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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.17 no.1 São Paulo jun. 2012

 

DOSSIÊ
FUNDAMENTOS

 

A melancolia no feminino

 

The melancholy in feminine

 

La melancholia en femenino

 

 

Larissa Soares Ornellas Farias

Doutora pela Universidade de Paris VII - Denis Diderot. Psicóloga clínica no Serviço de Pedopsiquiatria do Hospital Robert Ballanger em Paris. Psicanalista, larissa.ornellasl@terra.com.br

 

 


RESUMO

A partir do estudo sobre "a melancolia pode ser pensada como uma das modalidades da relação do feminino com o objeto?", venho abordar a temática neste artigo, para uma discussão mais pontual sobre a clínica da melancolia feminina, considerando o fato de que este tema ainda não foi trabalhado com precisão na literatura psicanalítica atual - razão pela qual experimento a necessidade de retomar os autores citados no corpo do texto, a fim de poder especificar qual o estatuto do objeto na teoria psicanalítica sobre a melancolia, e mais precisamente, sobre a melancolia feminina.

Descrirores: melancolia; feminino; objeto psicanálise.


ABSTRACT

From this study, the melancholia can be thought of as one of the modalities of the relationship of women to the object, which I have been discussing in this article, a more focused discussion on the clinical care of female melancholia, considering the fact that this issue has not been developed with accuracy in current psychoanalytic literature. That is why I feel the need to come back to the authors cited in the text above, in order to specify the status of the object in psychoanalytic theory of melancholia, and more specifically, the female melancholia.

Index terms: melancholia; female; object psychoanalysis.


RESUMEN

A partir de este estudio, la melancolia puede serpensada como una de las modalidades de la relación de lo femenino con el objeto, que vengo a abordar en este articulo, una discusión máspuntual sobre la clinica de la melancolia femenina, teniendo en cuenta el hecho de que esta cuestión todavia no ha sido trabajada con precision en la literaturapsicoanalitica actual. Razón por la cual experimento la necesidad de retomar los autores citados en el cuerpo del texto anteriormente, con elfi n de especificar el estado del objeto en la teoria psicoanalitica de la melancolia, y más especificamente, la melancolia femenina.

Palabras clave: melancolia; mujer; objeto del psicoanálisis.


 

 

Pretendemos desenvolver, neste artigo, o conceito de melancolia e suas relações com o feminino. Com esta finalidade, me reporto à clínica, com o objetivo de aprofundar os mecanismos da relação entre a mulher e o objeto na melancolia, tendo em conta as pré-condições da melancolia levantadas por Freud (1917/1968) no texto "Luto e melancolia". São elas: a perda do objeto, o conflito fruto da ambivalência, e a regressão da libido ao eu do sujeito.

Neste escrito, me referencio aos autores mais clássicos da teoria psicanalítica, os quais trabalharam mais particularmente o tema da melancolia, como: Karl Abraham, Melaine Klein, Sigmund Freud e Jacques Lacan, para citar os autores pioneiros, chegando aos mais contemporâneos, como Pierre Fedida e Marie Claude Lambotte, que estudaram o tema da melancolia nas suas numerosas especificidades. A escolha desse percurso, dentre os autores clássicos da teoria psicanalítica, me permite mostrar, a partir de seus aportes teóricos, como vem evoluindo a problemática da perda do objeto na melancolia e suas impossibilidades de fazer luto face a esta perda, para enfim, entrar na especificidade da temática a ser desenvolvida neste escrito, ou seja, a particularidade desta perda nas mulheres melancólicas.

É a partir da questão: a melancolia pode ser pensada como uma das modalidades da relação do feminino com o objeto?, que venho abordar, neste estudo, uma discussão mais pontual sobre a clínica da melancolia feminina, considerando o fato de que este tema ainda não foi trabalhado com precisão na literatura psicanalítica atual. Razão pela qual experimento a necessidade de retomar os auto-res citados anteriormente, a fim de poder especificar qual o estatuto do objeto na teoria psicanalítica sobre a melancolia e, mais precisamente, sobre a melancolia feminina.

