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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.16 no.1 São Paulo jun. 2011

 

ARTIGO

 

O divórcio destrutivo na perspectiva de filhos com menos de 12 anos

 

Destructive divorce under the perspective of children of less than 12 years old

 

El divorcio destructivo desde el punto de vista de los niños hasta 12 años de edad

 

 

Mariana Martins JurasI; Liana Fortunato CostaII

IPsicóloga, Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (IP / UnB). Professora do Curso de Psicologia da Universidade Católica de Brasília. marijuras@gmail.com
IIPsicóloga, Terapeuta Conjugal e Familiar, Psicodramatista. Docente Permanente do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília – PSICC/PCL/IP/UnB. lianaf@terra.com.br

 

 


RESUMO

O presente trabalho aborda o ponto de vista dos filhos pequenos na dinâmica do divórcio destrutivo e insere-se no contexto jurídico durante a realização do estudo psicossocial. Sujeitos: três famílias divorciadas com filhos menores de 12 anos de idade. Fundamentação teórica: Teoria Familiar Sistêmica. Método: pesquisa-ação. Instrumentos: entrevistas semiestruturadas, genograma familiar, visita domiciliar e desenho da família realizado pelas crianças. Os resultados evidenciaram que as crianças freqüentemente são incluídas no conflito e manifestam sentimentos de sofrimento e insatisfação com o conflito conjugal. Por outro lado, evidenciaram recursos importantes para o enfrentamento desse divórcio, como o fortalecimento da fratria.

Descritores: divórcio destrutivo; Psicologia Jurídica; desenho da família; fratria.


ABSTRACT

This paper addresses the perspective from children in destructive divorce and falls within the legal context for the psychosocial study. Participants: three divorced families qith children, all under 12 years old. Theoretical basis: Family Systems Theory. Method: action research. Instruments: semi-structured interviews with families, family genogram, home visits and family drawing held by children. The results showed that children often are included in the conflict and express feelings of distress and dissatisfaction with the marital conflict. Moreover, they showed significant resources to face divorce, as the strengthening of fraternal subsystem.

Index terms: destructive divorce, Juridical Psychology, drawing of family, phratry.


RESUMEN

Este artículo discute el punto de vista de los niños pequeños en la dinámica de divorcio destructivo y está dentro del marco jurídico durante el estudio psicosocial. Participantes: tres familias de divorciados con hijos menores de 12 años de edad. Teórica: Teoría Sistémica de la Familia. Método: investigación-acción. Instrumentos: entrevistas semi-estructuradas, genogramas familiares, visitas al domicilio y el diseño de la familia por los niños. Los resultados mostraron que los niños con frecuencia se incluyen en el conflicto y expresan sentimientos de malestar y descontento con el conflicto marital. Por otro lado, mostró importantes recursos para hacer frente al divorcio, como el fortalecimiento de la fratría.

Palabras clave: divorcio destructivo, Psicología Jurídica, el dibujo de la familia, fratría.


 

 

Este texto trata de uma pesquisa ação cujo objeto de estudo foi os papéis parentais e conjugais exercidos pela díade parental em casos de divórcio destrutivo com filhos pequenos. Muitas vezes, esses pais inseridos em uma dinâmica de divórcio destrutivo perdem de vista o cuidado e a proteção das crianças envolvidas, uma vez que sobressaem os conflitos conjugais provenientes do período de casamento. Em nossas observações sobre os conflitos familiares judiciais, apontamos as confusões entre os papéis parentais e conjugais, tendo em vista a complexidade existente em processos de divórcio nos quais o relacionamento conjugal termina, mas a parentalidade ainda deve ser compartilhada. Sendo assim, o objetivo geral da pesquisa foi compreender como se apresentam os papéis parentais e conjugais em meio a uma dinâmica de divórcio destrutivo em casos de disputa de guarda ou regulamentação de visita envolvendo os filhos pequenos.

O referencial teórico baseia-se na Teoria Familiar Sistêmica, que propõe uma nova visão paradigmática na Psicologia e na ciência (Vasconcellos, 2003). Esta teoria contemporânea foi escolhida devido à necessidade do estabelecimento de novos paradigmas para se pensar a complexidade do divórcio destrutivo, que vislumbrem a totalidade familiar e a garantia dos direitos de todos os seus membros. Em sua proposta novo-paradigmática sobre o pensamento sistêmico, Vasconcellos (2003) identifica possibilidades de avanços da visão tradicional da ciência para uma nova ciência em três dimensões epistemológicas. A primeira refere-se à transformação do pressuposto da simplicidade, com o estabelecimento de relações causais e lineares, para o pressuposto da complexidade e conseqüente contextualização e recursividade. A segunda dimensão considerada pela autora é a concepção de estabilidade, determinismo e previsibilidade dos fenômenos, em substituição à qual ela sugere uma nova concepção de instabilidade, indeterminismo e imprevisibilidade do mundo. O terceiro pressuposto do paradigma tradicional que a autora refuta é o critério de objetividade, que deve evoluir para o de intersubjetividade, uma vez que não se pode excluir o observador e sua subjetividade do fenômeno estudado.

