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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.15 no.2 São Paulo Dec. 2010

 

RESENHA

 

 

Márcio Boaventura JuniorI; Gustavo Alexandre MartinsI; Marcelo Ricardo PereiraII

IMestrando da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE/UFMG). marcioboaventura@gmail.com, gustavoalemartins@gmail.com
IIProfessor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE/UFMG). mrp@fae.ufmg.br

 

 

LAJONQUIÈRE, LEANDRO DE Estranhas crianças estranhas Sobre o livro: Figuras do infantil: a psicanálise na vida cotidiana com as crianças. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010, 272 p.

No momento em que as pesquisas empenham-se em produzir diversos pensamentos sobre os fatores constituintes e paradoxais do "sentimento de infância", o livro Figuras do infantil, de Leandro de Lajonquière, Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, destila cuidadosamente letras, traços, reflexões e novas possibilidades de enfoque sobre o tema. Quem o apresenta é a professora Maria Cristina Kupfer, que não só nos adianta as ideias centrais da obra, como também de saída a enriquece ao recuperar a ideia atualíssima do romancista Victor Hugo sobre a infância; especialmente frente à tese desenvolvida por Lajonquière, que estranha o que tendemos a naturalizar: "as crianças de hoje não são as mesmas de ontem?"

Já nas primeiras páginas, o autor chama nossa atenção para o fato de que as crianças de hoje são tão diferentes quanto nós o fomos para nossos pais e estes, por sua vez, o foram para nossos avós... Toda forma histórica é um precipitado de como lidamos com o real: sempre um momento de passagem, nem melhor, nem pior, apenas singular.

Lajonquière também recoloca o debate acerca do sentimento da infância chegando ao seu fim. Tal sensação pode ser justificada pela numerosa produção de diversos teóricos contemporâneos. Há anos atrás, fomos bombardeados com a descoberta da infância como invenção da vida social moderna, uma fase produzida culturalmente e tomada como natural e inerente ao ser humano. Porém, em nossa contemporaneidade, Leandro sinaliza de modo perspicaz que a infância que soubemos inventar, agora bem poderia desaparecer. Esse sentimento, ora festejado ora rechaçado, alimentou uma nova forma de proteção à criança: um paradoxo ao se tratar da infância que deve libertar a criança dos "atavismos" desta condição, e, ao mesmo tempo, tratar de renovar a ideia de que a criança sofre quando a infância lhe é roubada.

Nas últimas décadas, a naturalização violenta da infância, através do "tecnocientificismo médico-psico-pedagógico", fez emergir no lastro cultural um fantasma singular – que Leandro denomina A-Criança. Entendida como uma entidade natural, A-Criança acabou levando consigo a mesma figura da infância, detentora "de direitos e necessidades educativas especiais, porém sempre clamante de satisfação", e sagrou-se no século XX como arquétipo de conduta frente a "esses seres pequenos, que temos o hábito, até agora, de chamarmos crianças" (p. 19).

À sombra d'A-Criança, todas as outras de "carne e osso", passaram a estar em risco de serem desrespeitada, seja no interior das famílias, da escola ou da sociedade. Tal suspeita generalizada amplia o sentimento de mal-estar dos adultos e seus fantasmas de serem agentes de sofrimento em relação aos pequenos. Não obstante, essa preocupação com A-Criança também nos reconforta, pois construímos a ilusão de que esse posicionamento frente ao infantil é signo de um traço evolutivo. Na busca por saídas para esse dilema, ora caímos na inibição de nada falarmos à criança no intuito de não incorrermos em riscos, ora chegamos "no limite mesmo do real, até lhe dar a morte, como noticiam diariamente os jornais". Mas o autor vai ainda mais longe: talvez não seja facilmente perceptível o fato de que "criança alguma possui uma infância, a ser ultrapassada ou a ser protegida". Estaria ai o ponto no qual a psicanálise introduz o debate: "a ideia de que só um 'adulto' pode ter uma infância, porém uma infância perdida". Os adultos querem encontrar n'A-Criança "ou aquela que não fomos, mas que supomos ter sido a esperada por nossos pais, ou a criança maltratada, rechaçada por eles por não termos saído à altura, sempre incomensurável para um ser baixinho que sempre olha o mundo de baixo" (p. 21). A infância falada: eis a herança freudiana que dá lugar à invenção da psicanálise.

