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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.15 no.2 São Paulo Dec. 2010

 

ARTIGO

 

O manhês: costurando laços

 

The maternal language: forming the initial ties

 

Lo "manhês": cosiendo lazos

 

 

Mariana Moreira de Souza PierottiI; Lidia LevyII; Silvia Abu-Jamra ZornigIII

IPsicóloga, pesquisadora do núcleo de pesquisa em relações objetais precoces da PUC/Rio de Janeiro. maripierotti@hotmail.com
IIProfessora do Departamento de Psicologia da PUC-Rio de Janeiro, psicanalista da SPID e da SPCRJ. llevy@puc-rio.br
IIIProfessora e supervisora do Depto. de Psicologia da PUC-Rio de Janeiro, psicanalista, presidente ABEBE. silvia.zornig@terra.com.br

 

 


RESUMO

Neste trabalho, partimos da forma particular de comunicação existente entre a mãe e o bebê denominada de "manhês". Ressaltamos a importância da musicalidade da língua materna, dos diferentes tipos de comunicação não-verbal. A força libidinal das palavras utilizadas, mais do que seu conteúdo, marca a criança e dá sentido às suas manifestações. Considerando que o exercício da função materna não é necessariamente realizado pela mãe biológica, nos perguntamos como crianças, institucionalizadas precocemente, são marcadas ou não pela voz de seus cuidadores.

Descritores: manhês; comunicação não-verbal; função materna.


ABSTRACT

The paper intends to discuss a particular form of communication between the mother and her baby, entitled "motherese". The paper emphasizes the different forms of non –verbal communication established between the mother and the baby, particularly the music of the maternal language. The baby is initiated into the different modes of interaction through the mother's affective responses, more than from the content of her discourse. Considering that the maternal role is not always carried by the biological mother, one of the questions of this paper refers to the possibilities of emotional development of institutionalized infants and children.

Index terms: motherese; non-verbal communication; maternal role.


RESUMEN

En este estudio, hemos partido de la manera peculiar de comunicación que existe entre madre e hijo recién nacido llamada de "maternés". Hemos destacado la importancia de la musicalidad de la lengua materna, de los diferentes tipos de comunicación no verbal. La fuerza libidinal de las palabras utilizadas, más allá de su contenido, destaca al niño y da sentido a sus manifestaciones. Considerándose que el ejercicio de la función materna no es necesariamente cumplido por la madre biológica, nos preguntamos como niños, institucionalizados precozmente, son marcados o no por la voz de sus cuidadores.

Palabras clave: "maternés"; comunicación no verbal, función materna.


 

 

A importância das relações objetais precoces na constituição do psiquismo da criança tem sido enfatizada pela teoria e pela clínica psicanalítica, principalmente por relacionar a necessidade da presença de adultos em função de pais ao processo de desenvolvimento do infante. Apesar da teoria freudiana não ter priorizado uma concepção mais detalhada sobre os primórdios do psiquismo, autores pós-freudianos ampliaram e desenvolveram noções fundamentais que nos permitem refletir acerca das relações estabelecidas na primeira infância, especialmente aquelas que têm como referência a noção de sustentação, continência e interações afetivas não verbais.

Diversos aspectos presentes na troca afetiva entre aquele que exerce a função materna e o bebê merecem um estudo; entretanto, destacaremos neste trabalho o papel especial atribuído à voz materna ou à voz de quem exerce a função materna. Com este intuito, relataremos uma experiência cujo foco foi observar a forma de comunicação utilizada pelas funcionárias de uma instituição diante dos bebês que estavam sob seus cuidados.

Consideramos que o bebê deixa-se seduzir pelos elementos dinâmicos da fala da mãe, não pelo conteúdo linguístico, mas pelos traços prosódicos que esta imprime à sua fala. No início da vida, o bebê precisa de uma presença manifestada pela voz e não apenas na motricidade do corpo-acorpo, precisa que a voz lhe seja destinada. Assim é que Dolto (1998) enfatiza que ele estará em perigo, caso não possa agarrar-se a sequências de variações auditivas e se prenda a sequências de variações táteis, fixando-se a sensações de necessidades e não desenvolvendo os lugares de percepção de alegria, de desejo compartilhado. Catão (2008) também entende que a voz do agente materno dirigida ao infans não remete a uma comunicação de sentido, mas faz girar o circuito da pulsão oral em torno de um objeto que não é o objeto da satisfação da necessidade. Para a autora, o laço mais primordial com o outro (Outro) é o laço com a voz. Esta se constitui em um dos modos fundamentais da presença da mãe no lugar de Outro. A voz participa da instauração do laço entre a mãe e o bebê ao mesmo tempo em que se constitui como objeto passível de ser contornado pela pulsão. Enquanto objeto pulsional, a voz delimita as bordas que separa o corpo da mãe do que será o corpo do bebê, fundando, a um só tempo, sujeito e Outro.

