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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.15 no.1 São Paulo  2010

 

DOSSIÊ
EXPERIÊNCIAS INCLUSIVAS

 

Educação inclusiva e sexualidade na escola – relato de caso1

 

Inclusive education and sexuality in the school – case study

 

Educación inclusiva y sexualidad en la escuela – relato de caso

 

 

Cláudia Dias Prioste

Psicóloga, psicanalista, doutoranda em Psicologia e Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. claudiaprioste@globo.com

 

 


RESUMO

Embora o tema da sexualidade tenha ganhado amplitude na educação, manifestações sexuais continuam assustando os professores, sobretudo quando se trata de crianças com necessidades educacionais especiais. Partindo de referenciais psicanalíticos, propomos algumas reflexões sobre sexualidade e educação inclusiva. Escolhemos o caso de uma adolescente com Síndrome de Down incluída em classe regular para ilustrar nossas observações. Concluímos que as manifestações da sexualidade da pessoa com deficiência intelectual são interpretadas como desvio de conduta, ao invés de serem percebidas como curiosidade e desejo de saber. Nota-se que as reações morais predominam sobre o debate e o esclarecimento sobre o tema.

Descritores: educação inclusiva; orientação sexual; educação especial; psicanálise e educação.


ABSTRACT

Although the sexuality subject has been gradually assimilated in education, manifestations of sexuality continue scaring teachers, specially in relation to children with special educational needs. Based on psychoanalytical referential we consider some reflections on sexuality and inclusive education. We chose the case of an adolescent with Down's syndrome included in a regular classroom to illustrate our comments. We concluded that the sexuality manifestations of an individual with intellectual deficiencies are interpreted as conduct disorder instead of being perceived as curiosity and desire to know. We observed that moral reactions prevail over the debate and the clarification of the subject.

Index terms: inclusive education; sexual orientation; special education; psychoanalysis and education.


RESUMEN

Aunque el tema de la sexualidad haya sido asimilado por la educación, manifestaciones de la sexualidad siguen asustando el cuerpo docente, sobretodo cuando se trata de niños con necesidades educacionales especiales. Partiendo de las referencias psicoanalíticas, proponemos algunas reflexiones sobre la sexualidad y la educación inclusiva. Elegimos el caso de una adolescente con Síndrome de Down incluida en una sala de clase regular. Concluimos que las manifestaciones de la sexualidad de la persona con deficiencia son interpretadas como desvío de conducta, y no son percibidas como deseo de saber. Observamos que las reacciones morales predominaron sobre el debate y esclarecimiento acerca del tema.

Palabras clave: educación sexual; educación especial; educación inclusiva; psicoanálisis y educación.


 

 

Introdução

Não é de hoje que as questões ligadas à sexualidade causam incômodo aos educadores. A suposta liberação sexual, cujas raízes tocam o discurso psicanalítico, parece não ter sido suficiente para provocar fluidez do tema no ambiente escolar. Fala-se de sexo na mídia, as crianças cantam músicas que invocam conteúdos eróticos, assistem aos programas de televisão que apelam à sensualidade. Contudo, na escola, o tema ainda é tabu e fruto de resistência por parte dos educadores. Resistência essa que se intensifica quando envolve situação de inclusão escolar.

A educação inclusiva, oriunda dos movimentos em prol dos Direitos Humanos e das reivindicações de equidade de oportunidade educacional para todos, se fortaleceu na década de 1990, a partir da Declaração de Salamanca (1994), a qual teve o Brasil como um dos países signatários. Nesse documento, diversos países assumiram o compromisso de oferecer educação de qualidade a todas as crianças, garantindo o direito de aprenderem juntas, independente de deficiências ou transtornos emocionais.

No Brasil, a legislação na área da Educação passou a enfatizar o acesso dos alunos com necessidades educacionais ao ensino regular. Não obstante os esforços de ampliação das oportunidades educacionais, é importante considerarmos a chamada inclusão a "qualquer custo", como nos aponta Kupfer e Petri (2000), revelando o alto custo para o professor nos casos em que a educação inclusiva não vem acompanhada de medidas facilitadoras. Raiça, Machado e Prioste (2006) também destacam a falta de apoio e preparo do professor como uma das principais queixas dos professores, sobretudo quando se trata de crianças com diagnóstico de deficiência intelectual.