 

Famílias divorciadas

O divórcio é um fenômeno complexo e pluridimensional (Féres-Carneiro, 2003) e, cada vez mais, é alvo de estudos científicos, tendo em vista o crescente número de divórcios na sociedade. De acordo com estudo recentemente publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2008) referente ao registro civil, constatou-se um aumento superior a 200% do número de divórcios no período compreendido entre 1984 e 2007. Ahrons (1995) e Féres-Carneiro (1998) afirmam que é um mito acreditar que o aumento do número de divórcios está relacionado à falência da família ou do casamento, como normalmente a sociedade declara. Ao contrário, segundo as autoras, isto significa que existe uma maior expectativa com relação ao casamento e uma menor tolerância aos maus casamentos, o que evidencia que hoje se dá mais valor à formação de bons casamentos. Ademais, Ahrons (1995) defende a importância da estruturação saudável do processo de divórcio por toda a sociedade frente a este crescente número de divórcios.

 

Divórcio destrutivo

Com relação ao divórcio conflituoso, Glasserman (1989) define-o como destrutivo. Segundo essa autora, neste tipo de divórcio, a relação dos ex-cônjuges tem como base constantes conflitos, permeados por brigas permanentes que objetivam a conservação da união; dificuldade no cuidado com os filhos; necessidade de ganhar e desvalorizar a imagem do outro; necessidade de haver a participação de intermediários litigantes, tais como membros da família extensa, profissionais da saúde, da escola, da Justiça, entre outros. Além disso, no divórcio destrutivo não há o reconhecimento da coresponsabilidade do ex-par conjugal no conflito, observando-se tendência em ambos de encontrar culpados e cúmplices.

O divórcio difícil é definido por Isaacs, Montalvo e Abelsohn (2001) como aquele divórcio em que não se protegem os filhos do conflito entre os adultos e da desorganização familiar. Nestas famílias, os adultos não conseguem controlar suas disputas, fazem com que as crianças tomem partido na situação conflituosa, apresentam dificuldades em exercer as tarefas parentais ou mesmo abdicam destas. Uma característica do divórcio difícil observado por estes autores é quando o par parental não consegue ter uma visão objetiva da realidade de seus filhos. Vainer (1999) considera que os "casais de separação difícil" que mantêm entre si guerras judiciais buscam resolver seus conflitos que não foram resolvidos ao longo do casamento. Eles utilizam terceiros, como advogados e juízes, para se manterem unidos de forma inconsciente.

Costa, Penso, Legnani e Sudbrack (2009) caracterizam a comunicação entre o par parental no divórcio destrutivo de acordo com uma escalada simétrica, conceito definido por Watzlawick, Beavin e Jackson (1990) como um padrão comunicacional patológico. A relação simétrica baseia-se na igualdade e na busca de refletir o comportamento do outro; entretanto, o fator competitividade muitas vezes está presente na relação (Watzlawick et al., 1990). No caso da escalada em simetria, existe uma exacerbação da competitividade e da rejeição do outro, fenômeno presente freqüentemente em conflitos maritais. Para Costa et al. (2009), no divórcio destrutivo, os ex-cônjuges competem suas forças, principalmente no contexto judicial, levando a eventos violentos entre eles e buscando terceiros, como a Justiça, os filhos, os profissionais, entre outros, como aliados nesta guerra parental.

 

Conflitos de lealdade intergeracional presentes no divórcio destrutivo

Quando existem dificuldades por parte do par parental em diferenciar os papéis conjugais dos parentais, implicando em conflitos entre os excônjuges, os filhos podem ser envolvidos ou sentirem-se obrigados a se envolver nas brigas dos pais. Alguns conceitos da Terapia Familiar Sistêmica podem ser aplicados a estas situações de divórcio destrutivo: triangulação, lealdades invisíveis e parentalização.

Segundo a teoria de Bowen (1979), o triângulo encontra-se na base de qualquer sistema emocional na família. Quando a tensão entre dois membros da família, normalmente os pais, atinge um nível de ansiedade insuportável, uma terceira pessoa, habitualmente um filho, é triangulada para reduzir a tensão no seio do sistema, até chegar a níveis mais toleráveis. Mesmo que tais triangulações tragam como benefício redução do nível de ansiedade e tensão no sistema, a permanência deste padrão comunicacional e interacional a longo prazo, pode trazer significativos prejuízos ao desenvolvimento psicossocial de seus membros e às relações familiares presentes e futuras.

Normalmente, o que ocorre em situações de triangulação é o desvio da atenção do conflito para o filho sintomático na tentativa de buscar soluções para ele. Em casos de divórcio destrutivo, o sofrimento da criança ou adolescente não é visto como prioritário e, muitas vezes, pode inclusive ser negado. Nestes casos, o foco está no conflito, que toma grandes dimensões intra e extrafamiliares. De acordo com Miermont et al. (1994), quando a própria família não encontra mecanismos de autorregulação, novos triângulos se formam com terceiros fora do núcleo familiar (parentes, amigos, profissionais, instituições, como a Justiça, por exemplo), atenuando o sofrimento da família e transferindo-o para instâncias externas escolhidas.

Outro conceito proposto por Boszormenyi-Nagy e Spark (1973), refere-se às lealdades invisíveis, e está intimamente relacionado ao conceito de triangulação. Segundo estes autores, os diferentes membros de uma família têm funções interligadas e interdependentes e estão unidos por lealdades aparentes e ocultas. As lealdades invisíveis consistem na

existência de expectativas estruturadas de grupo, em relação com as quais todos os membros adquirem um compromisso. ... Para que alguém possa ser um membro leal do grupo, ele deve interiorizar o espírito de suas expectativas e assumir uma série de atitudes passíveis de especificação, para cumprir com os mandatos interiorizados (Boszormenyi-Nagy & Spark, 1973, p. 37).

