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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.16 no.1 São Paulo jun. 2011

 

ARTIGO

 

Processos de construção de maternagem. Feminilidade e maternagem: recursos psíquicos para o exercício da maternagem em suas singularidades

 

Processes of mothering construction motherhood and feminity: psychic resources for the practice of motherhood in its singularities

 

Procesamiento de la construcción de maternidad femineidad y maternidad: recursos psíquicos para que una mujer sea madre

 

 

Regina Maria Ramos StellinI; Camila Fonteles d'Almeida MonteiroII; Renata Alves AlbuquerqueIII; Cláudia Maria Xerez Camara MarquesIV

IPsicóloga e Psicanalista, professora do curso de Psicologia da Universidade de Fortaleza, coordenadora do Projeto de Pesquisa Processos de Construção de Maternagem. rmrstellin@gmail.com
IIPsicóloga, Mestre em Psicologia pela Universidade de Fortaleza, participante do Projeto de Pesquisa Processos de Construção de Maternagem. camilafonteles@hotmail.com
IIIPsicóloga e Pedagoga, Mestre em Saúde Pública pela Universidade Estadual do Ceará, participante do Projeto de Pesquisa Processos de Construção de Maternagem. alves_psi@yahoo.com.br
IVPsicóloga, participante do Projeto de Pesquisa Processos de Construção de Maternagem. claudiaxc6@hotmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo discute questões relacionadas à maternidade e feminilidade e tem como objetivos verificar os recursos psíquicos necessários para que uma mulher se constitua como mãe. Partimos de uma pesquisa qualitativa realizada com gestantes de dois serviços de pré-natal. Os discursos coletados a partir das entrevistas foram divididos em duas categorias e analisados de acordo com a teoria psicanalítica. Podemos supor que para exercer a maternidade é necessário que a mulher disponha de recursos psíquicos específicos. Existe uma singularidade psíquica para se inserir neste lugar de mãe.

Descritores: maternidade; feminilidade; psicanálise.


ABSTRACT

This paper discusses questions related to motherhood and femininity and aims to verify which psychic resources a woman needs to become mother. We started from a qualitative study with expected mothers who attend prenatal service in two health institutions. The speeches collected from the interviews were split into two categories and analyzed according to the psychoanalytic referential. We supposed that is necessary for a woman to have specific psychic resources to exercise motherhood. There is a psychic singularity to become mother.

Index terms: motherhood; femininit; psychoanalysis.


RESUMEN

Este artículo plantea cuestiones que tiene relación con la maternidad y femineidad y tiene el objetivo de verificar los recursos psíquicos necesarios a que una mujer sea madre. Empezamos con una investigación cualitativa con mujeres embarazadas que eran atendidas en dos centros de prenatal. Los discursos producidos en las entrevistas fueron divididos en dos categorías y analizadas a partir de la teoría psicoanalítica. Si supone que para ser madre la mujer necesita de recursos psíquicos específicos. Hay una singularidad psíquica para ser madre.

Palabras clave: maternidad; femineidad; psicoanálisis.


 

 

Avante, coração! Sê insensível! Vamos! Por que tardamos tanto
a consumar o crime fatal, terrível? Vai, minha mão detestável!
Empunha a espada! Empunha-a! Vai pela porta que te
encaminha a uma existência deplorável e não fraquejes!
Não lembres de todo o amor que lhes dedicas e de que lhes deste
a vida! Esquece por momentos de que são teus filhos, e depois
chora, pois lhes queres tanto bem, mas vais matá-los!
Ah! Como sou infeliz!
Eurípedes, Medeia

 

A citação que inicia este texto está inserida no monólogo de Medeia e expressa sua conflitiva materna. Mulher de Jasão, por quem deixou sua terra, sua família, abdicando de suas origens e laços. Ao ser abandonada por este, assassina seu companheiro, a mulher por quem fora substituída e seus dois filhos. A intensidade do texto da tragédia grega aponta uma condição humana: a mãe filicida. A mãe que mata seu filho está no extremo daquelas mulheres que não têm condições de cuidar de sua cria. No outro polo, está a mulher dedicada ao filho, que configura a mãe por excelência da modernidade.

