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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.14 no.27 São Paulo  2009

 

RESENHA

 

Psicanálise com crianças: clínica e pesquisa

 

 

Camila SaboiaI; Evelyse Stefoni de Freitas ClausseII

IPsicanalista, doutoranda da Universidade de Paris 7, psicóloga pesquisadora do projeto Programme International pour le Langage de l'Enfant, (PILI / Hospital Necker, Paris). camila_saboia@hotmail.com
IIPsicanalista, psicóloga , Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). evelysefreitas@uol.com.br

 

 

LERNER, ROGÉRIO & KUPFER, MARIA CRISTINA MACHADO (ORGS.) Psicanálise com crianças: clínica e pesquisa. SãoPaulo:Escuta-FAPESP,2008,240p.

O livro Psicanálise com crianças: Clínica e pesquisa, organizado por Rogério Lerner e Maria Cristina Machado Kupfer, publicado em 2008 pela Coleção Infância e Psicanálise da Editora Escuta, apresenta o desenvolvimento e os resultados de uma longa e inovadora pesquisa intitulada como Pesquisa Multicêntrica de Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil – IRDI. Dividida em quatro partes, "Metodologia e Pesquisa", "Avaliação Psicanalítica", "Relato de Casos" e "Resultados", a obra conta com quatorze artigos1, dentre eles algumas publicações de debates realizados em congressos e seminários, nas quais o leitor é convidado a pensar, junto aos pesquisadores e convidados externos à pesquisa, acerca dos impasses teórico-clínico-metodológicos enfrentados durante o desenvolvimento da mesma.

Desenvolvida no período de 2000 a 20082 e conduzida por um grupo de importantes pesquisadores de diferentes vertentes psicanalíticas de diversas regiões do Brasil3, a pesquisa teve como objetivo construir e validar um protocolo de investigação clínica capaz de sinalizar a existência de sofrimento psíquico nos primeiros 18 meses de vida da criança. Vale dizer que essa pesquisa, no que se refere aos estudos realizados em psicanálise no campo da clínica do bebê e da criança, está à altura de outras pesquisas realizadas atualmente no âmbito internacional4. Com isso, gostaríamos também de ressaltar a importância da realização dessa pesquisa no Brasil, uma vez que ela possuiu no âmago de sua proposta colocar a psicanálise a serviço da saúde pública, com fins éticos de saúde e prevenção.

Tendo, portanto, como primeiro desafio a construção de um possível diálogo com a medicina, os Indicadores de Risco para o Desenvolvimento Infantil foram pensados a partir da articulação entre a noção de desenvolvimento e constituição psíquica. Além disso, ao considerar o uso desse protocolo por pediatras e outros profissionais da atenção básica de saúde, uma vez que estes, mais comumente que os psicanalistas, possuem contato direto com bebês, a construção dos Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil preconizou a utilização de critérios objetivos e padronizáveis, no intuito de que pudessem ser úteis para detecção precoce de transtornos psíquicos e do desenvolvimento infantil como também passíveis de sofrer uma análise estatística.

Sabemos, contudo, que um trabalho de pesquisa inovador exige, muitas vezes, novas construções tanto teóricas como metodológicas. Nesse sentido, a pesquisa em questão se coloca à frente de seu segundo desafio, isto é, relacionar psicanálise e método estatístico. Assim, a obra expõe questões importantes a serem pensadas quando se tem como proposta desenvolver um trabalho de cunho teórico-clínico psicanalítico, partindo de outro enquadramento metodológico que não o método clássico de investigação psicanalítica.

Dentre as inúmeras questões que a leitura desse livro nos convoca a formular, destacamos algumas que, de certa maneira, atravessam toda a obra. Isto é, se a psicanálise prima exatamente pela a singularidade das características psíquicas, como, então, propor uma pesquisa desse gênero sem, para tanto, trair os fundamentos da psicanálise? Quais os limites da pesquisa psicanalítica fora do contexto clínico do tratamento? Mas, afinal, é possível distinguir tratamento e pesquisa? Qual seria, então, o estatuto da avaliação fora da transferência? E, ainda, como criar critérios objetivos e padronizados para avaliar dados subjetivos? Como propor a construção de indicadores, sem se precipitar na generalização ou em produções de diagnósticosem séries? É possível conciliar dois campos discursivos distintos, no caso medicina e psicanálise, sem correr o risco de reduzir um campo ao outro?

