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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.15 no.1 São Paulo  2010

 

ARTIGOS

 

A clínica psicanalítica dos transtornos psicossomáticos: de Freud a Winnicott

 

The psychoanalitical clinic for psychosomatic disorders: from Freud to Winnicott

 

La clínica psicoanalítica de los transtornos psicosomáticos: de Freud a Winnicott

 

 

Maria Vitória Campos Mamede MaiaI; Nadja Nara Barbosa PinheiroII

IProfessora do Departamento de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). mariavitoriamaia@ufrj.br
IIProfessora e coordenadora do Laboratório de Psicanálise da Universidade Federal do Paraná (UFPR). nadjanbp@ufpr.br

 

 


RESUMO

O artigo reflete sobre as dificuldades da clínica dos Transtornos Psicossomáticos. Baseia-se em Freud e Winnicott para conceituá-los como uma defesa psíquica referente a um modo de organização subjetiva bastante arcaico do desenvolvimento afetivo no qual a função simbólica operada pela linguagem ainda não fora alcançada pelo infante. Destaca-se a necessidade de se incluir o holding como instrumento clínico além da interpretação. Como ilustração, apresenta-se um caso clínico no qual o movimento de integração das vivências pré-verbais requisitou o envolvimento de todos os membros de uma família.

Descritores: transtornos psicossomáticos; clínica psicanalítica; holding; integração.


ABSTRACT

The paper reflects on the difficulties when practicing clinical of Psychosomatic Disorders. It is based on Freud and Winnicott's theories to postulate that these illnesses can be understood as a psychic defense related to an archaic organization of the subjective emotional development in which the symbolical function operated by language was not reached by the newborn yet. It focuses on the necessity to include the holding as a beyond interpretation clinical instrument. As an illustration, it presents a clinical case in which the integration movement of the preverbal experiences required the participation of all family members.

Index terms: psychosomatic disorders; psychoanalytic clinic; holding; integration.


RESUMEN

El artículo reflexiona sobre las dificultades de la clínica de los trastornos psicosomáticos. Se basa en Freud y Winnicott para conceptualizar los trastornos como una defensa mental de la organización subjetiva arcaica del desarrollo afectivo en que la función simbólica operada por la lengua no se ha alcanzado por el niño. Atención a la necesidad de incluir la construcción (holding) como una adición a la interpretación clínica. A modo de ejemplo, es presentado un caso en que el movimiento para la integración de las experiencias non verbales pidió la participación de todos los miembros de una familia.

Palabras clave: transtornos psicosomáticos; clínica psicoanalítica; holding; integración.


 

 

Introdução

É comum ouvirmos que, para enfrentarmos os desafios que a clínica atual nos impõe, há a necessidade de ultrapassarmos Freud e recorrermos a um autor pós-freudiano que tenha avançado em algumas questões não recobertas pelo autor inaugural da psicanálise. Nessa afirmação, duas premissas estão incluídas: a) a ideia de que há adoecimentos hoje que não existiam à época de Freud; b) a ideia de que existe uma diferença de fundamento entre uma clínica "tradicional" e outra "atual". Sem negarmos a exigência de estarmos sempre renovando nossos estudos para além do texto freudiano, nossa intenção aqui será a de desconstruirmos ambas as premissas para afirmarmos que encontramos no texto freudiano portas entreabertas que nos conduzem e nos adiantam aquilo que se fará fundamento em alguns de seus seguidores.

Para tal, tomaremos os transtornos psicossomáticos como exemplo de um suposto sintoma atual para demonstrarmos que, em Freud, encontramos rudimentos, tanto teóricos quanto clínicos, para lidar com essa temática que será, posteriormente, retomada, desdobrada e enriquecida por Winnicott.

Finalizando nossas considerações, um caso clínico, que tivemos a possibilidade de conduzir, será apresentado. Nele, destacaremos como se tornou possível, na clínica, a abertura de um espaço lúdico a partir do qual um trabalho psíquico para uma dissociação psicossomática pôde ser efetuado. Um espaço, que como veremos, incluiu a participação não apenas de um sujeito singular, mas de todos os membros de uma mesma família. Nossa intenção, ao apresentar uma vinheta clínica, se faz não apenas no sentido ilustrativo ou confirmativo da teoria, mas no de marcar a importância da clínica na construção, desenvolvimento e transformação da teoria, em psicanálise. Acreditamos que, dessa forma, estaremos enfatizando e seguindo as propostas tanto de Freud quanto de Winnicott, autores que tomaram a relação dialética entre teoria e clínica como fundamental de forma a torná-la imprescindível ao desenvolvimento de seus trabalhos. Ou seja, pensar em metodologia, em psicanálise, obriganos a pensar na relação teoria/clínica e na tensão que, ao se estabelecer entre ambas, impulsiona as transformações cabíveis.