No que concerne ao trabalho de orientação sexual na escola, o sentimento do professor é semelhante ao que se experimenta frente à educação inclusiva: sente-se despreparado. Ainda que os Parâmetros Curriculares Nacionais, desde 1997, tenham inserido a orientação sexual como um dos temas interdisciplinares a serem abordados em sala de aula, oferecendo sugestões de intervenção, o tema da sexualidade continua trazendo substanciais desafios aos educadores.

Os professores não se sentem preparados para abordar questões referentes à sexualidade. Costumam sentir constrangimento face às manifestações e curiosidades sexuais das crianças e jovens, tratando o tema de acordo com as concepções que lhes foram impingidas. Geralmente, as aulas sobre sexualidade se restringem a exposições sobre o funcionamento do aparelho reprodutor feminino e masculino, ignorando as dimensões subjetivas e afetivas dos relacionamentos humanos (Grupo de Trabalho e Pesquisa em Orientação Sexual, 1994).

As dificuldades em abordar o tema não são recentes. No início do século XX Freud (1907/1976e) já manifestava suas preocupações com o esclarecimento sexual das crianças. Para ele a repressão da sexualidade poderia interferir no desempenho intelectual dos infantes. Millot (1997) discorre sobre a dicotomia educação e sexualidade. A autora lembra que Freud criticava pais e educadores por transferirem seus próprios recalques às crianças.

"As barreiras encarregadas de manter o recalque no próprio educador, de fato, se opõem ao reconhecimento da existência de uma sexualidade infantil. Os excessos da repressão na educação parecem assim, proporcionais à intensidade dos recalques do educador, o que dá base a Freud para aconselhar os que exercem o ofício de educar que se submetam a uma análise pessoal" (p. 44).

Freud deixa claro que a repressão sexual nos pais e educadores deveria ser tratada pelo método psicanalítico, já que o recalque não pode ser abordado apenas intelectualmente pela via do conselho. Inicialmente, Freud acreditava que a educação era uma das grandes responsáveis pela repressão da sexualidade e, consequentemente, pelos sintomas neuróticos. Para ele, a profilaxia das neuroses estava nas mãos de uma educação mais liberal.

Mais tarde, no texto Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor, Freud (1912/1976a) lança dúvidas sobre a ideia de que a liberação sexual pudesse trazer algum benefício à neurose, percebe a proibição como condição para o desejo e passa a duvidar da eficácia das orientações sexuais no sentido de uma suposta liberação dos impulsos. Nas concepções psicanalíticas, a sexualidade não se reduz à genitalidade. Freud adota o conceito de libido para referir-se à energia sexual que impulsiona o ser humano em seu desenvolvimento psíquico. No texto A vida sexual dos seres humanos (1916/1976c) ele demonstra que a noção de sexualidade é mais ampla que a de coito; compara libido e fome, ambas representantes dos instintos. Em Desenvolvimento da libido e as organizações sexuais (1916/1976b), ele descreve as fases e a organização sexual das crianças: "posso agora lhes descrever a forma que toma a vida sexual das crianças, antes do estabelecimento da primazia dos genitais: essa primazia já tem seus preparativos no primeiro período da infância".(p. 331)

Em Psicologia de grupo e análise do ego, Freud (1921/1976d) associa o termo libido ao elo que une as pessoas nos grupos, acredita que o poder de sugestionabilidade é exercido pelo amor. Define libido como uma energia que abrange tudo o que se relaciona ao amor, tanto o amor com finalidade sexual, quanto o amor próprio, amor pelos pais, filhos, irmãos, amigos, ideias e objetos (p. 38).

Retomando Freud e avançando em algumas concepções psicanalíticas, Lacan (1998) insere a noção de gozo pela palavra. Para Lacan a sexualidade é da ordem do real, por isso não se pode falar diretamente dela. O real existe, o simbólico é escrito, e o imaginário é representado. Real, na concepção lacaniana, não tem relação com a realidade objetiva, o real é sempre algo que escapa às palavras (Koltai, 2000, p. 43). A sexualidade escapa às palavras, por isso a possibilidade de uma educação sexual tem sido frequentemente questionada.

