nas cidades de hoje, algumas centenas de jovens empunhando seus sprays, remontam às origens da escrita, escrevendo nas coisas. À sua passagem, muros, placas, paredes, carteiras de colégio e outros, marcados pela escritura, se tornam objetos de leitura – revelando assim (como a palavra consignada dos livros sagrados, ou mais modernamente, como no processo fotográfico de fazer visível uma imagem latente), a potência expressiva da linguagem, com a qual transtornam tudo a sua volta. Onomatopeias, apelidos, tags (assinaturas) escritos numa caligrafia provocante, seguidos às vezes de números em algarismos romanos – índices de filiações ou dinastias (Supercool I, II, III...) que, conforme o totem, o tipo, o interesse, a fama (vale dizer, a presença em todo canto da cidade) são reproduzidas por novos grafiteiros – transformam tudo em monumento da língua dos nomes.

Retomar o elemento expressivo, neste caso, não significa voltar às origens da linguagem, mas antes, que a linguagem é a origem para eles. Inscrevendo o signo, na carne das coisas, fazem das coisas matéria de troca simbólica. Os muros tatuados se desprendem da arquitetura e são levados à condição de suportes, devolvidos à matéria viva, anterior ao sentido informativo que vem calá-los. ÚÑ, Dµke, Jyinx, Řiso, L'Ş. renovam a potência criadora da língua. E o fazem de modo multifacetário.

Benjamin aponta a possibilidade de que a dimensão nominativa da linguagem possa ser retomada (embora fragmentária e dispersivamente) através de uma rememoração deste tipo. Onde o que estaria envolvido seria não a memória intencional, cognitiva, mas uma memória involuntária que irrompe ao acaso – e, especialmente, ao acaso de um encontro (Benjamin, 1929/1985d). Selando as coisas com a marca da escrita, as pichações engendram a fala de um estágio desconhecido para nós, (Snurghl!); fora dos signos convencionais. Uma fala que, mais que encontro, é encontrão. A rememoração que promovem não é – tal como a coloca a tradição platônica – uma rememoração de imagens (o Paraíso, nunca o vimos), mas da fala original. Rememoração fugaz do instante em que as coisas se encontram e se relacionam – não diretamente, como antes, no espírito do vidente ou do sacerdote, mas em suas essências, nas substâncias mais cruas, "nos próprios aromas" (Benjamin, 1933/1985b, p. 112).

Por outro lado, o apelo que o passado da linguagem dirige ao presente através da polissemia – forma oculta de todos os sentidos possíveis que derroga a hegemonia do sentido único – depende da mais problemática forma de transmissão da semelhança que é a ligação (eventual, contingente) entre a palavra escrita e a falada (Benjamin, 1933/1985a, p. 111). Esta ligação, para além da comunicação de conteúdos, é um acontecimento que exige um desdobramento da leitura: uma leitura da "dimensão mágica" da linguagem e da escrita (Benjamin, 1933/ 1985a, p. 112) que não existe isoladamente da outra dimensão da linguagem, sua dimensão semiótica. O texto literal da escrita é, portanto, o único e exclusivo suporte sobre o qual pode formar-se o quebra-cabeça.

Assim, a salvação do presente está dada menos numa linguagem primordial que em uma percepção primordial, em que as palavras não perderam, em benefício da compulsão comunicativa, sua prerrogativa nomeadora. Trata-se do "ler mais antigo" de que fala a passagem que serve de epígrafe a este trabalho: ler o que nunca foi escrito, no texto mesmo do escrito – único e exclusivo fundamento possível para nós.

Sob o pano de fundo do escrito (efetivamente, materialmente) é que, numa fração de segundos, a semelhança (fonte da linguagem expressiva) pode emergir.

"O elemento mimético da linguagem só pode aparecer, como a chama, se tivesse um substrato .... O contexto significativo das palavras ou sentenças é o substrato no qual emerge a semelhança com a velocidade do relâmpago. A produção e percepção de tal semelhança se vincula, em numerosos casos ... a este relampejar. A semelhança perpassa veloz." (Benjamin, 1939/1971a, p. 52).