 

Freud: processos arcaicos, sonhos e construções

Embora saibamos que Freud em nenhum momento de sua obra tenha definido uma patologia como sendo psicossomática, ele, no entanto, esteve sempre atento às relações estabelecidas entre corpo e psique e às inúmeras sintomatologias que poderiam daí advir. Os fenômenos histéricos são os maiores exemplos dessas intrincadas relações sobre as quais o autor pôde perceber e destacar uma enorme gama de significados simbólicos e inconscientes. Inserindo tais padecimentos no campo das psiconeuroses, todo projeto clínico foi alicerçado por Freud para lidar com esses fenômenos tomando a interpretação como instrumento principal de alcance e desvelamento dos sentidos inconscientes dos sintomas histéricos.

No entanto, não passou despercebido a Freud que, para além dessas configurações, o corpo apresentavase, igualmente, como palco de fenômenos que se situavam para além do conflito neurótico. As neuroses atuais demarcam o assinalamento freudiano de que há algo que perfaz uma dobradiça entre corpo e psique que, no entanto, não se reduz ao conflito edipiano e não sendo, portanto, da ordem do recalcado. Sendo assim, a proposta clínica, para essas patologias, não poderia se centrar na tentativa de alcançar conteúdos inconscientes através do uso da interpretação (Freud, 1894/1976a, 1895[1894]/ 1976b, 1895/1976c).

O interessante nessa constatação é que, se inicialmente Freud situou a etiologia das neuroses atuais na sexualidade adulta, ao final de sua obra ele desfaz essa consideração e, rompendo com uma cronologia linear, relaciona-a ao momento de desamparo originário que se reatualiza ao longoda vida humana. É o que encontramos em seu texto intitulado Angústia e vida pulsional (Freud, 1932-1933/ 1976d), conferência em que Freud relaciona, belamente, um ataque de agorafobia, entendida como manifestação de uma neurose atual, com o impacto da pulsão sobe o psiquismo desamparado e despreparado para com ela lidar. Sobre esse momento de vivência adulta/primitiva, Freud situa os rudimentos do entroncamento soma/psique, rudimentos a partir dos quais as vivências subjetivas iniciam planos de organizações sucessivas e diferenciadas que se fundam nas primeiras experiências de satisfação.

Nessa perspectiva, as necessidades fisiológicas que assolam o bebê ao nascer e que exigem satisfações repetitivas vão sulcando trilhas qualitativas que transformam algo que era da ordem da necessidade somática em desejo psíquico. O que vemos Freud tematizar aqui é a existência de uma área na qual soma e psique se implicam sem se reduzirem uma à outra, área de indeterminação que receberá múltiplas configurações e sucessivas reorganizações a partir dos recursos disponíveis por cada ser humano, em cada momento específico de constituição de sua subjetividade.

Freud refere-se a essas malhas, a esses trilhamentos, e às reorganizações que vão sobre elas sendo efetivadas na Interpretação dos sonhos (Freud, 1900/1976e). Segundo o autor, essas trilhas, ou sistemas mnêmicos, são registradas definindo um traçado organizado de diversas maneiras: proximidade temporal, intensidade de desprazer/prazer obtido, sensações sensitivas similares, etc. Tais registros receberão novas e sucessivas reorganizações significativas com o paulatino ingresso do infante no registro da linguagem. O acesso à linguagem, segundo Freud (1900/1976e), permitirá, então, a construção de organizações cada vez mais complexas carregadas de sentidos, quer sejam esses pertencentes aos sistemas consciente ou inconsciente. Tal configuração determinará que a proposta clínica possa se situar na possibilidade de se desvelar, via interpretação, esses sentidos e significados ocultos.

