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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.16 no.1 São Paulo June 2011

 

RESENHA

 

Hermann, Maurício Castejón

 

 

Andréa Franco Milagres

Psicanalista, professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC Minas), membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-Fórum BH. andreafmilagres@gmail.com

 

 

Acompanhamento terapêutico e psicose: articulador do real, simbólico e imaginário

São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2010, 285 p.

O livro que Maurício Hermann nos brinda é fruto de sua tese de doutorado em Psicologia Clínica, defendida na USP em 2008. Trata-se da formalização da experiência clínica como Acompanhante Terapêutico (AT) nos últimos 15 anos em suas andanças por São Paulo.

Parte-se de um ponto importante, na medida em que não é um acompanhante qualquer: trata-se de um AT atravessado pela formação em psicanálise de orientação lacaniana e é em torno das considerações de Lacan a respeito da clínica das psicoses que edifica suas perguntas e suas hipóteses de trabalho. É uma novidade! A partir do convite de Lacan para que os psicanalistas não recuassem diante da psicose, foi possível constatar nos últimos anos duas consequências: uma significativa presença destes nos CAPS e demais serviços de saúde mental e um expressivo número de publicações que tratam de formalizar a clínica das psicoses sob transferência, principalmente no campo institucional.

Todavia, constatamos ainda uma escassez de publicações de psicanalistas lacanianos sobre o Acompanhamento Terapêutico. A que se pode atribuir esta escassez? Haveria algum pré-conceito dos analistas quanto ao dispositivo? Qual a relação entre AT e psicanálise? O que estaria em jogo nesta escassez de publicações e mesmo no pálido interesse dos psicanalistas pelo dispositivo? Seria o mal-entendido de que o AT opera no campo da especularidade ou poderíamos supor que o problema é o significante "terapêutico" atrelado ao acompanhamento?

Vejamos as duas situações, pois é preciso desfazer alguns equívocos. Primeira situação: sendo o autor um psicanalista lacaniano, nos parece devidamente advertido de que não é possível operar analiticamente privilegiando apenas um dos registros, qualquer que seja ele. Aliás, a teoria da qual lança mão aponta que se trata de amarrar os três registros para que a coisa funcione. A experiência clínica do autor nos mostra ainda que se há uma prevalência do registro imaginário na paranóia, uma enfatuação do eu tributária do eixo narcísico, se trata justamente no Acompanhamento de esvaziar a constante tensão provocada pela paixão do paranoico pelo Um. É uma direção indicada em diversas passagens do texto: manejar a transferência paranoica – sempre maciça – e, ao mesmo tempo, não alimentar o imaginário injetando sentido. Isso o paranoico já faz sobejamente, sem necessitar do AT para esta tarefa. Outro ponto que me parece importante marcar é que os analistas que desdenham o dispositivo do AT provavelmente nunca tiveram a chance de atender e escutar um sujeito psicótico, nem no consultório, nem na instituição, e desconhecem, por esta razão, as inúmeras dificuldades de manejo que se apresentam clinicamente. O AT mostra sua pertinência não apenas como ponto articulador com o laço social, mas também como estratégia para tratar da transferência persecutória, quando inserido numa equipe de tratamento.

Segunda situação: historicamente, nos conta Maurício, "a função clínica do AT se constituiu a partir do significante terapêutico, significante que está bem distante dos pressupostos psicanalíticos, cuja finalidade de tratamento não incide sobre a psicoterapia, sobre o terapêutico, sobre o bem-estar, mas sim sobre o analítico ou o bem-dizer". (p. 18). Provavelmente, se colocamos o acento no terapêutico, repousaria aí uma das desconfianças no dispositivo, visto que a finalidade da psicanálise não é exatamente livrar o sujeito do sintoma ou terapeutizá-lo. A psicanálise reconhece que há um incurável em cada sujeito e, no que diz respeito aos psicóticos, não é possível que queiramos incluí-los na norma social, pois esta é sempre uma norma fálica. Assim, adverte nosso interlocutor, não é possível levantar a bandeira da inclusão social do louco a qualquer preço. É necessário considerar certas condições subjetivas, pois há lugares insustentáveis para o sujeito psicótico. Calma com o furor terapêutico, calma com o furor includente, esta seria a sua recomendação.

