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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.15 no.1 São Paulo  2010

 

ARTIGOS

 

Ato puro e a clínica dos estados paradoxais

 

The pure act and the clinic of paradoxical states

 

Acto puro y la clínica de los estados paradójicos

 

 

Telma Rodrigues Batista da SilvaI; João Luiz Leitão ParavidiniII; Caio César Souza Camargo PróchnoIII

IPsicóloga clínica, mestranda em Psicologia da Intersubjetividade na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). telmarbsilva@ig.com.br
IIPsicólogo e psicanalista. Docente do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). paravidini@ufu.br
IIIPsicólogo, docente do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). c.prochno@uol.com.br / caioprochno@terra.com.br

 

 


RESUMO

O artigo aborda particularidades do funcionamento subjetivo contemporâneo que desafiam os posicionamentos teóricos e técnicos da clínica padrão. Discute a clínica dos Estados Paradoxais (Paravidini, 2006), cuja montagem psíquica implica arranjos onde se identificam elementos tanto autísticos como psicóticos ou neuróticos e cujas falas ou ações são postas em ato, sem endereçamento ao Outro. Identifica o Ato Puro (Herrmann, 1997) como operador fundamental dessa clínica e estuda as consequências de sua lógica operante à constituição psíquica da criança encontrando um sujeito na berlinda da inclusão ou não do Outro, necessitando a encarnação do analista enquanto Outro que sabe não excluir.

Descritores: ato puro; estados paradoxais; infância; casos inclassificáveis; contemporaneidade.


ABSTRACT

The article approaches to particularities of the contemporary subjective operation that challenge the theoretical and technical positioning of the standard clinic. It discusses the clinic of Paradoxical States (Paravidini, 2006) whose psychic assembly implies arrangements where autistic, psychotic or neurotic elements are identify and whose speeches or actions are put in act, without addressing to the Other. It identifies the Pure Act (Herrmann, 1997) as a fundamental operator of this clinic and studies the consequences of its logical operation to the child's psychic constitution finding a subject within the inclusion, or not, of the Other, needing the analyst's incarnation while Other that know not how to exclude.

Index terms: Pure Act; Paradoxical States; childhood; non-classifiable cases; contemporaneity.


RESUMEN

El artículo aborda particularidades del funcionamiento subjetivo contemporáneo que desafían los posicionamientos teóricos y técnicos de la clínica padrón. Discute la clínica de Estados Paradójicos (Paravidini, 2006), cuya organización psíquica implica composiciones donde se identifican elementos tanto autísticos como psicóticos o neuróticos y de quien se ponen discursos o acciones en acto, sin dirección al Otro. Identifica el Puro Acto (Herrmann, 1997) como operador fundamental de esta clínica y estudia las consecuencias de su lógica operante a la constitución psíquica del niño que encuentra un sujeto entre la inclusión o no del Otro, necesitando la encarnación del analista mientras Otro que sabe no excluir.

Palabras clave: puro acto; estados paradójicos; niñez; casos inclasificables; contemporaneidad.


 

 

O trabalho psicoterapêutico, ao ser tomado como clínica viva por aqueles que se dispõem a encarná-lo como tal, desassossega-os, e não permite que se acomodem em uma práxis estanque. A clínica viva sacode a todo tempo o tapete das certezas. Nesse sentido, a noção de psicose, autismo e perversão enquanto campos bem delimitados parece já não ser suficiente enquanto suporte teórico compreensivo ao comparecimento de determinadas configurações subjetivas.

A condição que interpela a clínica neste momento é a denominada clínica dos Estados Paradoxais descrita por Paravidini (2006) no âmbito da psicopatologia infantil, mediante a apresentação de uma montagem subjetiva ainda não contemplada nos estudos clínicos e que faz extrapolar as delimitações dos campos do autismo, psicose e neurose. Nessa clínica, o uso das palavras (como a fala ininteligível ou desenfreada) ou ações (como as intensas descargas motoras) geralmente não adquire posição de mensagem endereçada ao Outro e, para além de uma defesa, constituem-se enquanto modo de sustentação último do sujeito psíquico. Além dessas características, observa-se na dinâmica familiar uma exigência na ordem da eficácia cognitivo-mental paradoxalmente a uma intolerância a alterações no campo afetivo-libidinal que desafia o trabalho de análise.

Considerando a desesperada busca dos pais por modelos de eficácia, o uso não simbólico das palavras e ações pela criança – mas enquanto tentativa última de sustentação psíquica –, bem como a intolerância a acréscimos nos estados afetivos, percebese uma proximidade das descrições de autores contemporâneos quanto à fragilidade do sujeito psíquico contemporâneo.

Herrmann (1997), ao buscar compreender psicanaliticamente o quotidiano, desenvolveu uma teorização pertinente do funcionamento social e subjetivo produzido nesse momento. Descreveu o processo de dessubstancialização do humano, levando à efetivação da operação do ato puro (fusão do pensamento ao ato). Nota-se que essa operação se assemelha àquela encontrada nos Estados Paradoxais quando há a perda do espaço de simbolização e as palavras ou atos já não servem à comunicação. Assim, considerou-se o estudo do conceito de ato puro de extrema relevância ao desenvolvimento da compreensão do modus operandi na clínica dos Estados Paradoxais.

A exemplo do que acontece nos Estados Paradoxais, ao serem percebidos arranjos psíquicos sendo montados sob lógica ainda não conhecida na clínica da infância, nota-se também uma forte relação dos mesmos com o próprio funcionamento social e subjetivo contemporâneo. Assim, a compreensão fundamental trazida neste artigo é a de as compatibilidades entre as observações na clínica dos Estados Paradoxais e as teorizações acerca do social e da subjetividade humana não são meras semelhanças, por integrarem uma mesma lógica de funcionamento.