Fazendo uma releitura precisa desses diversos autores, pude perceber a relevância e concordância geral entre eles, no que concerne ao fato de que o objeto de amor perdido fica introjetado no eu, por meio de um processo de identificação narcísica com o objeto amado. Nesse percurso, sigo um caminho diverso daquele escolhido por Pierre Fedida (2001) e Marie Claude Lambotte (1993), auto-res mais contemporâneos, que trabalharam exaustivamente o tema da melancolia a partir das suas diversas modalidades; estes percorrem toda a metapsicologia freudiana, a fim de compreender as relações entre o eu e o objeto de amor na melancolia. Decidi escolher um aspecto da questão melancólica, a saber, a perda do objeto de amor no domínio do feminino. Tal escolha se justifica por uma incidência frequente na clínica desse público feminino, portador de um discurso que não se inscreve nem em uma neurose histérica ou obssessiva, nem em uma psicose, mas em uma queixa que poderia se situar numa estrutura neurótica narcísica, como bem precisou Freud (1917/1968) em "Luto e melancolia".

O aparecimento da melancolia, nessas mulheres, se situa sempre num dado momento de suas vidas em que alguma coisa da ordem do feminino é chamada a responder no lugar do amor outrora idealizado. A saber: a confrontação com a maternidade, ou a vivência ou o sentimento de perda de um objeto de amor. Poderíamos possivelmente classificar dentre estes episódios melancólicos femininos, o que comumente chamamos de psicoses pós-partum, ou mesmo, a clínica da anorexia, frequentes neste público feminino, que se assemelham, por al-guns elementos de seus discursos, à melancolia, considerando, todavia, as diferenças sutis que a clínica nos revela. A melancolia deu a Freud a ocasião de elaborar duas teorias do suicídio: a primeira, em "Luto e melancolia", de 1916, na qual afirma que o sujeito se mata para alcançar nele o objeto perdido, amado depois odiado, ao qual ele, previamente, havia se identificado narcisicamente. Na segunda, no artigo "O eu e o isso", de 1923, ele precisa como a melancolia coloca em evidência uma pura cultura da pulsão de morte, presente por meio de um ideal do ego cruel pronto a assassinar o sujeito.

Os sujeitos melancólicos não encontraram, na imagem de seu próprio corpo, a matriz de um eu consistente. Diante deste fato, estes sujeitos foram perigosamente alienados a uma imagem idealizada e mortífera, na qual eles acreditaram e à qual eles aderiram. Tratar-se-ia, como observaremos no caso clínico explicitado mais adiante neste artigo, de uma identificação imaginária massiva à mãe.

O registro do imaginário é entendido como aquele das imagens, do corpo que guarda sua unidade a partir do narcisismo. O registro do real é aquele do gozo, que aparece nas autopunições melancólicas, quando o sujeito melancólico acusa o objeto de amor, mas, na verdade, está acusando a si mesmo, visto que o eu e o objeto ideal estão identificados narcisicamente. O registro do simbólico é aquele da linguagem do inconsciente, é presente nos melancólicos, pois, apesar das falhas especulares, existe uma função paterna que é inscrita de tal forma que a melancolia escapa à psicose. O Nome do Pai representa, para Lacan (1988), o significante primordial, que ordena o simbólico e que reenvia à significação fálica ou ao significante da castração. A foraclusão deste significante, sua exclusão, é, segundo Lacan (1988), a causa da psicose.

No livro "Clínica do suicídio", coordenado por Geneviève Morel (2004), o trabalho de Carine Decool (2004), intitulado "Tentativas de separação impossível com espectros e retornos", pode nos ajudar a compreender a questão melancólica como se tratando de uma perda inicial de um objeto amado, cujo luto é impossível de se fazer. A saber, a impossibilidade de se separar da imagem do objeto de amor perdido. Utilizando os conceitos lacanianos, a autora afirma:

