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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.15 no.1 São Paulo  2010

 

DOSSIÊ
EXPERIÊNCIAS INCLUSIVAS

 

Quando a escola pode suportar o insuportável

 

When the school can bear the unbearable

 

Cuando la escuela puede soportar el insoportable

 

 

Daniela Teperman

Psicanalista, doutoranda do Laboratório de Estudos e Pesquisas Psicanalíticas e Educacionais sobre a Infância (LEPSI – IP/FEUSP) na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. danitep@usp.br

 

 


RESUMO

Dado que o caso clínico em psicanálise se constitui pelo que cai como particularidade de uma análise, este artigo trata do percurso de uma menina de 6 anos que, ao apresentar-se por uma recusa ativa, impediu que a avaliadora realizasse seu trabalho e, a partir disso, pôde ser escutada em outro registro. Discute-se o modo como o insuportável pelo qual Ana se apresentava pôde ser endereçado à analista e como o transitivismo constituiu-se em um dispositivo central neste tratamento. Aborda-se, ainda, como durante as entrevistas os pais puderam ceder no gozo das cenas atualizadas pela filha e como a posição sustentada pela escola foi fundamental ao suportar um lugar para Ana.

Descritores: psicanálise com crianças; transitivismo; inclusão.


ABSTRACT

Considering that a case study in psychoanalysis is based on what is particular and unique during the analysis, this article is about a 6 year-old girl that wouldn't allow her analyst to do her work because she presented herself by an active denial. The article shows how the girl's refusal to open herself could be used by her analyst and ended up being a key element in the analysis. The article also discusses how parents, during the interviews, were able to participate in their daughter's scenes and how the school's position was fundamental by holding a significant place for Ana.

Index terms: children psychoanalysis; transitivism; inclusion.


RESUMEN

El caso clínico en el psicoanálisis se constituye por lo que cae como particularidad de un análisis; así, este artículo analiza el recorrido de una niña de 6 años que, al presentarse por un rechazo activo, impidió que la examinadora llevara a cabo su trabajo y, de esta manera, logró ser escuchada en otro registro. Se discute cómo el insoportable por el que Ana se presentaba ha podido ser direccionado hacia la analista y cómo el transitivismo se constituyó en un dispositivo central en el tratamiento. Aborda, todavía, cómo durante las entrevistas los padres pudieron ceder en el goce de las escenas actualizadas por su hija, y cómo la posición adoptada por la escuela fue esencial al soportar un lugar para Ana.

Palabras clave: psicoanálisis con niños; transitivismo; inclusión.


 

 

Recebo os pais de Ana encaminhados por uma neuropsicóloga a partir das seguintes constatações: não foi possível realizar a avaliação dada a recusa ativa da menina durante a aplicação dos testes e a consequente "impossibilidade de avaliar o cognitivo", as dificuldades apresentadas podem decorrer de "problemas emocionais".

Ana tem um histórico escolar digno de nota: aos 6 anos, passou por várias escolas e, no momento em que inicio as entrevistas com os pais, acaba de ser transferida para a quarta escola.

Por que esta menina não pode ser suportada pelas escolas? Por que se apresenta por meio desta "recusa ativa"? Parece que Ana insiste em responder lá onde não é esperada. Esse "não é isso" no qual Ana se sustenta, e pelo qual se apresenta, não foi exatamente "isso" que intrigou a avaliadora?

O significante "insuportável" chega aos meus ouvidos antes mesmo de conhecer Ana, assim como sua recusa ativa, que deixou a avaliadora desarmada.

Contudo, ao impossibilitar a avaliação1 Ana pôde ser escutada em outro registro, registro no qual a recusa ativa pela qual se apresentava, ao invés de constituir-se em um impedimento, configurou-se como o próprio campo de trabalho.

Neste artigo discute-se o modo como este insuportável pôde ser endereçado à analista e como o transitivismo constituiu-se em um dispositivo central no tratamento. Aborda-se, ainda, como, durante as entrevistas, os pais puderam ceder no gozo das cenas atualizadas pela filha, e como a posição assumida pela escola foi fundamental ao legitimar um lugar para Ana para além do insuportável pelo qual se apresentava.