Por outro lado, como deixar de reconhecer que a psicanálise foi construída, em seus fundamentos, seja em Freud, Klein, Lacan ou Winnicott, a partir de grandes rupturas metodológicas? E, ainda, cada vez que lançamos mão de outros métodos de pesquisa, somos necessariamente obrigados a deslegitimar o caráter psicanalítico de uma pesquisa?

É nesse contexto de impasses e indagações, portanto, que a pesquisa passa a ser pano de fundo para uma questão intrínseca a ela, mas que certamente a ultrapassa: o possível (e o impossível) no entrelaçamento da psicanálise com a medicina e o uso uma metodologia de pesquisa alheia à própria psicanálise. Dessa maneira, ao abordar a questão da diferença epistemológica entre a as duas ciências de forma ampliada, a obra passa a ser útil não apenas àqueles que se dedicam a estudar as patologias da infância, mas também para os interessados no ruidoso diálogo entre medicina, psicanálise e pesquisa.

Acerca da construção dos Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil (IDRI) e a Avaliação Psicanalítica (AP3): apresentação, fundamentos e resultados

A partir da concepção teórica psicanalítica de constituição do sujeito, os pesquisadores destacaram, como critério de avaliação, três operações psíquicas fundamentais que deveriam se estabelecer durante a primeira infância: a construção da imagem corporal, do circuito pulsional e da inscrição simbólica. Para reconhecer cada uma dessas operações psíquicas, foram eleitos quatro eixos: suposição de sujeito, estabelecimento de demanda, alternância presença-ausência e função paterna. A escolha destes eixos está fundamentada na ideia de que a construção do sujeito psíquico se dá graças ao trabalho materno que se tece gradualmente em torno dos eixos evocados, de tal forma que o instrumento prioriza o olhar não para o comportamento do bebê, mas, e sobretudo, para o bebê e seu entorno – o ambiente ou aqueles que exercem as funções maternas e paternas.

A partir desses eixos, foi criado um protocolo contendo 31 indicadores fenomênicos, relativos aos primeiros 18 meses de vida da criança, no qual um certo índice de ausência, em cada um dos eixos, deveria ser capaz de indicar que algo da ordem psíquica, e/ou do desenvolvimento da criança, não vai bem.

Para a construção dos Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil, priorizou-se a utilização de critérios objetivos e relativamente padronizáveis, isto para o próprio campo da psicanálise, com intuito de que pudessem ser utilizados por profissionais da saúde com diferentes formações. Esse protocolo foi aplicado por médicos pediatras, numa amostra composta por 674 crianças, utilizando-se de corte transversal seguido por estudo longitudinal, em 11 serviços de saúde de 9 cidades brasileiras.

Para efetuar o estudo longitudinal, foi proposta a Avaliação Psicanalítica de Criança de 3 anos – AP3. Trata-se, pois, de um roteiro constituído por 43 perguntas que orientavam psiquiatras e psicanalistas tanto na entrevista com os pais como na observação da criança, realizada numa hora de jogo. Esse roteiro foi aplicado, após a conclusão da aplicação do IRDI em 2006, numa sub-amostra de 267 crianças.

Esse segundo instrumento, AP3, foi construído a partir de parâmetros que viabilizam uma possível distinção entre sintomas clínicos e sintomas de estrutura, de tal forma que haveria uma correlação significativa entre a hipótese indutiva manifestada pelos sintomas clínicos e a ausência de indicadores, correspondendo respectivamente às operações formadoras do fantasma fundamental e às formações do inconsciente. Para isso, foram incluídas quatro novas categorias a fim de englobar outros aspectos clínicos, que se espera encontrar no funcionamento psíquico de uma criança de três anos de idade: o brincar e a fantasia; o corpo ea sua imagem; manifestação diantedas normas e posição frente à lei, a fala e a posição na linguagem.

Diferentemente do IDRI, o qual possuía o critério de presença ou ausência dos indicadores, nessa segunda avaliação – AP3 –, psiquiatra e psicanalista, após a entrevista, ocupavam-se de escrever um parecer qualitativo, tendo como prioridade assinalar a eventual presença de sintomas clínicos, os quais se diferenciariam dos sintomas de estrutura. Desse modo, os sintomas clínicos buscados pela Avaliação Psicanalítica seriam indicadores cuja presença sugeriria problemas de desenvolvimento ou de risco psíquico.

A correlação entre a ausência de indicadores utilizados na primeira fase da pesquisa e a presença de sintomas clínicos registrados por meio da Avaliação Psicanalítica, seria, a partir da análise estatística, capaz de estabelecer o grau de validade dos indicadores para detectar o risco psíquico e/ou de desenvolvimento.

