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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.14 no.27 São Paulo  2009

 

FUNDAMENTOS

 

Das Ding e o outro na constituição psíquica

 

Das Ding and the other in the constitution of the psychism

 

Das Ding y el otro en la constitución psíquica

 

 

Ariana LuceroI; Ângela VorcaroII

IMestranda em Psicologia na Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). luceroariana@yahoo.com.br
IIPsicanalista, membro da Association Lacanienne Internationale, Professora do Departamento de Psicologiada Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade do Mato Grosso (FAFICH – UFMT). angelavorcaro@uol.com.br

 

 


RESUMO

O presente artigo visa a explicitar como se deu a apropriação lacaniana da noção de das Ding a partir do Projeto de uma psicologia (1895) de Freud. Ao retomarmos a ideia de vivência de satisfação, buscaremos mostrar em que medida das Ding, enquanto Real, é essencial à constituição do aparelho psíquico. Além disso, será ressaltado como a relação do infante com o Outro pode determinar um modo de apreensão da realidade marcado pelo gozo.

Descritores: das Ding; Projeto; Outro; constituição psíquica; gozo.


ABSTRACT

This article aims to explicitate the Lacanian usage of the notion of das Ding extracted from Freud's Project for a Scientific Psychology (1895). Resuming the idea of an experience of satisfaction we will try to show at which point das Ding, as the Real, is essential to the constitution of the psychism. Moreover, it will be pointed out how the relationship of the infant with the Other can determine a way of dealing with reality marked by the jouissance.

Index terms: das Ding; Entwurf; Other; constitution of the psychism; jouissance.


RESUMEN

El artículo tiene como objetivo explicitar la apropiación lacaniana de la noción del das Ding partindo del Proyecto de Psicologia Científica (1895) de Freud. Al retomar la idea de vivencia de satisfacción buscaremos demostrar en que medida das Ding, como Real, es esencial a la constitución del aparato psíquico. Por otra parte, será destacado como la relación del niño con el Otro puede determinar una manera de aprehensión de la realidad marcada por el goce.

Palabras clave: das Ding; Entwurf; Otro; constitución psíquica; goce.


 

 

O psicanalista francês Jacques Lacan buscou a noção de das Ding no texto freudiano do Projeto de uma psicologia (1895). Ele afirma que muitos leitores, especialmente aqueles que conservam o espírito crítico, podem questionar a legitimidade de sua apropriação do conceito freudiano de das Ding, pensando se tratar apenas de um pequeno detalhe que ele foi "pescar" no Projeto1. No entanto, Lacan acredita que nos textos de Freud nada é "caduco", nem pode ser descartado, sendo necessário perceber e desenvolver os pontos que permaneceramabertos, hiantes. É nesse sentido que ele assume plena responsabilidade por das Ding (Lacan, 1997, pp. 127-8).

Acompanhando Lacan (1997), devemos buscar as origens e o desenvolvimento de das Ding em Freud, mas sem esquecer de sua advertência: "não é simplesmente serem fiéis ao texto freudiano e fazerem sua exegese como se aí estivesse a fonte de uma verdade ne varieteur que seria o modelo, o leito, a vestimenta a impor a toda a nossa experiência." (p. 51).

Lacan equaciona a consistência da conquista da psicanálise por meio da afirmação: "há um lugar, o inconsciente, em que se enuncia uma verdade que tem a propriedade de nada podermos saber dela" (Lacan, 2008, p. 198). Para o autor, desde quando Freud ponderou que a manutenção do princípio de prazer era tributária da possibilidade de alucinação, ele concebeu um modo inédito de funcionamento do prazer na realidade humana. Para isso, na organização biológica do neonato, presidida pelo mecanismo do arco reflexo estímulo-motricidade, Freud enquistou um aparelho inconsciente.

Efetivamente, no Projeto, Freud descreve o aparelho psíquico a partir da diferenciação de três grupos de neurônios – f, y e w – responsáveis pela percepção, memória e consciência, respectivamente. O sistema y se divide em: sistema y núcleo, que recebe diretamente os estímulos endógenos; e sistema y manto, que recebe as informações do mundo externo a partir de f.

O aparelho descrito por Freud se apoia na noção de quantidade (Q), entendida como o que diferencia atividade e repouso (Freud, 1895/1995, p. 9). A tendência do organismo seria a de manter inalterada essa diferença entre atividade e repouso, de modo que ele aspira a libertar-se de Q. Esse é o princípio de inércia (p. 10), que justifica a existência do movimento reflexo: qualquer aumento na quantidade ocasionada por um estímulo externo deve ser eliminado pela via da ação motora, pois seria sentido como desprazer. Já o prazer, adviria da sensação de eliminação de Q (Freud, 1895/1995, p. 26). O princípio de prazer é um dos princípios que regem o funcionamento mental e tem por objetivo evitar o desprazer e proporcionar prazer.

O psicanalista vienense percebe que as quantidades endógenas não cessam nunca, o que constitui a verdadeira "mola pulsional do mecanismo psíquico" (p. 30). O organismo não pode se livrar dele mesmo e esse excesso de estimulação exige um grande trabalho do aparelho psíquico.

