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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.14 no.27 São Paulo  2009

 

DOSSIÊ
A ADOLESCÊNCIA ENTRE A PSICANÁLISE E A EDUCAÇÃO

 

A entrada na adolescência

 

Entering adolescence

 

El ingreso a la adolescencia

 

 

Sandra Niskier Flanzer

Psicanalista, Doutora em Teoria Psicanalítica pelaUniversidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), membro do TempoFreudiano Associação Psicanalítica. sniskier@uninet.com.br

 

 


RESUMO

O presente artigo destina-se a abordar aspectos clínicos da passagem da infância para a adolescência. Levando-se em conta os principais conceitos de Freud e Lacan, serão analisadas evidências na cultura que deflagram a dificuldade encontrada pelo sujeito, hoje em dia, em tomar um lugar na cena adulta, permanecendo ligado a um modelo infantil. A posição ideal em que os pais permanecem, para aquele sujeito que se recusa a situar-se diante de sua dívida simbólica, será também descrita. Ainda será discutido o papel da psicanálise nesta conturbada passagem da infância para a vida adulta.

Descritores: adolescência; psicanálise; sujeito; clínica.


ABSTRACT

This paper addresses clinical aspects of the transition from childhood to adolescence. In the light of key concepts from Freud and Lacan, it examines evidence of culture occasioning the difficulty subjects find today on taking their place at adult setting, what leaves them tied to the childhood model. It also describes the enduring ideal position that parents occupy for the subject who refuses to position itself with regard to its symbolic debt. It discusses, as well, the psychoanalyst's role in this unsettling passage from childhood to adult life.

Index terms: adolescence; psychoanalysis; subject; clinic.


RESUMEN

El presente artículo se destina a abordar aspectos clínicos del paso de la infancia a la adolescencia. Considerando los principales conceptos de Freud y Lacan, serán analizadas evidencias en la cultura que disparan la dificultad que encuentra el sujeto, hoy día, al ocupar un lugar en la escena adulta y así permaneciendo vinculado a un modelo infantil. Se describirá también la posición ideal en que los padres permanecen, para aquel sujeto que se niega a ubicarse ante su deuda simbólica. Además, se discutirá el rol que juega el psicoanálisis en ese conturbado paso de la infancia a la vida adulta.

Palabras clave: adolescencia; psicoanálisis; sujeto; clínica.


 

 

Pretendo abordar, no presente artigo, algumas questões relacionadas à difícil posição do sujeito que se encontra saindo da infância e entrando na adolescência. Parto de uma pergunta eminentemente clínica: sendo a adolescência uma crise psíquica a ser atravessada, diferindo-se, portanto, de uma perspectiva cronológica que a definiria de forma rasteira (devemos compreender, a fim de alastrarmos nossos horizontes, que não se trata somente de uma fase, localizada no tempo), sendo esta crise uma experiência que relativiza o referencial infantil da interdição e coloca em cena o referencial do impossível; sendo ela a queda do plano da privação, queda provocada pela inserção definitiva da castração, poderíamos então afirmar que o movimento próprio da adolescência é algo a ser experimentado por todo sujeito em análise?

Irei abordar esta questão sobre o prisma do seguinte elemento, que escolhi destacar: as vicissitudes de uma tomada de posição do sujeito diante do postulado lacaniano de "servir-se do pai para prescindir dele" (Lacan, 1992). A dificuldade que noto haver para o sujeito, frente a este convite a "prescindir do pai na condição de servir-se dele" é o que me fez indagar sobre a saída da infância e sobre esta difícil entrada na adolescência. Para percorrer esta questão, observaremos os paralelos entre a psicanálise com adolescentes e a clínica dos neuróticos.

Primeiramente, tomemos emprestada uma definição de adolescência, feita por Melman (1997): trata-se de um momento de crise, de suspensão para o sujeito, diante da constatação da queda do ideal que constituía sua relação parental. Estes pais, outrora plenos, lheparecem falhos, insuficientes, deficitários. É um período de hesitação, retrata Melman, em que o sujeito não encontra o lugar diante de seu gozo. Na adolescência, o sujeito se depara com o aspecto enganador da antiga e já descumprida promessa de um gozo absoluto.

Para Rassial, coloca-se aí a dimensão do impossível, para além de uma dimensão de interdição, ou de proibição, típicas da infância. Além disso, o sujeito é convocado a responder ao real da puberdade e ali verifica que os pais "não são fundadores, mas transmissores" e que, em sua cadeia geracional, puderam indicar "um impossível Outro do Outro" (Rassial, 1997, p. 49).