Em A psicanálise na educação, que intitula a primeira parte de seu livro, Lajonquière nos lembra que Freud sempre defendeu interesses múltiplos da psicanálise para além daqueles estritamente psicológicos ou terapêuticos. Mesmo assim, muitos interrogaram as possibilidades de sua utilização em relação à educação. Mas talvez seja mais simples analisar essa questão se se observa "o sintagma 'psicanálise aplicada' no mesmo sentido que se predica a 'aplicação' de uma pessoa, isto é, a sua 'dedicação meticulosa' na realização de uma tarefa determinada .... dessa forma, a psicanálise 'dedicada à educação' seria a mesma e única psicanálise de sempre", polemiza o autor. Por estar viva, buscando permanentemente ultrapassar seus limites, percebe-se inclinada a abordar objetos que hegemonia paradigmática insiste em esquecer.

Não obstante, uma educação atravessada pela psicanálise não é o mesmo que uma "educação adequada". Lajonquière demonstra nos capítulos 3 e 4 que a tentativa frustrada e bastante difundida de se pretender prevenir neuroses e perversões graças a uma suposta "educação adequada" está embasada numa compreensão um tanto limitada dos textos freudianos – mesmo aos que se referem ao "primeiro Freud" nos quais já encontramos a noção da estrutura paradoxal do desejo. Leandro frisa que num plano mais profundo de análise da obra de Freud, é possível perceber "uma reflexão sobre a irredutibilidade estrutural do desprazer psíquico e, portanto, da impertinência de se pretender encontrar uma melhor dosagem das restrições civilizadoras" (p. 53). Devido a isso cumpre dizer que Freud não se ilude com uma "educação adequada", capaz de não implicar desprazer psíquico; caso contrário, haveria de reservar à educação um papel bem mais proeminente na modificação da estruturação psíquica.

Lajonquière lê Freud com perícia; e convida-nos também a fazêlo: não devemos supor que Freud num primeiro momento iludiu-se com uma educação menos repressiva, mas que sempre esperou por uma qualidade diferente de intervenção dos adultos junto às crianças.

Longe de uma educação profilática, esperava sim que a palavra dirigida às crianças fosse de uma outra ordem que não a da moral adulta de seu tempo ou a do gozo pedagógico hegemônico. É assim que Leandro parece traduzir a máxima freudiana "educação para a realidade". Diferente do que procura a pedagogia, uma educação para a realidade não buscaria a produção da harmonia psíquica, mas sim a tentativa de uma educação sem nenhum fundamento transcendental, uma educação que se paute na realidade do desejo.

Que o futuro nos reserve uma educação livre das doutrinas religiosas! – parece brandir Freud. "Ele sabia – diz o autor – que essa sua esperança era quase vã, porém preferia acreditar que valia a pena tentar" (p. 61).

Entretanto, se a religião parecia ser no horizonte de Freud o empecilho para se educar para a realidade do desejo, hoje tal empecilho é o "tecnocietificismo pedagógico", fulmina Lajonquière (cap. 5). O justificacionismo psicossociológico, as prescrições de manuais, a medicalização moderadora podem até consolar e anestesiar pais e pedagogos, ao conter e governar as crianças, mas a isso o desejo não se sucumbe. A tentativa de suturá-lo é sempre vã, alerta Leandro.

Em seguida, o autor lembra-nos a repisada mensagem de Freud sobre a necessidade de se reconhecer o impossível na educação, na política e na psicanálise; e retoma as perguntas que conduziram o debate dos capítulos anteriores: Como educar para a realidade? Para o desejo? Para o reconhecimento do impossível? Enfim, como se educa? A reposta: falando não como especialista, mas como um mortal (lê-se: castrado)! Ora, a psicanálise não seria a indicada a propor alguma pedagogia; sua aposta estaria na educação que acontece quando endereçamos a palavra a uma criança – a palavra que marca a sujeição do adulto à castração: a única com chances de educar.