Freud descreve no Projeto a vivência de satisfação2: primeiramente, o bebê sente fome e a resposta do organismo se dirige a um esforço de eliminação, que se verifica na forma do grito ou do choro; mas estes não logram êxito em diminuir a tensão em y. É preciso uma intervenção que, por um certo tempo, remova no interior do corpo a liberação de quantidades, e uma intervenção dessa ordem requer uma alteração no mundo externo (como a provisão de alimento, no caso da fome), que, enquanto ação específica, só pode se efetuar a partir de determinados caminhos.

O organismo humano é, a princípio, incapaz de promover essa ação específica. Ela se efetua por ajuda alheia, quando a atenção de um outro é atraída pelo grito do bebê. A descarga motora, ocasionada pela alteração interna, é originariamente a única via de eliminação possível. O grito adquire, assim, a função de comunicação, na medida em que um outro ser humano pode interpretá-lo como apelo e como demanda a ser respondida; donde o famoso adágio freudiano: "o desamparo inicial do ser humano é a fonte originária de todos os motivos morais" (p. 32).

Quando a ação específica se efetiva, o organismo deve executar imediatamente, no interior de seu corpo, por meio de dispositivos reflexos, a atividade necessária para remover o estímulo endógeno. A totalidade do evento resulta em uma vivência de satisfação, que possui duas consequências essenciais:

1) Produz-se no manto a ocupação dos neurônios (a), que correspondem à percepção do objeto ("pessoa prestativa"), estabelecendo-se uma facilitação entre essas ocupações e os neurônios nucleares;
2) Em outros neurônios do manto (b), chegam as notícias de eliminação, sentidas como prazer (w), devido ao movimento reflexo desencadeado após a ação específica. Estas notícias realizam-se porque todo movimento, através de suas consequências laterais, dá lugar a novas excitações sensoriais (provenientes da pele e dos músculos) que produzem em ø uma imagem de movimento.

A formação das facilitações (Bahnungen) nos permite uma compreensão mais ampla do desenvolvimento de y. Não só se estabelece uma facilitação entre os neurônios y do núcleo e os neurônios y do manto, como os próprios neurônios y do manto estabelecerão facilitações entre si. Se os neurônios a e b de y do manto forem ocupados simultaneamente, a ocupação quantitativa de a passa para o neurônio b, resultando em uma barreira de contato facilitada entre a – b. A lei de associação por simultaneidade constitui o fundamento das ligações entre os neurônios y (Freud, 1895/1995, p. 33).

Assim, como resultado da vivência de satisfação, origina-se uma facilitação entre as duas imagens recordativas (percepção do objeto (a) e imagem de movimento (b)) e, entre elas, e os neurônios nucleares. Com o reaparecimento do estado de urgência ou de desejo, a ocupação prossegue dos neurônios y do núcleo para as duas recordações, reativando-as. A imagem recordativa do objeto é a primeira a ser afetada pela ativação do desejo, o que ocasiona algo idêntico a uma percepção, equivalente a uma alucinação. Se, em consequência disso, uma ação reflexa for iniciada, o processo acabará em desilusão, uma vez que a satisfação não será possível (p. 33). Desse modo, o aparelho psíquico deve evitar tal situação.

A criação das facilitações faz com que as quantidades percorram sempre determinados trilhamentos (Bahnungen). O que garante a manutenção desses caminhos é a ocupação constante dos neurônios (p. 36). Se, em um primeiro momento, Freud aventou a hipótese de que o aparelho psíquico podia eliminar as Qs, conservando-se sem estímulos – princípio de inércia –, logo se deparou com a necessidade vital. Esta, impelida pela pulsão, obriga o organismo a um armazenamento de Q (Freud, 1895/ 1995, p. 36), que o permita, não somente conservar os caminhos de descarga (eliminação), mas também atentar3 para o mundo externo, buscando a ação específica que garanta a satisfação.

Atender à regência da lei da homeostase, que mantém o sistema autônomo, implica, para Lacan (2008), supor a interceptação desse sistema reflexo pelo aparelho y que mantém as regulações constantes. Interpondo-se ao automatismo do arco-reflexo, este aparelho operaria, em sua insuficiência, buscas e desvios. Por isso seu funcionamento encontra e reencontra repetidamente uma percepção idêntica. Tal "percepção" não teria inicialmente nenhum critério de realidade, ela é apenas alucinada.

Considerando o funcionamento paradoxal desse aparelho do inconsciente que rege a economia dos nossos pensamentos e comportamentos sobrepondo-se à realidade, Lacan (2008) lê que Freud teria problematizado radicalmente qualquer conivência da representação com um ponto de referência representado. Portanto, nessa leitura, a representação não se liga ao referente da realidade, mas é sustentada por uma estrutura de tramas e redes que passa fora da consciência individual que, pretensamente, unificaria a representação. Em cada cruzamento dessas redes inconscientes inscreve-se um elemento linguístico, designando uma lembrança e fixando relações, cunhando o sintoma engramático (p. 190).