Se o que está na linha do horizonte para o adolescente é a assunção de um ponto de impossível, que repercutirá na possibilidade da aquisição (num futuro agora breve), de um papel a ser desempenhado por esse sujeito na cultura, resultante da relativização de suas idealizações, este momento parece também revelar um mesmo aspecto para onde apontaria o percurso de uma análise. Dito de outro modo, se a adolescência é este momento no qual o que está em jogo é a passagem de um lugar subjetivo, vivenciado até então na infância, a um outro lugar subjetivo, esta passagem não seria correlata da passagem pela análise, no sentido de convocar o sujeito a uma implicação diante do impossível, da castração?

Vemos, na clínica, uma extensão da seguinte problemática: infâncias interrompidas prematuramente, antes mesmo de qualquer assunção corporal efetiva, adolescências completamente antecipadas, acompanhadas de todas as crises a que se tem direito. Não bastasse, as adolescências também, por sua vez, se prolongam, se estendem infindáveis. São sujeitos que cada vez mais tardiamente se deparam de forma verdadeira com as questões que circulam em torno do que Freud conceituou como conflito psíquico: estão em suspensão, evitam os confrontos com as diferenças de gerações, por exemplo. Não descolam de seus pais, seja por manter com estes uma relação de dependência, acomodação, seja, ao contrário, por portarem uma postura de revolta e rebeldia (o que clinicamente parece dar no mesmo, tratando-se, em ambos os casos, de uma dificuldade de poder agir em nome próprio).

Em outros casos, observamos que o adolescente supõe poder agir em nome próprio, mas na condição de prescindir do pai, abrir mão dele. Ele presume que as atitudes que viriam a confirmar seu lugar no mundodependem de que ele o dispense. É comum escutarmos um adolescente dizer que quer realizar seus empreendimentos de forma distinta de seus pais, de que é somente desta maneira que alguma individualidade lhe seria garantida.

Um trabalho de escuta que realizo numa escola de classe média do Rio de Janeiro me permite dizer que, por ocasião do vestibular e, diante da escolha de uma carreira a ser seguida, o adolescente encontra muitas dificuldades por duvidar sobre dever fazer exatamente aquilo que seus pais desejam que ele faça. Situado assim, ele imagina que tudo aquilo que possa lhe conferir autenticidade, estatuto de singularidade, só viria a se consagrar a partir de uma ruptura com os ideaisdo pai. É neste momento que notamos circular entre eles uma proliferação de diários, correspondências secretas (endereçadas a todos, menos aos pais), esconderijos; bem como atos silenciosos, mentiras e reclusões. Se, por um lado, isto não deixa de ser um efeito da queda imaginária sofrida em relação aos pais, concernente à crise, por outro lado, recoloca em jogoa dimensão idealizada, ali presente. É como se, nesta posição, o sujeito supusesse que é preciso "não se servir" do pai, como se almejasse, de alguma forma, prescindir dele para afirmar sua existência.

O que estes fatos clínicos ilustram é que o sujeito se encontra às voltas com a questão de como ele irá se servir do pai. Então, não se trataria, nesta crise da adolescência, tal como para o sujeito submetido ao trabalho analítico, de poder "servir-se" do pai para, aí sim, "dispensá-lo"? Não estaríamos nós confrontados, nos dias de hoje, com adolescências cada vez mais prolongadas e confusas, justamente devido a uma dificuldade do sujeito em lidar com este postulado, devido a uma inversão realizada sobre este "servir-se do pai"? Lacan, em O seminário, livro 5, propõe: "É preciso ter o Nome-do-Pai, mas é preciso também que saibamos servir-nos dele.É disto que o destino e o resultado de toda história podem depender muito" (Lacan, 1999, p. 163).

Mas é nisto que consiste toda a dificuldade para o sujeito, pois que, se servir do pai não se revela por um caráter positivado. Não se trata aí de ser abastado pelo pai, provido de seus dons, seus bens. Servir-se dele, ao contrário, implica em aceitar a submissão à castração, ou, antes disso: aceitar que os pais também estejam submetidos a ela, coisa que vem azedar totalmente a perspectiva imaginária sustentada até então, perspectiva infantil do ideal parental. Lembremos que Freudnos propôs que o Édipo e seu derivado psíquico – a castração – só podem ser definidos em três gerações: é preciso que os pais sejam, também, castrados, fato que só se configura pela presença indispensável de seus antecessores. Isso porque, estes antecessores, ao invés de proverem seus filhos com uma herança benevolente, transmitem justamente aquilo que lhes falta.