Trata-se de um caso clínico e, portanto, de uma reconstrução, que se organiza essencialmente a partir de um traço – "traço como o que faz laço, traço que une, mas também corta, separa, barra, escreve" (Dumézil, 1989 citado por Balbo & Bergès, 2002, p. 22). Outro modo de apontar para a especificidade do caso clínico em psicanálise é situá-lo como o que se constitui pelo que cai como particularidade de uma análise, mas também pela distância que estabelece em relação ao paradigma (Najles, 2008).

 

"Não é isso!"

Quando conheço Ana percebo que é pela negativa que ela se apresenta. Negativa que pode operar como um signo distintivo, um certificado de origem (Freud, 1925/1981). Essa negativa, ao ser escutada, permitiu que Ana pudesse endereçá-la à analista e desdobrá-la em outros significantes passíveis de representá-la.

Ana se apresenta nos primeiros encontros como realmente difícil de suportar. Agitada, cospe, grita, corre pela sala, destrói tudo; não sobra nada no final das sessões. Destaca-se a fragilidade com a qual Ana se sustenta na linguagem e o fato de que, ao tentar se fazer representar, mesmo que pela negação, recaia em cenas marcadas pela irrupção do real. As cenas que arma na análise evidenciam falhas importantes em sua constituição subjetiva, falhas que se presentificam nas questões arcaicas que Ana atualiza na transferência.

Ana é realmente uma menina intrigante. Faz "as coisas erradas" e as oferece ao meu olhar: "olha o que eu fiz". Quando parece iniciar uma brincadeira e eu assim nomeio, ela recusa; quando parece estar entretida ou gostando de algo, a mesma cena se repete. A agitação é uma constante.

"Quando a criança se agita (cf. ação, agitare, cogitare) durante os tratamentos, não há ação, mas agitação, oespírito é perturbado. É o que nos diz a criança por sua agitação: agitação não é ação. Justamente na medida em que a ação é desconhecimento, ao qual, por um lado, a agitação lhe interdita de ter acesso" (Balbo & Bergès, 2001, p. 129).

Do que Ana não pode saber? Ou, ainda, é suposto um saber em Ana? A agitação, mais que já remetida à impossibilidade de deparar com o desconhecimento não consistiria aqui em um apelo ao Outro para suporlhe um saber?

Meses se passaram até que algo pudesse restar do esforço de destruir tudo de Ana, do esforço de não deixar nada. Ana desenha uma flor, escreve algumas letras e pendura o desenho na parede: "todo mundo vai ver". É a primeira vez que algo resta.... A partir desse ponto torna-se possível, num mesmo golpe de força, transitivar e antecipar para ela que pode já não ser o insuportável, mas falar disso. Na frase pontuada por Ana como "não é isso!", introduzo um novo elemento: "Ana não é só isso!".

 

Sobre o transitivismo

O transitivismo é um conceito oriundo da psicologia do desenvolvimento. Foi elaborado por Wallon em 1934, em As origens do caráter na criança, como o que precede imediatamente o instante em que a criança saberá distribuir sem erro, entre ela e o outro, os estados e atos que ela percebe (Wallon, 1934, citado por Balbo & Bergès, 2002, p. 15). Lacan recorre ao transitivismo especialmente no seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise – situando-o como característico da relação inicial entre mãe e bebê –, mas também nos Escritos e em Os complexos familiares, texto de 1938. Balbo e Bergès (2002), em Jogos de posições da mãe e da criança – ensaio sobre o transitivismo, se dedicam a aprofundar o estudo sobre esse conceito, o que fazem de maneira rigorosa e detalhada, apontando para sua importância teórica e clínica. Destaco a seguir os elementos que considero centrais em relação ao transitivismo, a partir do modo como Balbo e Bergès o formulam, para sustentar as articulações que proponho em relação a esse caso clínico.