O psicanalista vienense propõe que chamemos a totalidade das ocupações em y de Eu (Freud, 1895/ 1995, p. 37), do qual pode-se separar uma parte permanente – núcleo – de uma variável, o manto. O eu é responsável por impedir processos psíquicos primários através de ocupações laterais. Estas impedem que a imagem recordativa do objeto seja abundantemente ocupada, o que resultaria em uma alucinação. Nestes casos, a ocupação de desejo não é tão intensa a ponto de iniciar uma eliminação, de tal forma que apenas uma percepção externa real teria quantidade suficiente para ativar esse circuito.

É a inibição (p. 40) do eu que possibilita um critério de diferenciação entre percepção e recordação, mas este mecanismo pode falhar se o objeto de desejo for ocupado com abundância.

Segundo Freud (1895/1995), a experiência biológica ensinará o organismo a não ocupar as imagens recordativas desejadas acima de certa medida e a não iniciar a eliminação antes do aparecimento de um signo de realidade (p. 40). Ora, mas o signo de realidade é definido como a própria notícia de eliminação (b) (p. 39), de modo que ele será útil para chamar a atenção de y para uma percepção, ou para a ausência da mesma.

O psicanalista afirma que, raramente, uma nova percepção da realidade coincide totalmente com a recordação, sendo a identidade exata entre elas uma situação hipotética, impossível na vida real, e mesmo disfuncional, já que dispensaria a função do juízo (p. 41). Vejamos como Freud exemplifica essa situação (pp. 41-42):

1) A ocupação de desejo é formada pelo neurônio a + neurônio b;
2) A ocupação de percepção é formada pelo neurônio a + neurônio c.

Uma vez que, na perspectiva freudiana do Projeto, seria inseguro iniciar a eliminação enquanto os signos de realidade não concordarem com a totalidade da ocupação de desejo, o complexo perceptivo deve decompor-se em:

1) Um componente neurônio a, que quase nunca muda e que passará a se chamar "a coisa" (das Ding);
2) Um componente neurônio b, que quase sempre varia e se chamará seu predicado, sua atividade ou atributo.

Nesse ponto, Freud destaca a semelhança entre o núcleo do eu e a componente constante da percepção em y do manto (das Ding); e entre as ocupações mutáveis do manto e a componente inconstante (p. 42).

É interessante notar que, apesar de se referir ao componente perceptivo, o que Freud decompõe é a ocupação de desejo, o que nos leva a pensar que ambos comportam duas propriedades distintas. Algumas linhas à frente (p. 42), ele mostra que é a partir do neurônio c que será perseguida a identidade para reencontrar o neurônio b. Em geral, o que se intercala entre o neurônio c e o neurônio b é uma imagem de movimento que advém de uma notícia de eliminação, o que nos leva a pensar que o neurônio a seja a percepção do objeto.

Vejamos como isso pode ser ilustrado pelo esquema abaixo:

1ª Experiência de satisfação

 

 

Pois bem, pode-se concluir do exposto que, independentemente do objeto percebido, o aparelho psíquico perseguirá a imagem de movimento que corresponde ao prazer proporcionado pela vivência de satisfação. Freud ressalta que o fundamento da existência do julgar está nas experiências corporais, sensações e imagens de movimento (p. 46). O que é bem descrito pela seguinte afirmação de Patrícia Porchat (2005): "Na medida em que não há uma correspondência absoluta entre o objeto percepcionado e o objeto de desejo, o que garante o término da busca pelo objeto que proporciona satisfação é a interrupção do processo de somação (da fome, no exemplo de Freud), a representação de uma sensação corporal... Freud considera como último elemento do circuito desiderativo a representação de uma sensação corporal (de prazer) que indica a interrupção do processo de somação" (Porchat, 2005, p. 136).

Ainda a esse respeito, Moustapha Safouan (1988) nos oferece uma preciosa explicação: "a pressão das necessidades conduz não a pensar a coisa, (seja ela o seio ou o Nebenmensch) que restabelecia o repouso, ou a desejá-la, mas sim a crer percebê-la, dito de outro modo, a aluciná-la. Lidamos, então, não apenas com um organismo pouco preparado para a vida, como o admitiria qualquer biólogo e qualquer observador da primeira infância, mas ainda, e sobretudo, com um psiquismo positivamente dotado de um princípio contrário às exigências da vida como tal, porquanto esta requer uma adesão mínima aos sinais ou, se quisermos, aos logros do Umwelt. No momento o qual supomos que o aparelho psíquico não se contenta em pensar o que quer, mas "realiza" seu pensamento antes de reconhecê-lo no real, colocamos, ao mesmo tempo, que esse aparelho existe em uma adesão principal às suas próprias ficções ou aos seus próprios logros; um aparelho, em suma, que não tem necessidade de se opor para se pôr, um aparelho que não espera, que não espera nem mesmo que a realidade o decepcione antes de substituí-la alucinatoriamente por uma outra realidade." (Safouan, 1988, p. 28, grifos nossos).

Assim, afirma Lacan, a lei da homeostase que regula o princípio de prazer define o funcionamento inconsciente como um obstáculo à função adaptativa. Testemunhada pelas formações do inconsciente, a função do princípio de realidade mostra sua precariedade. Mesmo que a realidade se imponha, ela é, no que o humano tem de singular, submetida ao princípio de prazer.