A pesquisa põe em discussão, assim, a viabilidade de sustentar um diagnóstico, do modo como ele é compreendido pela psicanálise, ou seja, pelo viés interpretativo de conteúdos inconscientes, sem que a transferência seja considerada. Faz-se notar, no entanto, que a proposta da Avaliação Psicanalítica não visa a uma investigação exaustiva nem limitativa, uma vez que não se pretende fazer um "diagnóstico psicanalítico" no sentido exato do termo. Assim, o resultado da Avaliação Psicanalítica é pensado termos de "diagnóstico operacional", de forma a atuar no sentido da detecção precoce.

Podemos dizer, portanto, que esse trabalho de pesquisa foi convocado a enfrentar o mesmo paradoxo que a clínica com bebês e crianças pequenas nos obriga, ou seja, a inversão da temporalidade da clinica psicanalítica, na medida em que o analista é convocado a se colocar na anterioridade em relação ao sujeito. Assim, para que seja possível o trabalho clínico com bebês, no campo da detecção precoce de transtornos psíquicos, devemos nos atentar ao fato de que nessa clínica somos obrigados a rever certos conceitos fundamentais da psicanálise, tal como a necessidade de uma intervenção antes mesmo que a estrutura se instale.

Em relação ao risco do uso indiscriminado dos indicadores clínicos, os pesquisadores ressaltam a importância de relacionar as quatro operações nas quais estão fundamentados os indicadores com a rede discursiva, inserida em uma lógica simbólica. Caso contrário, eles se reduziriam em uma simples descrição do comportamento da criança e qualquer articulação com a versão do sujeito seria definitivamente ignorada. Além disso, faz-se lembrar que os indicadores não são, por princípio, indicadores de doenças, mas, sim de desenvolvimento.

A pesquisa, segundo seus autores, aproximaria muito mais da proposta de uma psicanálise aplicada, pois ela parte de indicadores já consagrados pela psicanálise. Não se trata de uma pesquisa em psicanálise, uma vez que seus resultados estão mais do lado geral da estrutura do que da versão do sujeito e, tão pouco, o de uma pesquisa que visa ampliar seus horizontes específicos. Pelo contrário, tenderia a refletir no próprio beneficio da teoria psicanalítica, uma vez que a pesquisa em si, pode se valer para certificar alguns pressupostos teóricos que serviram de base para a construção dos indicadores

Dentre as análises apresentadas, na quarta e ultima parte da obra, destaca-se que o resultado estatístico apontou que o protocolo do IRDI, como um todo, possui maior capacidade de predizer problemas do desenvolvimento do que risco psíquico. Por exemplo, constatou-se que, durante a avaliação pelo IRD nos 18 primeiros meses de vida, 19,6% apresentam risco psíquico enquanto 70,3% apresentam problemas para o desenvolvimento aos 3 anos de idade, ao serem submetidas à Avaliação Psicanalítica – AP3. As estatísticas apontam, no entanto, que alguns indicadores isoladamente ou em grupos, possuem capacidade de predição de risco psíquico.

Além disso, os resultados mostraram que os indicadores com maior poder preditivo são aqueles que se referem a última faixa do desenvolvimento pesquisada, ou seja, de 12 a 18 meses, cujo eixo correspondente seria o da função paterna. Esse dado vem de encontro com a hipótese psicanalítica de que a instância paterna se introduz nos primeiros tempos da subjetividade de forma velada, fazendo notar seus efeitos a partir do segundo ano de vida.

Em relação ao desfecho clínico, observou-se que o IRDI aponta para a existência de dificuldades de ordem psíquica que estão interferindo no desenvolvimento da criança, tais como os aspectos relacionados à psicomotricidade, à inteligência e à aprendizagem; os hábitos, a socialização, o domínio da linguagem – o que o torna um instrumento eficaz quanto à detecção genérica de riscos psíquicos sem especificação de patologias.

Dessa maneira, conclui-se que o instrumento como um todo possui valor preditivo para problemas de desenvolvimento, mas não para risco psíquico; ou seja, índices de detecção precoces de patologias como o autismo e psicose, tal como foi sua proposta inicial. Esse resultado é justificado pela pequena amostragem utilizada na pesquisa, que dificultou que um resultado estatístico mais conclusivo fosse realizado, uma vez que o estudo de patologias raras, tal como o autismo em seu quadro típico, requer uma amostra mais significativa, o que, todavia, não minimiza o valor da pesquisa dentro dos parâmetros de um estudo que se coloca frente às questões atuais no que se refere à pesquisa e a clinica com crianças.