Winnicott (1945, 1956, 1960), em sua obra, ressalta a dimensão afetiva e não verbal que perpassa as interações entre a mãe e seu bebê, demonstrando como a sustentação física, o manejo do corpo do bebê, a musicalidade da voz materna, funcionam como pontos de referência para o surgimento do psiquismo do infante. O sentimento de ser no mundo baseia-se na continuidade de cuidados e na previsibilidade do meio ambiente, marcadores essenciais para o desenvolvimento do eu e para a estruturação do self. Assim, é por meio dos cuidados maternos que a temporalidade e a noção de espaço vão sendo instauradas na vivência do infante. O bebê precisa viver a ilusão de ter criado os objetos que o satisfazem; ilusão que é a base para o desenvolvimento da criatividade, possibilitando ao sujeito transitar num espaço potencial, entre o interno e o externo, um espaço transicional. A capacidade de ilusão do bebê se dá com a ajuda de um outro, que lhe mostra o mundo num formato compreensível e de um modo adequado às suas necessidades.

Bion (1962), por sua vez, indica que a mãe atua de forma a metabolizar e transformar experiências brutas em elementos psíquicos. O conceito de rêverie indica a capacidade da mãe de abrigar, conter o bebê, oferecendo-lhe palavras. Ela o acolhe com sua capacidade de sonhar, podendo assim fazer um trabalho de metabolização; ou seja, recebe o que vem do bebê, os elementos beta (elementos sensoriais que ainda não sofreram transformação ao nível psíquico), e exercendo a função alfa, uma função transformadora, permite que elementos psíquicos sejam colocados disponíveis para o uso em pensamento. Numa mesma linha de raciocínio, Figueiredo (2007) constata a importância de cuidados que impliquem em fazer ligações, dar forma, sequência e inteligibilidade aos acontecimentos, que possibilitem uma integração em oposição aos excessos traumáticos.

Assim, na primeira infância, as relações afetivas são moduladas pela sensorialidade da experiência, sensorialidade aqui compreendida como uma vivência no corpo, desde que este corpo seja definido como um corpo relacional, marcado pelo outro. Ou seja, os cuidados maternos permitem que as experiências sensoriais façam sentido. Zornig (2008) apoia-se na noção de "afetos de vitalidade", utilizada por Stern (1992), para enfatizar que o bebê sente antes de compreender intelectualmente. A autora destaca que o bebê inicia seu percurso subjetivo através de modalidades afetivas marcadas por uma dimensão de intensidade e não só por seu conteúdo formal, que se diferenciam dos afetos categóricos (alegria, raiva, medo, tristeza). A linguagem, portanto, tem início através de trocas não verbais entre a mãe e o bebê, permitindo-lhe figurar no corpo a história recente desta relação. A unificação de suas experiências separadas é realizada através do "envelope proto-narrativo", uma unidade de base que tem a função de integrar diversas vivências e possui uma estrutura próxima à narratividade (Stern, 2005). Desta forma, o bebê experimenta a potência de um afeto antes de compreender seu conteúdo. Como indicam Golse e Desjardins (2005, p. 18), "o bebê precisa – não saber – mas experimentar e sentir profundamente que a linguagem do outro (e singularmente a de sua mãe) o toca e o afeta, e que esta é afetada e tocada, por sua vez, pelas primeiras emissões vocais dele".

Ao estudar as funções de continente e de transformação das imagens, Levy (2007) percebe o quanto estas fornecem uma ilusão de continuidade psíquica ao bebê ainda indiferenciado. A autora sinaliza que, já em 1897, Freud escrevia que as fantasias originam-se de uma combinação inconsciente de conformidade com determinadas tendências, de coisas experimentadas e ouvidas. Um fragmento de experiência visual une-se a um fragmento de experiência auditiva, transformando-se numa fantasia.

