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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.16 no.1 São Paulo jun. 2011

 

DOSSIÊ

 

Considerações psicanalíticas sobre o delírio de influência

 

Psychoanalytical considerations on the delusion of influence

 

Consideraciones psicoanaliticas sobre el delirio de la influencia en el psicoanálisis

 

 

Patrick Magalhães Monteiro de Almeida

Psicólogo clínico da Epoc – Espace Psychanalytique d'Orientation et Consultation. Doutorando em Psicanálise no Département de Psychanalyse de l'Université de Paris VIII, França. patrickmma@hotmail.com

 

 


RESUMO

O artigo busca desenvolver reflexões sobre a questão do delírio de influência na esquizofrenia a partir de casos clássicos da história da psicanálise – apresentados sobretudo por Victor Tausk, assim como por S. Freud e Margaret Mahler – colocando em evidência a relação da máquina ao corpo do psicótico, tentando assim tecer considerações a partir da teoria lacaniana para realizar uma leitura atualizada destes casos: uma vez que a compensação imaginária não opera mais para esses sujeitos, tem-se então psicóticos sobre influência, seja por máquinas, seja por um semelhante – consequência direta sobre o corpo e seus orgãos da foraclusão da significação fálica.

Descritores: Victor Tausk; S. Freud; J. Lacan; esquizofrenia; teoria analítica.


ABSTRACT

The article seeks to develop some reflections on the question of the delirium of influence in schizophrenia cases from the history of classical psychoanalysis presented by Victor Tausk, S. Freud and Margaret Mahler – bringing to the light the relationship of the machine to the body of psychotic, trying to develop some considerations from the lacanian theory to perform an updated reading of these cases, since the compensation does not any more operate for these subjects, we have an psychotic under influence either by machines or by a similar – direct consequence on the body and its organs of forclusion of phallic signification.

Index terms: Victor Tausk; Freud; Lacan; schizophrenia; analytical theory.


RESUMEN

El artículo tiene por objeto desarrollar las reflexiones sobre la cuestión del delirio de la influencia en los casos de esquizofrenia de la historia del psicoanálisis clásico, en especial presentado por Victor Tausk, y S. Freud y Margaret Mahler – sacando a la luz la relación de la máquina para el cuerpo de psicóticos, tratando de desarrollar algunas consideraciones de la teoría lacaniana para realizar une lectura actualizada de estos casos, ya que la compensación no opera más de imaginar en estos sujetos, hemos para psicóticos sobre la influencia, ya sea por máquinas o por une similar – consecuencia directa sobre el cuerpo y sus órganos de ejecución de une forclusion de la significación fálica.

Palabras clave: Victor Tausk; Freud; Lacan; esquizofrenia; teoría analítica.


 

 

A uniformidade dos casos clínicos típicos pode
agir como um muro que pararia nosso olhar,
enquanto que uma forma clínica atípica pode
funcionar como uma janela – permitindo
vislumbrar as engrenagens1.

(Victor Tausk, 2000)

 

Freud e Tausk: do temor de plágio à certeza suicida

Em 1907, Victor Tausk não tem 30 anos. Devido a uma hospitalização em Berlim, ele descobre Freud. Desde o ano seguinte, o jovem rapaz se instala em Viena. Ele abandona seu emprego de jurista e inicia os estudos em medicina graças à generosidade de Freud e de alguns de seus colegas.

Paul Roazen (1971) comentou outrora a relação complexa que unia Tausk a Freud. Sabe-se, por exemplo, que Freud recusa aceitar Tausk em análise, e que ele o endereça a Hélène Deutsch – esta que, por sua vez, interrompe o tratamento de Tausk por instigação de Freud. Segundo Roazen, o suicídio de Tausk, em 1919, teria sido, pelo menos em parte, causado pelo conflito entre o jovem analista ao mestre vienense. A rivalidade entre os dois homens era profunda e falou-se mesmo de plágio recíproco.