Admitir a herança – eis o que está na linha do horizonte, para o adolescente. Trata-se de admitir-se numa série, engajar-se; bem como reconhecer, aceitar a queda do ideal, ali onde o sujeito pode se posicionar, com sua própria insuficiência. O problema é que, insisto, aquilo que o sujeito deve admitir não é algo positivado, não é algo que venha a somar, não são bens adquiridos (materiais ou subjetivos, não importa). Muito menos, vale salientar, é algo que possa ser dispensado. O que o sujeito deve admitir (admissão é um termo que deve ser tomado no sentido também de uma entrada), o lugar ao qual deve aceder, é um lugar de dívida, que requer o declínio do plano imaginário, ideal – este porto seguro adotado, no qual está ancorado e referenciado em sua posição infantil.

Para que o sujeito tome seu desejo em nome próprio, é preciso sujeitar-se a uma cadeia geracional. É o oposto, por exemplo, de engajar-se num grupo, pois um grupo (desde Freud, o sabemos) faria a função inversa: de escamotear a singularidade que só é possível a partir do reconhecimento da falta (Freud, 1920/1972a). O que está em jogo para o adolescente é que ele possa ingressar no gozo sexual – e por cujo ingresso deverá pagar – tomando lugar na cena adulta; operação, porém, que ele só faz pagando um preço. O que se espera de um adolescente, portanto, é que ele possa apropriar-se devidamente daquilo que é a sua dívida.

O que o sujeito ganha, na adolescência, é a referência definitiva da castração, ou seja, um presente de grego de sua existência. Que ele possa servir-se de sua herança – tarefa nada simples, já que traz em seu rastro a emergência do real, como resto – para daí fazer a sua parte, dar o seu quinhão, imprimir sua marca. Retomo aqui uma citação de Goethe, da qual Freud se apropria em Totem e tabu (Freud, 1913/1972b, p. 188): "aquilo que herdaste de teus pais, faça-o teu".

Devemos considerar que o que cai, na adolescência, não é o pai propriamente dito, mas o seu contorno até então idealizado na infância pelo sujeito. Tomar o pai enquanto falho, deficitário, não é o mesmo que se passar sem ele, mas, ao contrário, é adquirir uma perspectiva que relativiza o aspecto imaginário até então predominante, a partir do Nome-do-Pai enquanto função. A queda do ideal, para qualquer sujeito e, em especial para o adolescente, é algo que só se torna possível uma vez instaurado o Nome-do-Pai.

Lacan sugere, em O seminário, livro 5, que a boa posição de um sujeito evoca a presença de um desejo que se articula e que se articula não somente como "desejo de reconhecimento, mas como o reconhecimento de um desejo" (Lacan, 1999, p. 254). O reconhecimento de um desejo é o que vem retirar o sujeito da dimensão puramente demandante do desejo de reconhecimento. Paradoxalmente, é desta forma que o sujeito pode vir a tomar lugar diante de seu gozo. O reconhecimento do desejo, esta assunção do desejo em nome próprio, faz situar para o sujeito o seu gozo, para que ele possa, aí sim, dispensar o pai. Esta operação requer o lugar do pai como se consagrando para o filhoenquanto falho. É preciso que haja um pai, portanto, que deixe "a desejar".

Haveria muito a observar sobre o que viria a ser uma apropriação desejável do Nome-do-Pai, feita pelo sujeito. No presente artigo, gostaria de apresentar mais elementos sobre esta situação específica e complicada onde o sujeito se recusa a submeter-se a isto.

Ainda em O seminário, livro 5, Lacan (1999) afirma que, naquilo que Freud denomina "além do princípio do prazer", não se trata de outra coisa senão a relação fundamental do sujeito com a cadeia significante. E interroga-se sobre o sujeito que, ao se aproximar de sua história familiar, de seu lugar na cadeia, se recusa a entrar no jogo: "Quanto mais o sujeito se afirma, com a ajuda do significante, como querendo sair da cadeia significante, mais ele próprio se torna um signo desta cadeia" (p. 254). Abolindo a si mesmo, torna-se mais signo do que nunca. Lacan fala então de uma "dor de ser", resíduo último do encontro entre Eros e Tanatus, e sugere: "Que faz o sujeito, na verdade, a cada momento em que se recusa, de certo modo, a pagar uma dívida que não contraiu? Não faz outra coisa que não perpetuá-la" (Lacan, 1999, p. 255).