Consideramos, portanto, que a experiência da voz é inaugural e tem um papel primordial na fundação do sujeito. Bentata (2009) sugere que a voz, como primeira experiência, possibilita as etapas oral, anal e o Édipo, que só ocorrem mais tarde. Assim o infans precisa para se nomear, para se subjetivar, transpor a difícil etapa da montagem pulsional da voz, precisa apropriar-se da voz materna e fazê-la sua.

No desenrolar do processo de separação mãe/bebê, observamos a maneira particular como a mãe fala ao filho, forma que adquire matizes diferentes a cada passo desse trajeto, comunicação especial que foi denominada de "manhês" (motherese). Palavras cuja força libidinal marca a criança, palavras que dão sentido às suas manifestações, que serão utilizadas para expressar sua demanda e que, ao mesmo tempo, ajudam em seu movimento de diferenciação.

 

O "manhês"

Um dos elementos constitutivos da função materna é a voz do adulto, o primeiro elemento sensorial ao qual o bebê tem acesso. A fala materna vai propiciar a tentativa da mãe, ou daquele que exerce a função materna, de oferecer sentido, representações às pulsões do bebê. Freud comenta o quanto a audição tem valor primário, ou seja, o que é ouvido é a essência do resíduo mnêmico mais do que o componente visual ou motor da palavra. "Os resíduos verbais derivam primariamente das percepções auditivas, de maneira que o sistema Pcs. possui, por assim dizer, uma fonte sensória especial. Os componentes visuais das representações verbais são secundários, adquiridos mediante a leitura, e podem, inicialmente, ser deixados de lado, e assim também as imagens motoras das palavras, que, exceto para os surdos-mudos, desempenham o papel de indicações auxiliares. Em essência, uma palavra é, em última análise, o resíduo mnêmico de uma palavra que foi ouvida." (Freud, 1996 [1923], pp. 34-35)

Esta afirmação de Freud é muito importante por indicar que a escuta da musicalidade da voz materna tem uma influência decisiva na maneira como ela será metabolizada pelo bebê. Como sugere Dolto (2002, p. 79) "De que ela (a criança) está precisando naquele momento? De um alimento simbólico, isto é, de um elemento auditivo, visual, linguageiro, que lhe explique o gosto e ponha palavras naquilo que ela leva à boca... o verdadeiro elemento transicional para a criança são as palavras". Para a autora, essas palavras têm que estar banhadas de afeto, ou seja, aquele que exerce a função materna precisa investir emocionalmente o bebê. De nada adiantaria falar apenas mecanicamente, é necessário que haja força libidinal nas palavras ditas pela mãe. Ela vai falar com seu bebê na tentativa de dar nomes às suas manifestações, acolhendo-o. Então o bebê chora e a mãe diz: "deve estar com cólica", "está com frio", "deve ser fome", e assim por diante.

Este diálogo entre mãe e bebê chama-se "manhês". É um tipo de prosódia especial que a mãe utiliza quando se dirige ao filho. Qualquer adulto que esteja nesse papel, verdadeiramente investido libidinalmente na criança, irá conversar com o bebê nesse "idioma" especial. A comunicação verbal da mãe com o bebê tem características especiais: "prolongamento das vogais, que a torna mais lenta e sonora, aumento da frequência, que a faz mais aguda, e glissandos característicos que a tornam mais musical." (Laznik & Parlato-Oliveira, 2006, p. 58).

Ao observarmos um adulto conversando com um bebê, não é raro verificarmos sua capacidade de afinar a voz e até mesmo modificar sua postura corporal. Brazelton (2002) comenta sobre a maneira peculiar através da qual os adultos costumam dirigir-se aos bebês, usando uma modulação diferente de voz, não só falando a meia-língua típica das crianças, mas usando ritmos mais lentos e palavras mais simples.

Catão (2008) explica que o manhês convida o bebê a alienar-se no campo da linguagem, fundando um significante mínimo; ou seja, uma matriz simbolizante é implantada pela música da voz do agente materno. Música esta que tem um poder quase absoluto de invocação, uma promessa de gozo sem limites, sendo considerada um dos determinantes da alienação do infans ao desejo do Outro. Somente a partir deste momento de alienação, a criança poderá ter voz. O som, como ruído sonoro, se organiza em música a partir da intervenção do Outro cuidador. O bebê precisa aceitar trocar o ruído do caos sonoro em que nasce pela "sincronia significante" que o agente materno propõe; assim é inicialmente chamado, para, em seguida chamar e se fazer chamar.

