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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.15 no.2 São Paulo Dec. 2010

 

DOSSIÊ

 

A validação científica das pesquisas em didática da Educação Física e Esportiva (EFE)

 

The scientific validation of research in teaching of the Physical Education and Sport

 

La validación científica de la investigación en la enseñanza de la Educación Física y el Deportiva

 

 

André TerrisseI; Pablo Buznic-BourgeacqII

IProfessor da Universidade Paul Sabatier Toulouse 3, França. andre.terrisse@wanadoo.fr
IIDoutor em Ciências da Educação. Universidade de Toulouse, França. pablobb@orange.fr

 

 


RESUMO

Qualquer pesquisa de natureza científica coloca a questão de sua validação, notadamente em Ciências Humanas, enfim, são mais valorizados os métodos qualitativos, devido ao seu objeto. De que modo a validação científica em um contexto de ensino se caracteriza por sua contingência, por sua impossibilidade de antecipar seus efeitos, bem como pela "divisão" do professor? Este trabalho propõe, a partir de um trabalho de ensino clínico em EFE (Educação Física e Esportiva), uma análise dos modos de interpretação dos resultados da investigação, a fim de especificar as condições teóricas e metodológicas para a construção de um caso.

Descritores: pesquisa em didática clínica, educação física e esportiva (EFE), a construção de caso, a validação científica, divisão do sujeito.


ABSTRACT

Any scientific research poses the question of its validation, among others in the filed of human sciences where qualitative methods are favored, because of their object. How does the validation take place in the context of a teaching characterized by it's contingency, i.e.: by the impossibility to anticipate it's effects and by the "divided" structure of the instructor himself? on the basis of work achieved in the field of clinical didactic of the SPE (Sports and Physical Education), this article proposes to analyze the modalities of interpretation of the research results in order to specify the theoretical and methodological conditions of the construction of a case.

Index terms: research in clinical didactic; physical and sports education; case construction; scientific validation; division of the subject.


RESUMEN

Toda investigación de naturaleza científica supone el problema de su proceso de validez, sobretodo en Ciencias Humanas en las que, debido a su objeto, son muy valorizados los métodos cualitativos. ¿Como se efectúa la validación en un contexto de enseñanza caracterizada por la contingencia, sea por la imposible previsión de sus efectos o por la estructura de split del propio maestro? Este artículo propone, a partir de un trabajo en didáctica clínica del EPD (Educación Física y Deportiva), un análisis de las modalidades de interpretación de los resultados de investigación, con el fin de especificar las condiciones teóricas y metodológicas de la construcción de un caso.

Palabras clave: investigación en didáctica clínica; educación física y deportiva; construcción de casos; validación científica; división del sujeto.


 

 

Toda produção científica se vê diante da questão da validação dos resultados. Esta questão é ainda mais acentuada na medida em que os trabalhos de pesquisa são realizados no campo das Ciências da Educação e no contexto de uma universidade científica onde as ciências humanas não são valorizadas.

Para as pesquisas em física ou em matemática, existe o ideal de uma ciência dura ou "pura", ou seja, aquela em que o sujeito estaria ausente, ou, como escreve Lacan, "forcluído". Ora, não há apenas um sujeito: "Dizer que aquilo com que operamos na psicanálise só pode ser o sujeito da ciência" (Lacan, 1966, p. 858). Não existem outros!

Desta forma, um pesquisador em didática clínica se pergunta logo de início o que é uma ciência humana que integra como objeto de suas pesquisas o sujeito, no caso o sujeito professor, pois ele é fundamentalmente imprevisível, primeiramente a ele mesmo: "O eu não é senhor em sua morada" (Freud, 1919/1985).

Este artigo propõe a apresentação dos trabalhos realizados no DiDiST1 pela equipe EDiC2, cujo objetivo é o de descrever as práticas dos professores in situ e caso a caso (Terrisse, 1994).