As adolescências prolongadas, as quais citei, onde o sujeito se "serve" do pai no sentido de ser abastado por ele, estando ali ancorado aos benefícios materiais e subjetivos que a situação possa lhe prover, sendo inclusive auxiliado por uma cultura que não só apoia e autoriza isto como escamoteia seus possíveis efeitos. Estas adolescências, então, configurariam uma posição de recusa e resistência, diante da qual o sujeito atrasa o seu encontro com uma responsabilização que lhe permitiria fazer uma assinatura em sua própria existência. Naquele caso inverso, onde, para afirmar sua existência, o adolescente supõe ser possível passar sem o pai, presumindo que sua singularidade só seria garantida nestes termos, ali também o sujeito não faz senão perpetuar sua dívida. Em ambos os casos, ele se encontra em posição de "dispensar" o pai, descartando, excluindo e negligenciando as incidências e limites impostos pela função do Nome-do-Pai.

O sujeito que não abre mão do seu gozo ininterrupto continua, desta forma, no lugar de "filho". Negando-se a pagar o tributo que é devido, no simbólico, esse sujeito estaria fadado a aprisionar-se na dimensão ideal, puramente imaginária. Em vez de servir-se do pai para, eventualmente, ficar sem ele, o sujeito fica sem o pai para poder se servir dele.

Mas, qual a diferença entre este adolescente e qualquer sujeito neurótico? Quais as aproximações possíveis entre alguns elementos da adolescência e a passagem pela análise? Em primeiro lugar, a adolescência configura-se, conforme propõe Melman (1997), por um momento de suspensão. O sujeito ali não encontra o seu lugar diante do gozo (só depois, mais a frente, é que irá se cristalizar neste gozo), então certamente não podemos afirmar tratar-se do mesmo ponto de vista daquele sujeito adulto que justamente não abre mão de seu gozo, um gozo, portanto, já instalado e consagrado estruturalmente. Então haveria aí uma diferença entre o adolescente, que precisa pagar para ingressar no gozo, e o sujeito em análise, que precisa pagar para sair dele. Vale lembrar, contudo, que esta saída do gozo não se dá de forma definitiva, mas trata-se de uma convocação a que o sujeito tire as consequências evocadas pelo singular de seu gozo.

Em segundo lugar, se, por um lado, a adolescência reedita, recoloca as questões constitutivas do sujeito – questões já presentes desde a infância – por outro lado, desde Freud, entendemos este momento como inaugural, como dotado de um ineditismo particular, dado que difere de uma situação analítica, onde é a repetição (reedição encarnada na transferência) que está articulada desde sempre, prestando a principal contribuição ao contexto analítico.

O que a adolescência convoca de inédito, a meu ver, é a seguinte questão: poderá o sujeito se situar de modo a "se servir do pai para dispensá-lo", ou, em uma inversão do postulado, ele se situará "dispensando o pai para se servir dele"? Esta questão irá se recolocar para o sujeito em vários momentos de sua vida, daí por diante, especialmente se ele estiver submetido ao trabalho de uma análise.

Alguns fatos contundentes vêm acontecendo em nossa cultura. O mais marcante foi um crime, ocorrido em São Paulo (em outubro de 2002), premeditado por uma adolescente de classe média alta, que matou os próprios pais porque eram contrários ao seu namoro. Diante do que parece ter sido experimentado por ela como um total aprisionamento frente à interdição e proibição dos pais, o crime veio ocupar, movido por um ideal de gozo absoluto, o lugar de uma solução final para a emergência do impossível e da castração, ali anunciados.

Também em Romeu e Julieta, de Shakespeare (1998), vemos estampar-se, através da morte, a única e radical saída diante do impossível que se lhes apresenta. Embora, ali, a "solução" encontrada tenha sido o suicídio. Frente ao imperativo apresentado pelo Nome-do-Pai – esta função vital que se designa por delimitar o desejo e a falta que este carrega – e, na impossibilidade de irem além do ponto de impossível aí deflagrado, estes jovens terminam por entregar suas próprias vidas a um destino impiedoso. Lacan, ainda em O seminário, livro 5, diz que o suicídio se mostra especialmente provido de uma "beleza horrenda", pois é aí onde se faz reconhecer as "derradeiras resistências".

