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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.16 no.1 São Paulo jun. 2011

 

ARTIGO

 

Um "estilo" obsessivo no funcionamento materno1

 

An obsessive "style" on the maternal functioning

 

Un "estilo" obsesivo en el funcionamiento materno

 

 

Danielle Carvalho RamosI; Léa Maria Martins SalesII

IPsicóloga, Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará. ramos_danielle@ig.com.br
IIPsicóloga, Mestre em Psicologia e Psicanalista. sales.lea@gmail.com

 

 


RESUMO

Este trabalho refere-se ao acompanhamento psicológico de uma dupla mãe-bebê, tendo como objetivo abordar, a partir de um referencial teórico psicanalítico, as implicações de uma neurose obsessiva no funcionamento materno. Ao longo de cinco meses de acompanhamento, entrevimos as dificuldades de uma mulher primípara em lidar com a maternidade e entendemos que sua possível neurose obsessiva esteve intensamente implicada nessas dificuldades. Problemas na comunicação, hesitação na antecipação, falhas na operação presença-ausência, atrelados a toda uma sintomatologia obsessiva, nortearam o seu funcionamento materno. Principalmente, percebemos sua grande dificuldade, como mãe, em assegurar a seu bebê a condição de sujeito desejante.

Descritores: neurose obsessiva; maternidade; acompanhamento psicológico; psicanálise; clínica mãe-bebê.


ABSTRACT

This paper refers to a pair mother-baby psychological support, having as objective to discuss the implications of a possible obsessive neurosis on the maternal functioning of a primipara woman, from a psychoanalytical theoretical referential. In the course of five months, we noted her difficulties in dealing with motherhood and we understood that her possible obsessive neurosis was intensively involved in these difficulties. Troubles in communication, hesitation in anticipation, failures in operation presence-absence, coupled to a whole obsessive symptomatology, guided her maternal functioning. Mainly, we realized her great difficulty, as mother, to ensure the desiring subject condition to her baby.

Index terms: obsessive neurosis; motherhood; psychological support; psychoanalysis; motherbaby clinic.


RESUMEN

Este trabajo se refiere al seguimiento psicológico de una pareja madre-bebé, y tiene como objetivo abordar las implicaciones de una posible neurosis obsesiva en el funcionamiento materno, desde un referencial teórico psicoanalítico. Durante cinco meses observamos las dificultades de una mujer en su primera maternidad y verificamos que su posible neurosis obsesiva estuvo intensamente involucrada en ellas. Problemas en la comunicación, vacilación en anticipación, fallas en operación presencia-ausencia, combinados a toda una sintomatología obsesiva, orientaron su funcionamiento materno. Sobre todo, percebimos su grande dificultad, como madre, en garantizarle a su bebé la condición de sujeto deseante.

Palabras clave: neurosis obsesiva; maternidad; seguimiento psicológico; psicoanálisis; clínica madre-bebé.


 

 

Introdução

Segundo Mathelin (1999), o desejo materno não ocorre gratuitamente, mas trata-se de uma construção que se dá muito antes da concepção, até mesmo para além da aventura edipiana, quando a mãe, ainda bebê, recebia os cuidados de sua própria mãe.

Considerando que, para a vivência da maternidade, a mulher carrega toda a sua bagagem psíquica, "podendo dar-lhe um colorido mais saudável ou mais patológico" (De Felice, 2006, p. 11), as estruturas psíquicas parecem então mobilizar um funcionamento peculiar na maternidade, motivo pelo qual nos propomos a discutir como isto se dá particularmente na neurose obsessiva. Para tanto, é imprescindível pensar o funcionamento obsessivo nas relações que estabelece.

Na dinâmica do obsessivo com o Outro, manifesta-se uma relação ambivalente, marcada pela hostilidade, porém mascarada pela abnegação, em que o obsessivo, por meio do prevalecimento da demanda no Outro, ignora o desejo deste, aniquilando-o como sujeito (Mees, 1999). Esses impasses na esfera do desejo apontam para a falha com a qual o obsessivo não quer deparar-se, pois, conforme Kehl (1999), deparar-se com a falta no Outro equivale a constatar-se igualmente faltoso.