Segundo Féres-Carneiro (1998), o conflito de lealdade exclusiva, ou seja, quando exigida por um ou ambos os pais, configura um dos maiores sofrimentos para os filhos em casos de separação dos pais. Em casos de divórcio, podem emergir conflitos de lealdade intergeracionais, em que um ou mais filhos podem se aliar a um genitor em detrimento do outro. Segundo Isaacs, Montalvo e Abelsohn (2001), logo após a separação, normalmente os filhos se aliam ao genitor com quem residem. Para Costa et al. (2009), quando os filhos estão triangulados de forma não saudável em divórcios destrutivos, eles assumem compromissos com ambos os genitores em uma perspectiva perversa de vinculação, pois quando se agrada a um genitor, está desagradando ao outro, e vice-versa.

O fenômeno da parentalização, conceito também formulado por Boszormenyi-Nagy e Spark (1973), está fortemente relacionado aos dois anteriores. Parentalização significa uma atuação (comportamental ou fantasiosa) distorcida de um companheiro ou filho colocando-se no papel paterno. De acordo com estes autores, de certa forma, toda criança necessita ser temporariamente parentalizada, a fim de que aprenda e desempenhe responsabilidades para sua vida futura. Entretanto, quando a parentalização de uma criança torna-se frequente e rígida, esta pode ser um fator que dificulta o desenvolvimento futuro adequado desta criança.

 

Presença de filhos pequenos no divórcio destrutivo

Peck e Manocherian (1995) estudaram o processo de divórcio nas diferentes fases do ciclo de vida familiar. As famílias com filhos pequenos podem dividir-se em dois subgrupos: famílias com filhos em idade pré-escolar e famílias com filhos na idade da Escola Elementar. No primeiro subgrupo, as autoras ressaltam o aumento de estresse e intensidade no relacionamento entre o genitor guardião e os filhos, pelas dificuldades enfrentadas por este genitor na condução do divórcio e educação dos filhos, que podem apresentar regressão em seu comportamento. O apoio da família extensa neste momento é extremamente importante para o enfrentamento do processo de divórcio nesta fase do ciclo vital. As autoras apontam que a faixa etária de crianças de seis a oito anos, que se encontram na fase escolar elementar, é a que sofre maior impacto do divórcio, visto que elas já conseguem compreender de certa forma o que está acontecendo, porém não possuem maturidade suficiente para lidar com o rompimento. Em casos de divórcio conflituoso, as crianças podem ser envolvidas em conflitos de lealdade intergeracional, bem como assumirem papéis parentais, que podem prejudicar seu desenvolvimento saudável (Costa et al., 2009).

Glasserman (1989) afirma que, em um divórcio destrutivo, o movimento constante da família em brigar e disputar dificulta a proteção integral dos filhos, especialmente se eles se encontram em uma fase de desenvolvimento que necessitam dos cuidados dos pais, como é o caso de crianças e adolescentes. No divórcio destrutivo, muitas vezes os pais buscam a aliança de familiares, especialmente dos filhos, que dificilmente saem ilesos do conflito familiar.

 

Método

O método utilizado neste estudo tem como orientação a pesquisa-ação, na qual o pesquisador não trabalha sobre os outros, mas com eles. A proposta de pesquisa-ação tem dois principais objetivos, que consistem em transformar a realidade estudada, servindo-se de instrumento para a mudança, e produzir conhecimento relativo a estas mudanças (Barbier, 2002; Böing, Crepaldi & Moré, 2008). Desta forma, a prática profissional interventiva também pode ser um meio de pesquisar e contribuir para a produção de saber.

Contexto: A presente pesquisa-ação foi realizada no Serviço de Atendimento a Famílias com Ação Cível (SERAF), que é um Serviço oferecido pela Secretaria Psicossocial Judiciária do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT). O estudo psicossocial realizado no SERAF tem dois objetivos principais: promover intervenções junto às famílias ao longo dos atendimentos e assessorar os magistrados em suas decisões com informações psicossociais por meio do relatório (Lima & Ribeiro, 2008).

Sujeitos: Foram selecionadas três famílias atendidas no SERAF com dinâmica de divórcio destrutivo e presença de filhos na idade infantil, ou seja, crianças de até 11 anos de idade. Este critério de idade dos filhos foi utilizado tendo em vista trabalhos de autores sobre o divórcio destrutivo, que afirmam que filhos na idade infantil são os que mais sofrem com o processo de divórcio destrutivo, pois eles percebem a dinâmica violenta, mas muitas vezes não conseguem lidar com o conflito parental e dele se afastar (Cerveny, 2006; Glasserman, 1989; Peck & Manocherian, 1995). As famílias serão identificadas como Família A, B e C e todos os nomes são fictícios.

 

 

Processo judicial: A ação judicial é de Regulamentação de Visitas, na qual Ana solicita a revisão das visitas do pai ao filho. Estava regularizado judicialmente o pernoite da criança na residência paterna de sexta a segunda-feira e a mãe solicita que as visitas ocorram de sábado a domingo, alegando que a forma com que vem ocorrendo está prejudicando a criança na escola.