Mas o que o autor igualmente assinala é que a linguagem, no entanto, não é capaz de tudo capturar ou tudo organizar, ou seja, haverá sempre um espaço do indizível que é, entretanto, psíquico, ou como estamos propondo aqui, psicossomático. É sobre esse espaço que Freud indica ser a interpretação ineficaz, posto que não há palavras a serem recuperadas e nem sentidos ocultos a serem desvendados. Assim, é sobre esse espaço que ele fará incidir um outro instrumento clínico, a saber, a construção (Freud, 1937/1976f).

O que nos interessa aqui é ressaltar que diante do impossível de dizer Freud não proponha o silêncio, mas a constituição de um campo a dizer que permita, a partir daí, que algum sentido seja constituído. As construções em análise nos parecem ser, então, um outro instrumento clínico diferenciado da interpretação, forjado por Freud, para trabalhar justamente com aquilo que não se refere ao recalcado, mas que se repete, insistentemente, na clínica.

Encontramos, no caso clínico do Homem dos Lobos (1918[1914]/1976g), um exemplo claro e importante do que desejamos dizer: um sonho, relatado no espaço terapêutico, vem recuperar e transformar algumas vivências arcaicas que ficaram aquém de possibilidades de significação. No entanto, nem tudo é capturado pela linguagem, há um resto de indizível subjacente. Diante do impasse clínico aí produzido, ou seja, sobre esse momento inaugural, no qual palavras inexistem, Freud constrói com seu paciente uma cena repleta de personagens, ações, afetos, emoções e movimentos. Uma cena inaugural, que nunca foi recordada pelo paciente, mas capaz de produzir uma sensação de verdade e em torno da qual um desdobramento semântico se torna possível.

Em nosso entendimento, Freud inaugura aqui uma clínica não tradicional que toma o sonho como espaço lúdico de ressignificação de experiências pré-verbais e insere a construção como instrumento que visa lidar com o indizível. Em nossa perspectiva, sobre esses rudimentos Winnicott se sustentará, se apossará e acrescentará novidades genuínas para refletir e teorizar sobre os fenômenos psicossomáticos.

 

Winnicott: integração psicossoma, defesa e clínica

Para compreender os adoecimentos psicossomáticos, Winnicott parte do mesmo princípio que Freud sobre o desamparo originário do bebê ao nascer que o torna incapaz de prover sua própria sobrevivência. Assim, para garantir a vida de um bebê, há que existir um ambiente/mãe que o acolha e satisfaça suas necessidades vitais básicas a tempo e a hora. Pautado em um processo identificatório, o ambiente/mãe percebe e sabe o que fazer para atender exatamente às necessidades de seu bebê. Em correspondência, uma série de sensações corporais dispersas e não integradas entre si se sucedem inúmeras vezes, inscrevendo o bebê no diferencial desprazer/prazer. Para Winnicott (1956/2000a) será justamente a repetição constante dessas experiências de satisfação aquilo que permite uma paulatina integração à não integração original.

Temos, então, no processo de integração, por um lado, a urgência da vida e sua série infindável de instintos a serem satisfeitos, e, por outro, o holding materno/ambiental que permite que essas satisfações ocorram de uma forma a menos traumática possível, fornecendo-lhes significados, sentidos e contornos ao sem-sentido originário. Do encontro entre esses dois planos um movimento em direção à subjetivação é colocado em marcha. Movimento que inaugura a constituição de uma malha, de uma trama, na qual o que se verifica é a paulatina significação das sensações corporais. Funda-se aqui, na perspectiva de Winnicott, a inserção da psique no soma, isto é, rudimentos a partir dos quais um psicossoma se estabelece prevendo a possibilidade de cada um de nós em nos apoderarmos de uma sensação que se vive no próprio corpo (Winnicott, 1949/ 2000b).

Winnicott (1966/1994) situa nesse mesmo patamar da integração psicossomática a vivência das agonias impensáveis caso o ambiente/mãe não seja totalmente (e ele nunca o é) capaz de amparar essa marcha à integração psicossomática, à subjetivação. A experiência das agonias impensáveis se posiciona, portanto, como reações às falhas ambientais em termos de intrusão ou invasões sobre o despreparado bebê.