De todo modo, Tausk, uma mente a qual todos estavam de acordo a saudar o brilho, se interessou imediatamente pelas psicoses, preenchendo de alguma forma o vazio deixado pela deserção de Carl Jung. Ele deixou uma obra de tamanho modesto, em torno de 14 artigos, embora remarcável. A mais conhecida de suas contribuições continua sendo Da gênese do 'aparelho de influenciar' no curso da esquizofrenia, que data de 1919, ano de sua morte (Roazen, 1971). No curso deste artigo, Tausk desenvolveu reflexões sobre a clínica dos delírios de influência por máquinas. Seu estudo tornou-se um caso clássico da história da psicanálise – mesmo se ainda hoje ele é pouco conhecido. Apesar de suas explicações um tanto quanto confusas, sobrecarregadas de conceitos que ele atribui a Freud, Abraham e sobretudo a Ferenczi, podemos, no entanto, atestar que Tausk fez brilhantes descrições da "máquina de influenciar" (Tausk, 1919/2000).

 

Das personalidades "como se" à influência das máquinas

No decorrer do artigo, Tausk descreve as ações motoras e sensações no corpo do doente – ereções e poluções, as quais são destinadas sobretudo a enfraquecer o sujeito, privando-o de sua potência fálica pela ejaculação. Essas ejaculações são acompanhadas de fenômenos somáticos diversos, sobretudo erupções cutâneas: todas essas manifestações são oriundas do delírio de influência, que acaba por levar o paciente a um estado de catatonia absoluta.

Essa clínica de Victor Tausk alimentou os desenvolvimentos ulteriores da clínica sobre a esquizofrenia: seja dos casos relatados por Magaret Mahler (1977) e mesmo à conceptualização do "corpo sem orgãos" de Deleuze e Guattari (1972). Em cada relato, trata-se da relação da máquina ao corpo do sujeito psicótico.

De um lado, sabemos que a esquizofrenia apresenta frequentemente fenômenos de transitivismo afim de remediar a exclusão, mesmo a rejeição, Verwerfung, de um elemento capital da matriz simbólica do sujeito – o que na teoria lacaniana das psicoses denomina-se a foraclusão do Nome-do-pai (Lacan, 1966b, 1981). Esse gênero de psicose é estabilizado por meio de invenções imaginárias que passam pela via da identificação a um outro (Brousse, 1988), um semelhante, que está próximo: é o caso do que se chamara outrora de personalidades "como se" (Deutsch,1943/ 2007a e 1942/2007b) – e que hoje alguns autores utilizam o diagnóstico de "psicoses ordinarias" (Miller, 2005, 2009), ou mesmo os sujeitos esquizofrênicos ou pré-psicóticos descritos por Mauritz Katan (1958). Entretanto, uma vez que este tipo de cura pelo imaginário – que deixa o sujeito numa alienação que decorre do tempo lógico do estádio do espelho – não sustenta mais o sujeito, nos afrontamos a sujeitos sobre influência das máquinas, como no estudo de Tausk (1919/2000).

 

A clínica de Victor Tausk

É a partir de um caso único que Tausk tentou dar conta do início e da finalidade psíquica da "máquina de influenciar" no esquizofrênico. Ele se serve então de instrumentos psicanalíticos: segundo Tausk, a clínica psiquiátrica, uma vez que não leva mais em consideração as dimensões simbólicas do sintoma, não seria capaz de elaborar uma visão geral do mecanismo psíquico (Tausk, 1919/ 2000, p. 178).

Manifestação tardia da doença "criada pela necessidade de causalidade imanente ao homem" (Tausk, 1919/2000, p. 180), Tausk teoriza que "o aparelho de influenciar" esquizofrênico é uma máquina de natureza mística que, segundo os doentes, os persegue. Em suma, o aparelho serve a "perseguir o doente e é manipulado pelos inimigos": estes seriam de preferência do sexo masculino e estariam constantemente encarnados na pessoa do médico. O aparelho produz cinco efeitos principais: 1) apresentação de imagens aos doentes, visto em um único plano; 2) produção e roubo dos pensamentos e sentimentos (os perseguidores seriam capazes de transmitir ou de roubar pensamentos e sentimentos – o que permitiria nomear este aparelho de aparelho de sugestão); 3) produção de ações motoras no corpo do doente; 4) produção de sensações percebidas como estranhas, o que explica o porquê – fora as sensações sentidas como correntes energéticas – do doente ser incapaz de descrevê-las; 5) o aparelho seria também responsável por outros fenômenos somáticos nos doentes.