O transitivismo comparece em cenas corriqueiras envolvendo crianças pequenas: a criança que bate e diz ser batida, a criança que vê outra cair e chora, a mãe que diz "ai", quando o filho se machuca.

Centrando-se no jogo de posições da mãe e da criança, Balbo e Bergès observam que a mãe, diante do filho que cai, lhe exprime que ele deveria sentir uma dor; quando ele diz "ai", ele se atribui a hipótese de sua mãe – assumindo uma posição de quem é afetado – e, mais que isso, a ratifica.

Dessa maneira, no transitivismo a mãe faz uma hipótese de um saber em seu filho, e força-o a se integrar ao simbólico, ao obrigá-lo a levar em conta os afetos que ela nomeia para designar as experiências dele em relação às suas próprias. Trata-se de uma demanda de identificação de seu filho ao discurso que ela lhe dirige, e é um processo que passa necessariamente pelo corpo. "O corpo é aqui esse lugar de receptação através do qual o mundo toma forma e consistência para a criança" (p. 10).

Está em jogo, no transitivismo, a competência, por parte da criança, em experimentar "corporalmente" um afeto, um afeto doloroso, precisam os autores. E acrescentam que pode haver uma incompetência do corpo em experimentar um afeto, mas também uma incompetência da mãe em falar de seu corpo a seu filho.

"Através do discurso, ao qual demanda que seu filho se identifique, a mãe dá corpo a essa criança; a criança toma corpo, e o que esse jogo tem em vista é colocar em jogo esse corpo idealizável como UM. O que a mãe lhe diz criou uma distância: se não houvesse o discurso da mãe, o que a criança não faria? Quando a mãe intervém, ela faz barragem entre uma virtualidade ilimitada da atividade do filho e o que ela lhe propõe" (Balbo & Bergès, 2002, p. 86).

No transitivismo, a mãe supõe um saber na criança, dota-a e lhe dá um crédito2. Quando a mãe falha nessa tarefa, a criança recua ativamente frente à mãe, recusando um "isso vomita" (Balbo & Bergès, 2003). A criança se opõe, de modo a forçar um transitivismo, forçar um crédito do lado da mãe. Estaria Ana recusando um "isso faz coisas erradas" e, ao fazê-lo, tentando tentar forçar o crédito do lado do Outro? Poderíamos atribuir a agitação e a recusa de Ana a falhas no transitivismo, a um esforço por se fazer transitivar?

Essa é uma hipótese que encontra suas bases na ideia que o transitivismo é um processo no qual o filho pede à mãe que lhe leia o saber que está nele, saber com o qual poderá se identificar, tomando posse, dessa maneira, de um bem que ele já possui.

Balbo e Bergès (2002) perguntam-se o que se tornaria uma criança que nada viesse a constranger; encontramos em um texto posterior uma formulação que parece responder a essa indagação: Neste ponto, aprendemos bem o que a ausência dessa suposição terá como consequência no caso, por exemplo, em que a mãe diz de seu filho: "Isso vomita, isso chora, isso mija". Aliás, ouvindo isso, a criança em questão está em um movimento de repulsão, de recuo ativo frente aos avanços de sua mãe. Essa criança refuga, ela se opõe como se estivesse aterrorizada" (Balbo & Bergès, 2003, p. 10).

Na análise de Ana, o golpe de força empreendido, assim que surge uma primeira brecha (marcada pela diminuição da agitação e pelo primeiro desenho que resta no fim da sessão "prá todo mundo ver"), visa dar-lhe um crédito: é escutada em seu "não é isso" e convocada a uma identificação a "não é só isso". Aqui a analista faz uma hipótese de um saber em Ana, tomando a sua recusa reiterada como apelo e convocandoa a ratificar essa hipótese. Mais adiante no texto (assim como mais adiante no tratamento) veremos que a partir dos diversos jogos de alternância que ela mesma propõe, a intervenção caminhou na direção de estender o "não é só isso" para o que "isso já pode ser", possibilidade da qual Ana se apropria quando marca, por meio da fala, aquilo que não é mais, ao dizer, por exemplo, "lembra quando eu comia massinha". Ana demanda à analista que corrobore aquilo que ela já sabe, marcado pelo uso do verbo no passado: que está em outra posição. Separa-se do "isso faz coisas erradas" no qual encerrara sua recusa diante da dificuldade de sua mãe em suporlhe um saber.