Nessa perspectiva, nasce a necessidade de compreensão da lógica em que se produz o intenso sofrimento trazido pelos pais e crianças que são afetadas sob o nível da constituição do sujeito, numa época em que o pensamento se faz apenas quando aglutinado ao ato e sua homogeneização nos leva ao ponto em que o Outro (alteridade) não existe. Tal consideração conduz a sérias alterações na maneira de se tratar a clínica.

Assim, ante o desafio teórico e técnico nesse terreno pouco conhecido, o objetivo deste artigo é o de promover um espessamento teórico à clinica dos Estados Paradoxais, lançando a partir das observações clínicas a hipótese do ato puro enquanto seu mecanismo de funcionamento fundamental. A partir das decorrências deste regime de pensamento à constituição subjetiva, pretende-se alcançar uma compreensão sobre a lógica em que se enredam os fenômenos clínicos ali apresentados sob a forma de uma montagem psíquica, bem como problematizar a clínica em seus preceitos teóricos e técnicos nestas condições.

Para chegar-se a essa compreensão, o texto será dividido em três pontos nodais: Clinica da infância e delimitação dos Estados Paradoxais; A lógica do Ato Puro; e Corpos, atos e montagens: lógica e gozo. Inicialmente, será apresentada uma concepção de clínica da infância que permite o olhar sobre os fenômenos encontrados na clínica atual, bem como delimitada ao leitor a montagem nos Estados Paradoxais. Posteriormente será destacada nesta clínica a operação do Ato Puro, sendo discutida sua lógica de produção a partir dos conceitos de processo autoritário e regime da farsa propostos por Herrmann (1997), bem como as decorrências subjetivas destes processos. Assim, chegar-se-á ao ponto de problematização das possibilidades de montagens no modo de produção social vigente incluindo aí a montagem paradoxal e sua lógica gozante. Os principais articuladores teóricos serão tomados a partir de Herrmann (1997), Bernardino (2004), Kupfer (2000), Miller (2003) e Recalcati (2004).

 

Clinica da infância e delimitação dos Estados Paradoxais

A clínica psicanalítica da infância (Bernardino & Kupfer, 2008; Kupfer, 2000) tem encontrado como pressuposto norteador a concepção da criança enquanto sujeito em constituição, cuja montagem psíquica dependerá da operação das funções materna e paterna.

A função materna é aquela que traz a possibilidade de inserção do bebê no campo da linguagem através da aposta desejante. Pela figura da mãe, a criança se faz dotada de imagem, podendo ser reconhecida, inaugurando-se assim o sujeito enquanto um vir a ser. Tal operação acontece à custa da denominada alienação, em que o bebê se faz capturado pelo desejo materno. A função paterna atua então na retirada do bebê da posição de alienação. Apresentando-se enquanto objeto externo à relação com a mãe, a figura do pai inclui uma ordem outra que possibilita a saída do sujeito de objeto de desejo à posição desejante.

A busca por compreensão diagnóstica na clínica da infância produziu extensos trabalhos e variados posicionamentos. Destes, destaca-se a proposta lacaniana que aponta três possibilidades de estruturas psíquicas considerando-se as respostas que o sujeito encontra no enfrentamento à falta, a saber: a psicose, que tem a foraclusão como resposta; a perversão, que responde com o desmentido; e a neurose, que opera com o recalque (Bernardino, 2004). Jerusalinsky (1993) diferencia a estrutura psicose da estrutura autismo e justifica sua posição afirmando que enquanto o operador na psicose é a foraclusão, no autismo ocorre a exclusão, onde não há condição de inscrição do sujeito. Entretanto, tratando tais estruturas como fixas, corre-se o risco de desconsiderar as particularidades de montagens psíquicas diversas encontradas no trabalho clínico, achatando-as em uma ou outra estrutura. Esse risco é ainda mais grave especialmente ao se tratar da infância.

Ora, ao incluir a criança na posição de um sujeito em constituição, admite-se aí a condição denominada por Bernardino (2004) de maleabilidade das estruturas psíquicas na infância. Ou seja, as possibilidades de estabelecimento e arranjos nas funções materna e paterna se tornam inumeráveis, uma vez que a própria constituição ainda está a se fazer, adquirindo ali uma consistência permeável. Essa posição, para além de uma construção meramente teórica, traz à clínica seu retrato próprio, haja vista a dificuldade em se estabelecer um diagnóstico definitivo na infância.

Ante a maleabilidade das estruturas psíquicas na infância, diversos arranjos psíquicos não são contemplados nos quadros clínicos descritos. Antes de definir o que denominou por psicoses não decididas na infância (pela própria condição de indefinição estrutural), Bernardino (2004) faz um levantamento de alguns destes arranjos possíveis. Cita, por exemplo, os estados pós-autísticos de Meltzer, que traz consigo o operador da identificação adesiva; cita o conceito de pré-psicose para Misès, a partir de elementos como formação reativa, superinvestimento parcial de características cognitivas e pseudoedipização, entre outros.

Dessa forma, nesse campo movediço da clínica infantil, Paravidini (2006) considerou os Estados Paradoxais como uma montagem possível na constituição do sujeito. Tal montagem foi descrita em relatório de pós-doutoramento do autor conforme seu trabalho enquanto clínico e supervisor no estágio de Atendimento Psicoterapêutico Conjunto Pais-Crianças (0 a 4 anos) na Clínica de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia. Nesse trabalho deparou-se com um aumento significativo de casos semelhantes e que não poderiam ser compreendidos dentro das classificações psicopatológicas vigentes. Nesses, as formações sintomáticas se assemelham ao mesmo tempo "aos aspectos psicóticos desintegrados e às formações sintomáticas neuróticas, quando estas adquirem uma consistência de mensagem, como também sintomas de isolamento, aparente ausentificação, de contatos estáticos ou autísticos" (Paravidini, 2006, p. 25).