Ressaltamos que nesse momento de constituição subjetiva a questão que se apresenta ao bebê se coloca em termos de vida ou morte, já que ele sozinho não poderia sustentar sua própria existência. Assim, as agonias impensáveis (porque ainda não há recursos linguísticos para simbolizá-las) são sentidas pelo bebê como ameaças de aniquilamento que o impactam no nível corporal. Exatamente por isso, Winnicott (1949/2000b) pontua que a constituição de um psicossoma seja uma conquista efetuada na relação bebê/ambiente que o assegure uma sensação de habitar o próprio corpo.

Igualmente será nesse mesmo movimento que o autor situará a doença psicossomática entendendoa como uma defesa. Nesse seu pensamento, Winnicott (1990) parte, como vimos, da suposição sobre a existência de uma tendência à integração que, em potência, levaria o bebê a constituir uma malha psicossomática. O padecimento corporal se insinua aqui a cada momento em que essa tendência sofra um abalo intenso que se configuraria como uma possibilidade de desconstrução.

Os adoecimentos psicossomáticos assinalariam, portanto, um distanciamento entre psique e soma e trariam a marca de uma reivindicação, de uma esperança: que não se permita a separação total entre soma e psique e que se possa, com a retomada dos cuidados ambientais, recolocar em marcha o processo de integração soma/psique.

Tal perspectiva permitirá ao autor entender os adoecimentos psicossomáticos não apenas incidindo nos casos clássicos (úlcera, asma, afecções gastrointestinais, alergias, etc.), mas como se referindo a um distanciamento entre soma e psique, a uma desconstrução das malhas psicossomáticas já constituídas podendo se expressar de inúmeras formas (Winnicott, 1990).

Winnicott, a nosso ver, retoma, aqui, o caminho aberto por Freud, primeiro porque em sua teorização sobre os fenômenos psicossomáticos ele introduz a possibilidade de o entendermos em relação ao desamparo originário e às sensações de angústia a ele correspondentes. Em segundo lugar, por fazer dessa área de indeterminação, não recoberta pela linguagem, a área sobre a qual a possibilidade clínica se inaugura. Clínica que, como vimos em Freud, não pode recorrer à interpretação, posto que não se refere ao recalcado e a seus conteúdos inconscientes, mas que demanda o uso de outros recursos para fundar um ponto em torno do qual uma narrativa histórica possa ir sendo constituída. Acrescentando a Freud, Winnicott, para além da construção, como instrumento, ou talvez mesmo a fundando, propõe a inserção do holding. Movimento do analista que procurará recriar o espaço potencial de experimentação necessário à integração psicossomática e a novas formas de organização subjetivas, proporcionado em tempos primevos pela mãe/ambiente.

Esperamos que nosso caso clínico nos auxilie na explicitação desse movimento.

 

Corpos não integrados: João e a busca por um diagnóstico

João chegou ao consultório com uma queixa explícita: ele tinha um diagnóstico sem conclusão. Ninguém sabia ao certo, tanto da equipe médica, da escola ou da família, o que fazer com ele. Nascido com algo de diferente, somente percebido depois do primeiro ano de vida, João não andou quando dele era esperado andar, não falou quando era esperado falar... Aliás, não foi a palavra que mais ouvi quando os pais vieram à primeira entrevista clínica.

Filho não esperado, nasceu homem em uma família de somente mulheres. Neto, sobrinho, filho único no sentido de ser aquele que portava o símbolo da masculinidade, mas... trazia essa criança um enigma a ser decifrado ou, então, tal como uma esfinge, ele devoraria a todos.

Anos de exames clínicos, neurológicos, psicomotricistas. Ninguém podia dizer o que João tinha: faltava-lhe um rótulo e, diante da diferença dele em relação às demais crianças da família, esse era buscado com sofreguidão pelos pais e pelas três irmãs... O que é que João tem? Quem é João, já que ele não tem controle, já que ele não aprende, já que ele vive num mundo aparentemente a parte, já que ele tudo destrói, já que ele tem de ser constantemente vigiado, pois é, logicamente, sempre considerado o culpado de tudo que se estraga, de tudo que é mudado de lugar, de tudo que some na casa?

Assim chega João para ser por mim tratado... pequeno, fraquinho, mas forte na sua capacidade de marcar o seu lugar dentro de meu consultório. Nas primeiras sessões sempre quis a mãe perto. Depois foi deixando que ela ficasse na salade espera. Éramos aviões, fazíamos barulho alto e baixo, havia papagaios que gritavam e conversavam com o avião-João e o avião (menor e mais fraco) – Vicky.