a fim de dar conta daquilo que causa o sujeito do inconsciente, Lacan propôs em 1964 duas operações essenciais: a alienação e a separação. A alienação implica a inscrição do sujeito na cadeia significante; ela implica uma perda: o sujeito deve escolher entre o ser e o sentido, mas é uma escolha forçada, onde aquilo que não foi escolhido, é perdido. A escolha do ser, catastrófrica, o petrifica sob um significante. Assim, ele opta pelo senti-do, e então perde o ser, ou o significante que o representa na cadeia significante, e é esta falta identitária que o constitui como sujeito. O sujeito lacaniano é marcado por uma "falta-a-ser", um sujeito barrado. A operação da separação, entra em jogo a cada vez que per-demos um ente querido. Ela é uma resposta à questão enigmática do desejo do Outro, a começar pela mãe. Na realidade, para Lacan, quando da perda de um ser querido, estaríamos em luto daquilo que éramos como objeto do desejo daquele que perdemos, do lugar que ocupávamos no seu desejo. (Morel, 2004, pp. 51-52)

Nos melancólicos, não podemos dizer que não haja metáfora paterna. O que percebemos é uma lógica de alienação do sujeito melancólico a um eu-ideal, o qual lhe foi projetado. Ele está fixado a este eu-ideal, não podendo separar-se. Esta alienação impede o sujeito melancólico de elaborar a perda do objeto de amor.

O reconhecimento da imagem de seu corpo pela criança necessita da mediação do Outro, incarnado pela mãe ou seu substituto. Este adulto, que fez da criança objeto de seu olhar e de seu desejo, estabelece a relação de posse da criança em relação a sua imagem ("este é você"). O eu se constitui pela identificação da imagem do corpo no espelho, sua consistência é então aquela de uma imagem. Esta operação funda o narcisismo do sujeito, dá sua matriz ao eu e delimita o lugar do ideal do eu, que ficará como um ponto de identificação para o sujeito. O eu-ideal é a imagem designada como desejável, no momento do estádio do espelho, pelo adulto, situado no lugar do ideal do eu. No futuro, o sujeito tentará fazer coincidir sua imagem - quer dizer seu eu - com o seu eu-ideal, se baseando a partir do seu ideal do eu. O desnível entre o eu e o eu-ideal propiciará a depressão, se ele é desfavorável ao eu. A aspiração a coincidir com a imagem ideal, pode ser um verdadeiro tormento. (Morel, 2004, p. 21)

Na melancolia, trata-se de uma problemática narcísica, como poderemos observar no caso clínico apresentado neste estudo, o qual trata da relação mãe/filha. A mãe representa este ideal do eu, onipotente, ao qual é impossível de se responder. Esta imagem ideal, ou eu-ideal, que a mãe projetou para sua filha, é baseada a partir de um ideal do eu extremamente severo. A melancolia da filha está relacionada à incapacidade de alcançar os ideais do eu projetados pela mãe sobre ela. Existirá sempre um desnível entre o eu e o eu-ideal, visto que este eu-ideal é ditado por um ideal do eu, a mãe, onipresente. Para Lacan (1988), o ego, ou o eu, se define pela ideia de si mesmo como corpo próprio. Em regra geral, a partir do estádio do espelho, esta "ideia de si como corpo próprio" tem por matriz a imagem corporal, o sujeito sustenta seu corpo por meio desta identificação. O estádio do espelho realiza, então, a tripla equação: "eu ou ego = a imagem de meu corpo = meu corpo".

A mulher melancólica se identifica narcisicamente ao objeto de amor perdido. O objeto "a", causa de desejo, equivale a uma perda; ele não é constituído a partir de uma perda. A clivagem do objeto tem por resultado uma falta de elaboração do autoerotismo psíquico. O objeto fica introjetado no eu, não podendo ser representado enquanto objeto perdido. Na melancolia, trata-se de uma perda no domínio da vida pulsional; a libido se transforma inconscientemente em angústia.

No artigo de Franz Kaltenbeck, que faz igualmente parte do livro "Clínica do suicídio", coordenado por Geneviève Morel (2004), o autor cita uma passagem de "Luto e melancolia", quando Freud (1917/1968) fala dos destinos da pulsão.