No que tange à maternidade, Sales (2000) fala sobre as alterações físicas e psíquicas que acometem as mulheres durante a gravidez, lançando-as a um estado de vulnerabilidade. Alterações dessa espécie também se manifestam no pós-parto e puerpério, desencadeando efeitos no funcionamento psíquico da mulher.

Contudo, há no neurótico obsessivo uma grande resistência a mudanças, "o novo o alcança, e lá está ele sem saber o que fazer consigo mesmo" (Mess, 1999, p. 38). E sendo a maternidade um momento sine qua non em que a mulher vivencia um turbilhão de transformações físicas, psíquicas e também na dinâmica familiar, isto, na neurose obsessiva, far-se-ia sem consequências? De que modo tais alterações, próprias da maternidade, concorrem com um funcionamento obsessivo?

Diante disto, neste trabalho objetivamos discutir as possíveis implicações de uma neurose obsessiva na maternidade, a partir de um caso cujo atendimento se deu mediante experiência de estágio curricular pelo Projeto Mulher e Procriação2, junto ao Programa de Aleitamento Materno Exclusivo (PROAME) da Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará, na medida em que uma mulher, recém ingressa na maternidade, apresentou relevantes indícios de um funcionamento obsessivo. Partimos, por conseguinte, de uma hipótese, de uma suposição estrutural a qual, articulando recortes do caso e discussão teórica, aqui tencionamos apresentar.

 

Um fazer

No PROAME, o serviço de psicologia, destinado ao acompanhamento das duplas mãe-bebê, geralmente realizava atendimentos mensais, nos mesmos dias de consulta dos bebês com as pediatras. Mediante uma parceria com as pediatras e atendentes do programa, recebíamos, a pedido, encaminhamentos das duplas cujos bebês haviam sido recentemente matriculados, isto é, bebês com idade entre 15 e 31 dias.

Este serviço, hoje não mais ofertado, tratava-se de um trabalho que se pretendia preventivo – na medida em que operava nos primórdios da constituição do sujeito e do funcionamento materno na relação mãe-bebê –, com o intuito de oferecer à puérpera um suporte psicológico, assim como disponibilizar-lhe um acompanhamento do desenvolvimento psíquico de seu bebê, sendo esse fazer perpassado e sustentado por um referencial psicanalítico. Foi nesse contexto que se deu, portanto, o atendimento do presente caso: mãe e bebê que, aqui, chamaremos Mariana e Gabriel.

 

Apresentando-lhes Mariana

Uma mãe apática. Essa poderia ser uma descrição primeira da imagem que ela deixa transparecer quando da sua chegada.

Após anos de frustradas tentativas, junto de seu companheiro Evandro (29 anos), Mariana finalmente recebeu a notícia: estava grávida! Mas por que sua reação não se traduziu na alegria esperada ante tão almejada maternidade? Por outro lado, segundo ela, também não foi um sentimento de tristeza que a abateu. Que significação teve, então, tal notícia para essa mulher de 34 anos, que seria mãe pela primeira vez após seis anos de longa espera?

Mariana simplesmente silenciou. Retraída em sua apatia, pensou apenas: "agora não tem jeito". Um desapontamento tomou conta dela. Apesar de querer engravidar, "na hora da notícia é diferente". Gabriel havia sido planejado, mas teria sido também desejado por Mariana? Sabemos que nem sempre essas duas coisas seguem atreladas3.

A gravidez transcorreu sem problemas, contudo, aos sete meses de gestação, Mariana ficou muito sensível e depressiva. O momento do parto aproximava-se e seu estado depressivo se acentuou quando, ao dar entrada no hospital, verificou-se que estava sem líquido amniótico. Gabriel nasceria de um parto cesárea. Entretanto, em seus planos não havia espaço para cogitar um parto desse tipo. Ficou extremamente abalada e, inconformada, chorou muito ao receber a notícia. Essa não aceitação continuou a ser expressa, tempos depois, diante da marca que essa agressão lhe trouxe: a cicatriz. Aquilo que lhe era impensável, obstando sua vontade, já há tempos planejada, de ter o filho de parto normal, marcou seu corpo como algo "muito feio", do qual se envergonha4.

Sua característica depressiva parece começar a ser circunscrita junto a uma possível estrutura neurótica obsessiva.