Sabemos historicamente que nem sempre a mulher exerceu este papel de mãe devotada aos filhos. Até por volta do século XV e XVI, os sentimentos de família e de infância eram inexistentes. Cenas de família eram raras, embora houvesse a instituição família propriamente dita, enquanto realidade vivida. Os filhos não eram tratados com cuidados especiais e geralmente enviados a amas-de-leite, mulheres camponesas e pobres que cuidavam destas crianças até certa idade (Ariès, 1981; Badinter, 1987).

Somente com a modernidade, na constituição da família nuclear e valoração do infantil, surge a função de mãe cuidadora. A mulher foi reduzida à figura de mãe em uma época de grande influência das regras da medicina e do poder médico. Aquelas que não exercem seu papel primordial social são valoradas na maldade ou então enquadradas na patologia (Costa, 2004; Martins, 2007). Na contemporaneidade, essa situação vem se modificando e o significante maternidade/feminilidade parece estar se dissociando. Novos modelos familiares surgem levantando questões como o declínio da função paterna e um novo lugar para o feminino (Roudinesco, 2003).

A psicanálise, saber que norteia este escrito, rompe com a ideia de um amor materno instintivo. A partir da criação do conceito de pulsão, Freud (1905/1996b) coloca os determinantes do sujeito para além da ordem do natural. O sujeito é subordinado às determinações eróticas, mesmo na satisfação das denominadas necessidades básicas; dessa forma, os cuidados necessários para uma criança, promovidos em geral pela mãe, são permeados por questões pulsionais na via do desejo. Portanto, o exercício da maternagem não pode ser pensado unicamente pela necessidade que uma criança tem de ser cuidada.

Winnicott (1956/2000) estabelece as condições necessárias para uma boa função materna com seu conceito de mãe suficientemente boa como aquela capaz de atender as necessidades do seu bebê. O cuidado não se restringe à manipulação física e a suprir as necessidades básicas, mas a uma disponibilidade psíquica da mãe para com o seu bebê, às palavras ditas a este filho, ao investimento de desejo (Catão, 2004). Portanto, a maternagem, neste estudo, diz respeito aos recursos psíquicos que uma mãe emprega para que seu filho se constitua como sujeito.

A relação mãe-filho é de uma particularidade ímpar. De um lado, um sujeito em estado de prematuridade, que o faz totalmente dependente dos cuidados de um outro nos primeiros tempos de vida. De outro, alguém que exerce a função de mãe, este Outro primordial que insere a criança na linguagem, na cultura constituindo-o como sujeito (Jerusalinsky, 1988; Ocariz, 2004). Uma mulher não se configura primordialmente como mãe, a função materna é um processo de construção, ou seja, fundamentalmente efeito de uma operação psíquica.

 

Uma leitura psicanalítica da maternidade

Freud (1905/1996b) constrói um modelo para sexualidade humana baseado na sexualidade masculina, havendo um primado do pênis o que levaria a uma inveja da menina ao constatar a ausência deste órgão em seu corpo. Essa inveja do pênis é encarada como condição da feminilidade e permaneceria intacta no processo de subjetivação da mulher adulta. A neurose feminina seria o desejo infantil reprimido de possuir um pênis, desejo este substituído pela vontade de ter um filho.

Freud posteriormente modifica sua teoria da sexualidade reordenando o complexo de Édipo em torno da fase fálica e do complexo de castração. Estabelece um primado do falo e não do pênis de modo que a sexualidade feminina não é mais pautada no modelo masculino.

Em A sexualidade feminina (1931/1996d), Freud considera para a mulher três possibilidades de inscrição na cultura como sujeito sexuado. A primeira seria a inibição da sexualidade, a segunda a fixação na inveja do pênis, e a terceira a maternidade. O filho equivaleria então ao falo. Freud explica esta saída como a normal e desejável, além de considerá-la como uma experiência fálica (Faria, 2004).

