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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.15 no.2 São Paulo dez. 2010

 

ARTIGO

 

A intervenção do psicanalista na clínica com bebês: Rosine Lefort e o caso Nádia

 

The intervention of the psychoanalystic in the clinic with babies: Rosine Lefort and case Nádia

 

La intervención del psicoanalista en la clínica con bebés: Rosine Lefort y Nadia

 

 

Brenda Rodrigues da Costa NevesI; Ângela Maria Resende VorcaroII

IPsicóloga, mestre em Estudos Psicanalíticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). neves.brenda@yahoo.com.br
IIPsicanalista, professora adjunta do Departamento de Psicologia e da Pós-graduação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). angelavorcaro@uol.com.br

 

 


RESUMO

A clínica com crianças pequenas é lugar de muitos questionamentos, principalmente no que se refere à intervenção do psicanalista. A fim de analisarmos questões consideradas decisivas na contribuição para esta clínica optamos por analisar um caso clínico reconhecido, o "Caso Nádia ou o espelho" da psicanalista Rosine Lefort. Procuramos usar o caso como guia de discussão sobre o ato psicanalítico, a função do agente materno, a intervenção precoce, procurando localizar a posição do psicanalista no tratamento com crianças ainda em processo de constituição. Tentamos distinguir o posicionamento do psicanalista de um agenciamento da função materna, destacando pontos em que estas posições se convergem ou se distinguem.

Descritores: intervenção precoce; clínica com bebês; agente materno; ato psicanalítico; psicanalista.


ABSTRACT

A small child's clinic is a place of many questions, especially as regards the intervention of the psychoanalyst. In order to analyze issues considered crucial in contributing to this clinic we chose to analyze a clinical case recognized, "If Nadia or mirror" of the psychoanalyst Rosine Lefort. We seek to use the case as a guide for discussion of the psychoanalytic act, the role of agent-feeding, early intervention, trying to locate the position of the analyst in dealing with children still in the process of formation. We try to distinguish the position of the psychoanalyst an assemblage of the maternal role, highlighting the points where these positions converge or differ.

Index terms: early intervention; clinic with babies; maternal agent; act psychoanalytic; psychoanalyst.


RESUMEN

Clínica de un niño pequeño es un lugar de muchas preguntas, especialmente en lo que respecta a la intervención del psicoanalista. Con el fin de analizar las cuestiones consideradas cruciales para contribuir a esta clínica se optó por analizar un caso clínico reconocido, "Si Nadia o espejo" de la psicoanalista Rosine Lefort. Tratamos de utilizar el caso como una guía para la discusión de la Ley del psicoanálisis, el papel de agente de la alimentación, la intervención temprana, tratando de localizar la posición del analista en relación con los niños aún en el proceso de formación. Tratamos de distinguir la posición del psicoanalista un conjunto de la función materna, destacando los puntos donde convergen las posiciones o diferentes.

Palabras clave: intervención temprana; la clínica con bebés; el agente de la madre; el acto psicoanalítico; psicoanalista.


 

 

A criança no discurso analítico, há tempo, é tema de muita discussão. Não menos quando se fala em um tratamento dedicado às crianças pequenas, ainda em condição de não-falantes, e que se encontram encurraladas por uma patologia grave. A "Clínica de Rosine", assim denominada por Miller (Conferência 8, 07 de março de 2007), tratou de casos de crianças em situações de hospitalização e abandono, em posição autística, psicótica ou de neurose grave. Rosine Lefort se dedicou à clínica com crianças ainda muito pequenas. Como meio de circunscrevê-la, sistematizá-la e, mais ainda, como modo de sustentar, suportar e fazer um litoral ao que resta ali de indizível neste árduo trabalho, Rosine Lefort anotou sistematicamente as sessões de algumas crianças que acompanhou. Este cuidado está também presente em muitos outros psicanalistas que, impelidos pelos abismos provocados nos encontros promovidos por esta clínica, intencionam apontá-los, interrogá-los, demonstrar suas hipóteses e ideias, fazendo sua ligação com a prática real da clínica. Rosine Lefort foi uma destas psicanalistas que se propôs a colocar a psicanálise à prova da clínica com crianças pequenas. A psicanalista deixou-nos, assim, um rico material teórico-clínico, legado do qual também fazemos usufruto, em função da clínica psicanalítica.

Quando ainda a psicanalista Rosine Lefort se encontrava em formação psicanalítica – iniciava sua análise pessoal, no tempo do pós-guerra, meados da década de 1950 e com poucos recursos teóricos sobre a clínica infantil –, Rosine encarou o desafio de atender crianças muito pequenas em situações de patologias graves. Era preciso coragem, tendo em vista que ela ainda era uma jovem iniciante da práxis psicanalítica. A riqueza de detalhes e a sinceridade com que os casos clínicos atendidos por Rosine são relatados, faz-nos questionar: em função de quê propriamente que os casos caminharam para finais satisfatórios, em que as crianças conseguiam sair das posições patológicas em que se situavam? Miller (2007) lembra que, certa vez, quando viu Rosine se reencontrando com Lacan, (psicanalista que acompanhou Rosine), disse a ela que naquela época (dos atendimentos), ela não podia se enganar. Este ponto sublinhado por Lacan parece ser relevante, na medida em que Rosine não recuou diante do real da clínica.