A descrição dessa prática acompanha o "tornar-se" de um saber, característica das pesquisas em didática, após a escolha feita pelo professor de sua referência (no EFE, esta é constantemente constituída por uma APSA (Atividade Física, Esportiva ou Artística, como a natação, a ginástica ou o judô), até a utilização desse saber pelo aluno numa situação que o demanda, com mais frequência durante uma atividade física "institucionalizada". Em nossos trabalhos, analisamos as interações entre um professor e alunos com respeito a um saber, muitas vezes motor, interações essas que chamamos de didáticas, pois o objetivo do professor do EFE é a transformação motora de seus alunos ligada às exigências dessa APSA. Nesse contexto, nada é mais imprevisível do que o que se passa durante a sessão, e o que Brousseau chama de contingência. Essa noção é lembrada principalmente na advertência publicada por Salin, Clanché et Sarrazy (2005) sobre o livro La théorie des situations didactiques3, em que os autores caracterizam a obra de Brousseau como sendo "sempre orientada pela preocupação com a construção de instrumentos de questionamento da contingência, para aumentar os conhecimentos sobre os sistemas didáticos, seu campo de validade e suas condições de produção" (p. 9).

Assim, a didática clínica do EFE se situa nas pesquisas em didática, pois tem a função de "seguir prioritariamente o fio da relação com o saber" (Joshua, 2002), levando em consideração a responsabilidade do sujeito professor que o propõe e o conduz a seu termo. Portanto, esse programa de pesquisa se realiza com a integração de uma teoria do sujeito, emprestada à psicanálise, ou seja, a de um sujeito dividido, inicialmente por seu inconsciente.

Por teoria do sujeito, entendemos uma organização que permita identificar os constituintes de sua estrutura, tais como a segunda tópica de Freud, o eu, o supereu e o isso, ou ainda o RSI (Real, Simbólico e Imaginário) de Lacan.

 

1. A coleta de dados e seu cruzamento

Para poder descrever e dar conta das práticas dos professores do EFE, utilizamos modos de coleta de dados muito clássicos. Esses métodos devem conservar os traços dos acontecimentos ocorridos na classe, para que se tenha tempo de voltar a eles, para revê-los várias vezes, para tentar descrevê-los e explicá-los, e também porque o movimento humano é fugaz e não reversível. Desse modo, guardamos os traços das sessões, recolhendo vários dados de natureza diferente: as anotações do professor (principalmente as que se referem à sua preparação), as observações do pesquisador durante as sessões do EFE, as gravações em vídeo realizadas durante a sessão para fixar o movimento graças a duas câmeras voltadas para o professor, e as gravações orais que conservam as palavras do professor, bem como seu testemunho durante as entrevistas.

Nesse estágio, dois procedimentos são utilizados para validar a coleta de dados:

– por um lado, sua triangulação, ou seja, o cruzamento que permite apreciar e verificar a coerência ou a diferença entre os dados coletados, processo este frequentemente utilizado nas Ciências da Educação (Van Der Maren, 1995). Nesse caso, cruzamos os dados anotados pelo professor, os dados orais pronunciados pelos alunos ou pelo professor e os dados do gravador ou do vídeo.

– por outro lado, comparamos a análise in situ dos dados coletados, isto é, o que foi observado pelo pesquisador, com a análise apriorística dos dados "mencionados" a partir das entrevistas ante sessão feitas pelo professor, sob demanda do pesquisador, sobre a sua intenção didática.

Todavia, ainda que os pesquisadores em Ciências da Educação tentem garantir a objetividade através dos meios que acabam de ser descritos, coloca-se a questão da interpretação dos dados coletados. Nessa análise clínica, esses dados se veem constantemente confrontados entre si com relação à diferença. Efetivamente, a análise clínica se caracteriza pelo interesse sobre aquilo que não é coerente, lógico, programado, o que faz irrupção na sessão. Com efeito "existe um outro saber sem que o sujeito o saiba, o saber do inconsciente", (Terrisse, 2000). Por exemplo, é muito interessante buscar as razões da diferença entre aquilo que o professor prevê e aquilo que ele realmente faz em sala, ou então entre o que ele diz e o que ele faz e o que ele faz realmente, ou então ainda entre o que ele havia previsto ensinar e o que ele não pode se impedir de fazer (Terrisse & Carnus, 2009).