É na relação com a mãe que a criança é experienciada como o que falta à mãe, ou seja, o falo. Se a mãe deseja o falo, a criança quer ser este para satisfazê-la, colocando-se no lugar de objeto de desejo desta mãe. É o desejo desta que condiciona, estando o filho capturado no lugar de significante primordial do desejo (falo) deixando a mulher presa no lugar de mãe.

O desejo de filho sutura o nada da mulher, configurando um obstáculo ao gozo. O falo separa o mundo da sexualidade (insatisfeita) do mundo do gozo (absoluto). É por isto que as mulheres desejam filhos-falos transformando-se em mães.

Alguns psicanalistas contemporâneos vêm refutando esta ideia de filho equivalente ao falo. Para Sigal (2002), as questões da maternidade não se definem somente pelo Édipo, não podendo se afirmar que todo filho é um falo, já que nesse processo se entrecruzam questões de gênero, etnia, classe social, história individual, formando uma trama relacional que constitui realidades psíquicas singulares. Por ver no filho algo mais que um falo, reconectando-se com outras fontes de prazer narcísico, é que existe a possibilidade que a mãe deixe seu filho construir sua própria subjetividade.

Temos que considerar que existem outras condições próprias do feminino que colocam demandas. Há na mulher um desejo erótico e seu narcisismo tem outras fontes de satisfação, não só sexuais. Daí podermos pensar que ter um filho-pênis não é a única forma de satisfação, pois isso cairia num reducionismo. Não podemos reduzir a constituição da subjetividade a uma determinação única: desejo de completude.

Diante dessas reflexões teóricas sobre a maternidade, este trabalho tem como objetivo discutir os recursos psíquicos necessários para o exercício da maternagem de acordo com uma leitura psicanalítica. Para refletir sobre estas questões, partimos da análise dos dados de uma pesquisa realizada com gestantes em dois serviços públicos de pré-natal, em um espaço de tempo que contemplou a gravidez e os seis primeiros meses de vida do bebê.

 

Sobre a pesquisa

Uma pesquisa qualitativa foi realizada com os objetivos de entender as condições psíquicas que uma mulher desenvolve para poder cuidar de seu bebê, e discutir fatores que influenciam esse processo de construção da maternagem, observando a constituição do vínculo mãe/filho ao longo do período gestacional até o pós-parto. Por meio de um estudo longitudinal, foram entrevistadas 13 gestantes com idades entre 20 e 37 anos, e entrada na pesquisa até 24 semanas gestacionais.

O estudo ocorreu em dois ambulatórios de pré-natal da rede pública de Fortaleza-CE. As entrevistas foram semiestruturadas, realizadas em intervalos de trinta dias. A temática "constituir-se mãe" foi o ponto de apoio para a fala livre das mães. O período de acompanhamento abrangeu a gestação e os primeiros seis meses de vida da criança. Os dados coletados foram transformados em relatos, submetidos posteriormente a uma interpretação discursiva, a partir de uma leitura psicanalítica.

As entrevistas transcorreram em um período de um ano e meio, portanto um vínculo foi estabelecido entre as gestantes/mães com as pesquisadoras, contribuindo para o comprometimento na pesquisa. Durante as entrevistas, surgiram diversas questões tais como descoberta da gravidez, mudanças ocorridas, relacionamento conjugal, imaginarizar o filho, gravidez e trabalho e relacionamento mãe/filho após o parto. Após análise, os relatos foram divididos em duas categorias mais abrangentes, a saber, questões sobre o tornar-se mãe e questões sobre o sentir-se mãe.

 

Uma gravidez que se inicia: relatos sobre o tornar-se mãe

Nesta primeira categoria destacamos os discursos referentes ao planejamento da gravidez, as mudanças ocorridas, as que poderão ocorrer após o nascimento e os medos e sentimentos em relação ao parto. Relacionado a essas questões, estão os fatores físicos e sociais influenciadores da gestação, tais como doenças e condições socioeconômicas.