 

As lembranças (não tão) familiares

Segundo Freud (1926[1925]/1996e), a neurose obsessiva tem seu início no segundo período da infância, entre seis e oito anos. Tendo se dado a dissolução do complexo de Édipo, esse período caracteriza-se pela consolidação de um superego "excepcionalmente severo e rude", do qual o ego ficará a serviço produzindo fortes formações reativas sob a forma de consciência, piedade e asseio.

Acerca desse tempo, é curioso depararmo-nos com a "amnésia" de Mariana a respeito de sua infância, dizendo-se incapaz de se lembrar de sua vida antes dos 15 anos, idade com a qual partiu de um município do interior do Pará. Mariana parece ter deixado não apenas o local onde cresceu, mas também uma parte considerável de seu passado mergulhada no silêncio.

Em Inibições, sintomas e ansiedade, Freud discorre acerca de duas atividades do ego por meio das quais o neurótico tentará tornar seu próprio passado inexistente. Não se trata de esquecimento, visto que "na neurose obsessiva... a experiência não é esquecida, mas em vez disso, é destituída de seu afeto, e suas conexões associativas são suprimidas ou interrompidas, de modo que permanece como isolada, não sendo reproduzida nos processos comuns do pensamento" (Freud, 1926[1925]/1996e, p. 121).

Nesse seu "passado inexistente", Mariana, agora mãe, não sabe descrever como sua própria mãe havia sido para ela. Um tanto indiferente, diz apenas: "pelo que vi ela cuidar de meus irmãos, acho que foi uma boa mãe". Quanto a seu pai, Mariana lembra-se, então, de uma cena que se repetia a cada noite, quando ele ia à rede de cada um dos filhos e lhes dava "um beijo de boa noite", manifestando seu cuidadoso amor paterno. Seu pai sempre foi muito carinhoso, e Mariana diz parecer-se com ele: "sou muito chameguenta", ela diz.

O lugar deslocado de junto da mãe para o lado do pai, a partir da escolha da neurose, retrata a fuga da ameaça de uma psicose, caso o sujeito fosse tido como objeto do desejo materno (Kehl, 1999). Parece ter sido para esse lugar que Mariana migrou, dando contornos à sua identificação.

Embora Mariana diga não se recordar do modo como sua mãe cuidava dela, da maneira como se relacionavam enquanto viviam juntas, afirma que sua mãe fora "uma mãe muito melhor" que ela. Aqui, Mariana manifesta um ideal de mãe elevado.

E a maternidade agora vivenciada por ela própria?

 

O poder de ambivalência e o reconhecimento na maternidade

Mariana demonstra um funcionamento que ela própria define como "orgulhoso", mas que se apresenta em meio a um medo, o seu medo inicial de machucar o bebê. Aos 31 dias de Gabriel, ela relata que nos momentos de banho teme quebrar o braço dele, mas que, para evitar isso, toma todos os cuidados. Contudo, ao revelar sua angústia, Mariana a encobre e segue com a frase: "mas se acontecer alguma coisa, aconteceu".

Na medida em que, conforme Freud (1909/1996a), o medo corresponde a um desejo recalcado, tal medo de machucar seu bebê parece encobrir o seu desejo de machucá-lo. Aqui, é possível entrever uma agressividade latente de Mariana.

Freud (1913/1996b), fala das medidas protetoras das quais o obsessivo faz uso na tentativa de tolher sua agressividade, "formações reativas contra seus próprios impulsos anal-eróticos e sádicos" (p. 344, grifo do autor). E refere-se ao "papel extraordinário desempenhado por impulsos de ódio e erotismo anal na sintomatologia da neurose obsessiva" (p. 345).

Segundo Freud (1917 [1916-17]/ 1996d), o obsessivo é tomado por pensamentos absurdos e por esses impulsos cujo conteúdo o assusta, ideias obsessivas contra as quais, como afirma Melman (2004), o sujeito luta sem qualquer capacidade ou poder. E ao serem esses impulsos constantemente ameaçados por um superego demasiado severo, engendra-se no sujeito angústia e ambivalência (Freud, 1926[1925]/1996e).