História do par parental: Ana e André conheceram-se e, após três meses de relacionamento, Ana engravidou e eles passaram a residir juntos. Quando o filho Adriano contava com cerca de um ano e meio, o par parental decidiu se separar. O divórcio judicial deu-se de forma conflituosa, especialmente no que se refere à divisão do apartamento em que moravam juntos. As brigas entre o par parental ocorrem, principalmente, nas ocasiões de visita do pai ao filho e em eventos escolares. Atualmente, o par parental evita qualquer tipo de contato, deixando a cargo dos avós as negociações a respeito da criança. Apesar da dinâmica de divórcio destrutivo, Adriano parece transitar bem entre as residências materna e paterna. Entretanto, nas ocasiões em que os pais se encontram, como em eventos escolares de Adriano, a criança reage com nervosismo e ansiedade.

 

 

Processo judicial: A ação judicial é de Guarda e Responsabilidade, na qual a mãe Beatriz solicita regulamentação da situação do filho Bernardo. Ela afirma no processo judicial que o pai de Bernardo tem comportamento violento, uma vez que por diversas vezes a agrediu verbal e fisicamente ao longo do período de casamento. Em sua defesa, o pai alega que a mãe está promovendo a Síndrome de Alienação Parental na criança, impedindo-o de ver o filho.

História do par parental: Beatriz e Bruno, par parental, permaneceram casados por cerca de 11 anos. Bruno já tinha duas filhas de casamento anterior e Beatriz passou a residir com este núcleo familiar. De acordo com os ex-cônjuges, o período de casamento foi permeado por várias agressões verbais e físicas de ambas as partes, tendo resultado em algumas denúncias policiais. Na separação, que ocorreu após episódio de agressão conjugal, Beatriz saiu de casa e foi para a casa de sua mãe, levando o filho Bernardo consigo. Atualmente, não há qualquer contato entre o par parental, ficando a criança responsável por passar os recados entre eles. Percebe-se que a criança demonstra grande tristeza com a situação conflituosa atual entre os pais e parece estar mais leal à mãe e ao seu sofrimento. Beatriz passou por uma forte depressão após a separação conjugal, tendo compartilhado esses momentos com o filho Bernardo.

 

 

Processo judicial: A Ação judicial refere-se à Separação Litigiosa, proposta pela mãe. Camila solicita a guarda dos filhos que ficaram com o pai após a separação do casal. O pai afirma que a mãe abandonou as crianças com ele e que ela não tem condições psicológicas para ficar com os filhos, pois sofre de depressão.

História do par parental: Camila e Carlos foram casados por quase 13 anos e tiveram três filhos: Cícero, Cássio e Cecília. De acordo com o par parental, os primeiros anos de casamento foram tranqüilos, tendo Camila compartilhado com Carlos os cuidados do primeiro filho, que nasceu logo que se casaram. Já na segunda e na terceira gravidez, Camila sofreu depressão pós-parto, deixando Carlos mais à frente dos cuidados dos três filhos. Os conflitos conjugais surgiram nesses períodos de depressão, levando à separação conjugal com a saída repentina de Camila de casa. Desta forma, o diálogo entre o par parental após a separação ficou bastante comprometido, especialmente no que se refere aos filhos. Carlos informou que os filhos chegaram a ficar com a mãe por cerca de seis meses, mas foram reprovados de ano na escola, passando novamente a morar com o pai, situação em que se encontram até o momento, com visitas não-regulares à mãe. Camila considera que Carlos tem dificultado seus contatos com os filhos, impedindo que os filhos a visitem, especialmente os mais novos. As negociações para a realização das visitas ficam a cargo dos filhos, especialmente o mais velho, Cícero, uma vez que não existe comunicação entre o par parental.

Instrumentos: Os instrumentos da presente pesquisa-ação coincidem com os instrumentos que geralmente são utilizados no estudo psicossocial do SERAF, quais sejam: entrevistas semi-estruturadas com as famílias, genograma familiar, visita domiciliar e desenho da família realizado pelas crianças. Segundo Moura e Ferreira (2005) o formato flexível e aberto das entrevistas possibilita maior implicação e participação entre entrevistado e entrevistador. O genograma é uma ferramenta clínica e avaliativa que permite visualizar de maneira gráfica informações acerca dos membros de uma família e suas relações ao longo de, no mínimo, três gerações (Böing, Crepaldi & Moré, 2008; McGoldrick & Gerson, 2005). Com relação aos desenhos, vários autores consideram o desenho da família como uma técnica relevante no trabalho com crianças, uma vez que possibilita que a criança expresse sua percepção e sentimentos sobre o mundo familiar, considerado um dos primeiros e mais significativos contextos da criança (Flick, 2009; Penn, 2000).

Procedimentos: As famílias foram entrevistadas por um período de seis meses. Os critérios para a escolha das famílias foram: dinâmica de divórcio destrutivo, presença de filhos na idade infantil e semelhança nos procedimentos técnicos realizados. Todos os atendimentos realizados foram gravados em áudio por meio de um gravador de voz digital e todas as gravações foram transcritas.