Escolhemos para o trabalho não discutir o autismo nem a psicose em crianças, mas o primeiro caso operado por Rosine Lefort, o "caso Nádia ou o espelho", criança que fez caso para Rosine, que se situava numa condição considerada "de hospitalismo" (Spitz, 1979). Deste, também fizemos caso pois, mesmo diante de tantos outros importantes e interessantes, buscamos ver o que fez ato, o que inaugurou uma nova contagem, a fim de articular o tratamento efetivamente realizado aos princípios do ato analítico e da direção da cura demarcados por Lacan (1998, 2003 e 1967-68a, inédito).

O caso "Nádia ou o espelho" (Lefort & Lefort, 1984) aconteceu quando a psicanalista participava de uma pesquisa coordenada por Jenny Aubry sobre o hospitalismo na Fundação Parent de Rosan. Nesta instituição pública francesa, crianças ficavam temporariamente morando neste lugar, porque se encontravam privadas ou impossibilitadas dos cuidados de seus responsáveis. A menina Nádia tinha apenas treze meses quando Rosine decidiu atendê-la. A criança se encontrava em posição quase catatônica e, sem movimentos, ficava a maior parte do tempo assentada na cama, sem brincar, demonstrando retardo psicomotor também quanto à preensão de objetos. Nádia foi para a Instituição desde os dois meses de vida, devido a problemas de saúde de sua mãe (uma tuberculose), que a impossibilitava de cuidar da criança. Desde que Nádia chegara à fundação, as enfermeiras afirmavam que a menina só se alimentava diante de insistência, sem demonstrar qualquer prazer. Não suportava muitas manipulações corporais, chegando a virar os punhos para trás quando alguém demonstrava que iria pegá-la. Quando decidia pegar algum brinquedo, logo desistia e, com um destrave das mãos, largava-o. Já havia sofrido com diarreias e passado por cirurgias de otites agudas. Para a autora, Rosine Lefort, este caso foi seu primeiro atendimento de cunho psicanalítico. A partir disto é que passamos à análise do caso, propriamente dito, buscando localizar em que ponto tal intervenção pode ser cunhada como psicanalítica.

Diante do quadro clínico de Nádia, seu tratamento, para Rosine Lefort, visava trazer uma nova vivacidade à criança por meio de um acolhimento, distinto ao do materno, mas que exercesse a função de não deixar a criança só na imparcialidade e/ ou na hostilidade de cuidados. Para isso, como foi posteriormente articulado, seria preciso tentar fazer uma amarração do real aos outros registros, do imaginário e do simbólico, operando uma mutação deste real em significante (Lefort & Lefort, 1984, p. 267), ou seja, permitindo a simbolização na construção de uma imagem corporal delimitada, de modo a oferecer sentido à condição do infans, incluindo a criança no campo social, considerando-a, portanto, um sujeito. Em nossa releitura, entendemos que o tratamento teria operado também uma operação de Retificação do Outro, o que significa um posicionamento menos invasivo e não impositivo do agente do Outro (no caso, Rosine) diante de uma criança em condição de extremo mal estar quando em contato mínimo com seus semelhantes.

Rosine Lefort afirmou que o atendimento à criança Nádia aconteceu, sobretudo, pela transferência estabelecida, dela para com a criança e desta com ela e pelo saber inconsciente que se impôs. Tal confissão coloca-nos uma questão: como diferenciar uma consideração psicanalítica do inconsciente de uma mera intuição, ou seja, como distinguir um tratamento orientado pela psicanálise de uma prática intuitiva (que poderia estar voltada a uma posição maternante ou filantrópica)? A psicanalista não afirma ter agido sob a égide da intuição, antes, pelo saber inconsciente e pela transferência, mas como a teoria psicanalítica permitiria localizar esse "saber inconsciente que se impôs"?

Esta questão nos parece relevante na medida em que encontramos, ainda hoje, muitas práticas com bebês, no âmbito da psicologia, pouco discernidas quanto à sua direção teórica. No estatuto destas práticas reconhecemos o que Canguilhem (1966) denominou como mistura de, "uma filosofia sem rigor, uma ética sem exigência e uma medicina sem controle" (p. 76). Por outro lado, se constatamos com Lacan (1967-68, inédito) que uma prática não precisa ser esclarecida para operar, podemos considerar que a verdade do inconsciente que ela desvela pode ter sido num primeiro momento uma intuição. Afinal, na medida em que inventar não se reduz a imaginar (Lacan, 1975, RSI, 11 de fevereiro de 1975, inédito), a intuição de Rosine teve um caráter de invenção posteriormente esclarecida e verificada pela teoria psicanalítica como da ordem do saber inconsciente e da operação transferencial. Parece-nos que a origem da confusão, entre práticas intuitivas e prática psicanalítica, refere-se à dificuldade em explicitar teoricamente a homologia das posições do clínico e do agente primordial. O agenciamento do Outro exercido pela mãe no exercício da função materna não pode ser negligenciado na clínica com bebês, ocasião em que tal agenciamento é essencial para a emergência do sujeito.