No acompanhamento desses casos, observam-se crianças dotadas de competência cognitiva invejável, porém com grandes dificuldades afetivorelacionais, característica esta que se estende aos seus pais. A produção da fala é ora ausente, ora desenfreada ou ininteligível, de modo que a mesma não é posta à comunicação, mas como uma descarga em ato. O brincar é solitário. Em alguns momentos há montagens semelhantes a histórias, fornecendo a impressão de haver ali a condição de simbolização; em outros, torna-se uma ação repetitiva e infinita, parecendo não servir a um propósito em si, como se caísse em um vazio sem fim. São eficientes em executar a ordem programada (montam quebra-cabeças, nomeiam toda uma gama de cores), mas falhas em lidar com ocorrências fora de seu roteiro (por exemplo, a interferência de outra pessoa no jogo ou o anúncio não esperado do final da sessão).

Por vezes ocorrem descargas motoras intensas que poderiam ser tratadas como birras ou surtos desintegradores. Quanto a essa apresentação, Paravidini (2006) aponta que não se trata apenas de uma defesa, mas uma forma de subjetivação em que, mediante intenso desamparo, o sujeito psíquico tem sua sustentação ancorada em uma imagem posta em ato corpóreo.

No discurso parental, há uma minimização constante das dificuldades apresentadas pelos filhos, por exemplo, tratando por não muito importantes determinados maneirismos da criança e supervalorizando suas competências intelectuais. Por um tempo considerável os pais se ocupam em fazer as crianças demonstrarem suas habilidades, chegando a parecer que não há problema algum acontecendo.

Outra condição observada é a insuportabilidade de acréscimos significativos no campo das intensidades afetivo-libidinais. Ou seja, as falas ou acontecimentos que denunciam os problemas e que geram assim a possibilidade de mudança na posição afetiva e relacional através da consideração dos mesmos, ao contrário de levar a essa consequência, criam momentos de confusão ou estados cindidos no setting terapêutico. Por exemplo, em caso relatado por Paravidini (2006), cujo nome atribuído à criança foi Carlos, percebe-se que os pais, ao mesmo tempo em que apresentam as dificuldades do filho em não tolerar intromissões nas suas atividades repetitivas (como enfileiramento de brinquedos), passam a relatá-las como sinal de inteligência do menino. Ao passo em que percebem o problema, ocorre um retorcimento de maneira que o mesmo passa a ser tomado no campo das competências e a tensão emocional se aplaca. Essa condição torna-se imobilizadora no avanço do tratamento e, ante a esse fenômeno, o autor afirma: "ao tentarmos abrir um caminho, caímos em uma cilada" (Paravidini, 2006, p. 24).

Dentro dessa mesma clínica, nota-se que as vivências se desenvolvem aos moldes da representação de um enredo a ser seguido, as pessoas parecem ser seus próprios expectadores. As ações se desenrolam, mas há pouca afetação entre os personagens. Por exemplo, os pais relatam o que geralmente se passa com Carlos, e este se põe a reproduzir a cena. Entretanto, quando há a possibilidade da criança enredar-se em um roteiro próprio, modificando ligeiramente a entonação da cena, esse movimento não pode ser percebido e o grupo retorna à repetição do roteiro. A esse movimento de repetição de um enredo onde não se observam as tensões afetivas ou essas não podem ser remetidas a outro (pois são lançadas em um vazio), Paravidini (2006) denominou 'lógica demonstrativa explícita', uma vez que não há nada para além da cena.

Tem-se então, na clínica dos Estados Paradoxais, elementos paradigmáticos tais como: formações sintomáticas que extrapolam as delimitações diagnósticas; o uso da fala e das ações sem endereçamento ao Outro e postas em ato; dificuldade de acréscimos no campo afetivo-libidinal contrapondo o desenvolvimento de altas competências cognitivas enredando a família em uma lógica demonstrativa explícita e trazendo desafio ao desenvolvimento de um trabalho clínico pelo próprio funcionamento ali posto em operação.

Na busca por compreender sob qual ordem se colocam essas evidências clínicas, foram encontradas semelhanças nas descrições do próprio modo de subjetivar contemporâneo em determinados autores. No contato com o desenvolvimento do conceito do ato puro proposto por Herrmann (1997) no âmbito da psicanálise do quotidiano (que traz como ancoradoras as noções de processo autoritário e regime da farsa), se fez notada a própria lógica apresentada pelo autor na dinâmica familiar cada vez mais evidente na clínica infantil, incluindo-se especialmente as descrições dos Estados Paradoxais. Assim, a discussão do tópico a seguir, ao contrario de ser uma mera aproximação de teorizações, é fruto dessa apreensão e colaborará ao espessamento teórico dos estados paradoxais presentes na clínica da infância contemporânea.

 

A lógica do Ato Puro

Em seu livro Psicanálise do quotidiano, apesar de pretender analisar as próprias regras de constituição do quotidiano e não suas exceções, Herrmann realiza o importante exercício de ampliação da clínica na perspectiva de que o quotidiano é o que comparece ao consultório, o que está longe de sua psicopatologização.

Na presente perspectiva de estudo, compreender as psicopatologias é também compreender sob quais regras se constituem as subjetividades. Essa concepção desfaz a ideia de separação entre os fenômenos sociais e culturais de certa época e as subjetividades presentes nesse mesmo tempo. Tal separação confere uma ideia errônea da existência atemporal e imutável de determinados condições clínicas. Assim, entende-se que o trabalho de formulação pura de um quadro clínico desconsidera toda uma gama de informações e articulações que fazem suas características se apresentarem sob um modo particular. Nesse sentido, não será proposta a delimitação de um quadro clínico, mas o trabalho de compreensão das regras que regem a formação subjetiva que traz em si uma condição paradoxal.