Uma das primeiras questões levantadas nas entrevistas relaciona-se ao planejamento da gravidez. A maioria diz ter engravidado por vontade do marido, indicação médica ou sugestão de terceiros. Em primeira instância, parece não haver implicação na gravidez, alocando-a para outras pessoas, o que expressa indagações sobre o desejo materno. Sales (2000) ressalta que quando o filho passa de uma condição imaginária e se faz real com a descoberta de uma gravidez, ocorre uma ambivalência materna entre o desejo e o querer, que para psicanálise é diferente. Muitas vezes ocorre um planejamento da gravidez, mas sem o desejo de ter filho. Nesse contexto, percebemos que a exigência social é investida no lugar do desejo, na inexorabilidade de não recusar a maternidade. As falas apontam uma obrigatoriedade social de ter filhos, aparentemente não mostrando uma subjetividade que se expresse como desejante.

A partir da ideia psicanalítica de que entre a pulsão e o objeto, está o desejo e a fantasia, buscamos acessar o desejo de um filho, que se configura por uma identificação com a maternidade expressa pelo seu campo fantasmático. O desejo de filhos, para psicanálise, está relacionado com os fantasmas infantis e com o complexo de Édipo, estando ligado à sexualidade desde sua infância, na relação primária com a mãe. No entanto, esse desejo segue caminhos diferentes para homens e mulheres, sendo estas influenciadas por fatores culturais na ênfase dada ao ser mãe. O desejo de ter filhos pode estar vinculado ao desejo narcísico de imortalidade do Eu, ou seja, uma maneira de se aproximar da imortalidade e de transmitir a herança genética para os descendentes (Ribeiro, 2004).

Nessa época de início da gravidez, eram frequentes as fantasias de morte, tanto da mãe como do filho, e medo das doenças que poderiam surgir. As mães temiam pela vida dos filhos e se estes iriam nascer saudáveis. Aragão (2004) levanta a hipótese de que esse bebê ainda é um estranho para sua mãe, o que pode ocasionar fantasias de perda. Houve uma mudança de discurso de algumas mães que no início não queriam a gravidez e que passaram a zelar pela vida do filho, o que aponta para a configuração do início da construção de um vínculo com seus bebês.

Diversas mudanças físicas são relatadas durante o período gestacional. Surgem queixas de doenças devido à gravidez, e a interligação das alterações fisiológicas com o aumento da sensibilidade, o que faz com que busquem maior suporte nas pessoas mais próximas. As mudanças físicas que ocorrem estão relacionadas às experiências psíquicas. As alterações tornam a mulher mais vulnerável, ocorrendo com frequência episódios de choro, tristeza, medos e somatizações. Tais transformações podem afetar a disponibilidade materna em relação ao filho (Sales, 2000).

Algumas mulheres apontaram as preocupações financeiras como intervindo na disponibilidade para fantasiar sobre seus bebês. As apreensões em relação às dificuldades financeiras, ao desemprego do companheiro, a uma possível perda de suas atividades, aparentemente servem como recusa ao vínculo, em uma ideia expressa de recusa à instalação de um lugar materno, onde as perdas surgem mais que os ganhos. Mas esses receios em estabelecer um laço com o bebê, paradoxalmente, apontam consolidação de um vínculo.

Sabemos de todas as transformações advindas de uma gestação, principalmente no que diz respeito à dinâmica familiar. Geralmente nos detemos na função da mãe, já que é esta que abriga o filho, que o nutre e sustenta durante nove meses. No entanto, temos a figura do pai com sua importância durante esse período.

Os discursos sinalizam como esse pai/marido percebe sua mulher enquanto mãe, as funções e papéis atribuídos a esta em relação à família. Elas afirmaram mudanças na forma dos laços de seus companheiros durante o período de gravidez. Algumas falam de uma alteração para um maior afeto, cuidado e preocupação. Alguns pais acompanham os exames, discutem sobre o parto e conversam com o bebê.