 

O agente primordial no processo de constituição de um sujeito: a função materna

Há, na relação mãe-filho, uma relação de amor, assim descreve Freud em À guisa de introdução ao narcisismo (1914/2004), em que a mãe direciona sua libido para o bebê de acordo com o que lhe faz falta, em outros termos, de acordo com o seu ideal do eu. A escolha de objeto para amar faz referência a aquilo que se é, ao que se foi e não se é mais, ou pelo que não teve e gostaria de ser, amando aquilo que falta ao eu para alcançar um ideal ou, ainda, se tornando parecido com aquele que fez parte do narcisismo primário infantil. A mãe pode fazer alguns desses movimentos. Na verdade, para Freud (1932/1976), o narcisismo materno fará um último movimento no qual tentará cobrir sua falta fálica localizando, em seu lugar, o filho, operando um caminho de uma equivalência simbólica.

Bergès e Balbo (2002), a partir de Lacan, localizam no transitivismo: a função de julgamento de atribuição e a suposição que se transmite numa direção, do agente materno ao infans. Logo nos primeiros contatos entre eles, a mãe faz deduções particulares ao que acontece ao ser em sua condição de não-falante. Tal movimento funciona como um "mal necessário", pois será ele que permitirá ao neonato começar a localizar seu corpo e suas manifestações, pelo que apreendeu dessa função. Desse modo, a criança começaria a se localizar tentando discernir suas sensações corporais, denominando-as como dor, sede, sono, fome, tristeza, alegria, frio, calor, medo... O fato de a mãe ter traduzido um dia tais sensações é o que, posteriormente, será feito pela própria criança, que poderá se identificar e aprender o transitivismo para depois repeti-lo. Vemos essa repetição quando uma criança cai e chora e a outra faz um "ai" e até mesmo chora, hipotetizando, pelo afeto, o que teria sofrido.

Vale lembrar com os autores, que o transitivismo é também o processo que a mãe engaja quando se endereça ao filho fazendo a hipótese de haver nele um saber, em torno do qual seu endereçamento vai circular e lhe retornar sob a forma da demanda que ela supõe ser aquela de uma identificação de seu filho ao discurso que ela tem dele. O processo passa necessariamente pelo corpo, pois ele está engajado numa experiência. O corpo pode ser o lugar da receptação pela qual o mundo toma forma e consistência para a criança. Esse acesso ao simbólico que representa a identificação do filho ao discurso da mãe concerne o corpo que não é somente corpo imaginário mas também corpo de linguagem que foi levado a entrar de bom ou mal grado no campo da fala.

Nesta relação transitivista do agente materno com o infans será preciso ter espaço para o equívoco nesses julgamentos, senão não é possível haver o surgimento do sujeito desejante, sujeito singular. O equívoco é condição da linguagem, pois ela só funciona por deslizamentos significantes, pela produção de novos significados. A psicopatologia pode ser o resultado da ilusão de não haver o equívoco, o engano, quando só há lugar para a certeza, ou seja, quando o agente materno se posiciona como um ditador, um sabe-tudo. Ao contrário, quando o agente do Outro primário aparece como é na verdade, isto é, como não-todo, marcado pela falta, do lado do sentido e também do não-saber, permite à criança localizar-se a partir da marca desse não-saber (que pode ser algo não dito, mas que transmitiu um desejo passível à leitura da criança), o qual denota o elemento terceiro a que o agente materno também está submetido: o Outro, o seu inconsciente. É assim que a criança pode imprimir ao laço com a mãe algo que ultrapassa o saber do discurso maternante, discurso que é carregado por expectativas concernentes ao ideal social, mas que também revela o inconsciente da mãe-mulher.

Então, através da imputação dos sentidos ao que o organismo sofre, a função da maternagem organizará e regulará o puro ser, inserindo-o na linguagem, numa história, distinguindo, mapeando, enfim, libidinizando-o (Vorcaro, 1999). Tendo isto como perspectiva é que Melman (1985) propõe o uso do termo "Outro-erotismo" no lugar de autoerotismo, já que o corpo da criança é libidinizado pelo Outro, representado na origem pelo agente materno.

Na localização simbólica de um lugar, o infans é convidado, seduzido a existir como sujeito idealizado. O transitivismo maternante, faz uma aposta que supõe e antecipa um sujeito. Ao tentar traduzir as manifestações da criança, a mãe presume existir ali um ser de desejo. Ela responde ao grito do filho e longe de engolfálo num saber absoluto que o localizaria como objeto, o exercício maternante permite não só a dependência que orienta o laço do bebê, mas também, a dúvida e a possibilidadede aí se inscrever. É o que permitirá advir, aí, um sujeito. Ao oferecer um campo simbólico acolhedor e contido de significantes, o agente materno diz o que o ser é antes de ele poder dizer "eu sou" (Lacan, 1998). A mãe funciona como um órgão extracorpóreo da criança, pois responde às suas urgências vitais com o que decide por ela, implantando uma ordem simbólica que regula a economia do organismo. Ele passa a obedecer aos signos pressupostos pela mãe e sua constituição subjetiva poderá ocorrer (Vorcaro, 2007). Mas, isso dependerá de o agente materno ser desejante.