Todavia, Tausk descreve um segundo grupo de doentes esquizofrênicos que renunciam a satisfazer as suas necessidades de causalidade. Dito de outra maneira, eles não atribuem essas manifestações a uma máquina e se queixam sobretudo de um sentimento de alienação, de sentimentos de transformação2 e de fenômenos de estranheza física e psíquica, sem os atribuir a um responsável. Neste sentido, não se trata de imposição de pensamentos. Vejamos o que diz Victor Tausk (1919/2000): "Os doentes tornam-se estranhos a si-mesmos, eles não se compreendem mais – seus membros, seus rostos, sua expressão, seus pensamentos e seus sentimentos sãolhes alienados." (p. 181).

Como exemplo do estadio evolutivo do delírio de influência, podemos nos referir à clínica de Tausk – no caso de "paranoia somática" de Emma A. Esta paciente tinha um sentimento de influência por identificação3 ao perseguidor – que não era outro que seu amado:

Ela dizia que seus olhos não estavam corretamente posicionados no seu rosto, que eles estavam tortos. Isso provinha do fato de que seu amante era um homem ruim, um mentiroso, que fazia 'entortar os olhos'4. Um dia, na igreja, ela sentiu um solavanco, como se ela se encontrasse movida de seu lugar, pois seu amante era alguém que dava uma falsa impressão dele e que ele tinha-lhe tornado ruim e semelhante a ele mesmo (Tausk, 1919/2000, p. 183, tradução nossa).

Esse caso permite verificar a hipótese tauskiana: existiria um estadio evolutivo do delírio de influência que precede o que ele denomina, influenciado pelos estudos de S. Ferenczi (1914/1978), a "projeção" do sentimento de influência num perseguidor colocado à distância no mundo exterior, tal perseguidor podendo vir a tomar a forma de uma máquina.

Freud retoma este mesmo caso no capítulo VII, "Avaliação do inconsciente", do seu artigo O insconsciente (Freud, 1915/1968). Ele estuda o caso desta esquizofrênica que, após uma ruptura amorosa, sente curiosas sensações; ela pensa que uma força lhe entorta os olhos e que algo a muda. Trata-se do caso mais clássico da teoria freudiana, que permite examinar e colocar em evidência a linguagem metafórica da histeria diante de uma outra linguagem – que Freud chama "a linguagem dos orgãos".

Ora, essa linguagem é também uma característica do discurso esquizofrênico, no qual é preciso tomar a descrição "ele me entortou a cabeça" ao pé da letra. A distinção é fina e recorre justamente apenas ao significante – enquanto que o significado em si mesmo pode ser prontamente psicológico, no sentido do "ele me entortou a cabeça", que poderia querer dizer "ele me seduziu" (Cottet, 2009).

Salvo que, no caso em questão, a garota tem realmente a sensação que sua cabeça entortou – a saber que a significação fálica amorosa está, precisamente, abolida. Isto significa que ela é perseguida no real por este sujeito que age à distância. Ela lhe atribui uma influência sobre seu próprio corpo: o que decorre do significante do desejo a influencia. É o significante que desencadeia o fenômeno amoroso, o significante do falo em jogo no gozo sexual; ora essa dimensão está foracluida, abolida. Então, o sujeito encontra-se sobre a influência nefasta de um outro ruim sobre o estado do seu corpo e de seus orgãos. Em consequência, os olhos não estão no seu devido lugar, eles estão "tortos". E, se seguimos nossa leitura, saberemos que na igreja, a doente sente repentinamente um solavanco e que, nos diz Freud, "ela teve de mudar de posição, como se alguém a estivesse pondo numa posição, como se ela estivesse sendo posta numa certa posição." (Freud, 1915/ 1978, p. 112, grifo nosso).

Neste sentido, não se trata mais de questão de linguagem metafórica. O homem a mudou de posição, mas no sentido de um rebaixamento, porque o amante

que era vulgar, ... a tornara vulgar também, embora ela fosse naturalmente requintada. Ele a fizera igual a ele, levando-a a pensar que era superior a ela; agora ela se tornara igual a ele, porque ela pensava que seria melhor para ela se fosse igual a ele. Ele a enganou, dera uma falsa impressão da posição dele; agora ela era igual a ele (por identificação), ele a pusera numa falsa posição (Freud, 1915/1978, p. 112, tradução e grifo nossos).