No capítulo 6, porém, Lajonquière parece divisar os limites da psicanálise (pura, diríamos) – até mesmo para que ela não se converta numa"visão de mundo". É certo que ela aplicada à educação consistiria na tentativa de analisar e dissolver as ilusões pedagógicas tecnocientificistas. A isso Leandro renomea "psicanálise na educação", que pode reclamar ao analista uma outra implicação que não seja a do seu dever de estritamente psicanalisar. Nesses casos, caberia a ele a possibilidade de reconhecer seus limites e, uma vez livre de seu dever restrito, caberia tomar partido nas discussões em torno da vida junto às crianças; esperando, à maneira de Arendt, recolocar o mundo no seu ponto justo para "inocular o germe do ato de se tentar o impossível" (p. 72).

Lajonquière abre a segunda parte de seu livro, A educação e a reprodução d'isso que nos faz humanos, salientando que a educação não acontece num cenário perfeito conforme idealizado pelo pensamento pedagógico, mas se processa num mundo repleto de diversidades, inesperados e imprevistos. Isso por si só já torna falso o dilema da suposta disjunção que discurso pedagógico hegemônico quer tratar: ou bem ensinar à vontade o que quer que seja ou bem esperar que a criança aprenda sozinha – ambas decorrentes de uma idealização naturalista. Pensada dentro desses parâmetros, qualquer que seja a intervenção adulta mostrar-se-á devedora do "efeito verdadeiramente subjetivante, passível de participar da criação de uma novidade psíquica". Ao invés do reposicionamento entre os extremos ensinar e esperar, uma possibilidade de saída seria a tentativa de fazer um furo, uma travessia. Em outras palavras, é inserir o educacional no âmbito da palavra e da linguagem animada pelo desejo, destacando – claro – seu caráter de laço social. Quem sabe possa-se recuperar assim a ideia de ensinar não como uma tecnociência, mas como o ato mesmo de colocar em signos (de ensi[g]nar); isso que não é mais do que lançar a palavra "ao rodeio", diz Lajonquière parecendo aludir à noção de furo, da roda do furo que o isso produz.

Nos capítulos 2 e 3, o autor recupera o embate acerca do desenvolvimento versus constituição, para demonstrar que a subjetividade não pode ser entendida como "uma substância em desenvolvimento". Ela é efeito do nó vazio estabelecido pelos registros real, simbólico e imaginário – em menção aos nós borromeanos, de Lacan. O próprio nó vazio é o sujeito do desejo, acredita Leandro.Mas alerta e reafirma: "não há sujeito sem Édipo e sem castração" (p. 89). Talvez tal assertiva venha se opor a uma tendência hipercontemporânea da psicanálise de interrogar o complexo teorizado porFreud e as interpretações que nele se assentam. É uma polêmica. Leandro a aborda lançando mão de sólidos argumentos teóricos e tradicionalmente conhecidos, como a identificação simbólica, a fantasia originária e a filogenia contida no mito da horda primitiva de Freud, para reforçar sua proposição acerca da "ideia inconsciente de pai". E esclarece: o pai é uma ideia que carrega tanto familiaridade quanto estranheza.

Sobre isso, vale reproduzir a frase de Noé Jitrik que abre o livro de Leandro, tão genial quanto poética: "O pai é o que não está, o que não pode responder ao grito elementar, o que não pode ser encontrado pelas palavras que o evocam".

Erfindug (invenção) é o termo que Lajonquière faz uso para cimentar sua proposição – termo extraído do debate que Foucault promove acerca de A gaia ciência, de Nietzsche. O pai, em Freud, diz Leandro de Lajonquière, é Erfindung – e não Ursprung (origem). De mesmo modo, a linguagem também o é, "a partir de uma realidade literalmente muda". A linguagem como invenção permite-nos pensar o binômio lei-desejo como constituído no interior de uma horda de sapiens, condenada ao silêncio por um tirano gozador. É nessa alegoria da horda que se tem lugar a invenção tanto da linguagem quanto da proibição do incesto, e que marca a passagem da horda primitiva à aliança fraterna. Por ser a estrutura da linguagem da mesma ordem que a precipitação do suposto assassinato coletivo do tirano da horda, a cada nascimento de uma criança, ela deve se sujeitar à linguagem, rememorando a lei, reguladora da ordem do discurso.