O valor de sua pesquisa reside, portanto, justamente no esforço em demonstrar que a psicanálise só existe a partir da prática clínica, ou seja, só se pode definir o que seja um analista a partir dos efeitos de sua intervenção, no a posteriori do seu ato. E esta intervenção, sustenta o autor, não se restringe ao que se denomina enquadre ou setting analítico. Uma psicanálise se sustenta a partir de um discurso. Deste modo, não é o enquadramento institucional ou do consultório que determinarão a possibilidade de uma psicanálise se efetivar. Sua aposta é de que o AT orientado pela política e pela ética da psicanálise possa recolher efeitos analíticos. Aqui há uma sutileza que vale à pena ser notada: não se trata de fundar uma sequência do tipo: primeiro o acompanhamento e depois o laço social. Para um sujeito psicótico, aceitar alguém como AT já uma tentativa de religar a libido aos objetos. É justamente o tratamento dos fenômenos psicóticos pela via da transferência, seja com o analista, seja com o AT que permitirá a um sujeito refazer seus laços sociais.

Desbastado o caminho, entremos no livro. Em primeiro lugar o autor localizará a invenção deste dispositivo dentro da Reforma Psiquiátrica e do movimento de substituição dos manicômios.

Em segundo lugar, a partir do tipo clínico da paranoia, se ocupará em sistematizar o dispositivo clínico do AT, delimitando suas condições de possibilidade, demonstrando sua função analítica e suas possibilidades de funcionar como articulador do sinthoma, segundo as indicações fornecidas por Lacan ao tomar Joyce como paradigma.

A proposta que Maurício pretende comungar com o leitor é que seu livro não interessa apenas aos AT's e sim a todos os que, de uma forma ou de outra, sustentam uma posição de embate com os impasses inerentes a todo tratamento possível da paranoia.

No capítulo I, intitulado "A reforma psiquiátrica e o surgimento do Acompanhamento Terapêutico", o autor nos diz que não se pode afirmar que o dispositivo surge de forma espontânea ou descolada dos movimentos institucionais de substituição dos manicômios. O AT surge justamente no entrecruzamento das experiências de tratamento da loucura no pós-guerra, e a cada experiência, temos o AT como produto de um determinado paradigma institucional, com todas as suas contradições.

Deste modo, Maurício retomará a experiência denominada Comunidade Terapêutica, ocorrida na Inglaterra e na Itália, cuja proposta era baseada na horizontalização das relações institucionais como forma de subverter o saber psiquiátrico totalizante. Já na ocasião, encontramos a figura do auxiliar psiquiátrico como precursor do AT ao enfatizar a saída deste técnico da instituição para auxiliar o paciente em seu cotidiano, introduzindo pela primeira vez alguma dialética entre o dentro e o fora do hospital psiquiátrico. O autor observa que no Brasil, na década de 70, encontramos ainda o emprego do termo "amigo qualificado" considerando-o, todavia inapropriado, uma vez que há uma posição distinta entre amigo e terapeuta:

a proximidade pela proximidade não promove o tratamento e também é verdadeiro o fato de que os integrantes do par acompanhante/ acompanhado ocupam posições assimétricas. Se não fosse assim, não haveria por que teorizar esta clínica, nem se interrogar sobre seus efeitos. (p. 32)

Outro marco é a experiência ocorrida em Trieste, Itália, conhecida como Psiquiatria Democrática Italiana, na década de 70. É uma experiência que interroga de forma radical a instituição psiquiátrica, apontando sua função de custódia e a relação de dependência entre psiquiatria, as leis e a manutenção da ordem pública. Propõe-se uma abertura gradual do hospital psiquiátrico e a retomada das relações dos internos com a cidade, num movimento de mão dupla. São construídos Centros de Saúde Mental que abarcam não somente a função de tratamento, mas todas as necessidades sociais dos usuários e cooperativas de trabalho para promover a emancipação dos cidadãos loucos e estabelecer estratégias de trabalho e de inserção social. No contexto triestino, as propostas de intervenção são calcadas na noção de território, permitindo ao autor verificar os efeitos que uma estratégia de circulação social pode precipitar em um tratamento com pacientes psicóticos. A cidade e o espaço urbano passam a ser lugares privilegiados de trocas, mas também onde o homem moderno organiza seu tempo em função de uma ordem produtiva. Maurício Hermann nos diz que "a experiência italiana levou à radicalidade a proposta de inclusão social, em completa sintonia com o que a clínica do AT preconiza". (p. 39). Todavia, se o psicótico se beneficia destes pontos de ancoragem subjetiva no contexto social, é fundamental não impor a bandeira da inclusão, antes que se saiba a medida de cada um.