 

"Ana não é só isso"

A seguir, um pequeno recorte de uma sessão com Ana.

Pega um carimbo com a letra de seu nome: "É muito feio".

Pega outra letra. Escrevo num papel as duas letras de seu nome. Tenta apagar e diz: "feia e cuspidora".

Pede para carimbar na minha mão, carimba dizendo que sou "feia e cuspidora". Acrescenta: "Depois você lava a mão. Agora você carimba: chata e cuspidora".

Procuro modular a fala de Ana, carimbo a sua mão, dizendo: "um pouco chata e um pouco cuspidora".

Esse jogo dura muito tempo e passa a ocorrer nas sessões com inúmeras variações introduzidas por Ana. São jogos em que ela propõe que troquemos de papel, em que me dirige perguntas e pede para eu anotá-las. Inicialmente são jogos mais concretos, por exemplo, trocamos de sapatos ou carimbamos nossas mãos e pés alternadamente. Aos poucos, começa a introduzir jogos simbólicos, nos quais me convida para brincadeiras nas quais alternamos os papéis. Arma uma cena na qual ela é a manicure, eu sou sua mãe e falamos sobre Ana e sobre "as coisas erradas".

Sim, o significante brincar passa a fazer parte das sessões, agora sustentado por Ana. O faz de conta começa a permear as cenas que arma, ainda que, algumas vezes, terminem com ela agitada, desorganizada e comendo a massinha que era "a comidinha". Há vezes em que Ana faz perguntas buscando certificar-se do que é de verdade e do que é faz de conta. Formula a seguinte questão: "brincadeira é de verdade?".

Inicialmente li a questão formulada por Ana de dois modos: Trata-se da tentativa de estabelecer a diferença entre brincadeira e realidade? Ou seria essa uma pergunta decorrente da percepção de Ana sobre o que o seu brincar revela de si na cena analítica? Tendo a pensar que para Ana essas duas questões se colocam. Mas considero também que ela nota a importância que é creditada ao seu brincar na análise: na análise, brincadeira é de verdade.

É importante destacar que os jogos acima são intercalados por outros nos quais Ana dedica-se concentradamente a construir superfícies e bordas. Carimba no seu corpo ou no papel e depois recobre o que foi carimbado, fazendo-o desaparecer. Com barbante ou fita adesiva, contorna todo o espaço da sala. Insistentemente recobre a superfície da mesa com uma fina película de água, imprime marcas das mãos ou dos pés, que se apagam quando começa a secar. Imprime também marcas baforando no vidro da janela, que também se apagam conforme a umidade desaparece.

Nessas situações, Ana coloca em jogo os significantes que a marcaram. Minhas intervenções permitem novas combinatórias, deslizamentos, pequenas alterações. Parece que ela compreende bem que "o melhor brinquedo para o tratamento de uma criança é o analista, no sentido em que ela pode se servir dele" (Giraldi, 2004 citado por Petri, 2008, p. 125).

Ana convoca o Outro a dizer sobre ela. Ao mesmo tempo em que joga com a alternância de lugares, se ocupa de forma concentrada e repetida de jogos que remetem à construção da superfície, das bordas do corpo, às marcas e seu apagamento3.

Ao relatar esses jogos, deparei com a frequência que a palavra alternância aparece. O tempo todo, ela me convoca à alternância de papéis. Remeto o leitor ao comentário de Balbo e Bergès (2003) acerca do transitivismo: " alternância de posturas da mãe e do filho, cada uma antecipando a outra que a acompanha. A mãe antecipa o outro que ela acompanha com suas falas". (p. 10).