Quer dizer, ela tornou-se como ele, passando de burguesa à proletária no sentido real da transformação – de um delírio de transformação corporal. Uma confirmação, em suma, do enunciado lacaniano segundo o qual, na esquizofrenia "todo o simbólico é real" (Lacan, 1954/1966a, p. 392). Uma fórmula que retoma o enunciado freudiano, estipulando que esta paciente "trata as palavras como coisas" (Freud, 1915/1978).

Logo, nesse sintoma esquizofrênico, a paciente teve a sensação que o outro à distância entorta-lhe a cabeça e os olhos, experimentando assim a impulsão do Outro ruim, que tomou o sujeito como uma marionete e o controla por meio de cordéis.

 

O caso de Natália A. e a máquina diabólica

Um outro caso relatado por Tausk é o de uma mulher de 31 anos, ex-estudante de filosofia, que se tornou completamente surda devido a uma infecção maligna na orelha. Sua surdez forçava-lhe a se comunicar por escrito nas suas relações. Ora, a paciente diz-se encontrar, desde os seis anos e meio, submetida à influência de um aparelho eletrônico. Este teria sido fabricado em Berlim e teria a forma de um corpo humano, idêntico ao da doente. Desde então, a paciente se encontra conectada ao aparelho por um tipo de telepatia e coloca o acento sobre uma relação imaginária, mesmo de transitivismo com o aparelho, que ela percebe como sendo um duplo de seu próprio corpo: "o fato mais importante é que se manipula este aparelho de uma maneira qualquer e que tudo que acontece com o aparelho se passa efetivamente no nível de seu próprio corpo" (Tausk, 1919/2000, p. 188). Seus conhecidos encontram-se também submetidos à influência deste aparelho ou de aparelhos análogos. Os malfeitores que manipulam o aparelho pertubam o pensamento da doente, sua fala e sua escrita.

Tausk sabe, no curso do delírio, que a paciente estaria familiarizada com a construção do aparelho. Um dos malfeitores seria um homem, um professor universitário de quem a paciente teria recusado os galanteios. Ele agiria por ciúme. Após ver seu pedido de casamento recusado, o pretendente teria influenciado a mãe da paciente por meio de sugestões, de modo a criar um laço de amizade com sua cunhada e, assim, aproveitar sua influência para que sua amada reveja sua decisão. Segundo a paciente, uma vez que a sugestão falhou, o pretendente recorreu ao aparelho de influenciar.

A máquina é uma verdadeira representação projetiva do corpo da doente no mundo exterior: pode-se mesmo encontrar seus órgãos genitais. Ora, é a partir da demanda de casamento do pretendente que a doente tenta uma recusa do Outro, o qual retorna pela via real do delírio de influência no aparelho diabólico, pois a doente sente todas as manipulações nos locais correspondentes de seu próprio corpo. Essa demanda, a doente não teria podido declinar, sem que isso provocasse nela um conflito. Conclusão de Tausk: a projeção do corpo próprio da doente na máquina de influenciar é nada mais do que um mecanismo da projeção parcial de tendências ambivalentes. Dito de outro modo, pode-se observar, neste caso, o mesmo mecanismo do caso precedente: é o significante do desejo, o falo, abolido na sua dimensão simbólica, que faz retorno no real alucinatório no delírio de influência.

Hélène Deutsch (1919/2000), durante uma discussão na Sociedade Psicanalítica de Viena, em 1919, relata um caso de uma clínica que, é nossa hipótese, pertence a um estádio preliminar da "maquina de influenciar": a clínica do negativismo esquizofrênico. Trata-se de uma esquizofrênica de 34 anos cega, de natureza "sonhadora e introvertida". Vítima de um delírio de filiação, ela estava convencida não apenas que as pessoas em sua volta sofriam de cegueira como ela, mas que estas pessoas faziam constantemente o inverso do que ela fazia – o que corresponderia a um sintoma psicótico de projeção de uma das tendências conflitivas da doente em direção ao exterior. Deutsch precisa: "Quando ela começava a trabalhar, os outros interrompiam seu trabalho e só recomeçavam quando ela parava de trabalhar. Quando ela comia, os outros ficavam em jejum. Quando ela bebia, os outros não podiam beber. Quando ela deitava, os outros se levantavam" (Deutsch, 1919/2000, p. 24).