Ora, essa mesma concepção da subjetividade torna-se viável à medida de seu próprio momento, ou seja, a hipermodernidade – termo cunhado por Lipovetsky (2004) indicando não o corte, mas o processo de aceleração da modernidade. Explicando melhor, tal apreensão só é possível à medida que o mundo subjetivo mimetiza o objetivo, à medida que as relações perdem sua hierarquização (assistida na queda da figura paterna), tornando-se fluidas e horizontais, e os muros do consultório também caem, no sentido de constituírem-se enquanto separadores de mundos (o social e o psíquico). Assim, modificase a visão da clínica padrão enquanto clínica do intrapsíquico. A psicanálise dos consultórios torna-se necessariamente também a psicanálise do quotidiano, pensamento este que não seria possível em outro tempo.

Enfim, o texto prosseguirá agora se atendo ao estudo da concepção de ato puro, que parece ser um caminho possível à compreensão dos Estados Paradoxais.

Ao discorrer sobre o Mundo em que vivemos (parte terceira de seu livro), Herrmann (1997) teoriza acerca de como se organiza o pensamento atual a partir do regime (ou modo de funcionamento) em que foi concebido. Desenvolve a evolução do pensamento da moralidade existente no regime autoritário à sua constituição enquanto ato puro, que é a possibilidade de existência do pensamento tão e somente enquanto ato. Tal evolução é concebida à medida que o regime autoritário efetiva sua finalidade máxima gerando o regime da farsa, aquele em que pode vigorar o ato puro. Segue-se mais de perto a explicação desse percurso:

O autor afirma que o pensamento como moralidade é concebido segundo uma representação convencional do mundo. Assim, aquilo que é, o é conforme um consenso, não havendo espaço para a dúvida. Serve à manutenção de uma ordem, de uma continuidade das coisas. Sendo assim, tudo o que possa desviar dessa representação única passa a ser submetido a um julgamento. Ora, para se eleger um sentido único, opta-se por uma verdade conveniente e todas as outras que surgirem são postas enquanto argumento contra ou a favor dessa forma consensual. O homem vai se tornando impotente para reagir, uma vez que suas ideias são reduzidas à condição de exclusão ou assimilação à verdade conveniente.

Na efetivação da função do regime autoritário – a ordenação clara da realidade do mundo por leis precisas e conhecidas – e com a perda da capacidade de reação, cria-se consequentemente um estado de negação das contradições e diferenças. Nesse processo, o ato de pensar transforma-se em imposição de sentidos fixos sobre o mundo e a relação entre o dito e o fato já não se faz importante, haja vista que o importante é a universalização dos sentidos. Como o fato já não possui mais seu valor e sim a ideia eleita, esta toma o estatuto de ideia-coisa, tornando-se a própria realidade.

Se não há fato ao qual se ligar, as ideias tomam seu lugar criando realidades virtuais, facilmente construídas, manipuladas e subvertidas. Assim, a própria lógica de construção do pensamento se perde e o homem passa à sua pura execução. Herrmann (1997) denomina esse movimento último do processo autoritário de regime da farsa, estando o próprio pensamento constituído enquanto tal.

Na medida em que o pensamento se constitui enquanto farsa, tudo o que se pensa é posto sob a condição de uma mentira e, assim, para o autor, as pessoas desvalorizam sua capacidade de pensar a priori, já que não são o que pensam que deveriam ser.

Dada a tendência de unificação dos sentidos do processo autoritário e a consequente fragilização da condição de construção própria de pensamento, o mundo torna-se dominado por um discurso homogeneizado, porém dessubstancializado, sem consistência. Perdidas as bases de sua construção, o pensamento é apenas executado, ou seja, posto em forma de ação. A essa operação, considerada como uma fusão entre pensamento e ato, ante a impossibilidade de se conceber minimamente o mundo, Herrmann (1997) denomina ato puro.

Tem-se então uma forma de funcionamento de mundo cujo pensamento perdeu o vínculo com o seu motivo, tornando-se dessubstancializado, e que encontra sua saída sendo posto sob forma de ação. Assinala-se que, baseando-se nas observações das práticas quotidianas, essa forma de pensamento se faz presente em todos os níveis de atividades humanas, sejam elas sociais, políticas, econômicas, culturais ou psíquicas.

A implantação de novos planos econômicos ou o apoio a guerras são facilmente conseguidos pela propaganda, que é a ideia-coisa disseminada pelos meios de comunicação. Assim, o homem da farsa discursa sobre o mundo, mas trata-se de um discurso mimetizado aos propagados na mídia; a opinião pública torna-se uma simulação do pensamento. Não se convence por argumentos reflexivos, mas automatiza-se pela repetição de slogans. A produção cultural e científica passa a se apoiar nos símbolos de eficácia divulgados na mídia, afastando-se dos valores intrínsecos.

Compreende-se que não há como destacar a subjetividade de seu próprio contexto de produção. O homem que vive sob o regime da farsa é também portador de sua forma de pensamento. Esta formulação não é feita meramente por inferência, mas pela observação em ações individuais humanas de uma lógica de funcionamento semelhante a essa discorrida até então.

Nesse passo podem ser recordadas as características tão marcantes na clínica dos Estados Paradoxais, em que se observa, por exemplo, crianças extremamente competentes, porém dessubstancializadas, sustentando-se relativamente à medida que seguem um padrão pré-programado, sendo que uma mínima alteração significaria a franca possibilidade de desintegração psíquica. No caso do relatório de pósdoutorado, Paravidini (2006) relata que os pais identificaram na fala de Carlos um personagem televisivo de programa infantil. Para além da reprodução nada mais estava a ser construído. O tom robótico da fala do pai também é descrito, bem como sua única postura ao se aproximar de seu filho consistir na tentativa de fazê-lo repetir os nomes dos brinquedos.