A terceira e última experiência institucional referida é a Psicoterapia Institucional Francesa. Este modelo seria uma tentativa de resgatar a verdadeira vocação terapêutica da instituição psiquiátrica. É uma prática marcada pelas elaborações da psicanálise lacaniana da década de 50, na medida em que considera que a constituição subjetiva se dá a partir de uma alienação no campo do Outro. Jean Oury, fundador da experiência, entende que a dimensão da alienação social também está presente naqueles que tratam da loucura, o que desemboca na exigência de tratar a alienação da própria instituição. Nesta linha, é sempre necessário questionar o trabalho institucional, lutando contra sua condição alienante, a objetificação. A proposta de tratamento é estabelecida em torno do conceito de coletivo. Cabe à instituição organizar-se em uma multiplicidade de saberes, de tal modo que os técnicos possam sustentar coletivamente o acolhimento do singular, oferecendo condições de desalienação das determinações sociais. A instituição deve oferecer espaços heterogêneos que favoreçam a circulação do paciente, promovendo a possibilidade do encontro. Na Psicoterapia Institucional é fundamental sustentar no coletivo a transferência: "onde há possibilidade da emergência do dizer, de emergência do sujeito, há circulação de palavra e, por conseqüência, transferência." (p. 45). Outro ponto de destaque é o acento dado à função diacrítica, que "assume seu papel ao distinguir o que é da ordem do amorfo, do confuso, na tentativa de romper com a repetição, com o vazio". (p. 46). Na prática institucional o que se propõe é que acontecimentos importantes possam ser apontados, rompendo com a repetição, com o já estabelecido. Por fim, destacam-se as reuniões de equipe, ocasião onde podem ser apontadas e dissolvidas as cristalizações imaginárias, na medida em que há uma resistência estrutural da instituição a dar continuidade ao tratamento. O que Maurício ressalta desta experiência no que concerne ao AT? É que aí é levada em consideração a subjetividade na psicose, e há uma tentativa inequívoca de estabelecer as bases da operação clínica a partir da transferência e da construção de referenciais simbólicos que permitam a instalação do dispositivo de tratamento.

De resto, o que importa na conclusão deste primeiro capítulo é discernir a função clínica do AT. Tendo o dispositivo surgido a partir de uma demanda institucional no momento em que o dentro e fora das instituições começam a dialetizar – se, convocando assim a presença de um terceiro, é fundamental esclarecer que sua função não se restringe a coletar informações para a equipe ou auxiliar o paciente nas tarefas da vida cotidiana. O autor nos propõe dar um passo a mais, para além de sustentar uma proximidade, que não poderia por si só ser considerada benéfica ao sujeito:

A posição de proximidade com a loucura, por si, é insustentável, à medida que se ocupam posições assimétricas no par acompanhante/acompanhado. Como então sustentar a hipótese de que o AT, imbuído da teoria lacaniana sobre a subjetividade da psicose, pode atingir os efeitos clínicos a ele atribuídos, no caso, construir meios de estabilização para que o sujeito psicótico suporte uma proximidade com o laço social? (p. 52).

A proposta é que qualquer estratégia de reabilitação psicossocial sustentada por uma equipe e contemplada num projeto terapêutico que inclua o AT deve, como ponto de partida, seguir o estilo sugerido pela própria estrutura subjetiva do psicótico. Daí a crítica aos modelos de reabilitação que obstruem o sintoma psicótico em nome dos ideais civilizatórios.