A noção de diferença, marca "daquilo que não funciona", torna-se então a ferramenta clássica da didática clínica, tal como a entendemos em sua etimologia.

No entanto, ainda que com métodos de cruzamento de dados e com ferramentas de análise das práticas, tais como a noção de diferença, ainda resta o fato de que os dados sejam recolhidos por um pesquisador, ele mesmo um sujeito dividido por seu inconsciente. Apesar da sofisticação dos meios de coleta e de interpretação dos dados, resta, em última instância, a garantia da interpretação, enquanto sujeito pesquisador. Assim, resta-lhe a análise de sua relação com os dados, frequentemente como especialista do APSA, onde ele cuida do ensino, o que torna sua tarefa ainda mais complexa. Dessa forma, os grupos de pesquisa e, melhor ainda, os orienta-dores de pesquisa, podem ter um papel de "controle" da interpretação dos dados coletados, como nos grupos de analistas, para questionar a relação do pesquisador com sus dados, aos quais ele se apega, pelo fato de tê-los coletado.

 

2. Particularidade das pesquisas em didática clínica: os estudos de casos

Esta busca do valor dos dados, por um lado, e de sua interpretação, de outro, é duplicada por uma outra dificuldade, a de sua natureza. Com efeito, no quadro das pesquisas sobre a análise das práticas de ensino, a didática clínica é condenada ao estudo dos casos. Por que? Por pelo menos duas razões:

– a primeira se refere à importância dos dados. Eles se constituem pelas "palavras" do professor, ou seja, pelo que ele diz durante a sessão ou durante as entrevistas d´après coup. O corpus dos dados é assim constituido por um grande número de informações, contidas num ciclo do EFE, de três ou quatro sessões de uma hora ou de uma hora e meia. O corpus compreende assim o que diz o professor, o que ele faz (e numa sessão do EFE, o professor se desloca muito e intervém com frequência), mas também o que podem dizer os alunos, e, evidentemente, o que eles fazem, que nem sempre é aquilo que o professor espera, senão ele não teria proposto essa situação. Assim, considerando-se a importância dos dados, poucos casos podem ser explorados. A maior parte dos trabalhos se refere a quatro casos de professores, frequentemente em pares, segundo uma problemática iniciantes-experientes, ou então especialistas numa APSA e não especialistas na mesma APSA. (Ben Jomaa, 2009; Buznic-Bourgeacq, 2009).

– a segunda se refere à própria centralização das pesquisas sobre o sujeito professor em sua relação com o saber ensinado. Com efeito, a observação dos sujeitos professores mostra que a psicanálise sabe, desde sua invenção, que os sujeitos observados são singulares. A partir dessa constatação, simples a partir do momento em que um observador tenta caracterizar o que ele observa em sala, esta singularidade que toma aqui a forma do estabelecimento de saberes deve encontrar uma teoria que possa dar conta dela. Esta teoria do sujeito foi emprestada da psicanálise, pois ela postula um sujeito dividido entre o que ele previu e o que ele pode fazer no contexto da classe, entre seu ideal de professor e a realidade do campo, entre "segurar" sua classe e transmitir um saber...

A questão que se coloca agora é a de saber em que o recurso à psicanálise permite dar conta das dificuldades, das remediações, dos erros, das dúvidas que caracterizam a condução de uma classe por um professor do EFE, o que as Ciências da Educação chamam de "arranjos". Se os meios utilizados permitem a coleta dos dados e sua interpretação, ainda assim esses resultados permanecem associados a um professor em especial e a uma situação de classe particular. Como então passar dessa descrição "situada" num contexto particular para um conhecimento útil para a pesquisa que possibilitaria a produção de um saber válido para outros professores. A questão colocada também diz respeito à passagem do singular, relativo a um professor em especial, para o universal, remetendo ao estatuto de toda condição humana.

