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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.15 no.2 São Paulo dez. 2010

 

ARTIGO

 

Como o método de observação direta do comportamento do bebê e da criança pode contribuir para avanço da pesquisa clínica psicanalítica?1

 

How can the methodology of direct observation of the baby's and the child's behaviour contribute to the progress of the research in clinical psycho analysis?

 

Como el método de observación directa del comportamiento del bebe y del niño puede contribuir en el desarollo de la investigación clínica psicoanalitica?

 

 

Camila Saboia

Psicanalista, doutoranda da Universidade de Paris 7, psicóloga pesquisadora do projeto Programme International pour le Langage de l'Enfant (PILE, Hospital Necker, Paris). camila_saboia@hotmail.com

 

 


RESUMO

Propomos uma reflexão sobre as interfaces entre o método de observação e o método de tratamento no avanço da pesquisa clínica psicanalítica. A clínica precoce nos convoca à necessidade de uma redimensão do objeto de estudo, pois intervirmos num tempo que antecede aquele do da linguagem. Nesse sentido, interrogamos se o valor metafórico da palavra poderia ser comparado ao valor dos gestos e do comportamento do bebê. Winnicott, ao enfatizar sobre a diferença entre "primitivo" e o "profundo", oferece-nos novos subsídios para compreender que a "criança da observação" e a "criança da cura analitica" não são antagônicas, mas sim complementares.

Descritores: método de observação; método de tratamento; intervenção precoce; pesquisa em psicanálise.


ABSTRACT

This article introduces a frame of reflexion about the links between "the method of observation" and "method of treatment" in the field of research in clinical psycho-analysis. Early clinic leads to necessarily reconsider the object of the study, as it is about intervening at an early stage, before the language appears. To that extent, the question is raised whether the metaphoric value of the language could be compared to the value of the baby's gestures and behaviour. Winnicott, by highlighting the difference between "primitive" and "profound", offers new ways to understand that the "child in observation" and the "child in analytic cure" are no longer antagonist, but complementary.

Index terms: method of observation; method of treatment; early intervention; research in psycho analysis.


RESUMEN

El articulo propone una reflexión sobre las interfases entre "el método de "observación» y de «método de trataimento » en la investigación clínica psicoanalitica. La clínica precoz necesita reconsiderar su objeto de estudio puesto que interviene en una etapa que precede la adquisición del lenguaje. De esta manera, el questionamiento se basa en una posible comparación del valor metafórico de la palabra y del valor de los gestos y el comportamiento del bebe. Winnicott enfatizo sobre la diferencia entre « primitivo » y « profundo » estableciendo así nuevas maneras de entender que « infante en observación » e « infante en cura analitica » no son dos metodos antagonistas sino complementarios.

Palavras clave: método de observación; método de tratamiento; intervención precoz, investigación psicoanalitica.


 

 

Esta questão tem sido bastante levantada nos últimos tempos, à medida que a psicanálise ganha espaço no campo da clínica da intervenção precoce. Sabe-se que a clínica da primeira infância nos convida a reaver os conceitos de investigação clínica, uma vez que somos convocados a intervir num tempo psíquico que antecederia à constituição do inconsciente e da linguagem. Nesse sentido, supomos que há um redimensionamento do objeto de estudo psicanalítico, dado à necessidade de descentralizá-lo do modelo clássico, fundamentado na análise do discurso do sujeito, e contextualizado no quadro de cura o processo analítico, para daí passarmos ao estudo dos precursores da linguagem do bebê ou do comportamento da criança – ambos baseados nos métodos de investigação empírica e da observação direta.

Certos psicanalistas como A. Green (L'enfant modèle, 1979) irá criticar o uso do método de observação direta na pesquisa psicanalítica, ao alegar que este método de investigação corresponderia muito mais aos métodos utilizados nas ciências objetivas do que na ciência interpretativa, na qual se inscreve a Psicanálise. Green acrescenta ainda que tal método tenderia a privilegiar o estudo das estruturas do moi (ego), assim como os aspectos da "forma" no lugar dos "conteúdos", provocando um redução significativa da análise dos aspectos dinâmicos da vida psíquica do sujeito.