A mulher na condição de mãe reverá a mãe que teve, bem como a filha que foi. Ela, em condição de falta-a-ser, poderá assumir-se muito poderosa tendo a posse de um filho, ou ainda ao contrário, poderá ver-se impotente. Ser mãe, portanto, diz muito do que ficou inscrito no complexo de castração e sobre como um dia, quando menina, foi vivenciado e enfrentado o encontro com a castração materna. Tendlarz (2002) atenta que cada mulher se situa na maternidade de um modo: aceitando-a, recusando-a ou procurando-a a qualquer custo. Tais modalidades nos mostram nas psicopatologias, principalmente, como esse re-encontro com o real entre, agente materno e bebê, pode ser devastador para ambos.

Lacan (1992) situou a mulher numa posição de Outro, num lugar de alteridade não ocupada com o filho nem com o homem, mas barrada, Outra. Ele dividiu a mãe entre aquela de quem se fala, como objeto do filho, e a mãe que fala, como sujeito desejante, barrado. O desejo da mãe, neste contexto, é limitado, como a evidência do desejo da mulher na mãe. Desse modo, "a bocarra do crocodilo" não se fecha engolindo o filho, a operação da metáfora paterna está ali impedindo que a boca se feche (pp. 73-4). Há casos em que a boca da mãe se fecha. No infanticídio, no abandono, quando a mãe aparece como toda, como A Mulher, num gozo sem limites. Essa posição da mulher exclui a criança de sua série psíquica, pois se situa num alhures insondável.

É com a inscrição fálica que a criança pode se situar, porque sem isso, haverá riscos à sua constituição. É o desejo materno, portanto, que permite sua fundação. A criança para sobreviver depende de ser falicizada, libidinizada e inserida num campo de desejo subjetivo. Mas, é preciso uma certa presença da lei que impeça à mãe se situar só do lado fálico, é o seu lado mulher. A criança diante da mãe tentará decifrar o enigma materno colo-cando-se ora identificado a ela, ora interrogando o que será esse Outro materno. Assim, em meio a esse barro do desejo materno que lhe envolve, a criança buscará traduzir o que ela significa diante deste Outro materno por meio de cifragens que configurem sua existência.

Com Rosine Lefort, foi possível ver que o seu desejo em tratar é que parece ter permitido o funcionamento da transferência e a experiência de uma prática. E, mais que isso, a sua presença foi muito o de suportar tudo o que envolve e requer um cuidado com crianças pequenas. Ao supor a presença do sujeito pulsional, sua intervenção foi a de operar com a linguagem, permitindo à criança fazer novas ligações, mas supondo agir com a presença do desejo do Outro simbólico.

 

As intervenções de Rosine Lefort com Nádia

A condução do tratamento da menina Nádia foi a de supor – por princípio – um sujeito, localizando-o, reconhecendo-o e, mais ainda, engajando-o na concatenação significante, de modo a estender suas manifestações incipientes. Logo no início, Rosine Lefort observou naquela menina a existência de um "olhar vivo". Esse olhar, vivo, foi suficiente para que Rosine o transpusesse ao registro da certeza de presença de um sujeito desejante, sobre o qual iria desencadear o tratamento. Tal marcação, nomeação para além do nome próprio, portanto, denotou o início do tratamento de um sujeito: Nádia. Com a disponibilidade de acolhimento deste sujeito, explicitada pela presença ativa de Rosine, Nádia sai de sua imobilidade e começa a se movimentar, com curiosidade e vivacidade próprias de crianças saudáveis. Por se encontrar numa situação de risco não apenas subjetivo, mas de já estar sofrendo danos ao seu desenvolvimento cognitivo e motor, a presença endereçada de Rosine logo fez surtir efeitos positivos fazendo com que Nádia demonstrasse um movimento distinto da posição em que antes se encontrava.

A relação entre os efeitos da submissão da criança à linguagem pela via da presença do agente do Outro, permitem configurar a formação do inconsciente e o desenvolvimento do ego, na medida em que promove a separação homogeneizadora, a que a criança esteve submetida até então na instituição, por promover a constituição subjetiva. Rosine Lefort considerou que Nádia era um sujeito desejante e ao fazer essa suposição, ela inscreveu uma marca antecipatória no bebê, localizando-o num lugar distinto ao das outras crianças e da condição a que estava submetida. Isto porque, assim Rosine demarcou, com seus atos de fala, a antecipação ea confirmação da existência de Nádia, ou seja, fala que reconhece e articula as manifestações corporais da criança. Esse posicionamento de Rosine evidenciou, também, a apresentação de uma maneira distinta de se dirigir à criança, de um modo menos invasivo, pois se apresentou sem determinações fechadas por um saber prévio, demonstrando também um olhar interrogativo à criança e à sua existência. Houve, então, a delimitação inicial de um saber duplamente suposto: a reciprocidade entre Rosine e Nádia na vertente escópica.