Em seguida, magistralmente, Lajonquière aborda o processo constitutivo de "fazer-se menino(a)" – título do cap. 3 – com base no que chama educação primordial. Trata-se aqui, de sobremaneira, do "desejo de uma mãe, produzido pela operação de metáfora do Nome-do-Pai" (p. 115). Além de demonstrar a transformação do "organismo-bebê" em um ser da linguagem, portanto, em um sujeito de desejo, o autor parece substanciar e conduzir-nos – a nosso ver – para o que ele mesmo antes denominara "educação para a realidade do desejo". É o seu norte. Para tanto, apoia-se em autores como Wallon, Lacan e o próprio Freud para relembrar a importância do desejo materno, sem o qual nenhuma educação seria possível. Mas também relembra: o "eu" nunca é um "si-mesmo" total, justamente por ser em parte um "ser-outro", mais precisamente, um ser para a mãe. Eis uma primeira tensão desejante e discursiva, diz o autor, que instala um "sujeito cindido" – cindido pela linguagem, como anteviu Freud contra todo propósito iluminista. O capítulo é então finalizado com uma ideia genial, justamente por ser simples: entendemos que é necessário que o outro compareça com seu desejo e sua palavra para que haja uma educação para a realidade do desejo. E o próprio autor adverte-nos: "tem que ter gente comum disposta a enunciar, em algum momento e com certa tranquilidade espiritual, a frase: 'faz o que estou mandando, pois eu sou tua mãe... pois eu sou teu pai'"; puro artifício, moteja Leandro (p. 117).

Na terceira parte do livro, Do que não deve ser feito ao que pode acontecer numa educação, Lajonquière rememora um estudo de sua autoria sobre o legado de Jean Itard na educação, exclamando a necessidade de realizarmos "um exorcismo" para minar a força repetitiva desse lastro histórico atrelado ao Iluminismo tardio francês. Para o autor, a consequência desse trabalho poderia ser "uma aproximação da pedagogia às artes, ao invés de pretender vir a ser reconhecida do lado das ciências". Mal sabia, diz ele mesmo, que a produção daquele estudo já iniciava o que hoje propõe em seu Figuras do infantil com o registro "psicanálise na educação". E o que quer dizer? Que se faz necessário a implicação de algo por parte dos educadores que deveriam posicionar-se como "pedagogos não pedagógicos": gente comum, grifa o autor, disposta a falar com as crianças em vez de falar sobre elas de forma pedagógica.

Após um detour pelo iluminismo setecentista do médico Itard, incluindo seu caso Victor, o pequeno selvagem de Aveyron, contraposto à virtuosidade rousseauniana de Emílio, Lajonquière disseca a argumentação naturalista do período; e antevê em Rousseau o embrião do que mais tarde a psicanálise irá defender: "reconheçamos à criança o desejo de aprender e qualquer método lhe será bom" (citado por Leandro, 2010, p. 134). Leandro não é o primeiro a fazer uma aproximação entre Rousseau e Freud, e sabe bem que a noção de desejo para cada um é o limite disso. Ainda assim, a suspeita do iluminista de um desejo que desnaturaliza o sujeito merece realce.

E qual é a mensagem de Lajonquière? Os adultos não devem tentar personificar a essência do pensamento de teóricos como Itard, tampouco lança mão do desejo metafísico de integrar um princípio inumano, transcendente à ordem do simbólico. Para o autor, talvez seja possível resgatar algo da ordem de uma "estrangeiridade espontânea da intervenção educativa que, ao contrário, pedagogicamente, costuma-se creditar na conta da virgindade de uma natureza qualquer" (p. 144).

No capítulo seguinte, o autor retorna à educação terapêutica imposta ao "selvagem do Aveyron", como o chama o médico francês, para precisamente dizer o que não se deve fazer ao educar uma criança. Se para Itard a educação parte de algo interno que se encontra adormecido e precisa ser estimulado, desenvolvido, aperfeiçoado, para Leandro isso traduz justamente o discurso hegemônico da psicopedagogia moderna: o sonho de transformar o infantil em um modelo ideal para a vida adulta. É o sonho que "entranha a renúncia ao ato educativo e, portanto, torna a priori a educação num fato de difícil acontecimento". Por outro lado, o autor aposta que "é necessário que um adulto em posição de mestre ensine, mostre os signos, ao tempo que denegue a própria demanda educativa" (p. 149). Esta diferença introduz o que será tratado em seguida.