Enfim, segundo Lacan, a importância da descoberta de Freud é a de permitir conceber que a verdade que não se sabe está articulada ao princípio de prazer. A despeito dos meandros e desvios pelos quais esse princípio busca realizar-se, a partir do instante em que a realidade se impõe para a sobrevivência, a busca da satisfação insiste, correndo paralela à realidade concreta.

 

Das Ding e o Outro

Freud também supõe a situação em que um outro, um próximo, seja o objeto da percepção do sujeito (Freud, 1895/1995, p. 44). Este objeto interessa porque é, ao mesmo tempo, o primeiro objeto de satisfação, o primeiro objeto hostil4 e o único poder auxiliar. Mesmo sendo semelhante ao sujeito, o complexo perceptivo do outro se decompõe em dois elementos:

1) Um dos quais impressiona por uma estrutura constante e permanece reunido como Coisa (das Ding) – é inassimilável;
2) Enquanto o outro é compreendido através do trabalho recordativo, ou seja, enquanto pode ser rastreado até uma notícia do próprio corpo.

Essa indicação é suficiente para nos esclarecer que o outro que responde aos apelos do recém-nascido, não é um outro totalmente identificado por ele como semelhante, mas um sujeito que possui um traço diferencial – está submetido à ordem simbólica. A experiência de satisfação depende inteiramente desse Outro5 e, nesse ponto, Lacan nos adverte que o princípio de realidade não tem somente a função de regular o princípio de prazer, mas é o que o articula e o faz existir: "O prazer não se articula na economia humana senão numa relação com esse ponto, certamente deixado vazio, enigmático, mas que apresenta uma certa relação com o que é para o homem a realidade" (Lacan, 1997, p. 54).

A primeira apreensão da realidade pelo sujeito se dá pelo Outro que articula o "à-parte e a similitude, a separação e a identidade" (Lacan, 1997, p. 68). Pela ilustração acima, pudemos constatar que das Ding é comum tanto aos investimentos do manto como aos do núcleo, sem ser, no entanto, redutível a um ou a outro. Ela é uma estrutura constante, presente no estado de desejo e na percepção, mas sem pertencer propriamente a nenhum dos dois; das Ding se localizaria na interseção vazia de dois conjuntos separados (Dreyfuss citado por Garcia-Roza, 1991, p. 160).

Para Lacan, das Ding é o elemento que é originalmente isolado pelo sujeito em sua experiência do Outro como sendo, por sua natureza, estranho (Fremde): "O Ding como Fremde, estranho e podendo mesmo ser hostil num dado momento, em todo caso como o primeiro exterior, é em torno do que se orienta todo o encaminhamento do sujeito" (Lacan, 1997, p. 69).

Apesar de ser inassimilável, das Ding serve de referência para o desejo, na medida em que permite ao aparelho atentar para o mundo das percepções. Das Ding enquanto vazio, furo na subjetividade, funciona como índice de exterioridade. É algo interno à subjetividade que funciona como índice da realidade.

No texto de 1925, A negativa, Freud nos diz que a função do juízo é saber se algo que está disponível na forma de uma representação psíquica no eu pode ser reencontrado também na esfera da realidade. Ele nos lembra que todas as representações mentais se originaram de percepções, de modo que, a princípio, a própria existência de uma representação já seria uma garantia de sua realidade. A oposição entre o subjetivo e o objetivo só se estabelece porque o aparelho psíquico presentifica a percepção do objeto (alucina) sem que ele esteja efetivamente presente no mundo externo, o que, como vimos, resulta em desprazer. Dessa maneira, o objetivo do juízo – neste artigo chamado teste de realidade – não é encontrar na percepção um objeto correspondente à recordação, mas reencontrá-lo, certificar-se de que ele ainda permanece presente. Por fim, Freud acrescenta que "o teste de realidade só entrará em cena quando e se os objetos, que outrora trouxeram satisfação, já tiverem sido perdidos" (Freud, 1925/2007, p. 149).

Segundo Lacan, o objeto que se almeja reencontrar é das Ding, como "Outro absoluto do sujeito" (Lacan, 1997, p. 69). O problema é que este objeto é, desde o início, perdido: trata-se de reaver o que não pode ser reencontrado. Deparamos com suas coordenadas de prazer; o que é buscado é o objeto em relação ao qual o princípio de prazer funciona: "Todos os ataques de tonteiras e acessos de choro visam a uma outra pessoa – mas, basicamente, visam àquela outra pessoa pré-histórica e inesquecível, que jamais é igualada por ninguém posteriormente (Freud, 1986 [1896 ], p. 213).

O objetivo da ação específica – e, segundo Freud (Freud, 1986 [1896], p. 213), de toda ação – é ser um meio de reprodução do prazer. Trata-se sempre de reproduzir o estado inicial, de reencontrar das Ding.

Lacan propõe que tomemos das Ding como o que é, originalmente, fora-do-significado (Lacan, 1997, p. 71). É em torno dela que se organizam as representações. Estas dependem das qualidades, ou atributos, do objeto, de tal forma que deve ficar claro que o movimento sempre parte dos predicados ou das propriedades, ou seja, da parte variável (neurônios b, c, d...), e nunca da parte quepermanece idêntica. É em função dos neurônios que variam que poderão ser feitas as comparações entre os vários complexos que apresentam um ponto de interseção a.