A demanda numa via dupla, de um Outro ao outro, vem num segundo tempo. Com Soler (2007), pensamos que há primeiro um olhar como oferta específica que antecede a formulação de uma demanda. Na a aposta de existência de um sujeito, ou de que ele pode surgir, configura-se a concreta existência de um sujeito, antecipando-o, porque a criança ao responder à intervenção, numa primeira solicitação distinta e endereçada do Outro, (ao pedir pela mamadeira), denotou a marcação de um traço significante que, num segundo momento, demonstrou a passagem do mal-estar, do congelamento, à uma demanda.

Assim, quando a menina reclama sua mamadeira pela primeira vez à enfermeira, e daí por diante inicia jogos de dar e tomar com Rosine, esse já é o só-depois, de um segundo tempo que marca o encontro Rosine-Nádia: na demanda. A transferência, na colocação pela analista de um saber suposto ao não duvidar da presença de um sujeito vivo, ou seja, que se encontra inserido numa lógica, faz antecipar um sujeito antes que ele mesmo se localize. A suposição de saber sobre a criança, quer dizer, sujeito em porvir passível de uma "leitura", é que permitiu a entrada da criança na demanda. Rosine oferece um olhar dirigido (o qual a fisgou antes, ao ver um olhar na criança) que faz com que a menina retorne esse movimento pulsional numa resposta, outro olhar, e com esse encontro de olhares, faz desdobrar o movimento pulsional para outros objetos.

Partindo do ponto de que um bebê não fala, sua língua pátria, ele precisa de um intérprete, um interlocutor. Diante disso, se pergunta: "Como um bebê pode pedir por um tratamento?". É o cuidador que exerce a função materna e que virá estabelecer uma demanda na criança pela denominação de seus atos como inseridos numa lógica. Na medida em que o adulto lê, interpretando o estado da criança, para tentar produzir significações e objetos capazes de apaziguála, a criança é inserida na ordenação lógica da linguagem, representada entre os significantes a ela oferecidos como "respostas". É esse ato do agente do Outro primário, que se deixa afetar por esse pequeno ser que permitirá localizar e fundar um sujeito como efeito de significações.

É quando o significante aparece no lugar do vazio do real que a linguagem começa a funcionar em substituições: por meio da denominação de um apelo da criança e com a resposta da analista pode-se fazer uma marca, como a própria autora localizou (Lefort & Lefort, 1984c, p. 32). Na sessão, a psicanalista supôs que a criança fez uma demanda ao Outro quando reclamou sua mamadeira à enfermeira na noite anterior. Ela, então, atendeu ao apelo e a criança tomou a mamadeira também na sessão. Nádia respondeu com um balbucio, em um "mamama", pela primeira vez. A analista carregou o bebê no colo e fez um ninar. Nádia a olhou, passou as mãos em seu rosto, "apaziguada", envolveu seus braços ao redor do pescoço de Rosine, apoiou sua cabeça na dela e balbuciou novamente, "mama-ma". Para a analista, a criança estava à espera do Outro (Lefort & Lefort, 1984, p. 271), um que a acolhesse e trouxesse o simbólico sob o real.

Rosine Lefort, assim, acabou promovendo o estabelecimento da demanda quando, atenta aos atos de Nádia, entendeu a importância de reconhecer um apelo ao Outro pela mamadeira. Ela permitiu à Nádia se situar como sujeito que apela por algo. Vemos, portanto, duas vias: do Outro que pede, e da criança que também pede algo que lhe falta e pode encontrar no Outro uma resposta. Este é o lugar próprio da demanda oral: a demanda de ser alimentado. Lacan (1992, pp. 201-3) esclarece que a enunciação da demanda, por ser uma fala, evoca e atrai uma resposta invertida: "por força da estrutura significante à demanda de ser alimentado" há uma resposta em "deixar-se alimentar" pelo Outro. Manifesta-se aí um transbordamento do desejo na demanda. No fundo deste desejo na demanda oral, o que encontramos nada mais é que o desejo libidinal, em que o sujeito deseja não só se alimentar do pão, mas também deseja beber do corpo daquele que o alimenta. A demanda se configura como o desejo invertido.

É pertinente o cuidado do adulto que se propõe a tratar de crianças, principalmente daquelas que se encontram em condições de raso cuidado parental ou institucional. Rosine Lefort (1984) afirmou que em suas intervenções com Nádia, ela a seguia de perto ou a precedia de pouco, não manipulando demais o corpo da criança, nem a beijando ou a acariciando de modo insuportável. Dessa maneira, buscava permanecer atenta quanto aos seus próprios atos, mostrando-se ativa – ao ver, por exemplo, que a sua mobilidade na cena poderia promover uma mobilidade na criança, como ao sair da posição de observadora, sentada numa cadeira, para interagir com a criança no chão – já que a menina, aos poucos, dava mostras de permitir sua aproximação gradual.