Por outro lado, temos as falas de rejeição, a perda de atenção e insegurança com relação ao companheiro ou até mesmo o abandono ao ser notificado da gravidez. Uma das gestantes afirma que ao perder o apoio de seu companheiro passou a sentir um "abuso" (sic) de sua barriga; outras parecem retirar o pai com facilidade da cena familiar, ao serem abandonadas. Observamos uma exclusão da figura paterna da cena, um sentimento de onipotência em que a mãe por si já basta a esta criança.

Uma das gestantes afirma que se pudesse não teria mais filhos, pois o marido "enjoa dela" (sic) se distanciando. A sexualidade é muitas vezes suprimida na gravidez, ou por parte da mulher ou por seu companheiro. O jogo do campo relacional casal conjugal e a entrada de um terceiro se explicita nas singularidades discursivas. Maior companheirismo na relação conjugal ou afastamento falam dos modos libidinais que cada mulher aponta ao engravidar.

Ressaltamos ainda as falas que expõem a temática do parto como algo doloroso, temido, com risco de morte. Algumas já passaram pela situação de complicações no parto e morte do bebê. Temem o parto cesariano, as internações e o procedimento da laqueadura. Este último é trazido em duas vertentes: algumas o almejam, pois não gostariam de ter mais filhos por questões financeiras e de idade e outras relutam em fazêlo, pois isso encerraria suas possibilidades de ser mãe, o que para estas mulheres representa seu mais importante papel social.

Há também um discurso que relaciona maternidade e aumento de responsabilidade. As mães renunciam às festas, às saídas à noite, algumas ao trabalho, em nome deste filho. Os laços sociais se deslibidinizam, sugerindo o investimento libidinal que aponta recursos psíquicos de deslocamento para os cuidados ao bebê. Sales (2000) compara a gravidez com o conceito freudiano de narcisismo, visto que neste ocorre um desinvestimento do mundo externo e um superinvestimento em si mesmo, um retorno da libido ao próprio corpo.

É na gravidez que a mãe começa a investir em seu filho, a supor um sujeito em alguém que não conhece. O período da gravidez é importante para a criação do bebê imaginário no psiquismo materno. É um tempo de elaboração indispensável, pois permite à criança "tomar corpo", tanto em seu ventre como em seu fantasma. O vínculo mãe/filho vai se configurando, e tanto a mãe como a criança vão se formando (Mathelin, 1999).

 

Sentir-se mãe: a consolidação de um vínculo

Na segunda categoria discorremos sobre questões relacionadas a como essas mães imaginam seus filhos, que fantasias têm, que planos fazem, como esse processo de maternagem é construído ao longo do período gestacional e após este, contribuindo para consolidação do vínculo mãe/bebê.

As mães geralmente relatam que acariciam e conversam com a barriga que porta um bebê, mas indagadas sobre a imaginarização destas conversas, limitam-se a questões relacionadas à saúde. As associações solicitadas sobre um imaginário que delineie este filho em um campo de fantasia são cortadas. Esta limitação é colocada como a impossibilidade de pensar um filho que não nasceu, que elas não podem ver. O fato de não saberem o sexo também se mostrou como um fator complicador para este pensar sobre o filho. O não dito sobre o não nascido tem um implícito de "mau-agouro" porque há uma possibilidade, e talvez uma fantasia, da não sobrevivência, o que aponta indubitavelmente a ambivalência sobre a maternagem. Benhaïm (2007) fala sobre uma ambivalência materna em que existe um ódio originário estruturante do sujeito que deverá se transformar em amor materno.

No início da gravidez, quando os movimentos do bebê não são notados na barriga da mãe, é difícil para algumas se perceberem grávidas, mas com o passar dos meses, as alterações físicas do corpo vão dando algum suporte para a construção de fantasias sobre o filho (Aragão, 2004).

Algumas fazem planos para esse filho, imaginado como ele vai ser, com quem irá parecer, anseiam que sejam semelhantes ao pai, à mãe, ao padrasto ou a um irmão mais velho e até mesmo com um irmão que já morreu. Algumas associam o seu estado de humor na gravidez à personalidade do filho. Dessa forma, se passam uma gravidez tranquila, o bebê nascerá calmo, caso contrário ele será agitado.