Recorda-se nesse momento a descrição de Herrmann (1997) sobre a impotência do homem da farsa para pensar, levando-o a repetir um modelo universal de maneira mimetizada, à semelhança de um personagem de novela: "é uma personagem de um roteiro já armado, sempre o mesmo, variando de ambientação e de nome a cada ano, mas nunca de enredo básico" (Herrmann, 1997, p. 154). A família atendida por Paravidini parece apresentar-se como um grupo de personagens de um roteiro já armado, não saindo de um enredo básico. São os pais programados da hipermodernidade, que buscam desesperadamente as orientações dos profissionais como se busca por manuais de eficácia, por não haver como se sustentar enquanto pais de outra maneira.

Ao discorrer sobre a dinâmica familiar nos estados paradoxais, Paravidini (2006) a apreende sob a forma de uma lógica demonstrativa explícita, uma vez que tudo está posto na pura superfície descritiva das coisas e seus estados. Ainda sobre o caso Carlos, o autor relata que a criança, ao referir-se aos pais, não os chama diretamente, mas diz, por exemplo, "mamãe está dormindo" quando a vê deitada. Apesar de frustrado por não ser reconhecido pelo filho como pai, este não se atenta aos pequenos movimentos de Carlos feitos em sua direção (como aproximação física ou chamá-lo por papai) no decorrer do atendimento. As tentativas no intuito de reconhecimento também são falhas, pois seguem a mesma via descritiva, pela solicitação de que o filho diga a palavra papai.

Ao referir-se à lógica demonstrativa explícita, Paravidini (2006) aponta para a ausência de articulação com o simbólico (observada na falta da condição lúdica) e para a automatização nas ações sem a condição de construção de mensagens próprias endereçadas a outrem. Essa condição peculiar que pode ser encontrada na operação do ato puro, como descrito anteriormente, pode ser bem clarificada ao diferenciá-la de outra operação denominada acting out, cujo ato é também via de expressão, porém existe a possibilidade simbólica e o endereçamento de uma mensagem ao Outro.

Pinho (2002) discorre sobre a diferenciação entre acting out e passagem ao ato lançada por Lacan na revisão do texto freudiano Psicogênese de um caso de homossexualismo em uma mulher no qual destaca dois momentos diferentes de resposta em ação pela jovem. O primeiro momento trata-se daquele no qual a jovem manifestava publicamente sua afeição a outra dama, provocando a ira de seu pai. Essa configuração é compreendida como acting out, pois há um endereçamento ao Outro, uma demanda de simbolização dirigida a alguém; o ato demanda por decifração. Ante o olhar furioso do pai e proibição do encontro com a dama, a jovem lança-se em ato suicida contra um muro, precipitando-se na linha ferroviária. Esse segundo momento é marcado pela passagem ao ato, uma vez que, identificado ao objeto a (jovem identificada ao pai), o sujeito se faz excluído, provocando uma situação de ruptura e alienação. Segundo o autor, "não se trata de um ato que demanda ser decifrado, mas uma tentativa última de encontrar um lugar junto ao Outro" (Pinto, 2002, p. 16).

Yazigi, Minerbo e Attux (2000) consideram que no acting out o ato tem seu sentido simbólico, consistindo-se enquanto atualização do recalcado que não pode ser representado. O ato puro, por sua vez, é a própria incapacidade de simbolização, o ato não estaria no lugar de outra coisa a não ser da representação de si mesmo.

Na discussão acerca da constituição do pensamento como ato puro, assiste-se à perda do valor simbólico do pensamento, chegando às consequências de sua subsistência enquanto ato. Essa condição foi observada tanto nas produções sociais e familiares – por exemplo, quando os pais buscam o saber universal e se põem a reproduzir um modelo com suas crianças – como na própria constituição da subjetividade – quando pela lógica demonstrativa explícita falha a condição subjetivante na posição da criança. Ou seja, na efetivação do regime de pensamento vigente, as figuras parentais têm perdido a capacidade de exercer suas funções. A função materna falha pela fragilização da posição desejante – os pais não estão posicionados em uma lógica do desejo, apenas repetem normas que ditam a maneira correta de se criar os filhos, conhecida no afã da produção de crianças competentes. Perdem também a condição de exercer a função paterna devido à fragilização da alteridade dada a homogeneização do pensamento. Quando este perde sua capacidade simbólica, o que resta é a mimetização e repetição da lógica em vigência. O sujeito que se produz nessa lógica é um sujeito que só encontra a condição de se fazer enquanto o mesmo do outro, mimetizado, sem diferenciação.

Assim, a perda da capacidade simbólica traz ao cenário quotidiano subjetividades que se montam sob a regência de produções em ato, sendo esta a tentativa última de encontrar um lugar junto ao Outro de modo a não serem remetidas ao vazio do eu. Entretanto, ao se lançarem ao Outro se deparam com a condição de indiferenciação. Assim, chega-se ao ponto de incluir a discussão acerca das montagens psíquicas possíveis nessas condições.

 

Corpos, atos e montagens: lógica e gozo

Birman (2003) afirma que o conjunto de signos que constituem o mal-estar na contemporaneidade apresenta-se em outro formato, centrado agora no corpo e na ação. O mesmo autor observa que a linguagem se empobrece a olhos vistos, perdendo seu registro metafórico e sua dimensão como poiesis. Assim como o pensamento, a palavra começa a perder sua dimensão simbólica, passando a constituir-se enquanto ato puro. Como visto, o ato puro se faz em uma condição de indiferenciação e repetição do mesmo. A palavra-ato proferida perde sua condição de endereçamento ao Outro (alteridade), parecendo ser lançada em um vazio.