 

3. Problemática da pesquisa em didática clínica do EFE

Sem querer lembrar aqui a história da psicanálise, lembremos que Freud foi levado, por suas pacientes, a uma cura pela palavra, que ele chamou de "talking cure" (Jaccard, 1983, p. 54), e que seu projeto terapêutico e científico foi o de encontrar um método para testemunhar sobre ele, e em seguida para ultrapassar esse caso em especial e produzir um saber "universal", como o complexo de Édipo, por exemplo, que diz respeito a cada um de nós. No sentido dessa ambição, ele construiu, em 1920, a segunda tópica para dar conta das instâncias do sujeito, o eu, o isso e o supereu, da mesma maneira que Lacan elaborou o RSI como estrutura do sujeito. Sem ir mais longe na analogia, vejamos o que a psicanálise, enquanto método de produção de saber sobre o humano, pode trazer a nosso projeto científico para dar conta da prática de um professor do EFE.

Enquanto pesquisadores, vemo-nos diante do fato de estarmos diante de um impossível, o impossível de ensinar observado por Freud em seu prefácio a Aichhorn (Freud, 1925/1973). Mas ele também se vê diante de um impossível de dizer, pois nem tudo pode ser transmitido através da experiência própria. Nesse contexto, o pesquizador coleta os dados, ou seja, as palavras do professor, naquilo que elas são uma resposta a esse impossível, numa forma muito pessoal de um "savoir y faire" (Terrisse, 2000). É essa resposta totalmente singular que coletamos e da qual devemos extrair os elementos significativos, de um lado para mostrar em que esta é uma resposta própria, que o especifica e que com mais frequência remete à sua experiência prática, até mesmo de esportista, e de outro lado ver em que os elementos constitutivos dessa resposta podem ser utilizados para analisar outros professores. Vemo-nos então diante de duas exigências:

– dar conta do caso, do modo mais preciso possível, tentando descrever a lógica de um professor, aquela que o caracteriza.

– produzir um enquadre de análise, tal como propõem os etnólogos Héritier & Xanthakou (2004), passível de utilização por outros professores e dentro da didática clinica do EFE.

 

4. A construção do caso

O que podemos entender por construção do caso?

Este método está a serviço de uma postura clínica para extrair a resposta singular de um sujeito que se vê diante do saber que ele propõe e o dos alunos. Ele está submetido a seu desejo, constantemente frustrado, de transmitir o que ele sabe (e às vezes até mesmo o que ele não sabe).

Então, o que faz o pesquisador? Em nosso caso, para nos encontrarmos dentro dessa massa de dados, temos um fio condutor: as diferentes transformações do saber impõem os temas da relação didática, informando-nos sobre seu futuro, sobre seu advir e sobre os impasses encontrados ou as soluções encontradas. Mas de que modo considerar o professor em sua função de causa? Seis pontos serão desenvolvidos para responder a essa questão.

4.1 Considerando-se, além dos enunciados, o sujeito da enunciação

O que nos interessa, enquanto pesquisadores, é primeiramente a posição subjetiva do professor em suas escolhas, para depois identificar as razões de suas decisões durante sua prática. Suas opções passam pelo discurso dirigido aos alunos e ao pesquisador e repousam constantemente sobre uma concepção da atividade que ele utiliza em seu ensino, quase sempre de forma dependente de sua relação pessoal com a APSA e do modo com que ele "incorpora" suas técnicas corporais (Mauss, 1936). Por outro lado, observamos que sempre há alguém que serve ao professor como figura de identificação. Seu ex-professor, ou às vezes seu treinador ou um colega são, para alguns, um modelo forte que lhes permite escolher e jusificar sua concepção da atividade e o tipo de tratamento que eles fazem (Jourdan, 2005).

