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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.17 no.1 São Paulo jun. 2012

 

RESENHA

 

 

Angela Vorcaro

Professora do Curso e do Programa de Pós-Graduação (Psicanálise) do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Minas Gerais, UFMG, angelavorcaro@uol.com.br

 

 

Psicanálise para aqueles que ainda não falam? A imagem e a letra na clínica com o bebê

Cláudia Mascarenhas Fernandes
Salvador, Instituto Viva Infância, 2011, 205 páginas

O surpreendente livro de Cláudia Mascarenhas Fernandes é fruto de sua tese de doutorado, defendida no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, sob orientação da Profa. Dra. Jussara Falek Brauer, em 2010.

A interrogação sobre "como pode ser fundamentada, no campo da psicanálise, uma prática clínica com aqueles que ainda não falam?" nasce dos paradoxos da clínica e se propõe como escrito de um percurso clínico, sem se limitar a um relato de experiência ou a uma acumulação acadêmica de teorias. Sobretudo, a autora estabelece, nesse trabalho, a formalização psicanalítica de uma clínica.

A autora ultrapassa os aspectos técnicos que orientam o modo como a clínica com crianças é pensada na história da psicanálise, para remeter-se ao que o labirinto das especificidades técnicas sinalizam sem problematizar: a discussão epistemológica da relação da psicanálise com as noções de externo e interno.

Revirando a bi-univocidade dessas noções, a autora investe na consideração do que se mostra, não para fazer da criança um signo de A visibilidade, como as práticas com crianças sempre evidenciaram, mas para tomar o aspecto da "mostração" na clínica com bebês em que a "não fala" do bebê apela ao momento de "não fala" dos cuidadores, indicando que apenas a imagem pode se apresentar na sessão clínica. Por isso, Cláudia recruta o espaço topológico que permite considerar relações de profundidade e uma temporalidade outra, abrindo assim um espaço a essa imagem que se mostra, deixando que dela se separem insígnias e emanem pontos de fuga e invisibilidade, para então poder ler a letra que decanta da parte imagética que se mostra.

Cláudia constata, desta forma, que a imagem com apoio da letra tor-na-se imprescindível para a viabilidade das leituras dessa clínica. Assim, não se trata de tomar o bebê como conseqüência das marcas de seus cuidadores, mas de verificar os efeitos de real que o bebê provoca em seus cuidadores que, tomados juntamente com o bebê em seu espaço também de "não fala", marcam singularmente o encontro do infans com a linguagem.

Assim, na configuração proposta pela autora, a clínica com o bebê não considera somente os indivíduos ali presentes, mas é uma prática pensada a partir da estrutura, entre lugares e funções. Espaço em que a palavra circula ou a imagem se apresenta, tendo o bebê como seu ponto de cruzamento, destaca os lugares relativos aos enunciados e as enunciações e localiza a transferência ao analista como uma transferência temporária, relativa a um empréstimo de sustentação da suposição de saber que foi rompido precocemente com os pais, provocando transbordamento de angústia.

Por isso, o sofrimento incidente nessa clínica é tematizado como cruzamento do insuportável do real e da angústia que, amalgamando presente, passado e futuro, imobilizam avatares do sujeito em sua condição lógica de linguagem.

O bebê encontra-se em lugar de objeto para seus Outros parentais, provocando uma divisão do sujeito no lugar do Outro e imprimindo essa condição de não fala que evoca elementos do real. É o que convoca as noções de transcrição descritiva e de angústia. A noção de transcrição transitiva é necessidade concebida como uma leitura das insígnias do Outro, que o bebê realiza - com o real de seu corpo - na sua imersão na linguagem; a noção de angústia comparece em sua condição para a divisão do sujeito, fundamental para reconhecer a clínica do mal estar em se tornar um sujeito de fala, nos impasses que podem advir de sua condição de dependência em relação ao desejo do Outro. Dois elementos chave constantes da angústia nessa clínica, são então tratados pelas vertentes de morte e invasão, como ondas que se entrecruzam e que aparecem e se repetem. Com traços da clínica, a autora demonstra em seu escrito como a angústia transvasa os corpos para cifrar a realidade psíquica do infans.

Assim, o texto de Cláudia Mascarenhas Fernandes inaugura uma perspectiva inédita de tratamento topológico do que ata recém nascidos e seus responsáveis a partir de um modo inédito de praticar a clínica psicanalítica do real. Ao transmitir uma prática clínica que tenta desfazer os impasses que podem fisgar o sujeito no momento do encontro entre o Infans e a linguagem, a autora sustenta brilhantemente que não apenas esta prática clínica pode ser fundamentada no campo da psicanálise, mas que ela pode ainda ser a forma mais radical de apresentação da psicanálise, que ultrapassa semblantes e se afirma prática de discurso sem palavras. Afinal, uma clínica do real, do escrito, e de suas leituras apresenta-se aí radicalmente.

 

 

Recebido em fevereiro/2012
Aceito em fevereiro/2012