Com o advento da educação inclusiva, as dificuldades se acentuaram, pois a diversidade de manifestações da sexualidade é ampliada. O que fazer com os alunos com deficiência mental que revelam publicamente seus desejos e necessidades sexuais? Esse questionamento é latejante entre os professores.

Selecionamos o caso de uma jovem com deficiência intelectual inclusa em classe regular para discutirmos a relação entre sexualidade e educação inclusiva, procurando compreender como as manifestações sexuais das pessoas com deficiência intelectual são interpretadas pelos professores. Partindo dos referenciais psicanalíticos buscamos ampliar o olhar sobre o lugar da sexualidade na escola.

 

Aspectos metodológicos

O recorte aqui exposto decorre da pesquisa Diversidade e Adversidades na Escola, realizada em 2004 em uma escola pública, de Ensino Fundamental, da cidade de São Paulo. Participaram da pesquisa vinte e oito professores, que foram divididos em dois grupos, com intuito de discutir a inclusão de alunos com necessidades educacionais especiais nas classes regulares. Foram realizadas dezesseis reuniões ao longo do ano, que ocorreram durante os horários destinados aos HTPCs – Hora de Trabalho Pedagógico Coletivo.

De um modo geral, nessas reuniões os professores manifestavam suas queixas ou relatavam casos que lhes estavam causando preocupação. Quando as queixas se voltavam às crianças com deficiência mental, dentre as preocupações docentes, destacou-se a questão da sexualidade. Em uma das reuniões o caso de Luciane2 evidenciou-se, e os professores o selecionaram para discussão. Foi proposta uma dinâmica para estudo de caso, na qual Margarida, professora de Luciane, relatava os problemas enfrentados, e os demais professores poderiam lhe fazer perguntas para, ao final, apresentarem sugestões que pudessem ser aplicadas pela professora.

 

Descrição do caso

Luciane é uma adolescente de dezesseis anos portadora de Síndrome de Down. Frequentava a escola há seis anos, estava cursando a quarta série, e fora incluída na sala regular após passar alguns anos na classe especial. A turma de Luciane possuía três professoras de diferentes disciplinas. De um modo geral, as três demonstravam contrariedade com a inclusão da aluna na sala regular, pois acreditavam que Luciane estaria mais feliz no agrupamento dos especiais. A professora Sandra desabafa: "me angustia hoje o caso da Luciane porque para mim ela foi tirada de um lugar que estaria mais feliz, mais realizada do que na minha sala".

É possível observar que a inclusão de Luciane causou incômodo nas professoras que se queixavam do que a aluna não fazia ou do que ela faz demais, se incomodavam com o que faltava e com o que excedia. Explico-me, em relação ao que faltava, a queixa era: "ela não faz nada. Fica parada, ociosa", ou seja, lhe falta iniciativa, interesse, capacidade para aprender. Quanto aos excessos, queixavam-se do riso alto e da sexualidade "exacerbada".

Maria Lucia, professora de Luciane em anos anteriores, reclamava que ela ria excessivamente: "Eu via a risada dela, não é risada, é gargalhada. Ela ria muito, muito alto, são gargalhadas longas.... Aquilo acontecia com muita frequência, e os alunos davam risada e virava tudo uma grande festa". Já a professora Margarida, atual professora, se incomodava com a sexualidade de Luciane: "Eu tenho percebido que ela está com a sexualidade aguçada, aflorada. Ela mostra os seios". Ao levantar a blusa, Luciane atraía a atenção dos colegas, provocando euforia no grupo e causando tumulto na sala.

Durante a exposição do caso, outra professora relatou que antes de Luciane entrar naquele grupo, os alunos já apresentavam curiosidades sexuais.Segundo ela: "a classe tinha problemas com esta parte, a curiosidade deles é mais aflorada que o normal". Os demais professores concordaram com ela, ressaltando que a faixa etária do grupo, entre onze e treze anos, contribuía para que o tema da sexualidade estivesse em pauta. As professoras ressaltavam a importância de trabalhar conteúdos referentes à sexualidade com as terceiras e quartas séries, visto que esse tema está indicado nos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs.