Durante esse trabalho, algumas vezes temos a surpresa de constatar uma diferença entre a concepção da atividade e o tratamento preconizado. Podemos observar aqui uma diferença, diríamos até uma divisão com referência à psicanálise, entre o que um professor deseja transmitir e o que ele pensa que a instituição pede que ele transmita ou o que os alunos esperam dele. Nese caso, não podemos ignorar um assujeitamento institucional que pesa sobre a prática e que será um dos fatores de análise das práticas de ensino. No caso de um ensino de karatê, por exemplo, Nicolas escolhe uma concepção dependente do que a instituição escolar espera dele, ou seja, um tratamento "técnico", enquanto que "eu estaria diretamente numa entrada...pelo randori... pelo combate": (Heuser, 2009). Falar e considerar o discurso do sujeito é uma das primeiras exigências desse tipo de trabalho.

4.2 Considerando-se a relação com o real

A observação do professor do EPE em sua classe nos conforta diante da ideia de que uma segunda diferença apareça entre seu ideal de professor (simbolizado em sua preparação ou em seu discurso) e a realidade do que se passa na classe, e que ele não pode controlar totalmente. Muitos autores enfatizaram o quanto o imprevisto pode irromper na classe sob a forma de incidentes críticos ou de rupturas de contrato didático. O professor se vê efetivamente diante do não decidido ou do não dedutível (Verret, citado por Terrisse e Léziart, 1997), que constitui a realidade de sua classe. É justamente o modo com que o professor responde a essas situações imprevisíveis que constitui o fio condutor de um observador orientado pela psicanálise, principalmente "quando a coisa não funciona", é que chamaremos de relação com o real e/ou sua relação com a contingência (Buznic, Terrisse, Margnes, 2007).

Podemos considerar que o professor experimentado, por sua experiência profissional, terá adquirido competências que lhe permitam responder a esse tipo de situações. Todavia, nossos estudos mostram que é mais o conhecimento da atividade física ensinada que é o motor de uma "adaptação" adequada à incerteza de uma situação de classe (Buznic, Terrisse & Lestel, 2008). Ao longo de nosso trabalho, pareceu-nos que essa pista de observação se tornou essencial para aquele que tenta dar conta das práticas de ensino.

4.3 Considerando o não sabido

Observamos o quanto o professor tem dificuldade em falar de sua prática, por pelo menos duas razões:

– alguns acontecimentos, que não são os menores, ocorrem sem o seu conhecimento. Apenas a insistência do perquisador lhe permitirá ter acesso às razões de suas decisões... principalmente porque sua decisão causou um problema ao observador, por exemplo quando ele muda a situação de aprendizagem sem que nada, de um ponto de vista didático, o justifique.

– nem todo o real passa pelo simbólico (Lacan 1966). Efetivamente, nem tudo pode ser dito. Assim, observamos uma diferença entre o fazer e o dizer, sintomático da impossibilidade da lingua em dizer tudo, mas também da tomada do ato no inconsciente. Esta diferença constitui, para nós, uma outra via de acesso às práticas de ensino.

4.4 Utilizando o processo de après coup

Permitir ao professor voltar ao que se passou na classe não é apenas uma necessidade "reflexiva" (no sentido de conhecer o ponto de vista do professor, o que os livros de metodologia de ciências humanas preconizam), mas uma das condições de sua produção pelo "remanejo" (Terrisse, 2007). Só se conhece no après-coup: "os traços mnêmicos só podem adquirir todo seu sentido, toda sua eficácia, a não ser num tempo posterior ao de sua primeira inscrição", é o que nos diz o dicionário de psicanálise de Laplanche et Pontalis (1971).