O cuidado tomado por Rosine também se dirigia à criança quando a psicanalista iria deixá-la, no fim de uma sessão. Nunca a deixava sozinha, mas sempre com outro adulto, ou na cama do quarto da criança. Antes de sair, tomava a criança no colo e lhe explicava de modo terno e afetuoso que iria embora, mas retornaria no outro dia, (Lefort & Lefort, 1984), instaurando e demarcando, dessa maneira, um movimento simbólico de presença-ausência apostando que assim a criança poderia suportar mais a ausência concreta do adulto com a inscrição pela criança desse movimento.

Este cuidado de Rosine se estendia também aos objetos (como a mamadeira, o prato de mingau), à maneira como falava com a criança, ou mesmo quando limpava ou calçava Nádia antes de levála à sessão, como modo de demonstrar um cuidado. Isto representava carinho e presença de um Outro acolhedor, um Outro menos invasivo e tratado, distinto daquele que só queria obrigar a criança a satisfazer uma necessidade, forçando-a a se alimentar e depois abandonando-a em seu leito. Entendemos que este funcionamento de Rosine Lefort em relação à criança e os objetos usados nas sessões significavam, sobretudo, a circulação de um cuidado do agente em posição de Outro. Rosine assim nos diz que, "passando progressivamente da mamadeira aos objetos dos quais sou portadora, ela liga a mamadeira à minha presença e a toma olhando para mim. Então, de uma relação de exclusão, ela passa, por este olhar sobre mim, a uma relação de inclusão." (Lefort & Lefort, 1984, p. 38). Aqui, podemos pensar, que neste cuidado há o Tratamento do Outro.

Quando a criança se mostra reticente à presença de qualquer pessoa, demonstrando um posicionamento de defesa e, ao mesmo tempo, um congelamento, uma alienação, na medida em que não consegue se desenvolver, há que se pensar que nestes casos é o campo das trocas em que um Outro advirá que teria de ser tratado. O Outro da criança é efeito não propriamente do semelhante, mas da lógica da relação que se estabelece entre esta e o outro, o semelhante. Este tratamento do Outro significa, portanto, permitir à criança o acesso a novas configurações da alteridade que lhe permitam reinventar um distinto Outro, apresentado a ela, não apenas em sua brutalidade maciça (a que a experiência da criança se restringira), mas também e especialmente de modo não invasivo, que apresente o campo das possibilidades da linguagem, da inclusão do equívoco e da criação, enfim, um Outro propriamente simbólico. Rosine Lefort parece ter tomado este cuidado ao se aproximar das crianças com as quais se dedicou no empreendimento de um tratamento.

Para Rosine, Nádia estava alienada ao Outro, sob o âmbito do imaginário e do real, mas sem o enlaçamento simbólico. Isto provocava ora fascinação pelo outro (uma criança sendo manipulada deixava Nádia com um olhar fascinado), ora recusa (com a chegada próxima de qualquer pessoa, ao esticar os braços e fechar os pulsos para não ser carregada). Rosine Lefort entendia que Nádia confundia o semelhante com o Outro, pois não havia a instauração do terceiro, simbólico e não só real ou imaginário. Na relação imaginária, a criança se situava numa linha sem diferenciação do outro e do Outro. É importante frisar, contudo, que Rosine considera que é a partir dela mesma enquanto pequeno outro que ela pode apresentar o Outro simbólico, que ela também encarna (Lefort & Lefort, 1984, p. 41).

A psicanalista marcou a inscrição de um significante que para ela funcionou como um reinício, na abertura de um novo trilhamento. Assim, quando Nádia (Lefort & Lefort, 1984, p. 48) nas sessões precedentes até o fim do tratamento demonstrou desejo em ser carregada, ao pedir por colo, ao se esforçar para se locomover, ao balbuciar, enfim, apresentando-se interessada no mundo externo, ela demonstrou ter se reenlaçado ao Outro simbólico. Talvez tenha sido por meio da presença de um desejo dirigido, desejo do Outro, encarnado na psicanalista Rosine Lefort, que parece ter operado a inclusão da criança no campo do desejo através do seu desejo Outro. Se a criança pode demandar é porque ela já incorporou a demanda do Outro, que a desejou antes.

O desejo da analista surgiu no tratamento como elemento importante ao seu andamento, de modo que ele permitiu a vinculação da criança e a instauração da transferência. Rosine Lefort (1984, p. 44) confirma que "de onde eu falo; por aí, eu digo-lhe o meu desejo". Talvez ela tenha funcionado como suplente do Outro Primário, ao instaurar o simbólico, permitiu ao sujeito em constituição sua entrada no campo da linguagem e no funcionamento significante.