O capítulo II é inteiramente dedicado às formulações freudianas sobre a paranoia. Começa por mostrar o corte operado por Freud, na medida em que toma o delírio não como produto patológico a ser eliminado, mas como formação discursiva a ser escutada. É uma posição ética que distingue a psicanálise dos métodos de tratamento contemporâneos e que permanece orientando a clínica lacaniana atual.

O autor refaz o percurso de Freud anterior a 1900, localizando a etiologia da paranoia nas Observações sobre as neuropsicoses de defesa (1894), Manuscrito H (1895) e Novas Observações sobre as neuropsicoses de defesa (1896). No primeiro trabalho Freud mostra que na histeria, na neurose obsessiva e na paranoia temos a universalidade de um mecanismo psíquico: uma defesa do eu diante de uma representação intolerável e seu respectivo afeto. Seria justamente o destino do afeto que definiria a patologia. Na histeria, o afeto converte-se numa inervação somática e na neurose obsessiva o afeto desloca-se para o pensamento. No Manuscrito H, de 1895, Freud diz que existe uma modalidade enérgica de defesa em que o eu rejeita a representação insuportável junto com o afeto, compor-tando-se como se tal representação nunca tivesse existido. É o caso da paranoia.

Em seguida, com o caso Schreber, Maurício retomará a discussão sobre a etiologia da paranoia vigente em 1911. A noção de defesa permanecerá central nas elaborações de Freud, com a diferença de que agora se trata de uma defesa diante de um desejo homossexual. O desejo homossexual inconsciente é localizado na formulação gramatical "Eu o amo", núcleo central da paranoia. Todos os subtipos clínicos da paranoia, a saber, delírios de perseguição, erotomania, delírios de ciúmes e a megalomania, seriam maneiras de negar os elementos gramaticais que compõem a frase "Eu o amo". No processo estaria envolvido não apenas a negação (que pode recair sobre o sujeito, sobre o objeto, sobre o predicado ou mesmo sobre a frase inteira), mas também o mecanismo da projeção, na medida em que aquilo que foi abolido internamente ("Eu, um homem, amo um homem") retorna como uma percepção externa, sempre delirante. O paranoico sente que é odiado, amado, traído, ou, no limite, amando somente a si mesmo, como vemos na megalomania. O delírio, fruto de uma posição subjetiva, substitui desta forma um fragmento de realidade rejeitado por outra realidade mais suportável.

Situada a função do delírio, o autor se debruçará no capítulo III sobre a problemática do pai na psicanálise. Mostra como o Complexo de Édipo foi retomado por Lacan a partir na noção de função paterna e inserido no campo da linguagem como um operador lógico e estrutural. Maurício retomará os três tempos do Édipo com a finalidade de mostrar o comprometimento da realidade quando o sujeito não consente com a castração. Na paranoia, em função da foraclusão do Nome-do-Pai, o objeto a não foi extraído do campo da realidade, encontrando-se por esta razão desvelado. O olhar e voz tornam-se facilmente identificáveis: o sujeito se depara com um Outro que tudo vê e tudo fala. Utilizando-se do esquema I, discute a estrutura do delírio de Schreber, indicando que a metáfora delirante comporta dois tipos de suplência. A transformação em mulher e a prática transexualista dizem respeito à suplência imaginária, condição, no entanto, insustentável para Schreber, pois se aproximava da posição homossexual. Todavia, ao incluir a ideia de redenção – copular com Deus e povoar o mundo com uma nova raça – estamos no campo da suplência simbólica, o que permitirá a reconstituição do campo da realidade e a contenção de uma imagem.