 

Das Ding e as Vorstellungsrepräsentanz

Na orientação ao objeto dada por das Ding, as representações atraem-se uma à outra segundo as leis de uma organização de memória – das facilitações (Bahnungen), cujo funcionamento é regulado pelo princípio de prazer. Lacan sugere que a melhor tradução para Bahnung seria trilhamento, que remete também à concatenação, associação, ou cadeia significante (Lacan, 1997, p. 53).

O psicanalista assevera que "é entre percepção e consciência que aquilo que funciona no nível do princípio do prazer se insere" (p. 80). Para entender essa colocação é preciso retroceder ao esquema de Freud, presente na Carta 52, de 6 de dezembro de 1896:

W [Wahrnehmungen (percepções)]: neurônios em que se originam as percepções, às quais a consciência se liga, mas que não retêm nenhum traço do que aconteceu; correspondem aos neurônios f do Projeto.
I) Wz [Warnehmungszeichen (indícios de percepção)]: primeiro registro das percepções, organizado de acordo com associações por simultaneidade.
II) Ub [Unbewusstsein (inconsciência)]: segundo registro, disposto de acordo com relações, talvez causais. Os traços Ub correspondem a lembranças conceituais.
III) Vb [Vorbewusstsein (pré-consciência)]: terceiro registro, ligado à representação-de-palavra.
Bew [Bewusstsein (consciência)]: neurônios perceptivos e desprovidos de memória; correspondem aos neurônios w do Projeto.

Pois bem, entre percepção e consciência temos o funcionamento do aparelho psíquico – ou de memória (y) – formulado por Freud. Apesar de ter sido primeiramente elaborado em 1896, esse esquema estará presente, de maneira implícita, na última parte de seu artigo de 1915, O Inconsciente. Neste escrito, Freud sugere que separemos a representação-de-objeto, isto é, a ideia consciente que temos do objeto, em representação-de-palavra e representação-de-coisa (Freud, 1915/ 2006, p. 49). Se tomarmos o modelo da Carta 52, estas correspondem às lembranças conceituais situadas no registro Ub, ou inconsciência.

Lacan destaca que a Coisa (das Ding) é diferente da representação-de-coisa (Sachvorstellung). A Sachvorstellung corresponde à Vorstellungsrepräsentanz, ou à gravitação das Vorstellungen em torno de das Ding, e pode se tornar consciente ao se ligar a uma Wortvorstellung (representação-de-palavra). É válido lembrar que a representação-de-coisa é um complexo associativo composto pelas mais variadas representações visuais, acústicas, táteis, sinestésicas, etc. Ela não é uma representação fechada ou passível de fechamento.

Para entender a sutileza da nomenclatura lacaniana, é preciso conceber que algo se instala no lugar da Coisa, fazendo com que ela se apague, ao mesmo tempo em que garante a sua existência, por significá-la. Isso que aparece para organizar a "realidade muda" (Lacan, 1997, p. 72) de das Ding é o significante.

Lacan nos lembra que: "Antes ainda que se estabeleçam relações que sejam propriamente humanas, certas relações já são determinadas. Elas se prendem a tudo que a natureza possa oferecer como suporte, suportes que se dispõem em temas de oposição. A natureza fornece, para dizer o termo, significantes, e esses significantes organizam de modo inaugural as relações humanas, lhes dão as estruturas, e as modelam" (Lacan, 1979, p. 26).

Ele dirá que o primeiro sistema com o qual lidamos é o das Wahrnehmungszeichen, os sinais de percepção que expressam-se na alternância a partir de uma sincronia fundamental. Estes sinais de presença/ausência, tensão/apaziguamento já são significantes advindos da imersão na ordem simbólica e terão um papel essencial naprópria capacidade de alucinação da Coisa. É porque existe um momento, um período, uma constância no aparecimento do Outro que a realidade pode existir – não nos esqueçamos que o real é aquilo que retorna sempre ao mesmo lugar (Lacan, 1997, p. 90).

Se é próprio da natureza nos fornecer significantes, é própriodos seres de linguagem o tomarem simbolicamente. É a partir de um agente em função de Outro que tais significantes poderão ser traduzidos para o recém-nascido e algumas patologias graves, como o autismo, ilustram bem o que pode acontecer quando o agente em função de transmissão desse Outro não consegue desempenhar a função6. Ao falar de um real e de um lugar, Lacan busca enfatizar essa função de referência, de orientação, que o agente desse Outro deve ocupar. Assim como, na Antiguidade, o conhecimento se articulava em torno do que se repetia, do que retornava – o movimento dos astros, as estações do ano –, nos primórdios da constituição psíquica, é preciso que algo possa dar alguma garantia da realidade ao bebê. Esse primeiro agente do Outro comporta algo de real, enigmático, e não será jamais plenamente assimilável, permanecendo "reunido como coisa" (Freud, 1895/1995, p. 45), para utilizar uma expressão freudiana.

Pois bem, essa "coisa", ou mais precisamente das Ding no vocabulário lacaniano, é o primeiro modo de aparição do Real ou a "primeira emergência da falta própria ao Real antes da castração propriamente dita" (Safatle, 2006, p. 51, grifos do autor).