A psicanalista inclui a criança no simbólico e esta consente ao seu chamado numa resposta que confirma a sua presença. Com a passagem do real à metonímia, pela ligação entre os significantes, há a promoção de um Eu arcaico, na medida em que a criança começa a funcionar de modo organizado, dirigindo-se à psicanalista, a outros adultos e crianças de forma distinta, brincando, balbuciando e esboçando novas palavras, enfim, demonstrando indícios de estar funcionando dentro de uma lógica na linguagem, circulando de modo interessado em relação a si e ao mundo. Rosine Lefort (Lefort & Lefort, 1984) observou em Nádia, no final do tratamento que, "seu riso e seu desembaraço dizem bastante que ela não está mais tocada pela imagem do pequeno outro que a fascinava; pois agora, ela tem sua imagem, seu 'eu'." (p. 173).

O processo final do tratamento de Nádia denotou para Rosine uma passagem da criança pela fase do espelho, momento de assunção do sujeito e consentimento do simbólico e da castração. Mas, como vimos, houve todo um caminho percorrido antes do estádio do espelho que, na verdade, consideramos ter sido de extrema importância para a criança começar a se desenvolver. Ao final, então, Nádia brincou dando pulos no colo da psicanalista, gritinhos e balbucios de alegria de tal forma que a psicanalista teve a impressão de que a criança renasceu.

A psicanalista demonstrou toda a sua ternura e cuidado com a criança, não a abandonando ou a deixando em condições consideradas por ela indignas para um sujeito, ainda mais um em condição de renascimento e de transformação. Segundo os relatos, Nádia demonstrou liberdade de ação nas brincadeiras, interesse, criatividade e alegria, revelando esta tranquilidade em bom sono, na alimentação, sem que as enfermeiras tivessem que insistir ou forçar, ao contrário, elas relatavam que a criança estava sempre ativa e animada, brincando com outras crianças e conseguindo ficar com outros adultos. Deste modo, se adaptou a nova vida diária de ir ao Jardim de Infância, convivendo com muitas crianças de diferentes idades e com outros adultos. Se ligou, por fim, a uma enfermeira, em especial, tendo ela como referência na instituição em que vivia.

O tratamento de Nádia, portanto, passou por: retificação do Outro, o qual permitiu um processo de separação de um Outro invasivo pela construção de um Outro tratado, inscrição do Outro Simbólico, a circulação do sujeito na linguagem, amarração do terceiro tempo pulsional e, a suplência do Outro Primário, que não deixou de denotar certo agenciamento de uma função materna.

 

A distinção entre intervenção psicanalítica e maternagem: o ato psicanalítico

Ao permitir aberturas significantes, localizando alguns, mas sempre com a intenção de deixar a criança desdobrar os significantes, concedendo a ela a possibilidade de se encontrar em algum lugar na enunciação, talvez isto efetue a possibilidade de a criança conseguir dizer de si, do outro, saindo da alienação a que estava fixada para um local separado do lugar de gozo e invasão a que estava submetida. Isto seria um ato analítico com crianças: um ato que permitiria uma abertura, um franqueamento, um engajamento da criança ao Outro simbólico, e assim, do laço social. O que o ato promove é uma defesa do sujeito diante do Outro (Lacan, 1967-68, inédito). Metaforizando sua posição, ele se separa do querer do Outro. Assim, o sujeito substitui sua condição de um lugar ao outro colocando o seu querer em pauta de modo distinto ao da condição de objeto a que estava suposto, ainda que algo do Outro fique retido. Esse corte operado do analista à criança e sua condição permite, por conseguinte, que ela faça um corte no Outro em que se ligava.

A psicanálise institui, portanto, um ato em um fazer, porque opera em uma estrutura lógica que é o funcionamento inconsciente. O fazer do psicanalista, segundo Lacan (1967-68, inédito), se insere no campo da palavra e da linguagem, por isso se aproxima do ato, na medida em que coloca o significante em ato (p. 122). O psicanalista se autoriza a efetuar um ato quando maneja a transferência, pois fora dela não pode havê-lo. Nesta trama é que se desenvolverá a transferência e com um corte, por meio de um apontamento ou a marcação de algumas palavras, tal ato pode configurar um efeito de interpretação, em que se verificariam seus efeitos só no a posteriori, num só-depois.

Tendo em vista as operações realizadas na "Clínica de Rosine" pensamos que elas se caracterizaram a partir do ato analítico, no sentido de promover um movimento de mudança na criança que se localizava em posição de aguda alienação. Lacan (2003a) apontou que mesmo uma criança em posição autística se situa na linguagem, ainda que fixada, não se representando por um significante e nem sendo barrada por ele, mas ocupando um lugar de gozo do Outro (em a, por exemplo). Portanto, um ato que promova uma separação da criança a este lugar de gozo é um ato analítico, pois permite a saída da criança de um lugar como objeto no fantasma do Outro ou como sintoma que supre uma falta aos seus cuidadores, permitindo-a inventar um "eu sou" e um distinto Outro para si, se reenlaçando ao social de modo diferente.