O poder de ambivalência desempenha, então, um papel relevante na neurose obsessiva. Ainda que nesta os sintomas se apresentem com um caráter defensivo por meio das precauções, "à medida que a doença se prolonga, as satisfações, que zombam de todas as medidas defensivas, levam vantagem. A formação de sintomas assinala um triunfo se consegue combinar a proibição com a satisfação" (Freud,1926[1925]/1996e, p. 114).

Ao abordar a temática da ambivalência materna, Benhaim (2007) discorre acerca da dimensão imaginária do ódio que, ao permanecer essencialmente narcísico, constitui um impasse na maternidade.

Nesse sentido, parece haver uma espécie de cumplicidade entre a agressividade obsessiva e o ódio imaginário na maternidade, quando se trata de uma mãe cujo funcionamento é obsessivo.

E Mariana, orgulhosa como diz ser, mantendo-se como quem tudo prefere fazer sozinha "ainda que quebre a cara", situa-se em um lugar onde acredita prescindir absolutamente do outro, de qualquer outro, como tentando distanciar-se do mundo das relações. A esse respeito, chega a dizer que só pediria ajuda nos cuidados com Gabriel se não houvesse outras possibilidades, em último caso. Ela "sempre" fora assim.

Segundo Jerusalinsky (1999), para uma mulher, a maternidade "trata-se de uma restituição fálica através de uma produção real" (p. 35). Contudo, para uma mulher neurótica obsessiva, ter um filho equivale ainda a uma demonstração de potência, pois, para a mãe obsessiva, o que está em xeque é o reconhecimento que ela pode obter mediante o filho, a fim de que ela própria, utilizando-o como instrumento, possa investir-se falicamente. Como afirma o autor, na neurose obsessiva, quem fica radiante é a mãe e não o filho.

Neste ponto, vale remeter a Freud (1914/1996c) quando se refere a um investimento parental dirigido aos filhos, marcado por uma supervalorização dominante que chamou de amor narcísico, por meio do qual os pais lhes atribuem perfeições e lhes ocultam os defeitos, sendo os filhos então coroados como "sua majestade o bebê".

Na maternidade obsessiva, porém, parece não haver espaço para um filho tão grandioso assim. Nem o centro, nem o âmago da criação. O trono já estaria ocupado, pois quem reina é sua majestade, sim – a mãe.

É ainda interessante atentar para o que diz Jerusalinsky (1999) acerca desse reconhecimento na neurose obsessiva. Afirma que o obsessivo não carece de reconhecimento, contudo paga um preço deveras elevado para sustentá-lo e que, ademais, ao longo de sua vida, jamais está seguro de ser capaz de corroborá-lo.

Em se tratando de uma mãe obsessiva, poderíamos dizer que a questão do reconhecimento gira em torno de uma busca pela reafirmação de seu narcisismo, fortemente ameaçado pela chegada de um bebê que reivindica o trono. Daí utilizar-se deste que já vem ao mundo com um "Q" de realeza para sustentar a própria posição de sua majestade que acredita ter. Relutando em sair de seu lugar cativo para concedê-lo a outro e resistindo a despojar-se de seus trajes reais, recusa abrir mão de seu próprio narcisismo, o qual, a todo custo, quer fazer reconhecido.

E é assim que, em sua pretensão de prescindir de tudo e todos, ainda que o pedido de auxílio seja em benefício do próprio filho, Mariana revela que, nesta relação, a centralidade não está em Gabriel e sim nela. Sua condição "orgulhosa" parece também sustentar-se no reconhecimento dessa potência, desse investimento fálico, que persegue com a maternidade, com essa tão importante "produção real" que seu filho lhe parece ser.

 

Dificuldades na antecipação – a dúvida obsessiva

Mariana não consegue distinguir bem o choro de Gabriel. "Ele não é muito de chorar, chora mais por fome", ela diz, aos 2 meses de Gabriel. Mergulhada em sua angústia, ela pouco supõe. Aos 3 meses de Gabriel, continua sem conseguir diferenciar o seu choro. Aos 4 meses, Mariana diz achar o choro de fome mais difícil, mas consegue identificar o choro de sono, frio e de "ir pra rua". E aos 5 meses de Gabriel, ela diz que também identifica o choro de calor, mas quanto ao de fome, só consegue sabê-lo pelo horário (se for hora de mamar e Gabriel chorar, deve ser fome).