Para Green, isso levaria à supressão do que é de mais fundamental na investigação psicanalítica: a falta e, consequentemente, a uma indiferença dos aspectos constitutivos da teoria psicanalítica– a transferência e contratransferência – o que resultaria na clivagem entre a "criança observada", oriunda do método de investigação empírica, e "a criança reconstruída pela psicanálise", originária do processo analítico baseado no método de tratamento.

É nesse sentido que A. Green criticara o trabalho de Ester Bick (1967),2 situando-o fora do campo da investigação psicanalítica. Para Green, o método proposto por E. Bick não se enquadraria no campo da psicanálise, uma vez que ela toma como paradigma de estudo a "criança" no lugar dos "sonhos", o que é interpretado por Green como um completo abandono do objeto da psicanálise.

Em contrapartida, temos a posição de J. Siksou (1989), que supõe que os aspectos associados à ausência ou à falta, tais como os compreendemos na teoria psicanalítica, além dos elementos transferênciais associados aos aspectos de projeções e identificações dos conteúdos emocionais, seriam analisáveis num tempo posteriori às observações, isto é, em um momento considerado como o terceiro tempo do método.

Este último corresponderia ao momento no qual o observador, num quadro de uma supervisão em grupo, elaboraria, em conjunto com outros analistas, suas impressões clínicas e os aspectos contratransferenciais, vivenciados durante as sessões de observações. Isto nos leva a supor, então, a possibilidade de uma real adaptação do método de observação direta às pesquisas em psicanálise, à medida que propomos uma análise exaustiva dos aspectos transferênciais e contratransferênciais no momento dito do après-coup.

Nesse sentido, vale a pena nos interrogarmos sobre a existência de uma dimensão simbólica no comportamento do bebê ou da criança. Afinal de contas, é possível comparar o valor metafórico das palavras aos dos gestos?

Para abordamos essas questões, é necessário, primeiramente, lembrarmos que a própria construção dos conceitos da psicanálise infantil engendrou-se da prática de observação. Como exemplo, podemos citar M. Klein, que, no seu artigo En observant le comportement des nourrissons (1952), afirma ter encontrado, pela via da prática de observação dos lactentes, novos subsídios que lhe permitiriam confirmar suas hipóteses teóricas concernentes ao desenvolvimento emocional primitivo do bebê, subtendendo-se assim que certos aspectos da vida psíquica do sujeito poderiam ser recolhidos e analisados por meios que ultrapassariam os métodos convencionais associados às interpretações do discurso do sujeito.

Nesse mesmo contexto, podemos situar a prática psicanalítica de Winnicott, em A observação de bebês numa situação padronizada (1941), desenvolvida a partir do trabalho de observação do comportamento do bebê no quadro de suas consultas terapêuticas. Sabe-se que Winnicott costumava analisar o comportamento do bebê, observando suas reações e interesse quando lhe era apresentado, durante a sessão, uma espátula de cor metálica e reluzente. Para ele, todos os gestos do bebê direcionados ao objeto-espátula, assim como a maneira pela qual ele o apreende, o manipula, o explora e, finalmente, o repudia, lançando-o ao chão, revelavam-nos indícios importantes sobre a qualidade de interação e adaptação da criança ao ambiente. Isto porque, para Winnicott, os gestos do bebê, e mesmo seus comportamentos diante dos objetos reais do ambiente, poderiam por si só nos revelar a avidez (greed) do bebê face ao mundo, além dos componentes primários de sua realidade psíquica e subjetiva como as pulsões agressivas e pulsões criativas. Na realidade, foi graças a essas experiências de observação que Winnicott pôde chegar à formulação do conceito mais importante de sua obra: os objetos transicionais

É nesse sentido que Winnicott irá enfatizar a importância de considerar o método de observação para o avanço da construção da teoria psicanalítica. No seu artigo La contribution de l'observation directe des enfants à la Psychanalyse (1957), sublinha o fato de que um diálogo entre os analistas e observadores deve ser estabelecido para que se tenha um progresso no âmbito do estudo e pesquisa do comportamento precoce do bebê. O autor acrescenta ainda que esse avanço não contribui apenas às pesquisas relacionadas ao campo da psicanálise da infância, uma vez que considera que o estudo do comportamento do bebê revela aspectos primitivos da ontogênese humana e aspectos globais do desenvolvimento do sujeito.