"Por que os selvagens não falam?", título do terceiro capítulo, reconvoca o leitor à discussão acerca da função da palavra. Seu uso comporta um paradoxo na medida em que há sempre um desencontro entre aquele que fala e aquele que escuta. O primeiro diz de um lugar inesperado pelo outro que, por sua vez, atribui à palavra dita outro signo diferente do que fora pretendido. Para Lajonquière, "quando uma palavra revela-se outra, entre a primeira e a segunda abre-se uma fenda que possibilita precisamente a realização do desejo sempre insatisfeito" (p. 158). Entretanto, era disso que Itard não queria saber, pois estava disposto a ouvir apenas aquilo que estava previsto em seu programa. E sobre isso, Leandro vai mais além: ao contrário do que acreditava Itard, "a linguagem não se ensina", em vez disso, é condição para que algo seja transmitido. "O interessante é que, mais do que as teorias expressamente professadas, aquilo que conta é a posição enunciativa do adulto – ou seja, como ele se endereça à criança" (p. 162, 163). Nesse ponto, o autor compara os métodos de Itard ao de Sicard. Enquanto o primeiro nada queria ouvir de diferente – ou da diferença –, o segundo se dispôs a falar com seu aluno surdo e ouvir o que ele tinha para dizer.

Outra comparação é estabeleci-da no capítulo 4, tendo como referência a história de Helen Keller e Anne Sullivan, respectivamente, uma criança cega e surda e uma jovem professora quase cega. De uma descrição que para a psicopedagogia poderia indicar a impossibilidade de qualquer educação de uma pela outra, Lajonquière mostra-nos uma diferença de endereçamento da palavra de Anne para Hellen em relação àquela que Itard dirigia ao "seu selvagem". E é desta diferença fundamental que algo pode operar. "Para além das peculiaridades dos destinatários fáticos, o que prima é a forma do endereçamento inconsciente. Itard, diferente de Anne, nada queria saber de tatear nas trevas, de cutucar fantasmas e nem de perder/encontrar nos sonhos" (p. 172). Ora, mais uma vez, o aparato científico da jovem professora não se coloca como o determinante da educação. Em vez disso, temos a posição inconsciente do adulto em relação à criança. Semelhante ao ato de Sicard, "Anne desejava falar com Helen. Tinha algo a dizer, assim como havia alguma coisa que queria escutar dela" (p. 171).

No capítulo 5, Lajonquière se dedica ao tema das "necessidades educativas especiais". A série de mudanças na nomenclatura vem atender aos ideais da modernidade, mas não deixa de marcar o aspecto fundamental, a segregação. A obsoleta ideia de déficit cede lugar a não menos questionável noção de necessidade. "O déficit é uma falta a ser apagada por reeducação ou reabilitação, enquanto a necessidade é uma falta a ser satisfeita com educação" (p. 181, 182). Tanto numa lógica quanto noutra, o sujeito está preso. O modelo hegemônico, que supõe ter o saber que falta ao outro, nada mais faz do que repetir a experiência de ter a criança como um selvagem à mercê dos experimentos científicos sem oportunidade para se inscrever como diferente. Apesar disso, o lugar da selvageria não é aceito por aquele que deseja desejar. Não sem dificuldades, "as crianças aguentam o tranco na medida em que invertem a demanda educativa, mesmo pedagogizada, cavoucando para si um lugar nos sonhos dos outros" (p. 188).

Em Sobre uma degradação geral da vida com crianças, quarta e última parte do livro, os seis capítulos organizam os argumentos para sustentar a ideia de que a infância não está acabada e desenvolver a tese de que ela só existe enquanto perdida no adulto. A discussão contemporânea sobre um suposto final da infância, que fora anunciada na introdução, é retomada no primeiro capítulo. A infância está em extinção ou seu período é atualmente menor? A perda da infância seria efeito da não garantia dos direitos constitucionalmente estabelecidos? O debate comporta ainda a diferença das crianças de outros tempos para as de hoje. Ainda que não discorde de que os tempos mudaram, Lajonquière não demora a desconstruir o aparato imaginário moderno sobre a infância. Assim, fecha o capítulo com sua ideia: o "infanticídio simbólico". "A insistência atual na bondade democrática e no amor dos adultos, propulsora de um sem número de direitos d'A-Criança (...) indica nossa recusa em manter aberto o interrogante que ela sempre instala: como chegar a estar seguros de algo e falar disso a uma criança?" (p. 199).