Essas falas ressaltam a gestação como o período cuja mãe elabora a representação psíquica do bebê, o qual no início é considerado um estrangeiro, um enigma que ela terá que decifrar. No final da gestação, surge a possibilidade de transformar o estranho em familiar, atribuindo características a esta criança por meio da projeção e idealização (Aragão, 2004). O tempo da gravidez é necessário para que uma mulher, em seu tempo psíquico, constitua-se como mãe.

Aulagnier (1999) fala de uma construção antecipada do eu do bebê na psique da mãe que acolhe o corpo deste filho, unindo-se a ele. Essa construção insere a criança num sistema de parentesco e apresenta a marca do desejo materno na imagem corporal do bebê.

Sabemos que uma criança é imaginada bem antes de nascer, ou até mesmo antes da gravidez, estando inserida no que podemos chamar de "banho de linguagem", ou seja, nas palavras que antecedem o nascimento, na preparação por parte dos pais que falam dessa criança e a planejam, inscrevendo-a no seu desejo, e dando sentido a esse filho. O investimento ou não nessa criança irá repercutir no seu desenvolvimento. A história da criança remonta à história dos pais individualmente e em conjunto, estando essa origem mar-cada no inconsciente do filho (Szejer & Stewart, 1997).

Freud (1914/1996c) discute que os ideais parentais em relação ao filho estão relacionados ao seu próprio narcisismo primário. Para o bebê é construído um lugar em que estes são o centro de tudo, como nas palavras de Freud, "sua majestade o bebê". A criança é inscrita numa cadeia simbólica na qual está presente o narcisismo dos pais.

Quando os filhos nascem, fica mais fácil falar sobre ele. Há conversas entre a dupla, embora ainda se expressem reticências em planos sobre o futuro, o que gostariam que eles fossem, como imaginam que vão ser quando crescerem. Ressaltamos que o nascimento físico de uma criança nem sempre corresponde ao seu nascimento psíquico, tendo em vista que para este ocorrer, é necessário que alguém reconheça o bebê enquanto humano (Celes, 2004). O nascimento físico deixa o bebê numa condição de desamparo (Freud, 1895/ 1996a), ocorrendo uma invasão pulsional sem que o bebê possa dar trâmite a essas pulsões causando angústia. A presença materna constitui o psiquismo da criança, à medida que fornece meios de satisfação pulsional, percebendo as necessidades do filho, realizando este reconhecimento humano citado acima.

Ao longo dos discursos, podemos perceber o lugar que o bebê vai ocupar na dinâmica familiar, na vida destas mães, aparecendo o filho como companhia, o filho para consolidar o casamento após uma separação, o filho para realizar uma vontade do marido, o filho para justificar um procedimento (laqueadura). Cada criança nasce envolta em um significado para suas mães e sua família, ocupando um lugar destinado bem antes dela nascer. De acordo com Beerst (2005), a criança que vem ao mundo para suprir uma falta materna, pode não encontrar possibilidades de se tornar um sujeito e ficar restrita à "função" que lhe é atribuída, dificultando o processo de separação da mãe desse filho. A relação da mãe como o filho poderá autenticar sua própria existência em que o bebê pode conferir uma identidade à mãe, solidificando seu narcisismo. Mãe e filho devem renunciar ao investimento narcísico fundador da relação mãe/bebê. A criança deve renunciar a sua mãe e esta ao filho como objeto parcial de satisfação (Benhaïm, 2004, 2007).

Ao final de 4 meses após o parto, a temática da separação surge. As mães que trabalham comentam a dificuldade de deixar o filho com outras pessoas, ressentem-se pelo bebê da falta materna, que não ficam bem com outros a não ser a mãe. A fala aponta um vínculo constituído pelos receios de sua perda. A separação dos filhos, que as gestantes entrevistas relatam, coincide com o retorno ao trabalho ou o final da amamentação. Essa separação física abre espaço para a separação simbólica necessária ao sujeito, operada pela função paterna por meio da castração. Para Catão (2004) a função materna está relacionada à capacidade da mãe se identificar com seu bebê, mas também de dirigir-se a ele como um outro. É a capacidade de alternar presença e ausência, alienação e separação.