Além disso, tal como pudemos constatar no decorrer da leitura desse livro, essa nova proposição de clínica e de pesquisa implica, não somente uma abertura do diálogo da psicanálise com as ciências modernas, mas, e sobretudo, a primeira porta de entrada da psicanálise nas ações da saúde pública do Brasil. Proposta essa que foi concluída com brilhantismo ao possibilitar a introdução de alguns dos indicadores psíquicos na atual ficha de acompanhamento do crescimento e do desenvolvimento da criança do Ministério da Saúde.

 

NOTAS

1 Segundo a ordem do livro: "Discussão sobre a articulação entre psicanálise e pesquisa" de Mario Eduardo Costa Pereira e Marie-Christine Laznik; "Apresentação e debate em torno da Pesquisa Multicêntrica de Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil" de Maria Cristina M. Kupfer, Paulina Schmidtbauer Rocha, Ana Elizabeth Cavalcanti, Ana Maria de Ulhôa Esvcobar e Dominique Finguermann; "Metodologia de pesquisa e Psicanálise" de Christian Ingo Lenz Dunker, Rinaldo Voltolini e Alfredo Jerusalinsky; "Uso de indicadores clínicos em pesquisas de orientação psicanalítica: um debate conceitual" de Maria Cristina M. Kupfer e Rinaldo Voltolini; "O que há de avaliável no desenvolvimento infantil? Exame e discussão das escalas de avaliação do desenvolvimento infantil mais usadas no Brasil" de Daniele de Brito Wanderley, Elizabeth Batista Pinto Weise e Joselina de Araújo Caldeira Brant; "Consideração acerca da Avaliação Psicanalítica de Crianças de Três Anos – AP3" de Alfredo Nestor Jerusalinsky; "Roteiro para a Avaliação Psicanalítica de crianças de três anos – AP3", de Maria Cristina M. Kupfer, Alfredo Nestor Jerusalinsky, Domingos Paulo Infante, Leda Mariza Fischer Bernardoni e colaboradores; "Avaliação Psicanalítica na Pesquisa Multicêntrica de Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil" de Flávia Gomes Dutra e Leda Mariza Fischer Bernardino; "A transferência em avaliações de crianças: um debate" de Ângela Vorcaro; "Relato de casos na psicanalítica e em pesquisa: considerações quanto às condições discursivas" de Rogério Lerner; "O relato de casos clínicos em psicanálise: um estudo comparativo" de Sandra Aparecida Serra Zanettie Maria Cristina M. Kupfer; "O que se transmite na clínica psicanalítica" de Ângela Vorcaro; "Análise da relação de educadores com bebês em um centro de educação infantil a partir do protocolo IRDI" de Leda Mariza Fischer Bernardino, Carla Vaz, Marenice Quadros e Sandra Vaz; "A Pesquisa IRDI: resultados finais" de Maria Cristina M. Kupfer, Leda Mariza Fischer, Alfredo Nestor Jerusalinsky, Paulina Schmdtbauer Rocha, Rogério Lerner e Maria Eugênia Pesaro.

2 A pesquisa foi realizada a pedido do Ministério da Saúde e contou com o apoio, a partir de 2004, da FAPESP – Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo.

3 Leda M. Fischer Bernardino, de Curitiba; Paula Rocha e Elizabeth Cavalcante, de Recife; Domingos Paulo Infante, Lina G. Martins de Oliveira e Maria Cecília Casagrande, de São Paulo; Daniele Wanderley, de Salvador; Lea M. Sales, de Belém de Pará; Regina M. R. Stellin, de Fortaleza; Flávia Dutra, de Brasília; Octavio Souza, do Rio de Janeiro; Silvia Molina, de Porto Alegre; com coordenação técnica de Maria Eugênia Pesaro, coordenação científica de Alfredo Jerusalinsky e coordenação nacional de Maria Cristina Machado Kupfer.

4 PREAUT – Pesquisa que visa detectar os sinais precoces de risco de autismo e outros transtornos psicopatológicos da primeira infância, Paris (G. Crespan, M-C Laznik et al.         [ Links ]) e Projeto PILE – Le Programme International pour le Langage de l'Enfant, Hospital Necker, Paris (Bernard Golse).         [ Links ]

 

 

Recebido em maio/2009.
Aceito em julho/2009.

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