Na rodada de sugestões, a professora Raquel sugeriu a Margarida que discutisse o tema na reunião de pais, e depois conversasse com os alunos. Margarida, temerosa, se opôs, alegando não estar preparada para tratar desse assunto com seus alunos: "eu acho que eu não aceito muito". Além disso, temia ser repreendida pelos pais: "Veja, já tivemos casos seríssimos dentro deste assunto... foram até na delegacia processar o professor ... e tem até pais que agrediram o professor".

A professora Marta insiste para que Margarida converse com seus alunos, deixando Luciane fora dessa conversa para que ela não se sentisse "muito fragilizada ali no meio". Alguns professores concordaram, outros discordaram.

Margarida, reforçando que não se sentia preparada para tratar do assunto, sugeriu que a escola convidasse um palestrante especialista que pudesse oferecer orientações aos pais e aos alunos. Essa opção foi imediatamente aceita pelos demais colegas, que ressaltaram as dificuldades e riscos que se corre ao trabalhar o tema sexualidade na escola.

Outra professora sugeriu que o tema fosse trabalhado, primeiramente, com os professores, a fim de que estes fossem preparados para tratar do assunto junto aos alunos.

As sugestões levantadas pelos docentes foram discutidas na reunião seguinte com a coordenação. Esta concordou com a necessidade de trabalhar as questões relativas à sexualidade na escola, contudo, afirmou que aquele não era o momento adequado, por estar próximo ao fim do ano.

 

Discussão

De um modo geral, os professores tendiam a explicar os problemas de Luciane partindo da perspectiva biologizante, ou seja, acreditavam que o comportamento da aluna decorria das supostas características típicas das pessoas com Síndrome de Down. Além disso, culpavam os pais por não instruírem a aluna. Fica claro que, para os professores, questões sobre sexualidade deveriam ser oferecidas em casa e não na escola, ou então por profissionais especialistas.

Observamos, nesse relato de caso, que a sexualidade dos alunos incomoda os professores e, a sexualidade dos alunos com necessidades educacionais especiais, incomoda ainda mais. Para desvelar um pouco desse incômodo, procuramos nos ater a três eixos que nos ajudarão a orientar a análise. Primeiro, o processo de inclusão, que nos pareceu ter sido conduzido sem preparação prévia dos professores, sem adaptações pedagógicas e atitudinais. Segundo, a questão da sexualidade, enquanto significante e laço, sugere que o comportamento da aluna denuncia algo que estava latente no grupo. Terceiro, o mal-estar do professor, que, diante do estranho, sente-se impotente e angustiado, reagindo com repulsa e exclusão.

A) Processo de inclusão: a educação inclusiva pressupõe que a escola se prepare para receber alunos com necessidades educacionais especiais e que estes sejam acolhidos segundo uma pedagogia centrada na criança (Unesco, 1994). Além disso, espera-se que os alunos sejam incluídos com seus pares de idade, e isso não ocorreu. Os alunos da classe de Luciane possuíam em média dez anos de idade, enquanto Luciane, dezesseis. A diferença de seis anos é significativa nessa faixa etária, visto que as características físicas da adolescência eram mais acentuadas em Luciane do que nos demais alunos, o que pode ter contribuído para o aumento da curiosidade dos colegas.