Assim, mês após mês, percebemos certa dificuldade dessa mãe em supor algo em seu bebê, o que parece estar imbricada a uma questão tão patente na neurose obsessiva: a dúvida. De acordo com Freud (1909/1996a), a dúvida do obsessivo, na verdade "uma dúvida de seu próprio amor – que devia ser a coisa mais exata em sua mente como um todo" (p. 209), não fica restrita a um grupo de ações, mas se estende a tudo, gradualmente alcançando todo o seu comportamento. A incerteza, pois, impede que Mariana atribua e sustente um sentido às produções de Gabriel. Ela pouco antecipa.

A antecipação é de extrema importância para a psicanálise, visto que sem ela a constituição do sujeito psíquico poderia sucumbir. O antecipar ocorre quando reconhecemos no sujeito uma unidade corporal e a ela nos dirigimos a partir da suposição de que esteja inserido no mundo da linguagem e seja comunicante de seus desejos (Sales, 2005). É, portanto, ao atribuir sentido àquilo que não pode ser posto em palavras pelo outro, que a mãe coloca o filho na ordem do desejo.

Em Mariana, contudo, esse operador psíquico encontra-se falho e, assim sendo, ela não legitima o desejo em Gabriel.

 

Tudo para o Outro

Paulatinamente, porém, é possível perceber uma mudança nessa relação e vemos surgir um incipiente investimento maternal. Mariana passa a dedicar-lhe integralmente seu tempo e atenção, demonstrando sentir prazer em estar com o filho.

Relata que, em dada ocasião, levou o bebê com ela para assistir a uma missa de sétimo dia e que, apesar de estar ante uma situação de luto, sem dar-se conta, ao iniciar uma particular brincadeira com Gabriel, ambos puseram-se a sorrir e a divertir-se. Mariana conta que naquele momento percebeu não compartilhar do mesmo sentimento daqueles à sua volta. Diz que, ao chegar em casa, apercebeu-se de que estava feliz, de que, por causa de Gabriel, sentia-se uma pessoa feliz. Fala dessa experiência, passeando com ele pela sala e emociona-se. Com olhos lacrimejantes, olha e sorri para Gabriel que está em seu colo.

Algo que tolhia esta relação havia claramente se dissipado. Essa mãe, de algum modo, enfim se permitira alegrar-se com a chegada do filho. Naquele instante, o luto e o sofrimento que os cercavam não puderam silenciar o contentamento dessa dupla que florescia em meio a um encontro nada usual. Suas lágrimas simplesmente concluíam aquilo que suas palavras não mais puderam nomear diante da descoberta que ela própria testemunhava: Mariana agora se sente mãe.

Mariana diz, então, que todas as suas atividades têm sido totalmente dirigidas a Gabriel e que, se pudesse, passaria cada minuto do dia com ele, pois não quer perder nada do filho. Sobre esse nada querer perder, é interessante remetermo-nos ao que fala Jerusalinsky (2003) a respeito da falta no obsessivo. Diz que, ao sujeito neurótico obsessivo, nada tem que faltar e que, por esse motivo, tenta preencher todos os lugares, não deixar nenhuma lacuna.

Em um dos primeiros atendimentos, Mariana dizia não saber ficar parada e que dormir à tarde era "perda de tempo". Naquela ocasião, ela já sinalizava uma futura dificuldade em esperar, em dar um tempo para seu bebê, em operar uma ausência.

Acerca disto, Sales (2005) afirma que "o jogo da presença-ausência que anima a relação mãe-bebê, aponta para uma condição primordial dos seres desejantes, ou seja, aponta para um furo, uma falta, que deve estar inscrita na mãe. É somente porque há essa falta e porque a mãe deseja, que o bebê pode vir a funcionar, para esta mãe, no estatuto de objeto faltante" (Sales, 2005, p. 118).

Meses depois, Mariana relata não fazer um intervalo quando Gabriel a solicita, atendendo-o imediatamente e não o deixando chorar, pois afirma não conseguir fazer nada ouvindo seu choro. Percebemos, aqui, o quanto a obsessividade de Mariana não lhe permite operar uma ausência, um intervalo para que seu bebê possa emergir "enquanto sujeito do desejo e da linguagem" (Sales, 2005, p. 118).