Cuidados Éticos: O estudo obteve autorização do Presidente do TJDFT em maio de 2008, uma vez que o SERAF atua em segredo de justiça. Além disso, o projeto de pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética do Instituto de Ciências Humanas da Universidade de Brasília em junho de 2008.

Análise dos Resultados: Os desenhos e informações obtidos dos contatos com as crianças foram analisados a partir da proposta de Análise de Conteúdo de González Rey (2005), cuja construção-interpretação dos dados é feita por zonas de sentido. De acordo com este autor, as zonas de sentido consistem em campos de inteligibilidade produzidos ao longo do processo científico. Estes espaços visam abrir novas possibilidades de análises futuras, ao invés de esgotar teoricamente um determinado fenômeno.

 

Discussão dos resultados

Os atendimentos realizados com as crianças levaram à construção de dados provenientes das entrevistas e produção de desenhos infantis. A análise das transcrições das entrevistas e dos desenhos infantis configurou-se em três zonas de sentido: relação da criança com os pais, com os irmãos e com ela mesma. As crianças, de fato, expressaram a situação de conflito familiar que estão vivenciando. As imagens gráficas, representadas pelos desenhos de família realizados pelas crianças, devem ser analisadas contextualmente e relacionadas ao texto que as seguem, neste caso, à fala da criança (Ferreira, 1998; Penn, 2002; Van Kolck, 1981). É importante ainda assinalar que os desenhos foram produzidos no contexto das entrevistas realizadas no processo de estudo psicossocial padrão que o SERAF possui. Flick (2009) aponta que as expressões gráficas descrevem a realidade, e assim também encaramos a produção de desenhos das crianças.

Em função da limitação de espaço, vamos descrever os desenhos realizados pelas crianças, pois estes foram o nosso principal material de análise. O desenho da família realizado por Adriano mostra o espaço bastante rabiscado, nuvens superpostas, estrelas, quadrados, triângulos espalhados pelo papel, e abaixo de tudo uma figura humana bastante rabisca-da. Adriano fez os rabiscos e a figura humana em cor preta e os quadrados e triângulos na cor vermelha. O desenho da família de Bernardo apresenta, na parte de baixo do papel, cinco pessoas na seguinte ordem da esquerda para a direita do papel: o pai, a mãe, Bianca (irmã), Bárbara (irmã), e ele mesmo. O pai e ele estão desenhados com roupas iguais na cor verde, a mãe na cor amarela, as duas irmãs foram desenhadas com vestidos na cor rosa. Todas as figuras humanas estão desenhadas equidistantes, com a mesma estatura e cuidado na confecção, pés bem apoiados na margem inferior do papel, braços estendidos ao largo do corpo, cabelos arrumados e todo o desenho foi realizado na metade inferior do papel. O desenho da família de Cícero, Cássio e Cecília foi realizado em papel amarelo pelas três crianças em conjunto. Na parte superior existem nuvens, algumas claras outras escuras, e das nuvens mais à direita do desenho está chovendo sobre Carlos que está acompanhado somente de um pato, Carlos está desenhado integralmente porém suas pernas estão quase apagadas, seu cabelo está desenhado fortemente e sua boca é bem vermelha. No meio do papel, na margem inferior há uma casa desenhada com traços fracos e um telhado desenhado com força, que segundo as crianças é a casa materna. Esta casa separa Carlos do restante da família. Sobressaem na casa as fechaduras desenhadas com força e nitidez. Do lado esquerdo do papel, na margem inferior, aparecem da esquerda para a direita: minha mãe, Cícero, Cecília e Cássio. Minha mãe é a figura mais alta, com uma cabeça mais avantajada do que o corpo, de onde saem corações vermelhos, as pernas estão fracamente desenhadas, as mãos estendidas ao largo do corpo e um sorriso nos lábios. Cícero, é menor que a mãe, tem as mãos nos bolsos, e as feições desenhadas com ênfase. Cecília é menor ainda, as mãos estão nos bolsos da saia, suas feições e cabelos são bem definidos e há um coração desenhado com destaque por cima da roupa. E, finalmente Cássio é um pouco maior, do tamanho de Cícero, não há destaques em sua figura e suas mãos estão nos bolsos da calça.

 

Zona de sentido 1: percepção do conflito parental pelas crianças – "meus pais não podem se ver"

Nos atendimentos realizados com as crianças, todas elas revelaram perceber a situação de conflito em que se encontram seus pais. Todas elas sabem que os pais não se dão bem e afirmam que o encontro entre o par parental gera conflito. De forma geral, a literatura aponta que as crianças são sensíveis ao ambiente familiar. De acordo com Despert (1970), em uma situação de divórcio, normalmente as crianças percebem quando algo não vai bem entre os pais, sendo orientadas principalmente por sentimentos e expressões sutis que muitas vezes os genitores tentam esconder. Ao falarmos do próximo atendimento em que deverão estar presentes pai e mãe, Adriano falou: "Isso não vai dar certo". Cássio: "Não sei. Meu pai mais minha mãe brigou de repente. E nunca mais nenhum quer ver a cara do outro".