Isso evoca a mais importante característica da esfera da semelhança expressiva. Ela perpassa veloz. A percepção – ativação da rememoração involuntária – das semelhanças está ligada a uma temporalidade do instante (sem duração). Sua percepção, contingente, embora talvez possa ser retomada, não pode ser fixada, ao contrário de outras percepções.

O grafiteiro, como se soubesse disto, confia à mão o cuidado de escrever tão depressa quanto possível aquilo que a linguagem comunicativa ignora: a impossibilidade da correspondência inequívoca (a que se aspira na leitura) entre o que se mostra como palavra e o que se pode dizer nomeando. Ř W ę F – é ilegível. Marca nos muros, ao mesmo tempo, a possibilidade de uma escritura expressiva – pelo que dá a ler do que se enuncia com o significante – e a impotência de realizá-la numa duração (aqui, o significante "faz picadinho" do significado). Porém, o que perde em permanência ganha em subversão, logrando fazer da linguagem – o simbolizante por excelência – o que é, naqueles rabiscos, simbolizado.

Em sua reflexão, Benjamin privilegia três formas de liberar, pela linguagem, a pura língua cativa na linguagem comunicativa. A primeira delas é a tradução – tema de um de seus mais importantes artigos, A tarefa do tradutor, que aparece em 1923 como prefácio às suas traduções de Baudelaire. Segundo a concepção benjaminiana (1923/1971c), as linguagens contemporâneas portam os ecos da linguagem adamítica. As várias palavras de várias línguas se ordenam em torno de um significado como os vários pontos de um círculo em torno de centro. Externamente, estas palavras não têm nada de comum, mas se relacionam entre si, por isso a que elas visam e que nenhuma delas realiza isoladamente. Este isso é a língua pura: "Reino prometido e interdito onde as línguas se reconciliarão e se completarão" (Benjamin, 1923/ 1971c, p. 268).

A potência da tradução, então, mais que transpor significações de uma língua para outra, é reencontrar a pura linguagem no movimento de translação linguística; tornar manifesto na língua e na obra os traços da linguagem pura que habita obscuramente o original traduzido. Benjamin recomenda a literalidade na transposição sintática e, sobretudo, fidelidade a palavra: "A palavra, e não a proposição é o elemento original do tradutor ... A proposição é o muro diante da língua do original, a literalidade é a arcada" (Benjamin, 1923/ 1971c, p. 272).

A palavra é, também para os graffiti, o elemento principal. A fidelidade estando em que, sendo o invólucro semântico o que veda o acesso à dimensão nominativa da linguagem, as pichações, subtraindo a palavra das sequências proposicionais da linguagem comunicativa, isentam-na da obrigação de significar. Expondo-as assim, sem sentido, arrancam as palavras da empiria em que estão confinadas e fazem valer seu direito de nome – de não significar nada, de revelar a essência do real.

Voltar ao nome, voltar ao ato. O graffiti faz isto rompendo com a cadeia das utilidades. Priva a palavra de seu uso (como mercadoria usada para trocas) e a insere numa ordem em que, estando livre da prisão de ser útil, a palavra pode existir como puro ato (escritura expressiva) aposto nos muros da cidade. No graffiti, a palavra aparece como a ruína de seu contexto usual, a linguagem comunicativa. Está salva.

Salvar a palavra é, também, a potência da citação, tal como Benjamin a explicita em 1925: procedimento que revela a verdade da palavra alheia, através de sua incorporação a um novo texto no qual ela se aliena (e nessa alienação aprende uma nova fala). Citar uma palavra é chamá-la pelo seu nome; é revelar sua essência real, que é múltipla e expô-la a novas significações. Neste sentido, a citação é a possibilidade constante de ressurreição de cada obra. Citar as palavras, enumerá-las, justapô-las, rearticulá-las numa colagem, sem qualquer mediação, sem qualquer teoria, para descobrir um ou mais dos vários sentidos possíveis de cada figura da linguagem. Salvar as palavras do contexto em que são mudas e despertar nelas o eco da palavra adamítica. Arrancada do contexto que constitui seu habitat, a palavra renasce numa nova ordem que lhe é estranha e que ela ilumina (abre). A alienação funciona aqui como condição de um novo saber.