De acordo com Sales (2005, grifo nosso) "é na ausência, neste intervalo de espera da emergência do sujeito, que a mãe, também tomada por outros desejos e investindo em outros objetos, e não somente no bebê, acaba por proporcionar um espaço onde o sujeito nascente vem constituir em si e, fora do corpo materno, a idéia de um corpo próprio, integrado" (p. 118).

Em Mariana, contudo, não há esse investimento alhures, pois todo o seu tempo é para ele, tudo é para ele. Não há falta. E ao não permitir que apareça a falta no Outro, Maria-na, na realidade, não se deixa confrontar com sua própria falta.

Gabriel já tem seis meses e Mariana diz que ele não se senta sem apoio. Inevitável constatar que não há separação, não há um "corpo próprio", pois o corpo de Gabriel ainda é um prolongamento do corpo materno. Colado a ele está esse braço que a todo tempo o sustenta e, sem o qual, obviamente, não se senta, não se levanta, não ascende à condição de sujeito. Como ela própria diz, Gabriel está muito apegado a ela. São eles, ainda, um só. Assim, vemos aos poucos a função materna exercida por Mariana alternar-se entre uma mãe dedicada e uma mãe excessiva, demasiadamente presente.

Winnicott (1956/1978) refere-se a um estado psíquico em que a mãe desenvolve uma maior sensibilidade dirigida à adaptação e satisfação das necessidades do bebê, sentindo-se como se estivesse no lugar deste. Mariana, contudo, em sua maternagem, mostra-se mais que "suficientemente boa", satisfatória. Ela revela-se uma mãe por demasiado suficiente, uma mãe excessiva, obsessivamente satisfatória.

Mees (1999) fala acerca dessa abnegação que mascara a agressividade inconfessa nos obsessivos, visto que "seu amor incondicional ao Outro é o revés de seu ódio por este que impede (e do qual depende) sua pretensão neurótica" (p. 40). E nesse jogo, da mesma forma que "fica de quatro para o Outro", nega-o como sujeito.

Segundo Benhaim (2007), na maternidade haverá uma evolução do ódio no registro imaginário, se no fantasma materno a criança ocupar um lugar de objeto de posse, ou mesmo de objeto real, exclusivo do desejo materno.

E nessa toda satisfação, nesse tudo para Gabriel, parece coexistir exatamente uma falsa abnegação, um excessivo sem falta, abrindo caminho para a evolução de um "ódio imaginário" em Mariana.

 

Que lugar para o marido (e para o pai)?

Mariana passa a trazer aos atendimentos questões acerca de seu relacionamento com Evandro, falando sobre as divergências entre o casal. Afirma que "ele é muito lento" e não acompanha seu ritmo, não tendo seu mesmo cuidadoso detalhismo. Aqui é importante pontuarmos o lugar ocupado pelo marido em seu discurso. Ele é constantemente por ela desmerecido.

Seu descontentamento estende-se à relação de Evandro com o filho, para quem, acredita, "a ficha ainda não caiu" de que agora é pai. Imaginava que ele seria diferente como pai e diz que já vira pais mais dedicados.

Nesse momento, a terapeuta diz a Mariana que, de uma forma geral, essas coisas são diferentes para o pai. Diz-lhe que muitas vezes a realidade da paternidade demora mais para ser assimilada do que a maternidade, que o pai se sente deslocado, não encontra seu lugar diante de uma dupla tão próxima e íntima que é mãe e bebê, e lhe fala da importância de a mãe ter a sabedoria de convocar o pai para essa relação. Após ouvir com atenção, Mariana diz, em tom de brincadeira, que isso não é de sua "natureza", referindo-se a assumir esse convocar.

Em um relato de caso, Chemama (1999) diz: "quando, apesar de tudo, algo um pouco vivo se arriscava a ser dito, ela procurava anulá-lo" (p. 19). De modo um tanto semelhante, essa parece ser a postura de Mariana. Ainda que jocosamente, afasta-se e mostra-se indiferente a algo que poderia assumir um sentido relevante para a situação por ela evocada, assim como indicar-lhe possibilidades outras de posicionamento. Anula qualquer intenção de fazer-se uma ponte nessa relação pai-bebê, pois não é de sua natureza.