Das longas conversas, sempre barulhentas, onde o ritmo do som ditava o ritmo da sessão, João pôde ir se falando e ir se dizendo para mim. Ao mesmo tempo fui ouvindo os pais de João. Irritados, decepcionados, cansados, separados... João tinha todos os problemas e os envergonhava e eles acabavam tendo, igualmente, todos os problemas do mundo. Olhei para a mãe de João, ela me parecia desvitalizada; o pai queria distância de todos esses problemas – João não era o filho que ele sonhou e pronto. A mãe pede outros encontros, eu acolho esse pedido, a sensação que eu tinha era de que ela estava a ponto de desistir também de lutar tanto.

Ao mesmo tempo, continuo a tentar decifrar o que fazia de João alguém que trazia em si uma questão indecifrável, aparentemente. Fui ao colégio, lá encontrei uma equipe perdida: o que fazer com o João? Dou a eles algumas sugestões como respeitar o tempo dele de concentração (que era mínimo), ter como objetivo a socialização (ao longo do ano), trabalhar com cuidado e carinho a questão dos limites (que ele pouco tinha internalizado, já que todos em casa acabavam deixando-o fazer o que bem quisesse desde que não causasse maiores problemas do que já causava).

Na escola, entenderem que João não tinha ainda alcançado a complexidade de pensamento para a linguagem escrita ter sentido; o som e o movimento tinham sentido, mas o resto não mais. Olhando para João eu via alguém que havia sido muito trabalhado em suas partes neurológica, movimento, mas eu sentia que lá dentro não havia links entre essas partes, alguém teria de conectar João!

Devagar vou ouvindo os pais, devagar vou propondo saídas possíveis: mudamos o neurologista. Aposto em uma proposta de uma fonoaudióloga que desenvolveria um trabalho de reconstrução cognitiva dentro de pensamento e linguagem, reprogramando a área de cognição de João totalmente fragmentada e assim mudamos, também, a fonoaudióloga. Por fim, retiramos João da psicomotricista...

Ao limparmos o campo de tantas muletas, os pais se deparam com suas próprias questões... João, hoje encaminhado e bem assistido por profissionais que fecharam um diagnóstico para um trabalho coeso e interligado, melhora cada dia um pouquinho mais.

Diante da saída do João de cena aparecem sintomas outros: a irmã mais velha tendo tremores nas mãos pode ter alguma doença grave e, claro, deveriam ver se João não precisava também de ser visto nessa questão; a irmã menor apresenta tremores nos olhos e, consequentemente, esses tremores das pálpebras deve indicar algo grave e deve, em decorrência, ser o João investigado. Questiono, então, a mãe especificamente, pois foi com ela que fiquei enquanto João era visto pela fonoaudióloga para um diagnóstico e pelo neurologista para um fechamento sobre o modo de agirmos com ele: será que tudo que os seus filhos têm deve ser realmente algo grave e a ser visto no João? O que essas doenças múltiplas que aparecem nos seus outros filhos podem estar nos falando?

Calada e perplexa, a mãe de João me diz: talvez eu esteja procurando uma coisa nos meus filhos que esteja mais em mim do que neles... Talvez eu não consiga me ver como mãe e me sinto como sendo sempre uma investigadora a procura de uma explicação de por que motivo eu fracassei como mãe e profissional: como mãe ao ter gerado um filho assim, e como profissional porque sendo da área da saúde mental não sou capaz de dar aos meus filhos calma para eles poderem crescer em paz, eu estou sempre do lado deles, embolada com eles, e nesse momento o que eu estou querendo é ter muito espaço para mim, eu estou exausta. E desatou a chorar... muito...