O graffiti desorganiza, translada e reorganiza a palavra onde menos se espera: em muros, tapumes e placas. Arrancar do contexto é chamar de volta à origem. Se o valor das línguas está em aludirem à língua pura, a realização desta força alusiva supõe a desarticulação da frase que libera a palavra para suas múltiplas possibilidades de significação (Benjamin, 1925/1984). Nos graffiti, a fragmentação é a técnica de agenciamento mais usada. Combinação desordenada de elementos esparsos – uma sorte de escrita pictográfica, poucas cores, privilégio do nome próprio decupado em pequenos pedaços não silábicos (Snurghl, Potts, Baaldeb), nome às avessas; as pichações parecem desenhar o mapa visual da cidade para dar ao espaço urbano "outra chance" (Estrella, 2008).

Este descontínuo na linguagem é o graffiti – em seus estilhaços (espalhados nos muros) a linguagem partida, deixa de ser comunicativa. As pichações parecem aludir a uma só "frase-mãe", como quebra-cabeças a se reconstituir. Mas esta frase-mãe é somente postulada. Não é uma frase plena, mensagem acabada, completa. Seu princípio ativo não é o que ela diz, mas o que ela articula: um "ar sintático", um modo de construção (ou desconstrução) do discurso que produz sempre um texto disperso, fracionado, escandido de seu próprio conteúdo – inadequado, forçado, estrangeiro. E de qualquer conteúdo que se lhe queira atribuir.

O fragmento quebra a dissertação, o sentido possível, final, do qual resta apenas a figuração como escritura ( é uma caligrafia...). Esta técnica de ilustrar visualmente, fazer figurar concretamente um abstrato (como o sentido) é a terceira das potências da linguagem mencionadas por Benjamin (1925/1984): a alegoria.

Na apresentação de sua tradução para Origem do drama barroco alemão, Sergio Paulo Rouanet (1984) analisa a etimologia da palavra alegoria – derivada de allos, outro e agoreuein, falar na ágora, publicamente. Alegoria: pelo uso de uma linguagem pública, remeter a outro nível de significação; dizer uma coisa para apresentar outra. O uso da palavra em seu sentido etimológico chama atenção para este caráter público e de alteridade. Então, de saída isto: a alegoria é um texto público. Para o alegorista, o mundo material constitui uma reserva inesgotável de objetos simbolizáveis; qualquer objeto pode se transformar em suporte de significações alegóricas.

Os graffiti parecem nascer do mesmo princípio. São públicos, se mostram, tomam qualquer objeto como suporte (quanto mais expostos, melhor). A garatuja fazendo dos muros um corpo, sem fim nem começo, inteiramente erogeneizado pela escritura. Para construir a alegoria, o mundo objetivo tem que ser esquartejado. O alegorista arranca o objeto de seu lugar e o obriga a trazer outra coisa do que ele mostra.

"De certo modo, as cenas de martírio do teatro barroco estão a serviço desta intenção. O homem tem que ser despedaçado, para tornar-se objeto de alegoria. O martírio, que desmembra o corpo, prepara os fragmentos para a significação alegórica. Os personagens morrem não para poderem entrar na eternidade, mas para poderem entrar na alegoria." (Rouanet, 1984, p. 40)

Assim, a fragmentação é o que é representado na alegoria e o que permite construí-la. Para poder construir a alegoria da linguagem, o graffiti submete a própria língua à fragmentação. Nos anagramas, nas expressões onomatopaicas e em outros artifícios (verbais e gráficos), a palavra, a sílaba, emancipadas de qualquer contexto significativo, desfilam como coisas, livremente exploráveis pela intenção alegórica. Esvaziada de todo brilho próprio, incapaz de irradiar qualquer sentido, a língua está pronta para funcionar como alegoria. As ruínas e os fragmentos das palavras servem para apresentar o que a linguagem não permite representar – seu próprio limite, sua insuficiência, sua falta.