Ao discorrer sobre uma dimensão simbólica da voz, Bentata (2009) sugere que a mãe, fornece sua voz ao bebê em manhês, língua universal das mães, que funcionaria como o canto das sereias, atraindo irresistivelmente aquele que a escuta: "...a voz da sereia evoca esse encantamento de outrora da voz materna, quando o significante da presença da mãe equivalia à manifestação de sua voz. A voz do grande Outro materno sucedia ao grito de chamada" (Bentata, 2009, p. 17). A criança deve se deixar seduzir pela voz materna, sem nela se perder. Ao responder ao apelo que a musica da voz lhe dirige, muda de posição, passando de invocado a invocante.

Diversos trabalhos recentes (Bentata, 2009, Catão, 2008, Ferreira, 1990) abordam a linguagem do agente materno com o bebê, visando entender os transtornos de crianças autistas. A criança autista, para Bentata, não consegue articular o olhar com a voz, só reagindo à voz materna quando ela vem por trás. Já Ferreira, reconhece em muitos autistas uma preferência ao ruído em detrimento da voz. Ruídos ritmados e repetidos que buscam incessantemente escutar. Catão, por sua vez, indica que a criança autista parece desinvestir a voz em seu tempo musical, fazendo com que esta permaneça como ruído. Para o autista, em vez de se revelar cativante, a voz parece repulsiva a seus ouvidos.

Considerando a comunicação mãe-bebê por outro prisma, é igualmente interessante perceber que o discurso do adulto vai assumindo diferentes formas a cada passo do trajeto no caminho da diferenciação. Nos primeiros meses, a mãe se refere ao bebê quase sempre no plural, "nós", implicando-se no que ele vivencia. Depois passa a se comunicar como se o bebê estivesse falando; tal especularidade, chamada de "fala atribuída" (Cavalcante, 1999), ocorre quando a mãe se coloca no lugar do outro (a criança). A mãe se encontra tão ligada ao bebê, fusionada a ele, que fala dele na primeira pessoa como se fosse ela. A mãe olha para o bebê e diz: "Eu sou tão levado" ao invés de dizer: "Você é tão levado".

Por outro lado, usa a palavra "mamãe", ao invés de "eu". Ela não diz: "eu vou te dar o banho", diz: "mamãe vai te dar o banho". Em relação aos outros membros da família, a mãe se expressa como se fosse o filho, assim é que chama sua mãe de vovó e seu marido de papai, dizendo para o bebê: "vamos para a casa da vovó", quando vão para a casa da mãe dela, ou "fala com o papai se pode ir", mencionando seu marido.

Jerusalinsky (2006) reforça o papel que a fala materna tem para seu filho e comenta o que ocorre quando a diferenciação mãe-bebê não se dá: "...esse modo da fala materna reserva um lugar para o pequeno filho, lugar em que ele mesmo poderá ir introduzindo paulatinamente as expressões de sua própria demanda. Não havendo diferenciação desse lugar, não haverá atribuição de significado àquilo que o bebê manifesta, e assim ele nunca se encontrará no papel de protagonista senão de mero receptor da mensagem do outro". (Jerusalinsky, 2006, p. 64). A conversa da díade mãe-bebê acontece em um espaço transicional, onde as mães deixam um tempo estratégico para que o bebê entre no canal e dê sinal de que está na linguagem. Já a criança tem que se permitir ser adotada pelo outro através da voz, deixando-se levar pela sua musicalidade, permitindo criar a instância do outro dentro de si.

Vale aqui ressaltar que a palavra em inglês "mother" possui nela mesma a palavra "other" (Fink, 1995, p. 24). Esta leitura auxilia na tentativa de expandir o conceito da palavra mãe para "m'other", ou seja, o outro cuidador, aquele que fará a função materna, não necessariamente a mãe biológica do bebê. Qualquer um que possa realizar a captura singular da criança no campo do desejo do Outro pode exercer a função materna. Esta diz respeito ao campo simbólico, de introdução do bebê no mundo da cultura feita pelo Outro Primordial que supõe no bebê um sujeito onde há apenas um organismo vivo. Perceber uma demanda nos reflexos e automatismos do vivente, perceber que há um sujeito ali, faz parte da função materna (Kamers, 2004).