O après-coup permite um acesso ao ponto de vista do sujeito; não do observador com relação à sua própria prática, do clínico reflexivo, mas do sujeito do inconsciente cuja realidade psíquica se distingue da realidade objetiva (Freud, 1925/1973). Assim, apoiada hoje pelas neurociências (Naccache, 2006), a psicanálise freudiana mostrou que a realidade psíquica funciona a partir de interpretações subjetivas independentes da realidade objetiva. Ora, é essa realidade psíquica que remete realmente ao ponto de vista do sujeito. Então, para ter acesso a esse ponto de vista, o tempo do après-coup, isto é, aquele que separa a descrição daquilo que é descrito, é fundamental. No momento de uma descrição de um evento presente ou que acaba de se produzir (durante entrevistas, ou autoconfronto), as informações presentes na realidade objetiva "ajustam" as interpretações subjetivas. Em contrapartida, a descrição de um evento há muito acabado é principalmente constituída pelas interpretações do sujeito, de seu remanejo, de sua reelaboração, na medida em que a realidade objetiva não pode fornecer uma base de informações no instante da explicitação. Assim, quando o pesquisador quer ter acesso à parte do sujeito em seus atos, o tem po do après-coup se torna necessário (Buznic-Bourgeacq, 2009).

Este empréstimo à psicanálise tem uma eficácia real em nossos trabalhos, pois ele permite a reintrodução do sujeito em seu ato.

4.5 Extraindo os significantes do discurso do professor

Um dos usos mais significativos da psicanálise é a passagem pela palavra. Mas a palavra é o modo muito pessoal com que o sujeito se exprime, com significantes que a pesquisa deve identificar, pois, segundo essa formulação, "um significante representa o sujeito por um outro significante". Assim, identificar o efeito de um significante para o professor permite explicitar as coordenadas de seu ato. Às vezes, ele é trazido enquanto tal pelo professor sob a forma da insistência, da repetição, e até mesmo da queixa. Por exemplo, uma professora, (E), repete constantemente: "não dá tempo, eu não tenho tempo suficiente..." (Buznic, Terrisse e Lestel, 2008). Esta expressão volta sempre, certamente para dar um nome a seu sofrimento,à sua dificuldade em ensinar, mas também para dar ao pesquisador uma fórmula, uma chave para encontrar sua posição subjetiva. A falta de tempo é, para ela, um dos nomes do real. Este significante mestre, que organiza a prática, parece-nos ser uma ferramenta de análise das práticas de ensino.

Do mesmo modo, os significantes podem possibilitar a identificação das coordenadas do sujeito no didático. Por exemplo, um professor, (P3), se define em sua classe como "o irmão maior" ou, quando ele ensina sua matéria como "um dançarino profissional". Ele não quer ser percebido como um professor, simples produto dos assujeitamentos escolares ao didático. Esses significantes constituem assim sintomas que permitem a compreensão de sua atividade didática, para ele sempre orientada para formas pouco escolares, tais como os parcos arranjos didáticos ou a profusão de situações específicas das escolas de dança. (Buznic-Bourgeacq, 2009).

4.6 Aproximando-se de seu gozo

Voltando a esse discurso insistente, poderíamos nos perguntar se o que sustenta essa professora (E) não seria justamente seu gozo que, segundo Lacan (1974-75), vai das cócegas ao grelhado! A pergunta que o pesquisador deve se fazer, já abordada face às queixas e sofrimentos dos esportistas de alto nível em sua atividade favorita, é o que os sustenta no exercício de sua atividade? Que gozo pode ter aí? De que forma ele se manifesta: narcísico, doloroso, queixoso, oblativo? A resposta a essa pergunta, na medida em que possamos obtê-la nas entrevistas après-coup, poderia indicar a orientação de suas escolhas didáticas porque ela marca a posição do sujeito em seu ato.

 

5. Condições teóricas e metodológicas da construção do caso

Quais seriam então as condições da construção do caso em didática clínica? Na medida em que utilizamos de modo maciço o estudo de caso, a questão essencial é explicitar seu tratamento.

A primeira condição é o estabelecimento, se possível em confiança, das modalidades de coleta do discurso dos professores, pois sabemos que a relação entre dois sujeitos é constantemente marcada pelo equívoco e pelos não ditos, e que essa etapa de encontro de um outro sujeito é, em si, uma dificuldade. Entretanto, ela é incontornável, na medida em que ela condiciona as fases posteriores de coleta.