A conclusão deste capítulo aponta qual o lugar do psicanalista na direção do tratamento na clínica das psicoses. Trata-se do secretário do alienado ou da testemunha:

Na psicose o analista não compreende e também não remete o sujeito à impossibilidade do simbólico. O analista busca testemunhar, sustentar os significantes do sujeito psicótico capazes de dar contorno ao real, capazes de dar contorno a esse sujeito que vive na borda da loucura, e que pode, a qualquer momento despencar no furo da psicose. (p. 139)

O capítulo IV discute o que o autor chama de instalação do dispositivo de tratamento. De modo geral, as demandas de indicação para AT se dão após uma crise, onde se configura a dissolução das bengalas imaginárias e a aparição das alucinações. A indicação vem do Outro: o psiquiatra, a família ou mesmo a instituição de tratamento. Trata-se primeiramente, ao acolher esta demanda, de criar estratégias na transferência, para estabelecer uma possibilidade de tratamento. Há circunstâncias em que o AT é pensado em conformidade com uma equipe de tratamento constituída a priori, o que determina a condução do trabalho em função do que a equipe entende como "incremento de sua montagem institucional". Há, todavia uma outra modalidade, onde é o próprio AT que orienta o projeto terapêutico de acordo com o que é possível a partir da singularidade de cada caso, tendo como norte a construção de uma rede de tratamento.

Maurício relata que apesar do intenso sofrimento que a crise psicótica produz, é comum verificar a aversão do sujeito a qualquer possibilidade de aproximação de quem possa tratálo. Retoma a concepção do manejo da transferência na paranoia, indicando que não se trata de modo algum de ocupar o lugar do pai ou de qualquer ideal. Propõe que um analista, ao manejar a transferência na psicose, deva ocupar uma presença vazia, onde outrora havia uma presença totalizante. É na condição de uma presença esvaziada que o sujeito psicótico poderá reconstruir sua história ao endereçar seus significantes a um psicanalista ou um AT.

Para situar os tempos presentes na direção do AT desde a crise até a instalação do dispositivo de tratamento, o autor lançará mão de três fragmentos clínicos. Sua hipótese é de que o AT maneja a transferência, não somente alternando palavras e silêncios mas principalmente introduzindo uma alternância entre presença e ausência. Nos três casos abordados, a estratégia do AT foi construir uma presença lenta e gradual, respeitando os movimentos de abertura do paciente. A presença que se alterna com a presença, o silêncio e o desvio do olhar permitem ao paciente tomar o AT como alguém que não ressalte a faceta de um Outro onisciente e absoluto. Assim, os movimentos do AT estabelecem uma distância necessária para que o sujeito faça desta aproximação algo suportável. Em todos os casos, a transferência inicial de tonalidade persecutória onde sobressaía o ódio aos poucos cede lugar a uma outra faceta mais favorável à instalação do dispositivo de tratamento.

Dentro desta discussão, Hermann fala da importância da noção de setting ambulante no acompanhamento terapêutico, cuja principal característica é a circulação e a mobilidade, além da especial atenção do AT para os objetos que compõem o cotidiano do paciente. É em do território de cada sujeito que as estratégias são montadas. Em nenhum dos casos relatados seria possível qualquer operação do AT dentro do enquadre tradicional de um tratamento. Aqui a rua ou a casa do paciente é que constituem o enquadre. Entretanto, duas condições mínimas devem ser observadas para que o trabalho funcione: a determinação de um horário e a frequência dos encontros. Isto mantido está instaurado o campo possível para o manejo da transferência e seus cálculos.

No capítulo V o autor discute a noção de trabalho em rede ou olhar em rede. Trata-se de um procedimento oriundo da prática institucional de Jean Oury, onde a ideia de coletivo está numa tensão constante com o singular de cada um. O autor lembra as referências tomadas das práticas institucionais com crianças psicóticas na Bélgica, conhecidas entre nós como "clínica feita por vários". Sua hipótese é a de que o AT está numa posição privilegiada na equipe de tratamento, pois ele é quem circula entre a instituição, a família e o social. Aponta que não existe um modelo prêt-à-porter para a montagem institucional do AT, mas estando ele inserido neste olhar em rede assume o estatuto de ferramenta clínica importante. Será a partir da experiência com o caso de Angelina, préadolescente com os vínculos muito comprometidos, que será ilustrada a articulação entre a montagem institucional, o AT e a formulação de um projeto terapêutico. Neste caso, o AT estava vinculado a uma equipe constituída a priori e o objetivo do trabalho era justamente abrir novas possibilidades de encontro, primeiramente dentro dos grupos e oficinas oferecidas no Centro de Convivência (Cecco), entendido como lugar de passagem e, posteriormente, em outros espaços urbanos de circulação.