Em consequência, o meio social desta esquizofrênica teria adotado uma conduta negativista e ambivalente. Vê-se neste caso, ainda, a ideia da perda dos limites do eu ligados a ambivalência das noções pulsionais. Dito de outra maneira, o imaginário separado do simbólico deixa o sujeito num certo transitivismo, onde não existe estrita diferença entre as impulsões de seu proprio eu e o império do mundo exterior. Depois desta fase transitória, temos o momento de regressão na psicose, causada pela influência do Outro deslocalizado. Por exemplo, quando a paciente explica que as sensações relacionadas à forçagem da defecação lhe são impostas, transmitidas do exterior, pelo seu meio: "Quando eu faço isso... eles me fazem isso, eles me mostram tudo isso... isso empuxa... eles fazem que isso me seja tão agradável... como se eu devesse fazê-lo... é como se eu fosse uma criança, eles fazem que isso empuxe, as fezes e tudo o mais, e depois isso sai... eles fazem de mim uma simples criança... e depois é mais forte que eu, eu tenho vergonha diante do senhor, doutor. Não sei quem eles são... todos, a me fazer isso..."(Deutsch, 1919/2000, pp. 24-25).

 

A esquizofrenia: perda dos limites e política de avestruz do eu

Retornemos a Natália A. Essa paciente de Tausk, a partir de um dado momento, relata que o aparelho passa por um processo progressivo de desnaturação: ele perde os signos distintos de sua forma humana para se transformar em "uma máquina de influenciar típica e incompreensível" (Tausk, 1919/2000, p. 192). Tal processo de distorção progressiva nos leva à hipótese de um para-além da regressão tópica do estádio do espelho. Neste momento, essa regressão é representada absolutamente pelo seu aparelho, que não é outro que uma transfiguração da imagem humana. Tem-se, por resultado, o sintoma esquizofrênico absoluto, que é a perda dos limites do eu, segundo V. Tausk5.

Esse sintoma encontra-se de modo frequente: diversos sujeitos ditos esquizofrênicos queixam-se de terem seus pensamentos roubados – todo mundo conheceria seus pensamentos, estes não estariam mais presos nas suas cabeças, mas estariam, ao contrário, espalhados pelo mundo, de tal modo que eles circulariam simultaneamente em todas as cabeças (Tausk, 1919/2000, p. 194). Tem-se assim um tipo de regressão ao estádio do espelho – por exemplo, quando uma criança está convencida de que é possível ler seus pensamentos: uma faculdade que ela atribui aos seus pais, ou, por exemplo, a um Deus onisciente. Uma observação que vem consolidar a tese lacaniana que estipula que a fala vem do Outro, pois: "a criança, com a linguagem, recebe seus pensamentos dos outros, e sua crença que os outros conhecem seus pensamentos aparece fundada no fato, como no sentimento, de que os outros lhe "fazem" a fala e, com ela, os pensamentos" (Tausk, 1919/2000, p. 195).

Tausk se põe a questão da origem do eu e de sua formação em termos de unidade psíquica. Com efeito, o eu é formado por reação ao mundo exterior. Na sua constituição imaginária, Tausk nos fala de dois estádios: o estádio da identificação e o estádio do achado do objeto (Objekt-findung).

Retenhamos o estádio da identificação porque, nos parece, é precisamente aí que reside o problema da psicose (Naveau, 1988). Esse estádio se situaria num "período durante o qual não existe para o homem objeto do mundo exterior, quer dizer, nem mundo exterior, nem objeto, e por conseguinte, não existe nem eu, nem consciência do sujeito" (Tausk, 1919/2000, p. 196).

Tausk se serve da chave da "renúncia ao mundo exterior exprimida na 'linguagem dos orgãos'" (Tausk, 1919/2000, p. 205), quer dizer, do fantasma de um retorno ao seio materno6 pela morte para explicar diversos sintomas esquizofrênicos: "ele aparece como sintoma da esquizofrenia enquanto que realidade patológica do psiquismo em regressão. A múmia retorna ao seio materno pela via de uma morte corporal, o esquizofrênico pela via de uma morte espiritual" (Tausk, 1919/2000, p. 205).