B) Sexualidade – significante e laço: as preocupações dos professores com a sexualidade não se restringem ao caso de Luciane, outros casos foram citados. Sexualidade é um significante que se repete no discurso dos professores. Para Lacan o "significante quer dizer, em si mesmo, alguma coisa" (Lacan, 1993, p. 42), ele não tem um significado próprio, a não ser os laços que faz com outros significantes por meio da utilização da linguagem. Por meio de uma escuta mais atenta aos professores, podemos perceber que a aluna com Síndrome de Down manifestou o que estava latente no grupo – a curiosidade sexual, o desejo de saber sobre o corpo. Daí nos questionarmos se esta não seria uma forma dela estabelecer laço com os demais colegas. Atraílos justamente pelo que se destacava como curiosidade e interesse do grupo? A sexualidade, nesse caso, assumiria outros sentidos para além do que havia sido percebido pelos professores. Para Luciane, mostrar seu corpo pode ser uma maneira de marcar sua identidade de adolescente, assim como uma forma de se incluir entre os membros de sua sala de aula, do qual, a priori, ela estava excluída. Para as crianças, o jogo de encenar gestos de conotação sexual parece ter sido a maneira encontrada para expressar a curiosidade a respeito do próprio corpo; curiosidade reprimida e que, naquele contexto, apareceu de forma desengonçada e inadequada. Os professores interpretavam esses gestos a partir de suas próprias concepções de sexualidade. Com o olhar moralizante do adulto, não conseguiram reconhecer o desejo de saber subjacente às brincadeiras. Não abriram espaço para a circulação do saber em torno do tema, ou seja, não facilitaram a conexão do significante sexualidade com outros significantes do conhecimento.

C) O mal-estar da professora: o real emerge sem que as palavras possam contê-lo. Emerge no corpo. Escorrega no grupo e causa mal-estar na professora. Mal-estar ou gozo? Lacan articula gozo com a noção de instinto de morte elaborada por Freud. Gozo na concepção lacaniana não é o mesmo que prazer. Gozo é o que necessita de repetição. A linguagem e o saber são formas de gozo. "Na medida em que há busca do gozo como repetição que se produz o que está em jogo no franqueamento freudiano – o que nos interessa como repetição, e se inscreve em uma dialética do gozo, é propriamente aquilo que se dirige contra a vida" (Lacan, 1992, p. 43). Queixar-se do aluno é uma forma de gozo, sobretudo quando a queixa não avança para questionamento, conflito e ação. A queixa se repete, as soluções encontradas estão sempre do lado de fora: excluir a aluna do grupo; retorná-la à classe especial; convidar um especialista para falar de sexualidade com os pais e alunos. O gozo da queixa não responde facilmente às sugestões e orientações técnicas, pois é da ordem do inconsciente. Não houve debate, nem esclarecimento com os alunos acerca do tema sexualidade, pois a professora não se sentiu preparada para fazê-lo. Um mês após a discussão em grupo, a professora Margarida, com um sorriso conformado nos lábios, nos conta que a aluna continuava fazendo gestos de conotação sexual para os colegas. Ela explica: "Não adianta. Luciane é assim mesmo.... A mentalidade dela é tão assim".

 

Considerações finais

Podemos observar que os estereótipos acerca da pessoa com deficiência atuam e determinam o teor da relação professor-aluno incluso. A professora não acredita na possibilidade de mudança de Luciane, pressupõe que ela não seja capaz de aprender novos comportamentos. A certeza expressa pela professora, de que a aluna "é assim mesmo", traz em seu bojo o mito de que a pessoa com deficiência não muda, não evolui. Essa ideia não deixa de ser reflexo das concepções psicologizantes da educação, tal qual nos aponta Lajonquière (1999). Para o autor, o "aluno especial" tem sido considerado a partir da ausência total ou parcial de suas capacidades psicológicas maturacionais. Ora, a certeza expressa no discurso da professora não favorece a investigação de novas práticas educativas que poderiam beneficiar tanto Luciane quanto outros alunos.

Os preconceitos tendem a estandardizar as relações, cristalizando-as em ideias e concepções prévias. Mrech (1999) afirma que os preconceitos advêm das tendências narcísicas dos seres humanos e que ninguém está imune a eles. O narcisismo fixa imagens, como se tudo fosse imutável. Assim, os professores sentem dificuldade em lidar com o real que emerge nas relações com seus alunos, sobretudo no que tange à sexualidade.