Partindo da premissa que o exercício da função materna não é necessariamente realizado pela mãe biológica do bebê, nos perguntamos como crianças institucionalizadas precocemente são impregnadas ou não pela voz de seus cuidadores. Com este objetivo, visitamos uma instituição no Rio de Janeiro que abriga crianças numa faixa etária de seis meses a seis anos. Elas ali permanecem ou durante a semana, com retorno à casa dos pais apenas nos fins de semana ou em período integral, retornando todas as noites para casa. No período em que realizamos nossa observação, verificamos a angústia vivida por alguns bebês (de seis meses a um ano de idade), diante de uma fala esvaziada de melodia e de conteúdo afetivo.

 

Quando a fala é vazia

Sabemos que as primeiras inscrições psíquicas ocorrem a partir dos cuidados parentais (Désjardins & Golse, 2005; Winnicott, 1945) sendo fundamental para o bebê uma continuidade de cuidados que lhe propicie um sentimento de continuidade de existência. Ou seja, através das interações precoces entre o infante e seus cuidadores primordiais, gradualmente ele internalizará estes cuidados, desde que sejam constantes e previsíveis. A constância do investimento permite ao bebê sentir que está ao mesmo tempo no outro e também separado dele. Entre as características demandadas ao cuidador, Figueiredo (2007) identifica inicialmente duas dimensões primordiais, que podem ser exercidas por diversos agentes: a função de holding, que garante a continuidade, e a função de continente, que proporciona as experiências de transformação. Segundo o autor "são as famílias, grupos e instituições os objetos mais aptos a oferecer o holding ao longo da vida, principalmente quando o que se está em jogo é a continuidade na posição simbólica do sujeito no mundo." (Figueiredo, 2007, p. 17).

O autor aponta ainda outras características dos cuidados maternos como "reconhecer", "interpelar" e "reclamar", que incluem uma dimensão simbólica. Reconhecer o objeto de cuidados no que ele tem de próprio e singular. Interpelar aproxima-se do seduzir e indica que o outro cuidador é também fonte de enigmas.É nesta condição que ele desperta a pulsionalidade. Já o outro que reclama funciona como agente do confronto e do limite, defrontando o sujeito com a alteridade, com a lei. Cuidados que devem ser introjetados de modo que aquele que os recebe seja ele mesmo um participante ativo do processo.

Instituições que acolhem o infans durante a semana continuamente ou por longo período diariamente deveriam manter uma rotina e, principalmente, a constância na figura de um cuidador principal. Após avaliar as relações entre as cuidadoras e os bebês da instituição visitada, percebemos algumas falhas no que se refere à falta de comunicação verbal das profissionais com os bebês observados. Logo num primeiro momento identificamos uma falta de palavras ditas aos bebês assim como a presença de não-ditos que os deixavam visivelmente angustiados. Nossa atenção foi despertada pela maneira peculiar como as cuidadoras se expressavam verbalmente. Muitas vezes havia uma ausência de fala e, em outras ocasiões, sentíamos que a voz era muita baixa, quase inaudível. O conteúdo da conversa, quando ocorria, era aquele minimamente necessário para que os bebês atuassem de acordo com as expectativas dos adultos ali presentes. Eram frases como, "não pode bater" ou "tira a mão daí", falas imperativas, que buscavam mais uma harmonia do grupo do que o compartilhar de afetos ou uma sintonia entre as cuidadoras e os bebês.

Identificamos também pouquíssimas falas que narrassem os acontecimentos, deixando os bebês sem saber o que viria a seguir; não lhes era dito para onde estavam sendo levados, não havia qualquer chamada que indicasse as refeições, nenhuma antecipação do banho que lhes seria dado ou aviso da chegada dos pais, quando estes iam buscá-los. Tudo ficava implícito e, sem que fossem oferecidas aos bebês representações capazes de ligá-los ao que estava sendo experimentado, percebia-se a angústia por eles vivida.