Dito de outra maneira, essa renúncia decorre do imaginário, do narcisismo do sujeito ou do período "anobjetal" (objektlos) da libido do sujeito, segundo Freud. O que é posto em questão é a identificação ao corpo próprio. A identificação se produz com o estádio do espelho, dando a unidade imaginária ao eu, ao corpo, recalcando a experiência do corpo despedaçado do recém-nascido (Lacan, 1949/1966c). No esquizofrênico, no entanto, o achado do objeto não ocorre no nível dos orgãos: o autoerotismo não tem relação com os orgãos enquanto que fonte de prazer – o que é, aliás, a hipótese freudiana segundo a qual a libido do esquizofrênico encontra-se abaixo do autoerotismo7.

 

Um precursor da máquina de influenciar: o caso Stanley de Margaret Mahler

No final dos anos setenta, uma teórica da psicose infantil, Margaret Mahler, apresenta o caso Stanley como um precursor da máquina de influenciar de Tausk (Mahler, 1977). Em resumo, segundo Mahler, este garoto projetaria as sensações internas de seu corpo, assim como outras manifestações somáticas sobre os fenômenos mecânicos, aos quais ele os identificava. Estádio anterior ao de Natália A. de Tausk, em que ela é influenciada pela máquina, o garoto Stanley é inteiramente máquina. Mahler interpreta a situação da criança como a consequência de um fracasso da discriminação perceptiva do eu, explicando-a por um estado narcísico, no qual, nos diz Mahler, o eu torna-se fragmentado e as fronteiras do self confusas, fusionadas às da mãe (Malher, 1977, p. 153).

A propósito da diferença maior entre o adulto e a criança psicótica, Mahler (1977) pontua "que no adulto a máquina externa alucinada (projetada) influencia o self, enquanto que na criança psicótica a qualidade que a influencia vem ainda manifestamente de sua própria representação do self e é então projetada (secundariamente) no universo externo" (p. 154).

Comentando sobre este caso, Eric Laurent (1980) demonstra a dimensão de assujeitamento ao significantemestre (S1) no qual Stanley, aliás, como todos os psicóticos, é tomado. Ou seja, vemos aí a ideia segundo a qual a simbiose só existe com o significante, mas, para a psicose, esta simbiose encontra-se fora da dimensão simbólica da operação lógica da separação (Laurent, 1980). Este caso testemunha, assim, sobre o modo que a estrutura da psicose decorre do automatismo mental.

Como demonstra Laurent, o que opera na clínica do delírio de influência pelas máquinas são os "fenômenos de atração e de rejeição do Outro" (Laurent, 1980, p. 223), um tipo de lógica da alienação e da separação – o que pode-se ver inclusive no que é singular do caso do garoto Stanley: "inteiramente máquina influenciada, ele é objeto a, atirado e repulsado pelo significante"8.

 

Delírio de influência do desarranjo fálico

Que interpretação lacaniana poderíamos dar à "maquina de influenciar"? Seguindo as conclusões de V. Tausk, podemos supor, como ele o faz, que "a máquina de influenciar" seria o termo final da evolução de um sintoma, de um mesmo movimento que teria sido iniciado por simples sentimentos de transformação, "sintoma condensador de gozo" do esquizofrênico, como nos indica Hulak (2008, p. 167).

Quanto ao delírio de influência de Natália A. de Tausk, podemos concluir que ele se apresenta como uma variante do estádio do espelho aplicado à esquizofrenia: temos então uma màquina que pareceria cada vez mais com o corpo humano, num tipo de gradação do estádio do espelho. Vimos também que existem formas em que a máquina é completamente inumana e não-perseguidora, e outras em que ela parece cada vez mais à imagem do sujeito – e é neste último caso que a máquina se mostra mais perseguidora.

Esse caso nos mostrou que o esquizofrênico pode fazer uma suplência da articulação simbólica da linguagem "maquinizando" seu corpo, seja se conectando a uma máquina, seja a um outro semelhante: ele decorre, assim, de uma alienação que é a da ordem do estádio do espelho. Numa relação mimética, poder-se-ia mesmo dizer que se trata de um "transitivismo mecânico" ao outro especular.