O primeiro destino, ou seja, "o retorno no contrário, se divide em dois processos. De uma parte, "a transformação da pulsão da atividade à passividade, Freud dá aqui, os exemplos dos casais contrários, o sadismo e o masoquismo, como também o voyerismo e o exibicionismo; e, de outra parte, a "transformação do conteúdo", no caso da transformação do amor em ódio. O segundo destino da pulsão é o "retorno sobre a própria pessoa". Freud considera então o masoquismo, como um sadismo transformado no seu inverso. O "retorno sobre a própria pessoa" implica, então, uma "troca de objeto": não é a mesma coisa torturar outrem que a si mesmo. Este destino apresenta-se na melancolia, onde o melancólico satisfaz suas tendências sádicas e odiosas, visando, inicialmente um objeto, em seguida, as retornando sobre a própria pessoa.

O suicídio gira em torno do melancólico. Quando Freud conclui o quadro do delírio de inferioridade que acompanha esta afecção psíquica, nota que a melancolia é marcada, pela desfeita da pulsão que obriga todo ente vivo a sustentar-se ante vida. A melancolia boicota a pulsão de vida. Em 1916, Freud ainda não dispõe do conceito de pulsão de morte, mas somente do conceito de sadismo, do qual ele fará mais tarde uma forma de Thanatos. Esta pulsão que desfaz a vida torna pernicioso o narcisismo do sujeito. Donde esta confusão de identidades, este embaçamento do espelho, esta perda dos referênciais observados e depois decodificados por Freud. Não, o melancólico não perdeu o objeto, ele submeteuse, antes, a uma perda no seu « Eu » («Je » Ich). Nada é simples nesta patologia. As auto-recriminações do melancólico "são recriminações contra um objeto de amor" e suas queixas (Klagen) são na verdade acusações (Anklagen). (Kaltenbeck, 2004, pp. 68-70)

Seguindo a experiência clínica, falaremos de D., uma jovem de 20 anos que acompanhei no Hospital Dia. Alguém que se apresenta imersa num vazio oceânico, como se tivesse perdido sua sombra. Sem nenhum investimento libidinal no mundo, de aparência física pouco cuidada e pouco loquaz, dizia que não valia à pena falar de sua tristeza, de sua vida, pois esta não apresentava sentido algum e que ninguém resolveria seu problema, e seu desejo reiterado de morte a tornava nula. D. me dizia: "a vida não tem mais sentido para mim, me sinto culpada pela morte de minha mãe, toda a família me culpabiliza".

A paciente conta o episódio do falecimento de sua mãe, quando ela tinha 16 anos, que ocorre após uma discussão com ela a respeito de suas irregularidades escolares. Ela descreve a mãe como uma pessoa nervosa, que sofria de problemas cardíacos. Após o episódio, a família a responsabilizou pela morte da mãe. Durante o velório da mãe, D. faz uma "promessa" (palavra que utilizou), que consistia numa ideia que, desde então, não deixava seu pensamento: "a única maneira que encontrei de pedir perdão à minha mãe seria dando fim à minha própria vida". D. já fez quatro tentativas de suicídio desde a morte de sua mãe, todas por envenenamento, seguidas de internamento urgente para desintoxicação.

Escutando essas cenas relatadas por D., me reporto a Freud, em "Luto e melancolia", quando afirma que:

a tortura que se inflige o melancólico e que, sem dúvida, lhe proporciona gozo, representa, como fenômeno correspondente à neurose obssessiva, a satisfação das tendências sádicas e odiosas que, visam um objeto, e que sofreram, deste modo, um retorno sobre si mesmo. (Freud, 1968, p. 160)

Uma questão se faz presente: o que faz gozar o melancólico e que o analista não consegue ver? Neste mesmo texto, Freud dirá que:

os pacientes tornam-se ainda, pelo retorno à auto-punição, a vingar-se dos objetos originários e a torturar aqueles que amam através da sua doença, depois de se refugiarem na doença a fim de não serem obrigados a manifestar diretamente sua hostilidade contra estes objetos originários. A pessoa motivo da perturbação dos sentimentos do doente, é na sua direção que é orientada a doença, e esta pessoa encontra-se, habitualmente, no entorno do sujeito. Assim, o investimento de amor que o melancólico tinha sobre seu objeto teve um duplo destino, de uma parte, regrediu à identificação, e de outra parte, foi reportado, sob influência do conflito ambivalente ao estádio de sadismo que é mais próximo deste conflito. (Freud, 1968, p. 160)