As cuidadoras ora falavam com as crianças como se lhes pedissem uma atitude "adulta", de compreensão da situação, sem notar o desamparo em que se encontravam ora lidavam com elas como se não fossem sujeitos desejantes ou como se não estivessem ali. Não pareciam perceber a importância de uma atividade de troca, onde ambos – cuidador e bebê – têm uma ação ativa. Não apresentavam sinais de uma relação empática, de sintonia afetiva com as crianças de quem cuidavam, nem havia qualquer investimento libidinal. Talvez por isto, elas quase não falavam com os bebês, deixando-os sem uma oferta de representações que dessem conta de suas pulsões.

Lembremos que, segundo Winnicott (2000 [1945], p. 224), dentre as tarefas que ajudam o bebê a integrar-se estaria a atitude pela qual "alguém mantém a criança aquecida, segura-a e dá-lhe banho, balança-a e a chama pelo nome". Neste sentido, não se trata apenas de cuidados físicos, mas ao ser nomeado, o bebê não é somente o objeto de um fazer automatizado, mas é reconhecido em sua existência.

A importância da narratividade das cuidadoras que trabalham em creches é enfatizada por Fensterseifer (2008) no desenvolvimento de um apego seguro. A narratividade é valorizada em sua função de ligação, de fornecer a sensação de continuidade da vida. Partindo da observação de bebês em uma creche, a autora observou que se as cuidadoras são econômicas na sua comunicação verbal ocorre uma falha de atribuição de sentido e significado nas ações que envolvem a criança. Em nossa observação, confirmamos a relevância de preparar o cuidador no trabalho de significar para o bebê a situação na qual se encontra.

Verificamos a necessidade de um estado emocional específico do adulto, de sintonia empática com o bebê, identificando-se com ele e investindo-o libidinalmente, para que a comunicação verbal exerça sua função de continente e o auxilie em seu processo de integração. Laznik e Oliveira (2006) valorizam não apenas a presença de um cuidador constante, mas a exposição ao manhês, ao ritmo melódico da fala de quem exerce a função materna, de modo que venha a ser parte constituinte do psiquismo da criança.

 

Considerações finais

A psicanálise com crianças aponta, segundo Zornig (2009), para uma mudança de paradigma, ou seja, a passagem de uma clínica do conteúdo para uma clínica do continente, onde a ênfase recai na relação e no vivido. Não se trata de desconsiderar a função da linguagem na constituição do sujeito, mas sim ressaltar sua dimensão sensível: a musicalidade da língua materna, os diferentes tipos de comunicação não-verbal, as sensações que envolvem as interações entre o bebê e seus pais ou cuidadores primordiais.

Alguns autores citados neste artigo ressaltam que o psiquismo se constitui através de sensações e inscrições corporais e relacionais antes da percepção de um eu autorreflexivo e diferenciado de seuentorno. É necessário um holding materno que funcione inicialmente como um continente, para possibilitar a atividade de pensar que transforma o continente em conteúdo. Em outras palavras, é preciso uma experiência de sustentação materna para que a criança possa internalizar a mãe e se automaternar. Outros autores citados indicam a importância de um primeiro momento de alienação, no qual a criança é seduzida pela música da voz do agente materno. A voz entendida enquanto um objeto pulsional, um objeto vazio, que participa da instauração do laço entre a mãe e o bebê; entretanto, a criança deverá inicialmente transformar seu grito em apelo para, no caminho de tornar-se sujeito, situar-se como narrador de sua história.

Procuramos enfatizar como, durante a interação da mãe com seu bebê, distintos traços prosódicos presentes na fala da mãe provocam efeitos distintos no bebê. A criança reage à fala materna, não em decorrência da significação que ela carrega, ela precisa ouvir seu nome cantado em todos os tons, como demonstrou Dolto (1998). O "manhês" é uma forma de comunicação que se caracteriza pelo investimento afetivo e costura os laços entre a mãe e o bebê, ao mesmo tempo em que vai se direcionando no sentido de facilitar sua separação. Esta comunicação, utilizada por quem exerce a função materna, deixa entrever o investimento realizado na criança, em momento muito precoce de seu desenvolvimento. Em contraposição, observamos que o silêncio em torno do bebê, a ausência de representações que deem sentido ao que sentem, provoca intensa ansiedade e esvaziamento afetivo.

 

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Recebido em fevereiro/2010
Aceito em junho/2010

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