O pesquisador deve então trabalhar sobre esses dados discursivos. Para dar conta do futuro do saber em suas diferentes fases, uilizamos as categorias lógicas como enquadre de análise da atividade do professor. Este etabelecimento da lógica é sem dúvida a contrução mais difícil, pois ela repousa essencialmente sobre o discurso do professor com relação às categorias de análise: necessário e contingente, possíveis e impossíveis, de que se trata de identificar e de informar.

Durante esse período, o pesquisador extrai os significantes da prática profissional e sustenta sua interpretação de provas trazidas pelo discurso do professor, fazendo a hipótese do inconsciente, ou seja "que ele nãosabe que sabe".

Ao longo dessa construção, vários indicadores servem de guia ao pesquisador, como por exemplo, a questão do gozo. Mas um deles chamou nossa atenção, pelo modo com que o professor faz face à contingência da situação, e que chamamos de "savoir y faire". Se existe um determinante de saber que deve ser explicitado em nosso trabalhos, este é o do engajamento do professor em seu ato. A questão de saber por que e como um professor ensina esse saber parece- nos um determinante de pesquisa, sabendo-se que as respostas são sempre singulares, mas que permitem responder à pergunta sobre a escolha e o tratamento do saber pelo professor.

Assim, um outro elemento, a questão da causa, pode orientar o pesquisador em sua busca, para tentar responder à pergunta relativa àquilo que se funda num ato. Por que razões ele (ou ela) decide transformar uma situação, enquanto que nada o justifica, a não ser sua decisão sobre a qual, aliás, ele (ela) não tem livre arbítrio (Carnus, 2001).

Finalmente, as divisões como último enquadre de análise das prática de ensino; parece-nos ser cada vez mais importante identificar, descrever e interpretar essas práticas de ensino, na medida em que elas dão conta do que constitui um sujeito em seu ato. Identificamos vários que justificam plenamente o empréstimo à psicanálise do conceito de sujeito dividido. Resta enfim a questão da interpretação. Fiéis às nossas opções, consideramos que "só o sujeito pode dizer algo sobre sua parte no que lhe acontece e extrair disso as consequências" (Terrisse, 2000). Com efeito, se o material da análise didática é elaborado pelo paciente, ele é levantado pelo pesquisador.

 

Conclusão

Como conclusão, três pontos poderiam ser observados:

1 A construção do caso pelo pesquisador obedece, em seu rigor e sua coerência, à ética do bem dizer, ou seja, a de encontrar a fórmula que melhor traduz a posição do sujeito, permitindo ao mesmo tempo dar conta e interpretar, com relação às ferramentas teóricas escolhidas no campo da didática e da clínica psicanalítica.

2 Os atos produzidos pelo professor e que o pesquisador retém são considerados como a modalidade que um professor encontra para responder sobre sua posição de sujeito suposto saber confrontado ao real de uma classe.

3 A produção científica sobre as práticas de ensino nas Ciências da Educação não deve apenas dizer de que modo os professores se organizam em sua posição simbólica para transmitir um saber do qual a priori eles não conhecem a proveniência. Ela deve mobilizar dados precisos, singulares, para conseguir produzir interpretações que possibilitem definir sobre o que seus atos se fundam.

É com relação a essas exigências que o aporte da psicanálise às Ciências da Educação será julgado, e, para nós, seu aporte à didática clínica.

 

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NOTAS

1 "Didactique des Disciplines Scientifiques et Technologiques" (DiDiST). Em português, "Didática das disciplinas científicas e tecnológicas" (DiDiCT). (N. do T.).

2 Equipe de Recherche en Didactique Clinique (EDiC) de l'EPS. Em português, "Equipe de pesquisa em didática clínica" (EDiC) da "Educação Física e Esportiva" (EFE). (N. do T.).

3 A teoria das situações didáticas (N. do T.).

 

 

Recebido em julho/2010
Aceito em setembro/2010

 

 

Tradução: Inesita Machado

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