Com relação à vivência de um conflito familiar, os três desenhos trazem aspectos da percepção das crianças sobre o relacionamento parental. No desenho de Adriano, ele aparece sozinho no desenho de sua família. De acordo com Van Kolck (1981), a ausência de elementos que são comuns em um desenho pode demonstrar significativo conflito com relação a eles. A ausência da figura dos pais e outros familiares no desenho da família de Adriano, a impaciência da criança em fazer este desenho e o desvio de sua atenção para outras formas que disse ter mais facilidade em desenhar (borda do desenho, formas geométricas e contorno da mão) são fatores que evidenciam que o alto nível de conflito familiar está afetando negativamente a relação da criança com seus pais.

No desenho de Bernardo, observa-se que ele está afastado dos pais e protegido pelas irmãs. Embora o desenho não explicite o conflito conjugal e, de certa forma, demonstre um desejo de Bernardo em unir os pais, a criança coloca-se distante do relacionamento parental, o que pode significar que ele não se sente à vontade com maior proximidade dos pais, pois a realidade ainda é de conflito. Cícero, Cássio e Cecília desenharam os pais nas extremidades do papel. O afastamento entre o par parental é reforçado pela presença de várias barreiras entre eles, como os próprios filhos, a casa materna e a chuva em volta do pai. Percebe-se que todos esses elementos apresentam-se para manter os pais distantes, o que demonstra uma fantasia dos filhos de que o encontro entre os pais gera conflito.

Essas análises interpretativas dos desenhos de família a partir de uma óptica do conflito existente entre os pais estão de acordo com a literatura, que afirma que as crianças também vivenciam os conflitos conjugais, estejam os pais casados ou divorciados (Ahrons, 1995; Costa et al., 2009; Despert, 1970; Glasserman, 1989; Isaacs, Montalvo & Abelsohn,, 2001). Verifica-se, portanto, que as crianças são incluídas de diversas formas no conflito entre os pais e expressam essas dificuldades em seus desenhos.

Observou-se que as crianças das três famílias têm a função de negociar com os pais questões que deveriam ser responsabilidade dos adultos, como, por exemplo, as visitas com o genitor não-guardião. Com as crianças mais velhas, essa organização fica ainda mais evidenciada, como é o caso de Bernardo e Cícero. Bernardo: "Já teve um dia que ele falou que tava fazendo compras, chegou aqui em baixo eram que horas? Já tava até escurecendo". Psicóloga: "E aí você ficou o dia todo esperando...?" Bernardo: "Não, aí eu, quer saber, eu desfiz a mala que eu faço pra ir pra lá e fiquei em casa. Aí ele veio aqui e eu falei que não ia não. Que por causa do... porque se ele passar do horário, eu vou se eu quiser, se ele passar do horário". Cícero: "Ai eu falo assim 'Papai, se eu arrumar a casa, eu posso ir na casa da minha mãe?' Ai ele deixa. Sempre eu peço pros meninos ir comigo, né? Mas aí ele não deixa, aí quando vai só eu, ele deixa".

Colocar a criança em uma situação cuja responsabilidade não é cabível a ela e sim aos seus genitores caracteriza-se como uma parentalização (Boszormenyi-Nagy & Spark, 1973). Uma dinâmica familiar que utilize a parentalização de crianças como um padrão de relacionamento pode trazer sérios prejuízos ao desenvolvimento saudável dessas crianças, uma vez que delas são esperadas tomadas de decisões que não estão de acordo com sua faixa etária (Costa et al., 2009; Fedullo, 2001). Apesar desta comunicação indireta entre o par parental indicar uma estratégia para reduzir a tensão entre o par parental, a manutenção desta forma de vínculo dependente da criança pode colocá-la em uma situação de confusão, sem saber em qual pai pode confiar, levando à formação de lealdades invisíveis (Dantas, Jablonski & Féres-Carneiro, 2004).

No mesmo sentido, Siméon (2000) afirma que, em famílias conflituosamente vinculadas, a criança pode ser exigida a escolher uma das partes beligerantes, criando conflitos de lealdades. Além disso, a autora pontua mais uma questão importante em casos de divórcio destrutivo que se refere à manipulação dos adultos por parte da criança. A delegação de uma posição hierárquica superior dentro da família pode levar a criança a manifestar comportamentos manipuladores, uma vez que lhe foi concedido poder e saber pelos adultos, principalmente em casos de pais que não possuem diálogo (Siméon, 2000).

 

Zona de sentido 2: a importância da fratria – "meus irmãos me ajudam em tudo"

A fratria é um recurso de suporte e fortalecimento das crianças em uma situação de conflito entre o par parental. Notou-se que, nos desenhos de família realizados pelas crianças que possuem irmãos (Famílias B e C), todos os membros da fratria foram graficamente representados lado a lado, o que demonstra que o subsistema fraterno encontra-se unido. De acordo com Oliveira (2006), o relacionamento fraterno proporciona uma experiência íntima, rica e complexa entre iguais, envolvendo vivências em comum que muitas vezes só podem ser compartilhadas ente irmãos, embora também exista espaço para rivalidades e competições. Quando a família vive momentos traumáticos, como é o caso de um processo de divórcio destrutivo, os vínculos fraternos são intensificados, uma vez que atravessam a mesma situação dolorosa e buscam apoiar-se mutuamente (Goldsmid & Féres-Carneiro, 2007; Meynckens-Fourez, 2000; Oliveira, 2006; Siméon, 2000).

Pesquisadora: "E vocês conversam muito?" Bernardo: "Com as minhas irmãs? A gente conta todos os segredos". Pesquisadora: "Todos os segredos?" Bernardo: "É, a gente é muito unido".