À maneira da alegoria, o graffiti utiliza determinados elementos da tradição da linguagem (como a palavra, a pontuação, as aspas e outros tipos de notações) para dar-lhes uma chance de sobrevivência sob novas condições, quando o que eles representam já não pode mais funcionar. O que os elementos da linguagem representam é a linguagem plena – tudo aquilo que não pode mais ser expresso senão como outro (alteridade) por relação ao que há: linguagem frouxa, esvaziada, inconsistente (alienada do sentido, das coisas, do nome).

A isto que há, os graffiti se atêm – ao fragmentário, ao despedaçado. Com isto, escrevem seu texto composto de pedaços improváveis. Recuando o sentido até o impossível pelo martírio da linguagem, o graffiti acelera sua ruína e, com os vestígios, aposta nos muros o outro texto que seu texto poderia ter sido e não é.

Evocar a língua que poderia ter sido não significa trazer à superfície a sua magia (ao paraíso não se volta); mas, de algum modo (através de que tentativas, só se sabe na oportunidade, no relampejar de que fala Benjamin) apresentar (Gagnebin, 2005), recompor suas ruínas e ressuscitar seus mortos. Há que se redimir este passado da linguagem, porque somos visados por ele. Nossas ruínas são análogas às da linguagem. A queda da palavra é também a nossa.

Benjamin fala de salvar a linguagem porque se reconhece nela. A arbitrariedade de algumas de suas formulações é a do falante alegorista: subjetividade absoluta, radical, gerando incessantemente significações moldadas unicamente à sua percepção da semelhança que, repetimos com ele, "perpassa veloz" (1939/1971a, p. 52). E, no entanto, conhecemos cada uma de suas figuras e com elas convivemos diariamente. Sua arbitrariedade, seu anacronismo buscado reflete a nossa própria experiência. A inconsistência e a palavra vã vivem entre nós. O poder do nome é latente. Salvar a palavra é salvar-nos nela. Preservar a imagem de sua utopia, "a onipotência criadora da língua" não pode ser alcançada fora da linguagem (num estado pré-linguístico) mas dentro dela – Snurghl.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS

1 Empregamos aqui a palavra italiana graffiti, plural de grafito para designar: a) a prática de escrever em paredes e b) as inscrições resultantes desta prática (para estas, usaremos também os termos "pichações" e "pichos" que são de uso corrente). Em português temos a tradução "grafite" (Bettoni, R. & Cipolla, M. traduzindo Ganz, 2004), de onde extraí o substantivo comum "grafiteiro" (ou "pichador") para o rabiscador.

2 Apesar de uma certa confusão de nomenclatura os City Walls – a arte mural (que no Brasil é chamada, às vezes, graffiti) nada tem a ver com os graffiti. Os muralistas são, aliás, anteriores aos grafiteiros, se propõem a uma empresa de inovação e embelezamento das cidades, implementada com subvenções municipais, ou, como no caso dos murais do centro do Rio, privadas (Fundações etc.). Existem também os slogans murais, obras de grupos espontâneos que adornam os muros com frases, expressões, versos e dizeres de todo tipo. Social e politicamente, sua impulsão assemelha-se a dos graffiti – trata-se de pinturas feitas de forma "selvagem", isto é, não financiadas pela administração urbana e igualmente reprimidas. Mas estas concentram-se em temas e mensagens (revolucionárias, políticas, libertárias, artísticas ou qualquer outra). Contrariamente aos graffiti, elas têm um sentido (ainda que dúbio às vezes); fazem circular uma ideia.

3 "Über das Mimetische Vermoegen" ("Sobre a faculdade mimética") que citaremos aqui como "Sur le pouvoir d'imitation" (W. Benjamin, 1939/1971) conforme a versão francesa.

 

 

Recebido em agosto/2009.
Aceito em outubro/2009.

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