O capítulo VI aborda a subversão operada no ensino de Lacan a partir da topologia. Com o exemplo de Joyce, Lacan mostra que a ausência do Nome-do-Pai é passível de ser suplementada por um sinthoma, onde real, simbólico e imaginário são amarrados pela escrita e não pela metáfora paterna. No caso de Joyce, criar uma obra literária assume o estatuto de uma compensação à ausência do Nome-do-Pai e por esta razão ensina algo à psicanálise. No entanto, diz Hermann, "não serve de modelo para uma cura, podendo apenas indicar uma direção possível de investigação da clínica das psicoses". (p. 218). O objetivo deste capítulo é mostrar, por meio do AT do paciente João, um exemplo de construção do sinthoma pela via da escrita. Hermann esclarece que o AT produziu efeitos importantes, na medida em que seu trabalho de escrita, sustentado pela transferência, permitiu uma aproximação do sujeito com o laço social. Todavia, para o autor permanece uma questão essencial visto que há duas visões a respeito da função do acompanhante terapêutico. A primeira delas se fundamenta na ideia de que o AT é um "fazer junto", como se sua função clínica se fundamentasse nessa "ação entre amigos". Hermann se opõe frontalmente a esta concepção. Vale à pena citá-lo literalmente:

Quando se formula a questão de se o AT assume uma função analítica nessa clínica, o que se busca identificar é se as ofertas de laço social produzem algum tipo de efeito de real, comparável ao efeito de uma intervenção clínica, tal como Oury teorizou, por exemplo em seu paradigma institucional. Desse modo, foi capital realizar uma reflexão sobre o que é propriamente analítico na clínica psicanalítica das psicoses, para verificar a hipótese de que o AT, em sua especificidade, contribui para a construção do sinthoma. (p. 231).

No último capítulo, intitulado "O sinthoma e o acompanhamento terapêutico" o autor problematiza o conceito de cena no AT com pacientes psicóticos. Esclarece que a cena não é equivalente à realização do laço social. Mas interroga: o que se espera deste dispositivo? Trata-se de criar circunstâncias ou situações que aproximem o sujeito psicótico de um convite oriundo da cidade, de uma oferta de laço social. Portanto, seria mais apropriado circunscrever o uso da palavra cena como manejo específico da transferência no AT.

O autor abordará o conceito de cena a partir do caso Lourival, descrevendo como o AT contribuiu para um percurso que vai do ódio persecutório ao Outro até a construção do sinthoma de um paciente paranoico. Sua experiência lhe permitiu extrair algumas considerações sobre a direção do tratamento no AT, descritos da seguinte forma:

1º tempo: O manejo da transferência opera a passagem de um Outro do ódio à erotomania (presença totalizante).

2º tempo: O manejo vai de um Outro totalizante ao sinthoma. A direção do tratamento se apóia no esvaziamento da presença totalizante através do apagamento do olhar e da voz do acompanhante terapêutico.

Para finalizar, relata ter priorizado na pesquisa os casos de paranoia, e é a partir deste tipo clínico que desenvolve os argumentos sobre o manejo da transferência e a função do AT na construção do sinthoma articulado ao laço social. Todavia, interroga ele, como teorizar os outros tipos clínicos da estrutura psicótica, tais como a esquizofrenia, o autismo e a melancolia no AT? E o manejo do AT nos casos de neuroses graves? Diante da lacuna de trabalhos de porte sobre o assunto, esperamos que a experiência vindoura de Maurício como acompanhante terapêutico seja ampliada aos outros tipos clínicos e possa nos oferecer futuramente algumas indicações, assim como pode fazê-lo hoje, coletivizando com a comunidade científica e com os psicanalistas interessados no dispositivo os importantes resultados de seu trabalho. Aguardemos, pois, afinal, estamos em um tempo em que os analistas não recuam diante da psicose e nem tampouco diante dos desafios que a variedade da clínica contemporânea nos coloca, dentro dos consultórios ou nos sumidouros e vãos da cidade.

 

 

Recebido em abril/2011.
Aceito em maio/2011.

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