Alguns anos já passados, ainda atendo a mãe de João. João está com a equipe com a qual trabalho e caminha bem, nenhum dos outros filhos precisou fazer nenhum exame. O pai de João iniciou uma terapia. A mãe, em um momento de seu processo de análise, me diz que sentiu vontade de arrumar o próprio armário e, enquanto a poeira estava sendo retirada... Como gosta de fotografia, a mãe de João, nessa semana de arrumação, mudou as fotos dos 4 filhos e colocou todos quando eram bebês e me disse: eram lindos bebês... e eu nem tive tempo de eu mesma ser cuidada como cuidei deles, minha mãe se matou, meu pai era alcoólatra, eu pude viver tudo do ruim que pudesse viver... não é à toa que estando aqui eu estou buscando me arrumar por dentro e me vi me arrumando por fora... Eu disse, nesse momento, não é à toa que percebendo seus filhos, e inclusive João, mais crescidos, você se recorda da sua infância e do nascimento dos seus filhos.... Ela sorriu e disse: Realmente eu preciso agora de muito tempo para mim, eles já estão grandes, posso ter tempo para mim e para o pai deles... Faz tanto tempo que nem saímos juntos....

 

Ao analista, o que cabe operar?

A partir dessa vinheta clínica podemos pensar que nessa família havia uma não integração psique-soma, no sentido de essa mãe não se diferenciar dos filhos que tinha. Nessas relações, tudo estava embolado e coube aoJoão apresentarde forma cortante e clara essa não integração familiar. Essa mãe, por questões muito anteriores ao próprio nascimento de todos os filhos, mas mais especificamente de João (talvez por ser homem e por isso portar uma diferença fundamental em relação a sua mãe), se viu impossibilitada de permitir que o processo de integração se efetivasse em seus filhos. Essa mãe não podia ser mãe, ela tinha de ser supermãe e igualmente ocupar o lugar de vítima. Embolada na vida dos filhos, por eles vivia e tudo fazia, mas ao mesmo tempo cobrava-se e cobrava. Ao ser igual aos filhos, com eles se igualava, podendo João gritar, bater, chutar, xingar, de forma extremamente agressiva, a mãe e ela nada fazer para impor limites. Um dia sua filha mais velha disse a ela: Mamãe, por que você deixa o João fazer tudo isso contigo? Diante dessa pergunta ela se perguntou o porquê e não encontrou resposta a não ser que era isso que ela tinha de fazer porque ela tinha gestado um filho doente. Igualmente essa mãe se deu conta, em falas muito sofridas, de que muito cedo teve de dar conta dos humores dos próprios pais, lidar com o suicídio da mãe, com o alcoolismo do pai e que ela havia prometido jamais passar por tudo aquilo de novo. Sendo hipermãe ela não deixou o pai de seus filhos entrar na relação que ela ia estabelecendo com estes, mas, simultaneamente, reclamava sempre de estar sozinha em tudo.

Diante do desamparo e da não integração coube à analista entrar nesse processo familiar, esclarecer alguns pontos e acolher essa mãe para que ela pudesse tecer, depois de tantos anos, o fio, o lugar e o direito de chorar a infância que não teve, a adolescência vazia por não ter com quem contar e a maternidade abandonada, posto não ter nem mãe nem avó com quem se identificar, como referência a aprender o que é amar. Como ela mesma me disse: Meu deus! Eu havia me esquecido que minha mãe se matou e minha avó era viva, morreu meses depois e eu, quando tive meu primeiro filho, não sabia o que fazer e nem tive com quem contar... Eu era tão só que chegava a doer, e assim protegi minhas filhas com unhas e dentes, e nem aí pôde meu marido me apoiar, porque eu acho que eu não deixei, não é?

Tento, no seu percurso de análise, dar a ela um holding onde ela possa se integrar, para que ela possa se tornar uma mãe real dentro dela e transmitir isso a seus filhos. Se isso se tornará possível, apenas o futuro dirá... Por enquanto, a mim cabe apostar e sustentar essa aposta.

Para finalizarmos, acreditamos que esse caso, mesmo que não se refira a um caso clássico de adoecimento psicossomático, nos permite refletir de uma forma diferenciada sobre o assunto e assim podermos perceber a questão da dissociação psique-soma por uma outra ótica, na qual essa dissociação se espalha por todo um núcleo familiar, para além de um sujeito apenas. Igualmente interessante e intrigante foi perceber o pedido de ajuda explicitado e vocalizado por João, embora de uma forma enviesada, em tal construção adoecida. O que nos faz pensar que se Freud nos indicou a especificidade e singularidade da escuta de cada caso, Winnicott levou esse legado adiante e nos permitiu perceber que, às vezes, o singular se faz presente no plural.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em julho/2009.
Aceito em dezembro/2009.

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