Uma outra referência muito interessante para esta clínica é a teorização de Paul Federn (1979) sobre as psicoses e seu tratamento, em particular seu trabalho sobre os limites do eu na esquizofrenia. Podemos pensar, por exemplo, na articulação entre os limites do corpo e a imagem fálica: fora da função significante dos seus orgãos, o sujeito encontra-se abandonado a uma significação generalizada do corpo, num tipo de estado nativo do sujeito, como preconizava Deleuze e Guattari (1972) com seu "corpo sem orgãos".

Mas, enquanto que Deleuze e Guattari falam de "corpo sem orgãos", acrescentaríamos a hipótese lacaniana do esquizofrênico como um "corpo sem discurso" (Lacan, 1973/2001, p. 474), se considerarmos a linguagem como um orgão que pré-existe ao sujeito. Quer dizer, é a posição do esquizofrênico que faz emerger o enxame, essaim, de significantes irremediavelmente dispersado devido à ausência do ponto de capiton do Nome-do-pai e do semblante da significação fálica para coordenar seu gozo desregulado.

Ora, vemos muito precisamente os efeitos do campo da foraclusão da significação fálica na clínica da esquizofrenia. Isto nos conduz à uma resposta para a questão colocada por Jacques-Alain Miller: "que deve ser esta foraclusão, para que ela se repercuta precisamente sobre o sentimento do organismo?" (Miller, 1983, p. 32) em termos de foraclusão fálica, ou seja, dos efeitos de phi zero (Φ0). Com a foraclusão do Nome-do-pai (P0 → Φ0), é o princípio de uma normalização fálica do gozo que é posto em falha – de onde o esquizofrênico, "na sua dificuldade com os seus orgãos, ele testemunha efetivamente de um estado nativo do sujeito" (Miller, 1983, p. 33): fora da função significante de seus orgãos, o sujeito encontra-se abandonado a uma significação generalizada do corpo – experiência do retorno da desregulação do gozo no corpo próprio.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em janeiro/2011.
Aceito em fevereiro/2011.

 

 

NOTAS

1 Victor Tausk. "De la genèse de "l'appareil à influencer" au cours de la schizophrénie" ["Da gênese do 'aparelho de influenciar' no curso da esquizofrenia"] (1919), Œuvres psychanalytiques. Paris: Éditions Payot & Rivages, 2000, p. 178.

2 Apesar da tentativa de estabelecer um processo de desenvolvimento evolutivo contínuo único nesse delírio de influência, Tausk vê esses sintomas como secundários ou derivados – seja que eles estão mascarados por uma psicose ou uma neurose associada ou consecutiva ou mesmo pertencendo a um grupo mórbido (cf. p. 182 da referida obra).

3 A identificação representa, para Tausk, um intermediário entre o sentimento de alienação e o delírio de influência.

4 Podemos afirmar que é a partir deste enunciado que Freud faz a hipótese de que nos esquizofrênicos, o pensamento trata as coisas concretas como se elas fossem abstratas (cf. Sigmund Freud, Métapsychologie, Gallimard, 1968, p. 121).

5 Mas foi a seu amigo, Paul Ferdern, a quem foi atribuído este conceito, Cf., Paul Roazen, op. Cit.

6 Aqui Tausk tenta aplicar a teoria de Ferenzi do desenvolvimento do sentido de realidade e seus estádios. Encontra-se aí as fontes de seu fantasma do retorno ao seio materno, o retorno a esse "velho bom tempo" mítico, período de toda-potência incondicional alucinatória e mágica. Aplicando-a ao seu delírio de influência, Tausk, queria sinalizar que a equivalência patológica desta regressão seria a realização alucinatória dos desejos nas psicoses. Cf. sobre este ponto, Sandor Ferenczi "Le développement du sens de réalité et ses stade" [O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estádios] (1914), Œuvres complètes 2: 1913-1919: Psychanalyse 2, Paris: Payot, 1978, pp. 51-65.

7 Dito de outra maneira, são os estudos de Rosine e Robert Lefort (1988) que demonstram que as crianças esquizofrênicas não acederam ao estádio do espelho, ao estádio sintético da imagem.

8 Tratar-se-ia de uma lógica de alienação e de separação. Eric Laurent interpreta essas duas subfases que Mahler distingue neste estabelecimento da psicose dita de simbiose de Stanley: $ (Os fenômentos de batimento) – a (A excitação e o estupor).

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