Entretanto, sua frase faz-nos pensar em uma relação intrínseca entre o convocar e a demanda. Sabemos que, na neurose obsessiva, quem demanda é o Outro, não o obsessivo (Mees, 1999). A posição por este assumida é outra. De fato, convocar, demandar não é de sua natureza, ou melhor, não é de sua neurose.

Mariana parece viver uma grande frustração, pois aquilo que por seis anos fantasiara não se concretizou. Seus olhos fecharam-se para o que a cerca e, absorta nesse desengano, cria situações em que apenas nutre desavenças.

Kehl (1999) afirma que o obsessivo sofre por ter que dar conta de "mandatos e injunções simultâneas, contraditórias e absurdas, referentes a pequenos detalhes da ordem cotidiana" (p. 80). E exatamente nesses "pequenos detalhes", que diante de seus olhos assumem grande proporção, Mariana tem visto sua relação amorosa desgastar-se e, pouco a pouco, sucumbir.

 

No silêncio, amordaçada

Diante de tudo isso, acredita que Evandro está insatisfeito com o relacionamento. Ao perguntar a Mariana se já conversou com ele a respeito, ela diz à terapeuta que é difícil, pois "ele se faz de vítima" e ela, por sua vez, se irrita, prefere não falar mais nada e põe fim à conversa.

Nessa mesma sessão de atendimento, Mariana afirma ter dificuldades para falar com Gabriel quando ele está chorando muito. Diz que isso a irrita e que se cala, tentando acalmá-lo de outra forma (brincando, por exemplo). Nesse momento, a terapeuta pontua a semelhança entre a reação de Mariana diante dos desentendimentos com Evandro e ante o choro excessivo de Gabriel: quando está discutindo com Evandro, diz que ele se faz de vítima, ela se irrita e se cala; quando Gabriel está chorando muito e não consegue acalmálo, ela se irrita e se cala. Mariana concorda com a semelhança e diz que sempre agiu dessa maneira, preferindo se calar e se isolar diante de um problema.

Esse calar-se, essa inibição em Mariana parece ser convocada para tamponar a angústia mobilizada ao defrontar-se com sua própria agressividade.

Segundo Freud (1909/1996a), a inibição é provocada por uma intensa oposição entre amor e ódio e, como afirma Silva (2003), a inibição é "um silêncio pleno de ruídos eróticos e agressivos" (p. 46).

Assim é que Mariana se acostumara a posicionar-se, isolando-se diante de situações que lhes são desagradáveis, diante daquilo que lhe mobiliza angústia, inibindo, na verdade, seus impulsos agressivos. Essa inibição, que encarcera em si uma agressividade amordaçada, parece, tem sido o seu refúgio. Mais uma vez, ela "sempre" agira assim.

 

Considerações finais

Sessão após sessão, Mariana revelou-nos sua angústia, sua ambivalência ante uma maternidade de longa espera que, paradoxalmente, parece tê-la tomado de assalto.

Aos seis meses de Gabriel, ela enfim se permitira entrar nessa relação, visto que, ainda que a custo, conseguiu investir psiquicamente em seu bebê. Entretanto, a grande dificuldade em assegurar-lhe a posição desejante visivelmente manteve-se até a última sessão, quando Mariana afirmou não mais querer dar continuidade ao acompanhamento psicológico.

Certas características da neurose obsessiva tais como a autos-suficiência, a agressividade, a dúvida, a inibição, a denegação do Outro desejante, parecem ter marcado de modo incisivo o funcionamento materno de Mariana. Um jeito, um "estilo" obsessivo, que imperiosamente se repetia diante de sua agora condição materna, mas que, como ela própria indicara, "sempre" estivera presente em sua vida, marcando assim sua subjetividade. Entendemos que nisto se firma nossa suposição acerca de sua estrutura neurótica obsessiva, visto que seus sintomas não se apresentavam apenas como pontuais, mas que, perpassando sua história, advieram também no contexto da maternidade.