Vladimir Safatle assinala que o Eu, responsável por uma certa constância do aparelho psíquico, procura expulsar de si tudo o que rompe com o equilíbrio deste aparelho. Tal expulsão permite o desenvolvimento das operações primordiais de simbolização (Bejahüng) que formarão o sistema de representações significante. Contudo, a impossibilidade de simbolização de das Ding, obriga o aparelho psíquico a um processo de forclusão desse real (p. 157). É nesse sentido que se fala em uma Verwerfung generalizada, presente nas três grandes estruturas clínicas: neurose, psicose e perversão.

Essa pequena digressão foi apenas para mostrar que a falta instaurada por das Ding independe do "complexo de castração". Se o Nome-do-Pai é o significante que transmite a lei do incesto, nomeando a falta da Coisa e organizando a cadeia significante, é apenas a posteriori que teremos essa configuração e, ainda assim, apenas nos neuróticos. Nos psicóticos, a forclusão do Nome-do-Pai levará, não por coincidência, a atividade alucinatória.

Nota-se que o fato de nomear a falta e, por conseguinte, o desejo, não os elimina ou os esgota. Trata-se de algo irredutível. Nesse sentido, as representações (Vorstellungen) que gravitam em torno da Coisa são sempre Vorstellungsrepräsentanz, uma vez que o mundo das representações será, desde então, organizado segundo as possibilidades do significante. Citamos Lacan: "Em outros termos, é na medida em que a estrutura significante interpõe-se entre a percepção e a consciência que o inconsciente intervém, não mais enquanto Gleichbesetzung, função da manutenção de um certo investimento, mas na medida em que ele concerne as Bahnungen. A estrutura da experiência acumulada reside aí e permanece aí inscrita" (Lacan, 1997, p. 67).

Garcia-Roza (1991) afirma que o sentido de uma Vorstellung não decorre daquilo ao qual ela supostamente se refere, mas da relação que ela mantém com as outras Vorstellungen. Afinal, essa relação é arbitrária e regida, primeiramente, pela lei de das Ding, que busca o prazer e a identidade entre coisas que, aparentemente, não têm relação nenhuma. A representação-de-coisa só adquire sua significação pela articulação com a representação-de-palavra, de maneira que é apenas a posteriori que podemos observar a evolução que os esquemas apresentam em dimensão cronológica.

Com efeito, a função da representação é aquilo que melhor define o significante (Thomas-Quilichini, 2004, p. 113): "Nossa definição do significante (não existe outra) é: um significante é aquilo que representa o sujeito para outro significante. Esse significante, portanto, será aquele para o qual todos os outros significantes representam o sujeito: ou seja, na falta desse significante, todos os demais não representariam nada. Já que nada é representado senão para algo" (Lacan, 1998, p. 833).

Um significante não representa a si próprio: "uma definição coerente não pode atribuir ao significante um significado, mas deve apenas e tão-somente descrever uma relação – relação esta fundada no princípio da diferença" (Iannini, 2000, p. 81), tal como dito acima.

As representações (Vorstellungen) têm uma organização significante (Thomas-Quilichini, 2004, p. 113), mas são as Vorstellungsrepräsentanz que equivalem à noção e ao termo de significante7. A tradução proposta por Lacan para o termo Vorstellungsrepräsentanz não é a mais fiel à gramática alemã. No Vocabulário da psicanálise, Laplanche e Pontalis (2004) adotam o termo "representante-representação", mas Lacan opta por "representante da representação" para enfatizar que uma representação sempre remeterá a outra.

O termo "representante da representação" demarca o vazio no lugar de das Ding, impossível de ser preenchido ou traduzido, ao mesmo tempo em que é capaz de reunir as representações [Vorstellungen ] que representam os atributos da Coisa.

É sempre válido ressaltar que das Ding está além do sistema das Vorstellungsrepräsentanz; ela não é significante. É aquilo com que se lida da maneira menos operacional: "Digamos, hoje, que se ela [das Ding ] ocupa esse lugar na constituição psíquica que Freud definiu sobre a base temática do princípio do prazer, é que ela é, essa Coisa, o que do real – entendam aqui um real que não temos ainda que limitar, o real em sua totalidade, tanto o real que é o do sujeito, quanto o real com o qual ele lida como lhe sendo exterior – o que, do real primordial, padece do significante" (Lacan, 1997, p. 149, grifos nossos).

A Coisa, como real, insiste, persiste e retorna, não sendo jamais representada ou articulada em uma cadeia significante.

 

Das Ding e a Lei

Na perspectiva de Lacan, a lei fundamental destacada por Freud, aquela a partir da qual começa a cultura, é a lei da interdição do incesto. No nível da interpsicologia mãe-criança, costuma-se dizer que aquilo que ocupa o lugar de das Ding na primeira experiência de satisfação descrita no Projeto é a mãe, de modo que o desejo pelo objeto é o desejo de incesto. Mas esse desejo não poderia ser satisfeito, pois ele é o fim, a abolição da demanda, que é, precisamente, aquilo que estrutura o inconsciente do homem (Lacan, 1997, p. 87).