Santos (2004) considera que o esvaziamento da palavra, da atividade simbólica e dos laços se faz acompanhado de uma sintomatologia nova que é mais imprevisível, idiossincrásica e difusa, confundindo as fronteiras tradicionais entre psicose e neurose. A autora apresenta como exemplo fenômenos maciços e espetaculares – crimes, passagens ao ato suicidas ou auto-agressivas, delírios e anorexias – ou depressões intensas, estados de angústia agudos, queixas hipocondríacas que ora se relacionam à psicose, ora à neurose.

Ao discorrer sobre o ato puro e a apresentação deste quadro contemporâneo na psique individual, Herrmann (1997) apresenta o que denominou psicoses de ação. Cita que nessas montagens a representação dos estados emocionais é expulsa da identidade para a realidade – o que é característico da psicose – e do pensar e sentir para o agir – como em certas psicopatias. Relata ainda que a representação materializa-se e só a repetição do ato a pode evocar, sendo que a representação em ato se faz acompanhada da morte dos sentimentos. Em caso discutido, o autor cita que certo homem não conseguia saber o que sentia. Para estar alegre, era necessário que se sentasse em uma mesa de bar e segurasse um copo de uísque. O homem não se assentava à mesa por estar alegre, mas sentar-se à mesa era a própria alegria.

Observa-se nos relatos de Herrmann (1997) que a dificuldade de enquadre aos moldes tradicionais também pode ser compartilhada. Ele encontra nas psicoses de ação características próprias das psicoses e de certas psicopatias.

Miller et al. (2003) propõem uma leitura diferenciada da clínica lacaniana tradicional, de modo a abranger as variações clínicas que não podem ser compreendidas enquanto estruturas bem delimitadas, uma vez que seus fenômenos se apresentam sob a ordem de um mais ou menos (Miller et al., p. 202). Passam a dizer, por exemplo, que em determinado paciente aparece algo de psicótico. Sob a perspectiva de haver uma continuidade e não de uma delimitação estrutural, apontam que tanto o francamente psicótico como o normal se apresentam com variações de saídas à mesma dificuldade de ser.

Ao discorrerem sobre as psicoses ordinárias, Miller et al. (2003) compreendem em cada caso possibilidades diferenciadas de uma montagem gozosa. Dessa forma, ampliam a visão da clínica pela colocação do sujeito em uma de duas posições (psicose ou neurose) a partir da inscrição ou não da Lei para variações possíveis frente ao Outro que não existe. Tal condição estaria posta tanto na neurose como na psicose, o que permite pensar em possibilidades diversas de arranjos psíquicos.

Miller et al. (2003) discorrem sobre o estatuto do Outro atual enquanto o Outro que não existe por já não ser dividido. Não há um limite interno de divisão, de maneira que o Outro se faz ilimitado. Essa fala pode ser remetida à condição contemporânea, citada anteriormente, correspondente à mimetização do pensamento e à possibilidade de constituição do sujeito atual enquanto repetição do mesmo devido à perda da alteridade, englobando-se necessariamente tanto a condição do pensar como a condição subjetivante.

As consequências desse posicionamento são observadas na necessidade de revisão teórica de determinados conceitos mediante a apresentação de certos fenômenos clínicos. Miller et al. (2003) revisam, por exemplo, a noção de conversão. Nesse campo em que o gozo se apresenta no corpo, notou-se que nem sempre está presente a condição para sua metaforização (condição encontrada nas histéricas), estando o sintoma colocado como uma escritura que não se dá a ler. Relacionam esse fato à posição em que no primeiro caso haveria a condição para a metáfora, dado que o sintoma se apresentaria ante ao Outro dividido, podendo haver ali um desencadeamento de significantes. O segundo caso já se trataria do momento em que o Outro é ilimitado e indiferenciado, ficando o sintoma preso ao real do corpo. Consideram então a neoconversão, que não seria apenas uma atualização da conversão, mas envolveria modificações em elementos estruturais.

Nesse momento, pode-se então questionar que montagem é esta apresentada na clínica dos Estados Paradoxais, onde a sustentação do sujeito ora se assemelha às características autísticas, ora psicóticas ou neuróticas. Ante a apresentação da clínica, a ideia de desmontagem da linha traçada do autismo à psicose e da psicose à neurose soa plausível. Nota-se importante ressaltar que o estranhamento do fenômeno clínico é na verdade um estranhamento do corpo teórico construído até então e o trabalho a se seguir é árduo e não se esgota facilmente. Para o passo seguinte, a hipótese primeira deste texto será retomada.

Considerando a apresentação do ato puro na clínica dos Estados Paradoxais, este se faz enunciado nos relatos das descargas motoras que se assemelhavam a birras ou surtos desintegradores, na repetição de ações infindáveis e na posição da fala sem função de comunicação.

Em certo caso clínico, cuja criança será nomeada por Henrique, as descargas motoras puderam ser observadas no momento em que as falas dos pais os remetiam a vivências de intenso desamparo, sendo que a criança imprimia em ato (encaixe de peças de carrinhos) o próprio desamparo do núcleo familiar (não se encaixa pai quando falta a mãe e vice-versa). No auge dos relatos, do desvio do olhar da terapeuta e família para si e da impossibilidade de encaixe de peças no carrinho, Henrique apresentou tal descarga motora à semelhança de um 'surto raivoso', bateu na mãe e agachou-se de costas para todos.

No momento da descarga pôde-se notar o que Motta (2005) descreveu como uma identificação em curto-circuito com o objeto a, como denominada por Lacan por identificação absoluta com o objeto a fora de cena. Há uma rejeição da cena e uma rejeição de qualquer apelo ao Outro. Ante a exclusão do Outro, o único lugar de suporte do sujeito em desamparo tornou-se o ato.