E já nos últimos meses de atendimento, pudemos ver surgir uma mãe obsessivamente satisfatória, em demasiado suficiente, pois a ela nada podia faltar. Uma mãe que parecia reivindicar na maternidade um reconhecimento narcísico, uma centralidade, ao passo que não se permitia reconhecer seu bebê como "sua majestade".

Perguntamo-nos se de fato Mariana desejava ter um filho, a despeito de tê-lo planejado, mas sua reação primeira à descoberta da gravidez parece já ter-nos indicado um caminho. Seis anos de tentativas e pensava ser aquilo que desejava, mas não estava certa sobre esse desejo. Eis a dúvida que tanto atormenta o obsessivo e que consegue capturar até mesmo o que parece ser o mais certo (Freud, 1917 [1916-17]/1996d).

A função materna de Mariana parecia, portanto, competir com algo extremamente poderoso: sua provável estrutura neurótica obsessiva que, com toda a sua força, se impunha sobre tudo o mais. Assim, sua maternidade ganhou um colorido obsessivo.

Durante cinco meses de acompanhamento pudemos contemplar Mariana permitir-se ser mãe, ou chegar o mais próximo daquilo que sua neurose lhe permitira ser. Porém, vimos que dificuldades ainda permaneceram e o quão imprescindível seria que Mariana tivesse prosseguido com o acompanhamento psicológico, ou iniciado um acompanhamento individual, a fim de que essa relação não sucumbisse, para que ela tratasse suas próprias questões, ou mesmo para que esse bebê tivesse a perspectiva de um desenvolvimento psíquico mais saudável.

É quase inevitável nos colocarmos a divagar sobre como estariam mãe e filho hoje, sobre a localização de Gabriel no desejo dessa mãe e na dinâmica familiar, sobre o posicionamento de Mariana ante a maternidade, ou acerca do lugar que terá dado a Evandro como marido e pai. Questões cujas respostas, certamente, nos escapam, mas que nos conduzem a pensar um pouco mais sobre as implicações de uma neurose obsessiva no funcionamento materno e, consequentemente, no desenvolvimento do bebê enquanto um sujeito a devir. Indagações que mais longe nos levam, fazendo-nos refletir sobre a dinâmica e efeitos das estruturas clínicas na maternidade. Questões que simplesmente corroboram a imprescindibilidade da existência de mais serviços de psicologia – ou, mais precisamente, de psicanálise – na clínica mãe-bebê, esta que encerra em si tesouros de valor inestimável à pesquisa e à prática clínica.

 

REFERÊNCIAS

Benhaim, M. (2007). Amor e ódio, a ambivalência da mãe (I. Machado, trad.). Rio de Janeiro: Companhia de Freud.         [ Links ]

Chemama, R. (1999). A Neurose obsessiva feminina hoje (F. Settineri, trad.). Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Porto Alegre, RS: APPOA, (17), 16-25.         [ Links ]

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Recebido em dezembro/2010.
Aceito em maio/2011.

 

 

NOTAS

1 Referente ao Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) defendido em 2008 na Faculdade de Psicologia da Universidade Federal do Pará (UFPA) pela primeira autora, orientada pela segunda. Parte do que é aqui discutido foi apresentado enquanto comunicação científica no 6º CONPSI, Belém-PA, 2009.

2 Projeto de Pesquisa coordenado, na época, pela Psicóloga, Ms. e Psicanalista Léa Martins Sales.

3 Sales (2000) fala do conflito entre o desejo inconsciente de ter um filho e o querer ter um filho enquanto uma programação consciente. Afirma que o primeiro seria mobilizado por fantasmas infantis da castração e do complexo de Édipo, já o segundo estaria imbricado a razões incutidas culturalmente, como relações conjugais, idade, exigências sociais. Porém, a autora afirma que "planejar [querer] um filho nem sempre quer dizer desejá-lo" (p. 34).

4 Costa (1999, p. 11) fala sobre o quão arrasadora é qualquer ínfima ranhura na imagem corporal de mulheres neuróticas obsessivas, na medida em que tal falência enseja "a não confirmação da perfeição do corpo-imagem". Costa, A. M. M. (1999). A obsessão e a clínica contemporânea [Versão eletrônica], Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Porto Alegre, RS: APPOA, (17), 9-15.

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