Vimos que Lacan não identifica a causa da falta com a perda do objeto materno produzida pela interdição do incesto, mas essa lei situa-se em estreita relação com das Ding. É na ordem da cultura que essa lei se exerce e Lévi-Strauss confirma seu caráter primordial ao mostrar a introdução do significante e de sua combinatória na natureza humana por intermédio das leis do casamento (estruturas elementares). Ainda assim, segundo Lacan, o antropólogo explicaria porque o pai não desposa sua filha, mas não explicaria porque a mãe não pode desposar seu filho. Algo aí permanece velado, que é exatamente o que Freud salienta: o incesto filho-mãe. Esse é o ponto central, mais enigmático, mais irredutível entre natureza e cultura (p. 87).

Para Lacan, essa inspeção só mereceria ser retida se pudéssemos confirmá-la no nível do discurso pré-consciente ou consciente, e é isso que ele buscará fazer ao recorrer aos dez mandamentos. Ele sugere que aquilo que se passa nos dez mandamentos pode ser interpretado como algo próximo daquilo que funciona na introdução do Nome-do-Pai no inconsciente, isto é, eles seriam destinados a manter o sujeito à distância de toda realização do incesto; condição fundamental para que subsista a fala (p. 89).

Após analisar alguns mandamentos, o psicanalista encontra como ápice da reflexão sobre as relações do desejo o seguinte mandamento: "Não cobiçarás a mulher do próximo... nem nada do que lhe pertence" (p. 105).

Essa lei, sempre presente na vida dos homens que a violam a cada dia – aliás como acontece com qualquer lei –, também guarda uma forte relação com das Ding, na medida em que ela "é a primeira coisa que pôde separar-se de tudo o que o sujeito começou a nomear e a articular, que a própria cobiça em questão se dirige, não a uma coisa qualquer que eu deseje, mas a uma coisa na medida em que é a Coisa de meu próximo" (p. 106).

Mais uma vez, Lacan nos remete a esse Outro primordial encarnado, esse próximo estranho que, nesse momento, pode ser entendido como a mãe. Nesse sentido, a Coisa de meu próximo seria a 'Coisa da mãe' – a mãe detém aquilo que se deseja. Contudo, a mãe em si pode ser o objeto do desejo, mas ela é uma coisa que pertence ao meu próximo, a "Coisa do pai".

De qualquer maneira, o psicanalista francês aponta que não se conhece a Coisa senão pela Lei. É apenas a posteriori, pelo significante, que a Coisa pode existir: "Porque não teria ideia da concupiscência se a Lei não dissesse – Não cobiçarás. Foi a Coisa, portanto, que, aproveitando-se da ocasião que lhe foi dada pelo mandamento, excitou em mim todas as concupiscências; porque sem a Lei a Coisa estava morta. Quando eu estava sem a Lei, eu vivia; mas, sobrevindo o mandamento, a Coisa recobrou vida, e eu morri. Assim, o mandamento que me devia dar a vida, conduziu-me a morte. Por que a Coisa, aproveitando-se da ocasião do mandamento, seduziu-me, e por ele fez-me desejo de morte" (Lacan, 1997, p. 106).

Esse é o famoso discurso de São Paulo concernente às relações da lei e do pecado, (Romanos, 7:7), modificado por Lacan, ao substituir a palavra pecado pelo termo Coisa. Para ele, a relação entre a Coisa e a Lei não poderia ser melhor definida do que nessa passagem bíblica.

Retornando à Freud, vemos como ele não apenas coloca no lugar de das Ding a mãe, como substitui a Lei pela figura do pai, tal como pode ser exemplificado em seu mito da horda primeva presente em Totem e tabu (Freud, 1913/1969). O pai, tirano da horda, possuidor de todas as mulheres, atraía a inveja dos filhos que o assassinaram. Esse crime, seguido de culpa e remorso, longe de permitir o acesso à coisa em questão, reforçou a interdição, introduzindo a ordem, a essência e o fundamento do âmbito da lei.

Segundo Lacan, o que Freud nos diz é que Deus está morto desde sempre: "O mito do assassinato do pai é justamente o mito de um tempo para o qual Deus está morto" (Lacan, 1997, p. 217). Deus só pode ser o pai na mitologia do filho, quer dizer, no mandamento que ordena amá-lo e respeitá-lo (p. 217).

Safatle assinala que se o pai de que se trata fosse aquele de Totem e tabu, no qual não incide a castração, o sujeito só teria como saída a perversão: identificação com um Outro sem falta (Safatle, 2006, p. 124). Portanto, o pai simbólico deve diferir do pai empírico, na medida em que ninguém pode ocupar seu lugar: "Eu sou aquele que é". Esse adágio tão trabalhado por Lacan mostra que Deus – a figura por excelência do pai simbólico – porta em si mesmo sua própria designação, sem reenviar o problema de sua significação a um outro significante (p. 120).

 

Conclusão

De acordo com Safatle, "o impasse do desejo [em Lacan ] ganha forma no interior do drama edípico, o que não quer dizer que ele é produzido por ele" (Safatle, 2006, p. 87 – grifos do autor). Vimos que é muito precocemente que se impõe o assentimento da falta inerente ao Real e é essa falta que impulsiona a experiência humana a ir além do princípio de prazer.