No presente caso, percebemos que D. desloca as recriminações feitas à mãe para seu próprio eu (moi), se punindo. A única maneira que en-contra de pedir perdão à mãe, como bem o diz, é dando fim à sua própria vida. Neste sentido, o perdão poderia entrar, aqui, como uma interdição do Superego, sugerindo-lhe uma culpa, o que demonstra, em última instância, uma insatisfação do eu (moi), e uma identificação narcísica do eu com o objeto perdido. O que perde o melancólico, enfim, é o próprio narcisismo, quer dizer, perde a precária referência de separação entre o eu (moi) e sua imagem especular (a.....a'). Na melancolia, percebe-se uma falha no imaginário: o objeto, enquanto imaginário, significa para o melancólico que perder o "i" (imagem) resume-se a perder tudo, considerando que o afeto é, em relação à perda, pura angústia. Podemos dizer que D. per-de o objeto, mas não perde o amor da mãe.

O mecanismo de identificação, na melancolia, pode ser explicado a partir da agressividade dirigida contra o objeto perdido, revelando a ambivalência do melancólico face ao objeto de seu luto: ele o ama tanto quanto o odeia, sendo a queixa reeiterada contra si mesmo, uma queixa contra o outro; a morte do eu, representando o massacre do outro. Razão pela qual uma tal lógica explicaria um Superego severo para o melancólico e uma dialética complexa de idealização e desvalorização de si e do outro.

Uma questão subjacente à problemática particular do presente caso se coloca: o objeto materno introjetado e o eu (moi) melancólico mortificado ocupam o lugar, se assim podemos dizer, do matricídio ganho. Ou seja:

para proteger mamãe, eu me suicido, sabendo, contudo, saber fantasmático e protetor, que é dela que isso vem, dela gênio mortífero.... Assim meu ódio é salvo e minha culpabilidade matricida é apagada. Eu faço dela a imagem da Morte para me impedir de me fissurar em pedaços pelo ódio que carrego quando me identifico à Ela.... Assim então, o feminino - imagem da morte - é não somente uma tela do meu medo da castração, mas também uma tela de parada imaginária contra a pulsão matricida que, sem esta representação, me pulverizaria na melancolia, sabendo que esta não me impulsionaria ao crime. Não, é Ela que é mortífera, então eu não me suicido para assassiná-la, mas eu a agrido, a ameaço, a represento. (Kristeva, 1987, p. 39)

O que se verifica aqui é a economia melancólica para se livrar da culpa pelo matricídio fantasmático. O fantasma protetor do matricídio faz com que o melancólico projete seu ódio mortífero à mãe, alegando que é a mãe o Inferno Mortífero; como não é possível assassinar a mãe, a saída seria importuná-la, desafiá-la. Entretanto, o que constatamos, no presente caso, é que o fantasma que garantia a economia melancólica é realizado, quer dizer, sai do plano fantasmático, fazendo aparecer no real um buraco; lá onde a imagem fazia véu, a mãe encontra-se morta. Assim, a promessa feita por D., durante o velório da mãe, é coerente com o sujeito da discussão, ou seja: dar fim à sua própria vida para obter o perdão da mãe. O matricídio é, então, consumado; resta, apenas, a D., encarnar, viva, a própria morte. Poderíamos dizer, de outro modo, considerando que as tentativas de suicídio por intoxicação foram todas fracassadas, que morrer, simplesmente, não a satisfaria, mas viver como morta, sofrendo por causa de uma culpa que pertence exclusivamente a si mesma ou, dizendo de outro modo, o gozo melancólico a impede de morrer.