A figura paterna aparece pouco nos discursos da mãe, o que nos remete a uma relação simbiótica com esse filho, um estado de completude. Os pais quando citados limitam-se a uma ajuda dada as mães no brincar com o filho, cabendo a ela todos os afazeres com o bebê. O suporte do pai no momento da gravidez, parto e pós-parto é importante para que a mulher possa cuidar de um bebê, além da concepção psicanalítica de função paterna, fundamental para constituição do sujeito, separando o filho da mãe abrindo para ele novas possibilidades de sujeitamento.

O final das entrevistas coincide com este período de separação. Após seis meses, a criança já interage mais com a mãe e começam a surgir discursos sobre a aprendizagem dos filhos, o que eles fazem, como a família participa da vida desse bebê. As crianças estão sempre presentes nas entrevistas, o que nos levou a perceber um maior relacionamento da mãe com este filho, um vínculo certamente estabelecido.

 

Considerações finais

Durante a pesquisa, acompanhamos um caminho construído desde o início da gestação, o nascimento do bebê e seus primeiros 6 meses de vida. De um laço frágil em algumas mães, em uma ambivalência inicial de identificação, de alocar-se em um lugar materno, até um investimento no bebê já nascido. Ao longo da gravidez, e mesmo após o nascimento, o que mais nos chamou atenção foi a relutância e mesmo uma interdição no fantasiar em relação ao filho. Omitiam-se no discurso a fazer planos, a imaginar futuro, a desejar para além do momento o que contraria os relatos da literatura pesquisada.

O pressuposto inicial, de disponibilização de recursos psíquicos para cuidar de seus filhos, surge por meio de alguns elementos discursivos, tais como a deslibidinização dos laços com o mundo exterior para voltar-se para a gravidez e nascimento do bebê. A suposição de um sujeito aparece muito limitada na precariedade de imaginarização apontada; percebemos esse barramento pelas falas de dificuldades financeiras, dos outros filhos, dos problemas conjugais, de trabalho, entre outros.

A configuração de um vínculo se dá nessa suposição de um outro. Essa posição psicanalítica nos aponta tal aspecto como de relevância fundamental nas condições psíquicas que uma mulher utilizará para os cuidados com seu bebê. Por isso, o interdito na imaginarização do bebê pelas questões concretas do cotidiano continua a ser tema de reflexão.

Durante as entrevistas, esperávamos que as mães falassem sobre as fantasias em torno de seus filhos, os planos, imaginassem como eles iriam ser ao nascer. No entanto, esta temática foi pouco explorada pelas mães. A partir de nosso referencial teórico, tínhamos uma expectativa maior em torno desse tema, mas os discursos apareceram barrados nesse aspecto. No entanto, quando os filhos nasceram, a relação se intensificou, aparecendo a dificuldade de separação e as poucas referências à figura paterna, mesmo quando o pai é presença constante.

Diante das discussões realizadas, podemos supor que para o exercício da maternidade é necessário que a mulher disponha de recursos psíquicos específicos. Para além de um papel social, há uma singularidade psíquica de se inserir nesse lugar de mãe. Os cuidados físicos com o filho podem existir e serem realizados a contento; no entanto, esses cuidados devem ser investidos de desejo. A fantasia se configura como campo de estudos da psicanálise, sendo fundante do sujeito, como o investimento que a mãe faz no filho para outorgar-lhe a condição de sujeito.

Existe uma demanda dessas mulheres para que possam falar sobre a gestação, as dificuldades relacionadas e os conflitos familiares. Como um resultado da pesquisa, destacamos a necessidade de um espaço de escuta para questões relacionadas à maternidade como a implementação de um serviço de acompanhamento pré-natal psíquico, no qual a fala materna poderá ter espaço para um delineamento do desejo materno e a configuração do vínculo mãe-filho, bases do exercício da maternagem e da constituição psíquica do bebê.

 

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Recebido em abril/2008.
Reapresentado em agosto /2010.
Aceito em março/2011.

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