Durante a escrita do caso, me ocorreu que haveria ainda um terceiro modo de escutar a pergunta formulada por Ana: uma demanda por se fazer transitivar, de que a analista ratifique que ela detém um saber e que o coloca em jogo nas cenas que arma. Desse modo constituiu-se na análise de Ana um jogo de posições da analista e da criança, jogo no qual nos alternamos na tarefa de demandar, uma à outra, que nossas hipóteses fossem corroboradas.

 

Quando a escola pode suportar o insuportável

A escola que Ana começou a frequentar logo antes de iniciar o atendimento não é conhecida por ser uma "escola inclusiva". Trata-se de uma escola grande, de ensino tradicional, bastante focada no conteúdo.

Contudo, é notável como nessa escola decidiu-se sustentar um lugar para Ana. Digo decidiu-se, pois esta posição atravessou as diferentes instâncias que compõem o universo escolar: foi assumida pela professora, pela auxiliar e pela coordenação da escola. Ainda que possamos fazer a hipótese de que o insuportável de Ana encontrou lugar na análise e passou a ser endereçado à analista e tratado ali, a agitação psicomotora e as situações difíceis de manejar continuaram a ocorrer na escola. Ainda assim, um lugar foi garantido para Ana, talvez um primeiro lugar em que realmente não se cedeu diante do insuportável pelo qual ela se apresentava.

Nesse sentido, é possível afirmar que essa escola deu um crédito a Ana, transitivou a esperança de uma diferença ao esperá-la num lugar diferente da repetição, assumindo um lugar no "revezamento" transitivista: "Se, no "revezamento transitivista" a criança recebe o "bastão" de sua mãe e se torna, por sua vez, transitivista, a clínica mostra que outras pessoas vão, também, tomar deste "bastão", e passá-lo adiante: professores e educadores especialmente, que vão, eles próprios, exigir da criança que ela se identifique a seus discursos sábios, porque fazem a hipótese de que o que eles lhe transmitem se articula a um saber que ela já possui" (Balbo & Bergès, 2002, p. 12).

Essa escola não cedeu, sustentou o lugar de Ana diante do grupo de crianças e do grupo de pais, sustentou esse lugar com medidas simples, mas certeiras: a introdução de uma professora auxiliar na sala (que pudesse ficar perto dela quando necessário) e a alteração do horário e das condições para a realização das provas (dado que observavam que era difícil para ela fazê-las em sala com o grupo de crianças e que constatavam que estava mais atenta e concentrada no início do período). A escola também optou por não cobrar que Ana fizesse todas as lições em sala e orientou a mãe a não tentar dar conta de todo o conteúdo que ficava faltando, apenas da lição de casa. Permitiu-se a Ana que ela não desse conta de tudo em sala, permitiu-se à mãe suportar essa falta. Manejou-se bem, a meu ver, o que teria que configurar-se como exceção e o que não podia ser cedido em nome do coletivo; ao não autorizar-lhe tudo a escola convoca Ana a ser marcada pela lei.

 

Os pais e as "coisas erradas" de Ana

Foi a mãe de Ana que se dispôs a vir falar sobre o que ocorria com sua filha. Contudo, nas primeiras entrevistas, dedicava um longo tempo a descrever "as coisas erradas" que a filha fazia; pontuava que gostaria de "resgatar a outra Ana".

Aqui também um longo percurso foi realizado até que fosse possível para a mãe de Ana interromper o gozo das cenas das "coisas erradas" e implicar-se no que ocorria com sua filha. Ela passou a ocupar-se de Ana, a investir e a interrogar-se sobre as cenas que ela atualizava. Mais que isso, nessas cenas, a mãe pôde identificar um saber na filha, um saber sobre ela, mãe, sobre sua história com sua própria mãe e irmãos.

Durante as entrevistas, a mãe recuperou a sua rivalidade com os irmãos e mais especificamente com a irmã, a disputa com esta pelo amor da mãe (avó de Ana); saber que Ana atualizava ao rivalizar com a prima, ao disputar o amor da avó materna e reclamar o seu lugar na casa desta.