Como vimos, tanto M. Klein como D. Winnicott consideram a prática do método de observação como fundamental para o avanço da pesquisa em psicanálise – no entanto, ambos enfatizam a importância de reconhecer os limites desse método no contexto da pesquisa em psicanálise. Eles afirmam, por exemplo, que tal método permite somente o acesso parcial dos processos inconscientes, no que concerne ao psiquismo da criança e do adulto. Isto explica a posição categórica de Winnicott ao afirmar que o trabalho da clínica e da observação devem ser tomados como duas vias "complementares" e não "antagônicas" ou "substitutas".

É por esse viés que Winnicott postula sobre a importância de diferenciarmos o conceito entre profundo (associado aos fantasmas inconscientes e à realidade psíquica) e primitivo (associado à ideia do ambiente como constitutivo do eu). Winnicott (1957, p. 75) afirma: "Profundo não é sinônimo de primitivo, porque é necessário que o bebê atinja um certo grau de amadurecimento, para tornar-se gradativamente capaz de ser profundo".3 A distinção entre esses dois conceitos é, na realidade, condição sine que non para conduzirmos um trabalho coerente entre o método de tratamento e o método de observação; caso contrário, poderíamos facilmente cair no erro de considerar que os conteúdos arcaicos do psiquismo humano possam ser apreendidos a "olho nu".

Parece-nos importante aqui apontar a posição paradoxal sustentada por Winnicott. Ao mesmo tempo em que enfatiza os limites do método de observação como um meio de ascender aos conteúdos do psiquismo humano, insiste na ideia, como mencionamos acima, na qual uma análise minuciosa da maneira como o bebê interage com o objeto espátula desvendaria-nos dados primordiais sobre seu mundo subjetivo e sobre a organização de sua dinâmica mundo interno-mundo externo. Ele afirma: "Na situação-padrão, o bebê que está sendo observado oferece-me importantes indicações sobre o seu desenvolvimento emocional" (Winnicott, 1941, p. 126). Assim, podemos observar que Winnicott refere-se constantemente à sua dupla experiência, ao tentar integrar a "criança real" (observada nos braços de sua mãe) com a "criança reconstruída pelo método de cura analítica".

P. Fédida, no seu artigo "L'Objeu" (1978), postula que o método de observação direta pode contribuir efetivamente para pesquisa em psicanálise, desde que consideremos, a priori, um trabalho de designificação do comportamento do bebê e da criança. Compreende-se, assim, que a seleção dos dados observados não deve ser influenciada por uma tentativa do observador de confirmar hipóteses já formuladas previamente; ao contrário, espera-se que o observador tome inicialmente uma posição de distanciamento, o que corresponderia ao trabalho de designificação. Isto tudo para que, em seguida, no momento considerado como o do après-coup, a função teórica de um signo referente a um comportamento possa finalmente revelar seu conteúdo teórico, sob aquele que se apoiou inicialmente. Ideia esta que vai ao encontro de J. Siksoun evocada anteriormente. "A designificação se efetua e é sob essa condição que o signo toma, na teoria, o poder de um paradigma ou de um sintagma".4 (Fédida, 1984, p. 184). É nesse sentido que P. Fédida postula que o conceito de objeto transitional de Winnicott não foi na realidade descoberto por ele, mas apenas teorizado graças à realização de um trabalho de designificação de Winnicott sob comportamento do bebê em interação com o meio ambiente.

Supõe-se, assim, que o método de observação do bebê restitui à escuta do analista uma sensibilidade "tátil" e "visual". Essa nova sensibilidade, segundo P. Fédida, poderia enriquecer e mesmo aprofundar a escuta analítica nas suas qualidade de "preensão", isto é, nos seus diferentes registros sensoriais e concretos. O autor acrescenta ainda que, ao considerarmos o fato de que um "gesto observado" poderia revelar-nos um material digno de uma "escuta" no senso analítico do termo, poderíamos a partir daí reconhecer uma nova fonte de criatividade e de renovação do próprio discurso analítico como a Psicanálise compreende (Fedida, 1978). Seguindo essa mesma posição, temos René Roussillon (1990) que sublinha a importância de colocarmos nossos "olhos à escuta", à medida que, segundo ele, os gestos da criança atribuiriam e revelariam um "gesto à escuta".