O segundo capítulo começa com a palavra de crianças que conduzem o autor a algumas demarcações. As crianças negam possuir aquilo que os adultos supõem que elas detenham: o "saber sobre a infância"; e continua: "as crianças assinalam, ao contrário do que se imagina, serem os adultos os detentores desse saber" (p. 201). Retomando o debate acerca do fim da infância, Lajonquière considera que "ele mascara o fato que criança alguma possui uma infância. Pois, paradoxalmente, só um adulto pode 'ter' uma infância enquanto perdida" (idem). A chegada de uma nova criança provoca no adulto uma inquietação em torno de algo de seu saber. Neste que aparece como um estranho é que o adulto supõe ter alguma resposta sobre si mesmo, sobre o que ficou perdido no passado, sobre sua própria castração. Ora, ao mesmo tempo em que a criança apresenta o estranho, carrega consigo também o familiar. Ademais, o que o autor nos mostra é precisamente aquilo que o discurso psicopedagógico, na ilusão de tudo saber, não quer colocar em questão: "uma infância só existe como perdida, desconhecida, recalcada, motivo pelo qual não cessa de não se escrever, de não se inscrever, de insistir, pulsar em 'nós'. Ela insiste como diferença temporal fazendo-nos estranhos ao presente, estrangeiros com relação a 'nós mesmos'", conclui à maneira de Kristeva (p. 211). Isso que é enigma para o adulto também fazquestão para a criança. É daí, portanto, que ela tem o ponto de partida para desejar este outro mundo adulto.

Os impasses que fazem da educação algo de difícil acontecimento são debatidos no cap. 3, "Estranhas crianças estranhas" – que dá título a este texto. Na medida em que os mais velhos não se colocam frente a frente com o enigma, mas supõe um saber sobre a criança, tampouco permitem que esta se apresente como diferente do que o outro delimitou. O discurso científico hegemônico tem o caráter de "falar para" ou "falar sobre" o outro. Este outro está aí numa posição de receber algo que está pronto e distante. Eis o que Leandro de Lajonquière de modo perspicaz vai denominar "selvagem" ou "extraterrestre": aquele que se deve estudar, admirar ou até repudiar, mas sempre com certa distância. O que propõe a psicanálise é "falar com". Ora, nessa medida, a palavra do outro se insere na cadeia de significantes na qual se pode deslizar e se restabelecer, desde que, na inevitável fenda, se coloque a questão: "que quer de mim esse que assim me fala? Essa pergunta sem resposta conclusiva indica o desejo em causa no ato educativo, um ato de fala no interior do campo da palavra e da linguagem capaz de enlaçar um devir adulto sem fim" (p. 216, 217).

Sobre a diferença das crianças em outros tempos e nos tempos atuais, como indicado na introdução, Lajonquière concebe que as crianças de hoje são tão diferentes das de um passado recente quanto estas também o foram em relação às anteriores. Mas a insistência em enfatizar tal diferença não deixa de chamar a atenção do autor. Nesse sentido, ressalta que "A 'grande... mas tão grande diferença de hoje' não faz da criança um estrangeiro em vias de familiarização, faz dela um selvagem ou um extraterrestre" (p. 217). Assim, completa: "não há educação possível se o pequeno-ser está marcado a fogo pela selvageria ou a extraterritorialidade" (p. 219). Enquanto selvagens ou extraterrestres, a criança não tem educação a ser operada, nem sequer infância a ser perdida. Nessa condição, a criança é efeito da renúncia do adulto. Isto é precisamente o que o autor nomeia "infanticídio simbólico".

A modernidade e a escola inventada por ela são novamente colocadas em xeque no cap. 4. A infância para o homem moderno está imersa em um corpo de ilusões que contornam a esperança de um mundo melhor o qual a criança desfrutará no futuro. A escola, que chama à ordem as crianças, estabelecendo a divisão entre a escola e a casa, entre o mundo público e privado, entre o adulto e a criança, introduz a própria denegação da demanda adulta. Ela, na verdade, não pede às crianças para serem adultas, mas tão somente "parecer ser". Essas diferenciações, na perícia de Lajonquière, parecem ter-se dissolvido nos tempos atuais e isso "implica uma demanda que não se denega a si mesma e, portanto, condena as crianças a responder no real do ato" (p. 226). Nessa demanda, que pretende conduzir a criança a desfrutar um feliz mundo de direitos adquiridos, algo escapa. A representação inconsciente de sua infância agora perdida, e também dessa nova criança, fogem àquilo que qualquer discurso político ou científico queira enquadrar.