Não basta uma possível satisfação da necessidade para apaziguar o organismo humano. Ele é arrebatado de tal maneira pelo Outro que toda sua atividade a partir de então se guiará para reproduzir sensações de prazer. Deve vir também do Outro os limites a essa busca incessante de prazer, sob a pena desse organismo abandonar-se a si mesmo. É nesse sentido que Lacan aponta uma tendência a obter tal excesso de prazer que só pode ser concebido como gozo. Mesmo a interdição à "coisa" que proporciona prazer só faz acender e reanimar o desejo pelo proibido objeto, abrindo sempre as vias para um gozo mortífero, na medida em que sua assunção ocasionaria o fim da demanda que impulsiona a vida.

A hipótese freudiana do aparelho psíquico permite localizar a montagem pulsional. Nesta, algo se satisfaz pelo funcionamento de um aparelho. Este mecanismo de satisfação pelo funcionamento do aparelho conduz Lacan a interrogar: como definir a satistação?

Alguma coisa se inscreve como horizonte da satisfação, lembra Lacan: o sexual, e é nessa medida, como horizonte da satisfação, que a psicanálise aborda a sexualidade. Entretanto, argumenta Lacan, esta constatação não implica considerar que a psicanálise é um saber sobre a sexualidade, pois a psicanálise não é um saber sobre o sexual. A psicanálise aborda o saber sexual apenas pela via do interdito que pesa sobre esse saber. Afinal, o interdito afeta o lugar em que se fala do sexual, o lugar em que se investe no sexual, o lugar que já se ocupava do sexual antes da instauração do princípio de realidade: o princípio de prazer.

Graças à sexualidade como horizonte da satisfação – mantida como horizonte – que as pulsões se inscrevem em sua função de aparelho, pois a satisfação é essencial à pulsão. O prazer comporta um nível de estimulação dialético, ao mesmo tempo buscado e evitado, um limiar que implica a centralidade de uma zona proibida porque nela o prazer seria intenso demais. Essa centralidade é o campo do gozo, que implica tudo o que decorre da distribuição do prazer no corpo. O limite íntimo dessa distribuição condiciona a proibição no centro que constitui o que nos é mais próximo, embora só possa ser reconhecido do lado de fora – esse estranho tão familiar – é a iminência intolerável do gozo.

Essa iminência intolerável do gozo não é a articulação significante do inconsciente, ou seja, o A maiúsculo do sistema lacaniano. Ao contrário, o terreno do Outro fez assepsia do gozo ou, nas palavras de Lacan: "O Outro é apenas a terraplenagem higienizada do gozo".

Não existe uma realidade natural, funcionando sem um Outro, que imporia seus limites ao organismo humano. Por isso, Lacan questiona o princípio de realidade formulado por Freud, tal como o próprio pai da psicanálise acabará por fazer em sua segunda tópica. A realidade só é assimilada a partir das experiências de prazer/ desprazer e sua percepção será por elas determinada.

Essa dialética entre o Universal e o Particular perdurará por todo o ensino de Lacan e será a partir de uma retomada da noção de Imaginário que ele poderá articular os registros do Real, Simbólico e Imaginário.

 

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NOTAS

1 Daqui por diante, nos referiremos ao Projeto de uma psicologia apenas como Projeto.

2 A vivência de satisfação encontra-se descrita no item 11 da "Parte I: Plano Geral do Projeto" do Projeto, pp. 31-33.

3 "O mundo das percepções nos é dado por Freud como que dependendo dessa alucinação fundamental sem a qual não haveria nenhuma atenção disponível" (Lacan, 1997, p. 69).

4 Assim como o bebê precisa da ajuda alheia para se alimentar, precisa dela para aplacar a dor, provocada pelos estímulos do ambiente, de modo que o outro também é o primeiro objeto hostil, pois aparece como uma das facilitações resultantes dessa experiência. Esse também é um dos motivos pelos quais o acesso ao objeto deve ser impedido – defesa primária.

5 A partir daqui, utilizaremos a grafia Outro com "o" maiúsculo para indicarmos que não se trata do outro semelhante do "estádio do espelho". Trata-se de um Outro submetido ao simbólico, que trata o bebê de acordo com as regras estabelecidas pela cultura.

6 Aludimos aqui à questão proposta por Lacan de como o aparelho psíquico "contorna os desencadeamentos de catástrofes acarretadas fatalmente por um tempo, grande ou curto demais, de abandono do aparelho do prazer a si mesmo" (Lacan, 1997, p. 41). Nossa hipótese é a de que tanto um excesso de intervenções quanto um possível descaso nos primeiros cuidados com o bebê poderiam ser danosos a uma constituição psíquica, levando tanto a casos de um total desligamento do mundo das percepções – autismo –, quanto a um ritmo alucinatório de vivências de satisfação que podem levar à morte – mericismo.

7 De acordo com Josiane Thomas-Quilichini, autora do verbete "O conceito de representação" do Dicionário de psicanálise: Freud e Lacan, na lição de 26/11/1958 de O seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação (inédito) – Lacan teria feito a seguinte afirmação: "esse Vorstellungs-Repräsentanz é estritamente equivalente à noção e ao termo de significante" (Thomas-Quilichini, 2004, p. 113).

 

 

Recebido em março/2009.
Aceito em julho/2009.

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