A sexualidade é o que há de mais estranho para o ser humano. Millot, parafraseando Freud, afirma que o Eu e a sexualidade são tão estranhos um ao outro como um urso branco e a baleia, ou seja, são de mundos distintos. A cultura analítica tende a fazer com que se reúnam, a fim de realizar as condições de possibilidade de uma resolução para o conflito (Millot, 1987, p. 57). A escola, ao contrário, assume posição dissociativa, o eu e a sexualidade devem permanecer distantes, para que não entrem em conflito.

No texto O estranho (1919/1976f), Freud reconhece que os mecanismos de estranhamentos decorrem de fatores inconscientes, da emergência de aspectos sexuais recalcados. O encontro com o outro que, em menor ou maior grau, será sempre diferente, provoca desconforto e o desejo de mantê-lo distante, pois há sempre o risco de ser amado ou odiado. Um perigo iminente para o narcisismo de cada um. No entanto, o maior risco é o de encontrar o que há de mais estranho em nós mesmos, "que remete ao que é conhecido, de velho e há muito familiar" (Freud, 1969, p. 238).

Lacan, no texto Televisão (1973), originário de uma entrevista que ele concedeu a Jacques-Alain Miller para a TV francesa, nos alerta para a escalada dos mecanismos de racismo e exclusão da sociedade contemporânea. Para ele, o modo com que o Outro goza pode ser uma ameaça para o descaminho de nosso próprio gozo (Lacan, 1993, p. 58).

Assim, a intolerância ao gozo do Outro é crescente em nossa sociedade. Koltai (1998), nos estudos psicanalíticos sobre o estrangeiro aponta: "A segregação está sempre do lado do gozo, sendo que o que nos inquieta no outro é sempre seu modo particular de gozar. Para o racista é impossível reconhecer outras formas de gozo a não ser a própria; ele pretende possuir todo o gozo e reconhecer outro gozo é reconhecer que todo o gozo não lhe pertence. Neste sentido podemos dizer que o racismo é o ódio ao gozo do outro" (p. 110).

Para a autora, o que incomoda no gozo do Outro são os excessos. Podemos observar isso nas queixas dos professores com relação aos excessos de Luciane – o riso alto e a sexualidade – que causam euforia no grupo e mal-estar na professora.

A discussão sobre o lugar da sexualidade na escola é algo mais amplo do que nossas pretensões neste trabalho. Procuramos apenas demonstrar que as questões referentes à sexualidade não precisam ser reduzidas ao simbólico, nem ser tratadas somente pela perspectiva biológica econteudista. É necessário que o professor possa rever os motivos pelos quais o tema lhe incomoda.

Abordar a sexualidade da criança implica considerar a relação com o corpo e com a palavra, considerar as curiosidades essenciais que emergem em idade precoce: De onde vim? Quem eu sou? O que é ser homem? O que é ser mulher? O que desejam de mim? Dolto (2004) faz uma crítica à orientação sexual restrita à contracepção ou doenças; para ela as discussões sobre sexualidade não devem prescindir de discussões sobre a dignidade do nascimento, sobre transformar-se em adulto e suas responsabilidades.

De acordo com a psicanálise, a repressão da sexualidade é necessária e fundadora da cultura, visto que a falta é condição para o desejo, principalmente do desejo de aprender. Estabelecer regras e esclarecer os limites sobre as manifestações sexuais na escola não só é saudável como importante para o desenvolvimento dos alunos. Controle das pulsões não significa silêncio, paralisação e ignorância.

O real que irrompe no corpo pode ser instrumento profícuo para o debate sobre a sexualidade. Pode ser o primeiro passo para movimentar a cadeia de significantes, despertar o interesse e a curiosidade dos alunos, estruturando saberes sobre o corpo, a mente, os relacionamentos interpessoais e a cultura.

 

REFERÊNCIAS

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NOTAS

1 Este artigo constitui um recorte da pesquisa de mestrado Diversidade e adversidades na escola – queixas de professores em relação à educação inclusiva, dissertação defendida em 2006, na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, sob orientação da Profª. Dra. Izabel Galvão. A pesquisa contou com bolsa da CAPES.

2 Todos os nomes utilizados neste artigo são fictícios, preservando, assim, a identidade dos sujeitos pesquisados.

 

 

Recebido em dezembro/2009.
Aceito em abril/ 2010.

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