Quanto à apresentação de ações infindáveis, tem-se também no caso de Henrique que este se põe a montar e desmontar rodas de carrinhos de brinquedo por várias sessões (anteriores e subsequentes à cena da descarga motora). Nenhuma palavra parecia alcançar essa repetição infindável e fazer tomar outra direção. Yazigi, Minerbo e Attux (2000) apontam que nas novas formações subjetivas contemporâneas a representação da identidade e da realidade se sustenta enquanto perdura o ato, sendo que, fora deste, o sujeito corre o risco de despersonalização e desrealização. Nessa afirmação, pode-se buscar um sentido à repetição incessante das ações na clínica dos Estados Paradoxais. Para os autores, o ato puro tem a função de sustentação narcísica do eu esvaziado de substância. Os atos sem finalidade e repetidos ao infinito dos Estados Paradoxais parecem constituír-se, assim, como a única forma possível de sustentar a representação do eu vazio.

Nessa clínica dos Estados Paradoxais, percebe-se que a interferência de qualquer outra pessoa nas atividades em execução da criança não é bem-vinda e surgem reações de isolamento autísticos ou descargas motoras. Nesses momentos, a impressão obtida é a de que a tentativa de inclusão do Outro é tomada como forte ameaça de desintegração. A alteridade é posta fora, pois ameaça a sustentação frágil do eu.

Essa mesma posição de exclusão do Outro é percebida no uso da fala. Geralmente quando utilizadas, as falas apresentam-se como cópia de frases prontas, ininteligíveis ou desenfreadas de forma a não se constituírem enquanto comunicação; não têm endereçamento, são lançadas no vazio. Novamente o Outro é posto fora. Em certo atendimento, no momento em que a terapeuta anuncia o encerramento da sessão, Henrique se dirige à porta de saída e, após encontrá-la fechada, volta-se a um espaço vazio da sala começando a pronunciar palavras incompreensíveis como se conversasse em outra língua com alguém invisível. O mesmo ocorre ao encontrar a porta do armário de brinquedos fechada. A quem essa criança se dirige? A fala incompreensível parece se colocar como um protótipo de um apelo, mas torná-la compreensível indicará também a possibilidade da inclusão de um que possa entender e assim receber seu endereçamento.

Também são observados fenômenos que podem ser tomados enquanto tímidas tentativas de endereçamento ao Outro. No caso de Henrique, notam-se alguns momentos de tentativas por enunciação de um sujeito quando o menino inicia a pronúncia de uma palavra compreensível. Porém, ao perceber que está se enunciando, a criança interrompe a pronúncia da palavra, retornando ao seu estado anterior. No caso do menino Carlos, citado em relatório de pós-doutoramento de Paravidini (2006), após intenso momento de embate com a mãe que interferia em sua brincadeira, levando-o a chorar, ele diz: "desculpem, amigos". Aos moldes de colagem ao personagem televisivo (outrora citado neste artigo), há um breve momento possível de enunciação do sujeito e endereçamento ao Outro. A tentativa de enunciação por meio de colagem à fala de outra pessoa parece ser comum nos estados paradoxais, levando à consideração da condição do Outro não barrado e ilimitado citado por Miller et al. (2003) e do pensamento homogeneizado que sobrevive sobre a forma de mimetismo citado por Herrmann (1997). A possibilidade subjetivante parece colocar o sujeito na posição de mesmo do Outro excluído.

Nos estados paradoxais, o sofrimento humano parece encontrar-se na inconstância da possibilidade de inclusão da alteridade. Os sintomas denunciam tanto a condição do gozo no real do corpo, onde há sustentação do sujeito, como efêmeras aberturas de incursão no campo do Outro. Porém, ao advir a alteridade, a sustentação do sujeito parece ser abalada e assim este só pode encontrar lugar junto ao Outro se posto sob o mesmo deste. Percebe-se claramente essa posição no caso de Henrique, que iniciara gradativamente um contato com a terapeuta por olhares, até que lhe ofereceu certo brinquedo. Quando a terapeuta enunciou que desejava tal brinquedo, a criança desviou-se e retornou a uma atividade repetitiva realizada no início da sessão. Evidencia-se aí a condição desestruturante. Posteriormente, enquanto mãe e terapeuta brincavam com bonequinhos, Henrique aproximouse da dupla e começou a repetir quase simultaneamente as falas da terapeuta. Coloca-se aí a possibilidade de aproximação da alteridade, paradoxalmente, sob a forma do mesmo.

Ao discorrer sobre as variadas incursões na função da linguagem sob formas de defesa à invasão do real no corpo na clínica das psicoses ordinárias, trazendo a impossibilidade de se contar com uma classificação prévia, Miller et al. (2003) consideram que a clínica psicanalítica contemporânea dependerá mais do que nunca do manejo da transferência. Dessa maneira, muda-se o foco do analista enquanto suposto saber para aquele que aprenderá com o sujeito no próprio decorrer da cena analítica.

Chega-se agora ao ponto de discussão acerca do manejo técnico ante as formações subjetivas contemporâneas, incluindo aqui aquilo que se pôde delimitar enquanto clínica dos Estados Paradoxais.

Recalcati (2004), ao discorrer sobre a questão preliminar da Psicanálise na contemporaneidade, remete-se à dimensão psicótica da nova clínica, não reduzindo o sintoma contemporâneo à psicose, mas compreendendo que não se trata mais de uma clínica do retorno do recalcado como ocorre na neurose, mas de uma clínica da passagem ao ato. Tratando-se de uma clínica marcada pela desagregação do caráter simbólico do sintoma e pelo retorno do gozo no real, o tratamento preliminar configura-se, então, enquanto uma condição a fim de reduzir o retorno do gozo no real que invade o sujeito.