No caso do divórcio destrutivo, em que há desorganização dos papéis parentais, o poder da fratria intensifica-se com a busca de conforto na formação de um continente substitutivo próprio (Goldsmid & Féres-Carneiro, 2007; Meynckens-Fourez, 2000; Oliveira, 2006; Siméon, 2000). Segundo Meynckens-Fourez (2000), o subsistema fraterno possui três funções básicas: continente emocional de afeto, tranquilidade e recurso; provimento parental; e aprendizagem dos papéis sociais e cognitivos. Observa-se, portanto, que o vácuo parental ocasionado pela experiência do divórcio destrutivo promove destaque à função de provimento parental por parte dos irmãos, como pode ser exemplificado: Assistente Social: "Quando você tá com dificuldade, quem te ajuda?" Cecília: "Meus irmãos!"

De acordo com Isaacs, Montalvo e Abelsohn (2001), "a afiliação a um grupo fraternal coloca-nos em uma situação favorável a responder ativamente frente a seus progenitores" (p. 155), ou seja, a fratria oferece um fortalecimento dos filhos com relação às reações emocionais dos adultos que estão em conflito. Ademais, Siméon (2000) considera que os subsistemas fraternos são mais flexíveis para atravessar e comunicar-se com os demais subsistemas familiares. Neste sentido, a ausência de irmãos em uma situação de divórcio destrutivo coloca o filho único em situação de desvantagem e de maior sobrecarga emocional, como afirma Meynckens-Fourez (2000) e como pode ser observado no desenho de Adriano, que é a única criança desta família. O desenho da família de Adriano demonstra uma clara tensão que pode ser entendida a partir da dinâmica relacional de divórcio destrutivo adotada por seus pais e familiares. A criança encontra-se sozinha em um mundo de adultos que se comunicam de forma destrutiva. A ausência de pares mais próximos a ele coloca-o em uma posição desprivilegiada em relação às crianças das outras famílias analisadas.

No caso de Bernardo, embora exista um subsistema fraterno que é fonte de recursos para a criança, a separação conjugal promoveu a separação entre os irmãos, e a dinâmica destrutiva tem dificultado um maior apoio fraterno e, até mesmo, incluindo as irmãs na disputa parental. Desta forma, Bernardo encontra-se isolado de sua fratria e é sobrecarregado pela dinâmica destrutiva na qual a família vem-se relacionando. Meynckens-Fourez (2000) e Siméon (2000) afirmam que filhos únicos e primogênitos geralmente são incluídos mais facilmente em conflitos de lealdade, analisados na zona de sentido anterior. Esse isolamento de Bernardo para com fratria, por vezes, o coloca em uma situação de filho único, sendo alvo das disputas conjugais.

Cícero, o primogênito da Família C, cumpre suas delegações familiares de cuidado com a família, tanto em relação aos irmãos mais novos, quanto ao bem-estar dos adultos. Ele busca ser uma referência para os irmãos, além de aliar-se ao sofrimento da mãe ao manifestar claramente seu desejo de estar mais com ela. De acordo com Siméon (2000), frequentemente os primogênitos são convidados a preencher vazios afetivos e a ocupar uma posição de maior responsabilidade e confidência dos sofrimentos tanto dos adultos quanto dos irmãos. Essa tarefa quando levada ao extremo pela dificuldade dos adultos em reassumir os cuidados parentais, como nos casos de divórcio destrutivo, marginaliza-os progressivamente e dificulta seu processo de socialização. Nestes casos, os primogênitos tornam-se verdadeiros "para-choques" para protegerem a família das dificuldades.

Considera-se, portanto, que a existência do subsistema fraterno em casos de divórcio destrutivo pode ser um fator positivo para lidar com as dificuldades e os conflitos parentais. O fortalecimento da fratria deve ocupar um papel central no trabalho com famílias com alto nível de disputa (Siméon, 2000). Além disso, esse trabalho deve fornecer maior suporte aos filhos únicos e primogênitos a fim de que eles não sejam tão prejudicados nos casos de divórcio destrutivo.

 

Zona de sentido 3: manifestações afetivas das crianças – "não gosto nada dessa situação"

Percebeu-se que os filhos das três famílias manifestaram de diversas formas seu sofrimento e insatisfação com a dinâmica familiar de divórcio destrutivo adotada pelos adultos. Embora a experiência de um divórcio seja dolorosa para todos os membros da família (Féres-Carneiro, 2003), a manutenção de altos níveis de sofrimento infantil, anos após o término do casamento, não está relacionada à separação conjugal em si, mas principalmente à forma de relacionamento que os pais constroem entre eles (Ahrons, 1995; Cerveny, 2006; Despert, 1970; Fedullo, 2001).

No desenho de Adriano, observa-se claramente uma sobrecarga de informações e conflitos, uma vez que ele se apresenta sozinho no desenho de sua família e com muitos elementos em cima dele. Os rabiscos verticais, de acordo com a verbalização de Adriano, representam a chuva, que é um fenômeno da natureza impossível de ser controlado (Van Kolck, 1981). A utilização da cor vermelha e do grafite também demonstra expressão de reações emocionais fortes, como afirma Van Kolck (1981). Além do desenho, Adriano também demonstrou alto nível de ansiedade e agressividade nas brincadeiras, derrubando os brinquedos no chão, matando e batendo em todos os personagens, especialmente os pais e o juiz, e solicitando silêncio de todos, como pode ser observado na brincadeira do gênio da lâmpada: Psicóloga: "Então, Adriano, você pode... Qual é o seu primeiro pedido?" Adriano: "Que você fique em silêncio!" Psicóloga: "Hum..." Adriano: "Que você vá embora! E terceiro, que você cale essa sua boca!"