A mãe de Ana surpreendeu-se também como algo dessa sua rivalidade com a irmã se atualizava na sua posição diante dos filhos (Ana tem um irmão mais novo). Isso foi evidenciado quando foi questionada sobre sua insistência em procurar "não fazer diferença" entre os filhos. Nesse contexto, recuperou a seguinte fala de Ana: "é melhor comprar tudo igual para nós, senão vai ter briga".

Em nome do que precisava haver essa igualdade? Por que não havia lugar para a diferença? Seria nesse desconhecimento da mãe que Ana ficava suspensa e ao qual a agitação lhe interditava ter acesso?

As entrevistas com a mãe permitiram identificar em seu discurso uma linhagem de mulheres para as quais o lugar terceiro brilhava pela ausência. Vale destacar que era sempre muito difícil que o pai de Ana participasse das entrevistas e, quando isso ocorria, ficava evidenciado que comparecia na relação com Ana como mais um irmão/rival (disputando com a filha o controle remoto ou o programa que assistiriam na televisão, por exemplo).

A mãe de Ana, no decorrer das últimas sessões, fez a seguinte observação: "Ana já faz parte da sociedade, mas ela ainda não mostra do que é capaz". Essa fala aponta para a necessidade de Ana se desprender da fala da mãe, é preciso que essa mãe dê um crédito que a lei vale para além dela.

 

Um desenho... com contorno

Finalizar a sessão era sempre difícil com Ana. Muitas vezes terminávamos com ela "fazendo as coisas erradas", agitada, desorganizada. Noutras, construía estratégias – tratava-se mesmo de uma menina muito sabida! – para levar para casa coisas do consultório: desenhos, pedacinhos de barbante ou papel.

Diante da minha interdição, ela escrevia o seu nome apressadamente em vários papéis em branco e asseverava: "é meu, está escrito meu nome, vou levar!". Também foram várias as estratégias tentadas por mim para que Ana pudesse suportar o corte, sem se desorganizar. A seguir, uma cena:

Ana me pergunta:

"Tem bastante tempo?"

Tem.

"Milhão de tempo?"

Comento que antes era difícil a hora de terminar, de ir embora. Ela precisava levar alguma coisa.

"O barbante... às vezes eu preciso"

Fala que a mãe vai ficar brava porque pintou as unhas. Pergunta:

"E a sua mãe, vai ficar brava?"

Vai cortando massinha e deixa cair um pedaço:

"Tem problema?"

Digo que não.

"Minha mãe não gosta de sujeira"

Digo que antes ela fazia as coisas erradas.4

"Eu comia massinha... eu me pintava de palhaço no mês de 20075"

"Tudo tem tempo" – e essa fala é de Ana!

Comento que nosso tempo está acabando.

Não foi difícil encerrar desta vez.

Outro trecho, em uma sessão próxima:

"Insuportável"

O que é insuportável?

"Insuportável e só... In-su-por-tável"

"Lembra do dia do palhaço?" "não vou fazer mais"

É, você não precisa mais.

"Isso que é insuportável!"

Algumas sessões depois, Ana faz um desenho que nomeia "desenho com contorno". Pergunta o que achei do desenho e ela introduz a série: "lindo, feio, idiota, insuportável, xixi, cocô".

O que é ainda insuportável para Ana? Se parar de fazer o palhaço, Ana fica exposta ao intransitivável da mãe?

 

Você pode me perder?

Após três anos os pais decidem encerrar o atendimento de Ana. A mãe me comunica, na presença de Ana, que pretende continuar o tratamento com outro profissional, mais perto de sua casa. Essa conversa tinha iniciado alguns meses antes, quando convoquei os pais devido às faltas constantes de Ana às sessões, o que li como um desinvestimento da parte deles na análise da filha. Desinvestimento que os pais atribuíam à distância e ao cansaço.