Freud (1968) já havia colocado, em "Luto e melancolia", a questão do que seria o gozo do melancólico e que o analista não consegue ver. O que poderia ser explicado pelo conflito devido à ambivalência, a coexistência dirigida a um mesmo objeto do amor e do ódio. Os conflitos devidos à ambivalência, como dizia Freud, estão em relação, na grande maioria dos casos, com experiências reais vivenciadas pelo paciente. A autotortura, na melancolia, significa uma satisfação das tendências sádicas e ao ódio relacionado a um objeto, os quais retornariam contra o próprio eu (moi) do sujeito. O que acontece com D., quando entra na melancolia para livrar-se da culpa em relação ao ódio dirigido à própria mãe. As tentativas de suicídio fracassadas representam a autotortura à qual se refere Freud, o que pode ser entendido também como gozo. O melancólico goza na contemplação insistente e monótona desta cena. Por outro lado, cada luta isolada, representativa da ambivalência, relaxa a fixação da libido ao objeto, depreciando-o, denegrindo-o, e mesmo, se assim podemos dizer, assassinando-o. Deste modo, a libido, uma vez desligada do objeto, recua na direção do eu (moi), de onde ela havia partido, evitando, assim, a perda de amor.

Desde muito tempo, Freud queixava-se da obscuridade que jaz em torno da vida sexual feminina. É assim que ele escreve, numa época próxima ao início do seu trabalho "Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (1905/1969a), em que apenas a vida sexual dos homens se tornou acessível à pesquisa. A das mulheres encontra-se ainda mergulhada numa impenetrável obscuridade. Graças ao progresso das práticas clínicas, Freud mostrará a intensidade e duração da ligação pré-edípica entre a jovem menina e sua mãe, atribuindo à compreensão desta etapa uma importância fundamental no estudo da feminilidade.

No artigo "Sobre a sexualidade feminina", Freud (1969b/1931) acentua os motivos que levam à separação mãe-filha: a incapacidade da mãe em prover a jovem menina de um único genital adequado; a incapacidade da mãe de alimentar suficientemente a criança, conduzindo-a a partilhar o amor da mãe com outros (nascimento de um irmão, por exemplo); a incapacidade da mãe de satisfazer todas as expectativas de amor, desencadeando uma atividade sexual precoce, seguida de uma interdição feita pela própria mãe. A atitude hostil da jovem menina em relação à mãe não é, apenas, uma consequência da rivalidade implícita do Complexo de Édipo. Tal rivalidade tem sua origem na fase precedente, fase de ligação exclusiva à mãe, sendo reforçada na situação edípica. A jovem menina desenvolve sentimento ambivalente de amor e ódio em relação à sua progenitora.

No texto "Algumas conseqüências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos", Freud (1925/1969c) ressalta a forma pela qual o estatuto do falo se revela para um e outro sexo. O papel da ameaça de castração nos meninos é de fornecer o falo como significante; o menino vê o sexo feminino como uma falta-a-ser. A menina, escotomiza diante do falo; vê, sabe que não o tem, e o deseja.

Diríamos que tais relações giram em torno de um ser e de um ter, os quais se reportariam a um significante, o falo (phallus), o qual tem o efeito contrário de dar por um lado, realidade ao sujeito neste significante, e de outro lado, irrealizar as relações a significar. (Lacan, 1971, p. 113)

Freud dirá que, em relação à falta de falo, três vias possíveis se abrem para a jovem menina: a via neurótica da inibição sexual, o complexo de masculinidade e, finalmente, a via da feminilidade.

A partir desses pressupostos freudianos em torno da sexualidade feminina, poderemos diferenciar a dita ambivalência originária que constitui a ligação preedípica entre a menina e a mãe, o que a conduzirá a uma das três vias definidas por Freud anteriormente, do conflito próprio à melancolia, devido à ambivalência. Para tanto, consideraríamos a particularidade da melancolia no que concerne ao fato de que o buraco da perda no real, ao invés de a precipitar sob uma via simbólica, por meio da representação da falta do falo, mobilizando o significante, a precipitaria num vazio desértico, em que não há representação possível. Com isto, não queremos dizer que o melancólico não simbolize, mas que há falta de simbólico lá, onde ele deveria existir. De fato, o objeto "a" na melancolia, equivale a uma experiência de perda, ele não é constituído a partir de uma perda.