O que será que faz um adolescente ter de imprimir no real da morte e do corpo a expressão desta dificuldade fundamental que há em submeter-se ao pai? No que consiste esta busca de gozo tão contumaz, alcançada nos dias de hoje, de maneira a não acatar nenhum limite? E, ainda, devemos refletir se estes atos, em alguma medida, não consistem em tentativas extremadas de se defrontar com este limite. Freud (1916/1972c), em seu artigo de 1916, intitulado Criminosos em conseqüência de um sentimento de culpa, sugere que alguns tipos de crimes são cometidos justamente para que as medidas punitivas, até então não situadas, sejam estabelecidas. Ainda nesta mesma série de artigos, em Os arruinados pelo êxito (Freud, 1916/ 1972d), ele anuncia, de forma categórica: é preciso que a realização de desejo encontre seu limite, a fim de que o indivíduo não adoeça. Este tenderá a arruinar-se, uma vez situado de forma desenfreada na realização de suas fantasias. Nesta direção, estes atos, além de deflagradores de uma recusa extremada, são tentativas de constituir um limite ao gozo descarrilado, estabelecendo, assim, o parcial do gozo. Mas, a que preço?

Entretanto, o que parece ter estado na ordem do dia, nestes impressionantes episódios que temos assistido, é a ideia de que se pode "dispensar o pai para servir-se dele". São casos de transgressões radicais, que evidenciam a evasão do sujeito diante de uma série, série dos sobrenomes que carregariam, série dos sujeitos castrados, dos que não podem tudo: a série, portanto, dos que desejam. O reconhecimento do desejo, para além do desejo de reconhecimento, é algo que ejeta o sujeito desta posição infantil, fazendo-o adentrar no seu gozo, ao mesmo tempo em que vislumbra alguma possível saída deste. É somente a partir daí que o sujeito poderá tirar as consequências de seus atos, para além de confiná-los a atos inteiramente inconsequentes.

Sobre a transgressão, vale lembrar do que Lacan nos adverte, em O seminário, livro 17: "O que a análise mostra, se é que mostra alguma coisa, ... é precisamente isso: não se transgride nada. Não se trata aqui de transgressão, mas antes de irrupção, queda no campo de algo que é da ordem do gozo – um bônus. Pois bem, mesmo isso, talvez seja isso que se tenha que pagar" (Lacan, 1992, p. 17).

Então, assim como o adolescente, todo sujeito em análise encontra-se "às voltas" com a sua dívida, com a questão do pai. Às vezes, no entanto, ele pode estar em posição de "voltar-se contra isso", o que convoca uma virada a mais. Mas estar às voltas com sua filiação (o que é diferente de estar num lugar de filho), não estar voltado somente para a perspectiva ideal, vivenciando e sofrendo os efeitos da queda desta perspectiva ideal, esta é uma questão para todo sujeito.

O desafio posto para cada um deles é o de admitir que o que se imprime em nome próprio não pode ser feito sem a referência dos que o antecedem, que o seu lugar no mundo depende e resulta de um passado que o determina, para que ele possa, aí sim, designar o seu futuro.

Finalizando, evoco uma frase de Melman: "Pode ser que aquilo que se solicita especificamente do adolescente seja o que também se espera de cada um de nós: que sejamos capazes de testemunhar nossa pequena diferença, mas apenas enquanto venha, simplesmente, situar-nos na comunidade dos que são encarregados de fazer, de realizar o gozo fálico." (1987, p. 9).

Este convite a uma ruptura, a esta mudança de posição em relação ao gozo, que favorece a singularidade de cada um, não se realiza, nem para o adolescente nem para qualquer sujeito adulto, sem um grande impacto, sem o confronto com uma solidão essencial. Trata-se do encontro traumático com a castração, encontro com a própria enunciação, resultante do engajamento numa cadeia a qual seestá submetido enquanto sujeito. Única cadeia, por sua vez – ao contrário do cárcere onde padecem os criminosos e os transgressores – capaz de nos libertar e de nos garantir alguma existência.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Shakespeare, W. (1998). Romeu e Julieta (G. José, trad.). Rio de Janeiro: Ediouro.         [ Links ]

 

 

Recebido em novembro/2008.
Aceito em fevereiro/2009.

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