Rosine Lefort se posicionou, para nós, num lugar de: não-saber do seu lado e de supor um saber do lado da criança. Talvez tenha sido justamente isso, a despeito de qualquer teoria, que permitiu o desprendimento da criança da condição a que estava concernida. Acreditamos que Rosine soube efetuar um trabalho duplo: de não ser invasiva, suportando a indeterminação do sujeito sem a ele se predizer, mas ao mesmo tempo, de franquear a antecipação de um sujeito por um ato próprio a este, supondo na criança a presença de uma lógica e um saber.

Frequentemente, confunde-se, na análise com crianças, a direção da transferência e o posicionamento do psicanalista. Porge (1998, pp. 7-19) nos esclarece de forma perspicaz que a transferência nesta clínica é para os bastidores, ou seja, é indireta. A criança precisa de alguém que lhe permita formular seu sintoma, sua neurose, precisa de outro lugar para falar. O discurso das crianças é falado como "para um bom entendedor...".O queo psicanalista vai fazer é tentar restabelecer a transferência da criança com pessoas que, no início, mostraram-se inaptas a compreender as suas mensagens, ocupando um lugar de receptor das tais mensagens. O problema que chega ao analista acontece quando uma destas pessoas que a criança tem com referência, não sustém estas mensagens. Há, então, uma quebra na transferência, de modo que estes receptores das mensagens não conseguem mais suportar ouvir o que lhes é dirigido. Por isso, procuram o psicanalista, pois além de não entender mais o que lhes é dito, a posição de saber que ocupavam ficou comprometida. Tais mensagens, entretanto, se dirigiam ao sujeito suposto saber na relação e não propriamente à pessoa concreta na figura dos cuidadores.

O grande equívoco sobre esta questão da transferência na análise com crianças acontece quando confunde-se neurose comum, como do adulto, e neurose de transferência na dissolução do problema. Na clínica com crianças, segundo Porge (1998), a neurose comum é a de transferência, em que a criança se encontra em pleno momento de constituição do seu sintoma. Então, a sua neurose já é a de transferência. O autor elucida que, "é igualmente uma transferência indireta, contemporânea do estabelecimento de um lugar da transferência para um dos pais, no momento mesmo em que este último falha. O analista vai permitir que a neurose de transferência se desenvolva e que seja tolerada pelos que a rodeiam." (p. 15).

O psicanalista sustenta uma posição de sujeito suposto saber, no entanto não confunde sua posição com a dos pais. Ainda que em alguns casos seja importante exercer suplência do Outro primário, efetuando um agenciamento da função materna, a sua função não se confunde ou se limita a isto. Como vimos, o sujeito suposto saber é apenas um terceiro no fenômeno da transferência, que ocorre de um outro ao Outro. Portanto, o psicanalista faz uso da transferência e sustenta o lugar de sujeito suposto saber, mas não se encarna como o saber último. A finalidade é a de restabelecer o laço que estava partido no seio familiar e no campo social, e não substituir ou equivaler sua posição com a dos pais nesta dinâmica.

 

Para concluir

O trabalho de Rosine Lefort evidenciou a psicanálise em extensão, ou seja, uma prática além dos consultórios, prática que tem sua base na teoria psicanalítica, não se confunde com psicoterapias ou psicologias e que a cada dia tem se expandido mais. A clínica com crianças talvez exija ser considerada assim, além do consultório, porque se trata de sujeitos em constituição. Ainda que consideremos a singularidade da criança, ela depende de outros discursos e de outros campos sociais de circulação para se desenvolver (atualmente, práticas de acompanhamento terapêutico tem demonstrado isso). Com este tratamento, corrobora-se a ideia de que muitas vezes não é possível desenvolver um tratamento restrito só a consultórios, como nos casos de crianças internadas em hospitais, vivendo em orfanatos, dentre outras questões, que no caso a caso nos colocam a pensar sobre a validade de manter uma criança por longo período de tratamento no consultório: será que não se correria o risco de restringir a criança ainda mais?

O ato do psicanalista na clínica com crianças pequenas pode se aproximar ao de um agenciamento da função materna, quando: opera supondo um sujeito pelo caminho de acolher a criança no discurso e no desejo, fazendo traduções simbólicas que antecipe a configuração de um "eu sou" na criança, engajando-a num saber a fim de permitir o desenvolvimento do seu funcionamento subjetivo, e por isso também, cognitivo, enlaçando-a no social. Entretanto, sua posição jamais se engana em substituir o par parental.

Então, há que se pensar que na clínica com crianças pequenas, faz-se preciso a presença de uma intervenção Outra, tratada, que suporte que o pequeno paciente seja situado em algum lugar da economia psíquica e do desejo do analista. Desta feita, haverá o empréstimo de linguagem, de traços e cifras à criança, o que não significa fazer da clínica um lugar em que a presença da fantasia do sujeito do psicanalista se sobreponha à construção da fantasia da criança. Reconduzir a criança a uma herança simbólica para que depois, enquanto sujeito constituído possa fazer algo próprio com isto, é o grande feito. Isto é o que achamos ter constatado com Rosine Lefort, em sua grande caminhada.

 

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Recebido em abril/2010
Aceito em junho/2010

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