Como diz J. Lacan (1986) em Hamlet por Lacan: não há nenhum significante que possa preencher este buraco no real, à exceção da totalidade do significante, o que se verificaria no trabalho de luto. Entretanto, face a um luto não satisfeito, a um defeito do ritual significante, um espaço para espectros e fantasmas se abre, como na tragédia de Hamlet, o que podemos comparar também ao fantasma de D., relatado neste trabalho. O melancólico consegue ocupar - isto se torna possível graças à mãe, o lugar de um ideal. Uma tal posição na melancolia pode ser explicada por uma onipotência do sentido na relação com a mãe, em detrimento de uma significação pela referência fálica, o que propriciaria a constituição do sujeito do sentido no lugar do sujeito da significação linguística. Poderíamos dizer, igualmente, que, na falta desta referência fálica, o melancólico não saberia viver a experiência de perda. Visto que há falta de recurso simbólico, para que realize o trabalho de luto, o melancólico termina por ficar na sombra do objeto perdido enquanto imaginário.

Na última parte do seu seminário "A transferência", Lacan (1961) desenvolve a noção de suicídio do objeto na melancolia, quando expõe os conceitos de "Grande F' e "pequeno a". Antes de introduzir a questão do suicídio do objeto, discute, inicialmente, os conceitos de eu-ideal e ideal do eu, assim que o conceito de objeto pequeno a, como objeto causa de desejo. Lacan ressalta neste seminário a relação entre o amor e a culpabilidade. O amor é, na sua essência, necessidade de ser amado por quem poderia lhe tornar culpável. Dessa forma, desenvolve a ideia de que o Supergo, por estar em relação com a culpa, faz-se presente assim nas relações amorosas, nas for-mas de censura ativa ou demanda de permissão ao outro. Na melancolia, esta relação entre amor e culpabilidade é levada ao extremo: o melancólico é alguém que se culpabiliza pelo fato de amar; quando ele se encontra face ao amor, se culpabiliza de não mais possuir uma maneira de se defender diante da possibilidade de perder um dia este amor. Perder o amor do objeto que investiu representa perder alguma coisa de si mesmo nunca recuperável; o melancólico se encontra na impossibilidade de fazer o luto de um objeto de amor perdido, ele se afunda no abismo da perda. Assim, muitas vezes, o melancólico precipita a ruptura amorosa a fim de proteger-se do risco que representa a perda amorosa para seu narcisismo, neste caso, protege-se do episódio melancólico caracterizado pela fragilidade do eu especular, manifestando-se por um desinvestimento da libido do mundo exterior. O melancólico está em eterna falta de si-mesmo. O melancólico antecipa a morte do objeto de amor introjetado, a fim de não perder o amor idealizado e investido neste objeto.

Eu farei apenas que lhes indicar hoje, designando um ponto específico que aos meus olhos, ao menos, pelo momento, um ponto de concurso entre luto e melancolia. Trata-se disto que eu chamaria, não de luto, nem de depressão a respeito da perda de um objeto, mas de um remorso de certo tipo, desencadeado por um desenodamento que é da ordem do suicídio do objeto. Um remorso, então, a propósito de um objeto que entrou de alguma forma no campo do desejo, e que, deste fato, ou de algum risco que ele correu na aventura, desapareceu. (Lacan, 1961, pp. 398-399)

Desse modo, uma das possíveis abordagens de trabalho com o melancólico seria a escuta das suas autoacusações como tentativa de tratamento, tendo em vista que o ato de se auto acusar equivaleria a acusar o objeto perdido. Assim como a tentativa de deslocamento de afeto pelo intermédio da transferência, ou seja, a constituição de uma relação transferencial sólida com um analista, no qual o melancólico poderia canalisar seus afetos, os mais ordinários, apresentar-se-ia, também, como alternativa de tratamento desta neurose, dita narcísica. Uma via se abriria, assim, na direção de uma possível entrada simbólica, na tentativa de se fazer, precariamente, o "luto" deste objeto outrora perdido - na qual a observação de Freud de tentar reduzir a culpa melancólica, expressa nas suas autoacusações, em nada ajudaria ao analista.

A partir destas questões levantadas neste artigo, poderíamos nos perguntar se seria pertinente falar de objeto "a" na melancolia, considerando que o objeto tratado como imaginário não ganharia o estatuto de objeto causa de desejo, mas, antes, um estatuto de puro objeto de amor.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em março/2011
Aceito em maio/2011