Nesse sentido, inferimos que a psicanálise no campo da intervenção precoce nos obriga a romper com certos paradigmas do setting analítico da psicanálise clássica, para daí inventarmos novos dispositivos metodológicos de pesquisa. Isto implica em considerar que o método da observação direta é, sem dúvida, enriquecedor para o avanço da pesquisa clínica psicanalítica, caso não cometamos um grande erro de tentarmos "adaptar" ou "encaixar" um método ao outro. Ao contrário, tanto observadores como psicanalistas sairiam ganhando, se cada um deles reconhecesse as particularidades próprias de cada método e de seus respectivos limites.

Isto nos leva a concluir que as observações diretas praticadas por psicanalistas não se integram à psicanálise "hors murs" (extramuros), mas sim "hors de la cure" (fora do setting tradicional), isto é, ela não transborda o campo da psicanálise, mas sim constitui-se por uma nova via que não aquela do método clássico da cura analítica. Enfim, ao se ter em mente as diferenças e contribuições desses dois métodos, pode-se constar que a criança da observação e a criança da cura analítica não são necessariamente antagônicas, mas sim complementares, já que ambas nos permitem articular a temporalidade do desenvolvimento com a temporalidade do après-coup, o que corresponde à própria temporalidade da elaboração psíquica.

 

REFERÊNCIAS

Bick, E. (1992). Remarques sur l'observation des bébés dans la formation des analystes. In Journal de la Psychanalyse de l'enfant « L'observation des bébés », (12), 14-35.         [ Links ]

Fédida, P. (1978). L' "Objeu". Objet, jeu et enfance. L'espace psyhotérapeutique. In L'absence, (pp. 137-281). Paris: Gallimard.         [ Links ]

Green, A. (1979). L'enfant modèle. In Nouv. Rev. Psychanalyse. (19), 27-47.         [ Links ]

Klein, M. (2005). En observant le comportement des nourrissons In Développements de la psychanalyse (pp. 224-253) Paris: PUF. (Trabalho original publicado em 1952).         [ Links ]

Roussillion, R. (1990). Transférer la Psychanalyse. In Revue Française de Psychanalyse (5) 1205-1215.         [ Links ]

Siksou, J. (1992). L'observation directe. In Journal de la psychanalyse de l'enfant, L'observation du bébé, (12), 260-285.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1970). Contribution de l'observation directe des enfants a la psychanalyse. In Processus de maturation chez l'enfant. Développement affectif et environnement. (pp. 73-79). Paris: Payot. (Trabalho original publicado em 1957).         [ Links ]

Winnicott, D. W. (2000). A observação de Bebês numa Situação Padronizada. In Da pediatria a psicanálise. (pp. 37-56). Paris: Payot. (Trabalho publicado originalmente em 1941).         [ Links ]

 

NOTAS

1 Este artigo foi baseado no capítulo de tese de doutorado da autora: Du jeu du bébé au jeu de l'enfant: une approche à la compréhension de la construction de relation d'objet chez l'enfant autiste. Trabalho ainda não publicado.

2 O trabalho de observação segundo o método de Esther Bick baseia-se na análise do comportamento do bebê e da relação mãe-bebê, no meio familiar, nos seus primeiros meses de vida até os seus dois anos de vida. O objetivo maior deste método, consiste em observar a maneira como o bebê constrói e organiza suas primeiras interações com o ambiente e o mundo externo. Esta técnica de observação privilegia as experiências emocionais do bebê, diferenciando-se de outras práticas de observações, tais como as de Piaget e Wallon, cujos objetivos baseiam-se na investigação das modalidades do desenvolvimento da criança.

3 Tradução livre da autora: "profond n'est synonyme de primitif, parce qu'il faut que les nourrissons atteignent un certain degré de maturité avant de devenir progressivement capables d'être profond".

4 Tradução livre da autora "la designification s'effectue et c'est, sous cette condition que le signe prendre, dans la théorie, le pouvoir d'un paradigme ou d'un syntagme".

 

 

Recebido em outubro/2010
Aceito em novembro/2010

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