Percebe-se que o alto nível de conflito entre seus familiares (pais, tios e avós), além da falta do recurso que uma fratria poderia oferecer-lhe, contribui para as expressões de sofrimento de Adriano por meio de raiva e agressividade. Despert (1970) compreende que ataques de raiva por parte das crianças, após o divórcio, revelam uma forma de protesto sobre o conflito parental. Não querer desenhar nem falar sobre a situação de sua família representa uma estratégia de buscar saídas desse conflito familiar explícito entre os adultos.

Ao analisar o desenho de Bernardo, observa-se que ele utilizou apenas o espaço da metade inferior da folha de papel, que, segundo Van Kolck (1981), indica a presença de sentimentos de insegurança, depressão e comportamento emocionalmente dependente. Ademais, o desenho da família de Bernardo apresenta uma simetria gráfica, o que representa necessidade de segurança e equilíbrio interno (Van Kolck, 1981). A partir desta análise, aliada aos atendimentos infantis realizados com Bernardo em que ele demonstrou ser uma criança tímica e calada, compreende-se que o ambiente familiar conflituoso não tem proporcionado à criança a segurança e o conforto necessários ao seu desenvolvimento. Por outro lado, Bernardo pratica atividades extra-escolares, futebol e judô, que lhe oferecem recursos de superação e reconhecimento pessoal, participando de campeonatos importantes e apresentando posição de destaque nessas atividades.

Com relação às crianças da Família C, observa-se que há níveis de detalhes e áreas reforçadas na representação de si mesmos, especialmente em Cícero e Cecília. No desenho da família, as cabeças destas crianças encontram-se reforçadas, além de Cecília possuir flores em seu peito. De acordo com Van Kolck (1981), partes reforçadas no desenho infantil denunciam zonas de maior valor para o sujeito, além de significar uma preocupação ou conflito. O reforço na área da cabeça com a cor azul pode representar uma tentativa de regulação das emoções por meio do auto-controle e da razão (Van Kolck, 1981). Por sua vez, Cássio parece estar mais individualizado e afastado dos conflitos de lealdade, sendo desenhado por traços mais simples e mais distante dos irmãos.

De maneira geral, evidencia-se que as crianças inseridas em uma dinâmica de divórcio destrutivo buscam estratégias saudáveis e não-saudáveis de compreender a situação conflituosa e dela retirar-se. A busca de compreensão do conflito parental dá-se mediante expressões de afetividade – agressividade, insegurança, depressão – e de racionalização. Além disso, outras atividades significativas para essas crianças devem ser proporcionadas fora do ambiente familiar, a fim de promover novos recursos internos saudáveis para lidar melhor com as dificuldades parentais.

 

Considerações finais

Esperamos ter demonstrado o quanto as vozes das crianças e dos adolescentes, que surgem neste contexto de decisão, devem ser valorizadas, pois são informações imprescindíveis em um contexto no qual o "adultismo" prevalece. Frequentemente, as crianças e os adolescentes são menosprezados pelos adultos como sujeitos de direitos e que merecem ser ouvidos, postura esta proveniente de legado histórico ainda presente em nossa sociedade (Ariés, 1986). Cabe aos profissionais que lidam diretamente com esta população buscar desvendar suas manifestações afetivas dentro da dinâmica de divórcio destrutivo em que está inserida. É primordial ter sensibilidade e conhecimento acerca do sofrimento infantil, que se encontra inserido nas falas, nos desenhos e nas brincadeiras, a fim de que se proporcionem intervenções favoráveis ao seu desenvolvimento saudável.

Os profissionais que lidam com essas famílias no contexto jurídico devem priorizar o bem-estar da criança e do adolescente e, em razão disso, privilegiar os papéis parentais em detrimento dos conjugais em uma situação de divórcio destrutivo. As decisões dos magistrados e as intervenções psicossociais devem voltar-se para os papéis parentais e para o bem-estar das crianças envolvidas, na perspectiva de que prevaleça o "interesse superior da criança" (Pereira, 1999).

Não há respostas prontas e simples para a complexidade do divórcio destrutivo. A postura crítica e sistêmica dos profissionais é requisito necessário para a atuação com famílias em situação de conflito e disputa. Para tanto, o desenvolvimento de novas pesquisas que visem essa ampliação de visão é fundamental para o progresso da ciência. As contribuições que visei com este trabalho são encaminhamentos de mudança paradigmática a fim de que se apresentem reflexões e soluções mais eficazes para os aspectos familiares violentos presentes no divórcio destrutivo.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em maio/2010.
Aceito em dezembro/2010.

 

 

NOTA

1 Este texto está baseado na Dissertação de Mestrado "Papéis Conjugais e Parentais na Situação de Divórcio Destrutivo com Filhos Pequenos" realizada pela primeira autora e orientada pela segunda, defendida perante o Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília.

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