O tratamento seria posto através do objeto, uma vez que o sintoma já não está mais do lado do sujeito barrado, mas sob o plano de uma identificação não histérica. Para Recalcati (2004), o sintoma não se articularia facilmente à demanda, uma vez que a mesma está reduzida à exigência superegoica de preservar a solução sintomática vinculada a falta-aser do sujeito. A transferência se faz, então, na identificação ao objeto de gozo, estando situada aí a possibilidade do desenvolvimento simbólico.

Na clínica contemporânea dos atos puros, Recalcati (2004) aponta a necessidade de se retificar o Outro em vez do sujeito. Isso aconteceria pela encarnação no analista de um Outro diferente daquele real que o sujeito encontrou em sua história apresentando-se como um Outro incapaz deoperar com a própria falta. É a encarnação do Outro que sabe não excluir, anular ou atormentar, abrindo a possibilidade de implicação do sujeito num laço com o Outro.

Na clínica contemporânea, apresentam-se então montagens subjetivas variadas onde os sintomas já não podem ser remetidos a posições fixas de respostas do sujeito ante seu sofrimento. Apreende-se que esse sofrimento vai ao encontro da posição do sujeito frente ao Outro que agora se apresenta não como faltante, mas como ilimitado. Assim, o gozo se configura no real do corpo, sendo o ato puro seu principal representante. É nesse compasso que se monta a clínica dos Estados Paradoxais, cujos sintomas demonstram uma posição instável na possibilidade da inclusão do Outro.

Ante a idiossincrasia sintomatológica e a importância da consideração da posição do Outro no contemporâneo, a clínica atual sofre sérias alterações tanto em seu escopo teórico, pela revisão de determinados conceitos, como técnico, trazendo a importância do manejo na transferência a partir da encarnação do Outro que sabe não excluir.

 

Considerações finais

Ao trazer o próprio acontecer da clínica para o primeiro plano do trabalho a ela proposto, o clínico se depara com a necessidade de rever determinadas bases teóricas que norteiam sua prática à medida que estas já não conseguem responder a determinados fenômenos.

Na contemporaneidade, pesquisadores que trabalham sob diferentes perspectivas – como o estudo do campo social ou o estudo do campo psíquico – começam a delinear fenômenos que se engendram em uma mesma lógica de funcionamento.

Trazendo alguns articuladores teóricos à compreensão dessa lógica, encontra-se a discussão pertinente de Herrmann (1997) ao discorrer sobre o regime da farsa enquanto modo de funcionamento vigente, sendo o ato puro sua forma de pensamento em operação. Em um regime que visa à universalização dos sentidos, encontra-se um pensamento que perdeu o vínculo com seu motivo original, esvaindo-se em sua capacidade simbólica subsistindo sob a forma de execução.

Ao serem analisados os acontecimentos na clínica contemporânea, encontra-se claramente este pensamento sendo posto em ação. Para além desta posição, na clínica da infância a lógica de funcionamento em que se engendra o ato puro parece agora não ser apenas uma lógica aplicada, mas uma lógica sob a qual se monta uma subjetividade. Percebe-se isso ao se observar como esse funcionamento operante faz falir as funções parentais, interferindo na constituição psíquica da criança.

Há o encontro com pais que se arranjam sob uma lógica demonstrativa explícita, pondo-se a executar e repetir um determinado modelo de 'como ser pai e mãe', falhando em imbuir à criança um olhar de desejo e incapazes de operar com a diferença.É nesse momento que se configuram os Estados Paradoxais, cuja dinâmica familiar denuncia o ato puro enquanto pensamento operante, trazendo uma possibilidade diversa de constituição subjetiva na criança.

No atendimento a tais crianças, depara-se com manifestações nas quais o ato puro está posto em ação sob uma maneira peculiar, seja nas descargas motoras ou no uso da fala e da ação postas fora da posição de endereçamento ao Outro. No enredar dessas manifestações alternam-se posições consideradas psicóticas, autísticas ou neuróticas, o que traz um estranhamento quanto à teorização tradicional.

Através da perspectiva milleriana surge a possibilidade de compreender esse arranjo quando se considera a constituição do sujeito ao ponto de inclusão ou não do Outro. Na lógica contemporânea, onde o pensamento vigente não consegue incluir a alteridade, a posição do Outro é de nãodividido e ilimitado. É a este Outro ilimitado ao qual o sujeito contemporâneo se faz remetido.

Assim, analisando-se a dinâmica em que o ato puro é posto em ação na clínica dos Estados Paradoxais, encontra-se uma condição de sujeitamento que pode ser percebida, não como nula, mas como mínima e efêmera. O paradigma do sujeito nos Estados Paradoxais parece ser de uma montagem psíquica que se faz justamente na berlinda, no ponto instável da inclusão ou não do Outro, ora cambaleante para um lado, ora para outro.

Vislumbra-se um trabalho analítico aos moldes daquele proposto por Recalcati (2004), pela encarnação do analista de um Outro que sabe não excluir. No atendimento aos casos dos Estados Paradoxais, a possibilidade de trabalho parece partir da colagem ao objeto, sendo esta um primeiro movimento tímido de contato com a alteridade e possibilidade do advir do sujeito de desejo, a exemplo das crianças que tomam de empréstimo frases de personagens televisivos.

Enfim, como se percebe, o estudo da clínica dos Estados Paradoxais, bem como dos demais arranjos psíquicos que se montam na contemporaneidade, demandam ainda intenso trabalho reflexivo. Deixa-se lançado aqui o desafio do desassossego àqueles que se propuserem a encarnar a clínica viva dos tempos atuais.

 

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Recebido em dezembro/2009.
Aceito em maio/2010.

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