"Antes, os livros e a escrita guardavam para si os segredos do mundo adulto. A obtenção da chave para abrir o segredo entranhava o seu aprendizado por parte das crianças" (p. 230). Esta frase indica o que, no cap. 5, Lajonquière discute acerca do lugar da escrita nas diferentes gerações. Hoje, com o amplo e fácil acesso à televisão, não é mais necessário "bisbilhotarmos a biblioteca de nossos pais e avós para encontrarmos aquilo que supúnhamos conter o segredo do savoir-vivre adulto" (p. 230). Lajonquière adverte que a escrita está ligada tanto à "falta de proporção entre gerações" quanto às origens da escola que conhecemos. Além disso, salienta que "ela é uma dobra discursiva no interior do campo da palavra e da linguagem e, portanto, releva a implicação do sujeito no desejo" (p. 234). Por outro lado, a partir de uma remontagem histórica da universalização do ensino no Brasil, o autor percebe que há hoje um entendimento das crianças acerca de uma desvalorização do que é oferecido pela escola, se comparado às ofertas do mercado. Mas contemporiza: esse cenário não pode se configurar como uma condenação e, para tanto, há que se forjar uma outra escrita.

No capítulo final, Lajonquière retoma textos importantes em que Freud inventa a antropologia psicanalítica localizando pontos em que o ser humano precisou renunciar a determinadas satisfações para erguer a civilização. Do parricídio do chefe da horda à criação do totem; bem como à união dos demais em fraternidade e à assunção de um novo pai personificado, Leandro ressalta que "só resta aos homens comuns lembrar que a orfandade de origem os condena a inventar, uma e outra vez, uma aliança igualitária de direitos" (p. 251). A respeito dessa união, o autor volta à Revolução Francesa e relê os nomes que lhe marcaram: Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Todos eles remetem à renúncia de um lugar em contrapartida à possibilidade de inscrição em outro. Mas ressalta que na empreitada da democracia moderna "foi o reconhecimento da fragilidade do laço social que colocou em cena a aliança fraterna", grifa o autor (p. 260). E acrescenta: nos dias atuais, é fato que se prefere não querer saber nada a respeito disso.

Em referência ao seu livro anterior, Infância e ilusão (psico)pedagógica (Vozes, 1999), a ideia de "dívida simbólica" é tomada como ponto fundamental no endereçamento do "velho" para a criança. "A educação – diz o autor – visa a articular simbolicamente um mandato restituitório de uma ordem – de uma exigência – sempre perdida, uma vez que só se educa a partir do lugar da dívida contraída de seu próprio pai" (p. 262). Sobre isso, também nada se quer saber.

Quanto ao estatuto do desaparecimento da infância, e a posição do adulto frente ao projeto da modernidade, Lajonquière esclarece: "a impossibilidade de metaforizar o resto produzido no endereçamento às crianças exprimiria a recusa dos adultos para a dívida simbólica com os pais da democratização da vida societária" (p. 263). Ora, não é pela falta de readaptação ou educação científica para os novos e diferentes seres que a infância poderia não existir, mas sim pela impossibilidade da criança receber a dívida simbólica que o adulto, na impossibilidade de se deparar com sua infância perdida, recusa-se a passar adiante. Uma vez que a contemporaneidade, no rastro do que se pode chamar modernidade e tecnocientificismo, insiste em construir saberes que tentam educar, medicar, psicologizar o real dentro de um imaginário totalizante, Lajonquière mostra fôlego e propõe outro caminho, por meio da psicanálise aplicada: interrogar as supostas verdades e descortinar o resto que não cessa de se inscrever. E concluímos com o autor: que a infância, esta que tenta a duras penas recuperar-se na criança, seja de fato e para sempre perdida no adulto.

 

 

Recebido em outubro/2010
Aceito em novembro/2010

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