Os pais decidem encerrar porque não podem mais investir, não porque tenhamos concluído um processo. A pergunta que me fiz então foi: posso perder Ana? Pergunta sobre meu desejo de analista, e que tangencia um risco permanente na análise de crianças: que haja uma inversão na demanda e que o analista se converta naquele que sustenta a demanda, naquele que investe. É preciso deixar esse lugar vazio para que os pais possam investi-lo. É dever do analista calar o próprio desejo enquanto sujeito, resguardando assim o lugar vazio (Petri, 2004).

Este é "o grande desafio da clínica psicanalítica com crianças: suportar se deslocar de um a outro lugar de Outro ... sem outra bússola senão a aposta nas incursões da criança no campo significante, sem outro Norte senão o desejo de analista, movido pela experiência do inconsciente" (Bernardino, 2004, p. 84).

Ana percorreu um longo e intenso caminho na análise. Fez uma passagem do ato à palavra, da atuação do insuportável para a possibilidade de desdobrá-lo em outros significantes. A possibilidade de marcar o estranhamento com sua posição anterior: "lembra quando eu comia massinha!" denota esse percurso. Não era ainda o fim dessa análise, mas um fim possível, ainda que a irrupção do real comparecesse vez por outra.

Ana podia me perder. Nessa última sessão ela comentou como estava difícil para seus pais continuarem a trazê-la, perguntou se eu poderia perdê-la, falou sobre me perder e se despediu:

Não é mais possível para seus pais trazerem você aqui.

"Solidão... solidão na Daniela..."

Será que esse é um jeito de você me perguntar se eu vou sentir sua falta?

"Você vai sentir minha falta?"

Sim.

"Você vai chatear?"

Não...

"Pode chatear"

Só um pouquinho...

"Muito!"

E você?

"Muito! Eu vou sentir a falta de milhão!"

Nesse corpo que não parava de repetir o insuportável há agora uma menina que pode parar. A falta está nomeada e entrou na via do suportável. Algo da ordem do desejo inscreveu-se para Ana. Ela pode ir, deixa sua marca e parte com a possibilidade de suportar a diferença.

 

REFERÊNCIAS

Bergès, J. & Balbo, G. (2003). Psicose, autismo e falha cognitiva na criança. Porto Alegre: CMC Editora.         [ Links ]

______ (2002). Jogo de posições da mãe e da criança – ensaio sobre o transitivismo. Porto Alegre: CMC Editora.         [ Links ]

______ (2001). A atualidade das teorias sexuais infantis. Porto Alegre: CMC Editora.         [ Links ]

Bernardino, L. M. (2004). As psicoses não decididas da infância; um estudo psicanalítico. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Freud, S. (1981). La negación. In Sigmund Freud -obras completas. (L. Lopes-Ballesteros & De Torres, trads., 4a. ed., Vol. 3, pp. 2884-2886). Madrid: Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1925).         [ Links ]

Najles, A. R. (2008). Problemas de aprendizaje y psicoanálisis. Buenos Aires: Gramma Ediciones.         [ Links ]

Petri, R. (2008). Psicanálise e infância – clínica com crianças. Rio de Janeiro: Cia. de Freud; São Paulo: FAPESP.         [ Links ]

 

NOTAS

1 A operação de avaliação faz passar um ser de seu estado de único ao estado de um-entre-outros, ou seja, um que aceita ser comparado, que acede ao estado estatístico (Najles, 2008, p. 63, minha tradução).

2 ... a competência da criança para aceitar o outro depende de um prazo. Esse prazo não é nada sem o crédito que lhe é dado por sua mãe, crédito que eleva esse filho além da posição de Coisa (Balbo & Bergès, 2003, p. 10).

3 A esse respeito ver A. Jerusalinsky, A educação é terapêutica? Acerca de três jogos constituintes do sujeito. Publicação Amarelinhas, Ano II, n. 2, setembro de 1995, Curitiba.

4 Ao reler esse trecho deparei com o fato de que não fica claro nessa minha fala quem fazia coisas erradas, se a mãe ou a filha...

5 Refere-se aqui a algumas situações nas quais ficou extremamente agitada, desorganizada, nas quais sustentar o faz de conta tornou-se insuportável.

 

 

Recebido em abril/2010.
Aceito em junho/2010.

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