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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.17 no.2 São Paulo dez. 2012

 

DOSSIÊ
A CLÍNICA PSICANALÍTICA COM CRIANÇA: DESAFIOS E RESULTADOS

 

Irene: das sensações às emoções1

 

Irene: from sensations to emotions

 

Irene: de sensaciones a emociones

 

 

Géraldine Cerf de Dudzeele

Psychanalista. Membro da Société de Psychanalyse Freudienne, Paris, França. 23, Rue Campagne Première. 75014 - Paris - França. geraldine.cerf@gmail.com

Tradução: Inesita Machado

 

 


RESUMO

Este artigo relata uma psicoterapia psicanalítica de longo prazo com uma menina autista de 8 anos. O relato do tratamento divide-se em 4 períodos: no primeiro, o tratamento visará à retomada das bases da imagem do corpo de uma menina ainda muito agitada e retraída; no seguinte, há um início de construção do espaço transicional, com a emergência de trocas verbais. Na terceira etapa vê-se o acesso ao espelho e uma melhor comunicação das experiências vividas. E na última verificam-se a consolidação da imagem do corpo bem como o desenvolvimento do jogo e da simbolização.

Descritores: autismo; psicoterapia psicanalítica; imagem do corpo.


ABSTRACT

This article reports a long-term psychoanalytic psychotherapy with an autistic girl of 8 years. The account of the treatment is divided into four periods: in the first, the treatment aims the resumption of bases of body image; during the following, the construction of a transitional space begins, including the emergency of verbal exchanges. In the third stage we can verify the mirror access for the child and a better communication of her experiences. And in the last period we can verify the consolidation of body image, as much as the play and symbolization development.

Index terms: autism; psychoanalitic psychotherapy; body image.


RESUMEN

Este artigo relata una psicoterapia psicoanalítica de larga duración con una niña autista de 8 años. El relato del tratamento se divide en 4 períodos: en el primero, el tratamiento buscó retomar las bases del imagen corporal de una niña todavía muy agitada y retraída; en el siguiente comienza la construcción del espacio transicional, con emergência de trocas verbales. En la tercera etapa se advierte el acceso al espejo y una mejor comunicación de las experiencias vividas. Finalmente, en la última se verifica la consolidación de la imagen del cuerpo, así como el desenvolvimiento del juego y de la simbolización.

Palabras clave: autismo; psicoterapia psicoanalítica; imagen corporal.


 

 

Descrevo aqui os cinco primeiros anos da psicoterapia psicanalítica de uma menina com traços autísticos, inscrita em uma instituição para crianças psicóticas e autistas, o EPI (Estabelecimento Psicoterapêutico Infantil), em Paris. O EPI é um hospital-dia, instituição composta por uma equipe pluridisciplinar de educadores, professores, psicanalistas, psicólogos, psicomotricista, fonoaudiólogo, psiquiatras. No momento de sua chegada, Irene tem oito anos. Durante cinco anos ela terá três sessões por semana. Depois, quando passa para um hospital-dia para adolescentes, sua psicoterapia não será interrompida e mais tarde ainda ela terá um atendimento particular.

Seu histórico médico é pesado desde seu nascimento: ela desenvolve uma doença intestinal muito penosa, que a obriga a uma longa hospitalização. Ela sofrerá repetidas separações precoces e terá problemas médicos persistentes durante sua infância.

Entre seis e oito anos, foi acompanhada em sessões de psiquiatria infantil cujo parecer nos fornece os elementos essenciais: ela é descrita como estando "em sua bolha", com poucos contatos com as pessoas que a cercam, como uma criança que não brinca e que bate os objetos de modo estereotipado, com atraso no estabelecimento da linguagem, instável, pouco sensível à dor, sem deficiência sensorial ou motora.

A avaliação psicomotora confirma o transtorno do desenvolvimento. Irene apresenta estereotipias de torsão das mãos acompanhadas de saltos com os pés juntos, jogando a cabeça para trás. Nenhuma avaliação codificada é possível. O nível é muito baixo para sua idade e devido aos elementos de TID (Transtornos Invasivos do Desenvolvimento).

A avaliação fonoaudiológica indica que ela possui linguagem verbal e que o contato pode ser estabelecido, mas a comunicação é entravada por estereotipias gestuais numerosas e variadas. Há uma instabilidade motora, dificuldades de atenção e de concentração. E perseverações. A linguagem pode ser adaptada, mas é constantemente pouco informativa. O diagnóstico é o de um transtorno invasivo do desenvolvimento segundo o DSM IV (síndrome autística) correspondendo, no CID 10 (Classificação Internacional das Doenças), à referência 84.0 (TID, autismo infantil). Uma parte de hipoestimulação e de privação afetiva ligada a seus problemas somáticos soma-se a esses transtornos.

No momento de sua chegada ao EPI, segundo a Escala EPCA2 (Haag et coll., 1995; 2010), particularmente voltada para os transtornos da imagem do corpo, Irene encontra-se em um estado autístico severo. Ela demonstra uma ausência de expressões emocionais relacionais: seu rosto tem uma expressão vazia, salvo nos momentos de aumento de tensão em que ela tem uma crispação da boca que lembra trejeitos de dor.

Irene está em uma busca constante de sensações/excitação por autoestimulações sensuais e sensoriais, alimentando estereotipias quase permanentes: aspirações ruidosas de saliva, enrolamento dos dedos diante dos olhos, perambulação permanente batendo um estetoscópio de brinquedo.

Sua hipersensibilidade ao estado emocional ambiente conduz, por instantes, a um aumento das estereotipias e rituais acima descritos, tanto na frequência quanto na intensidade. Pisca muito e tem fixações visuais. É hipertônica, com uma verdadeira armadura muscular. Ela caminha com uma clivagem horizontal em um gingado, passando o peso alternadamente de uma perna para outra, mantendo os joelhos sempre ligeiramente dobrados. Não houve observação de causa somática. A parte de cima de seu corpo é bastante dura, desarticulada: os braços não se movem muito, mas são frequentemente sacudidos por pequenas descargas motoras. Quando se inclina, não dobra as pernas, mas joga-se para a frente apoiando-se em uma mão. Junta as mãos como uma espécie de autoapoio, particularmente nos momentos de maior tensão, ou com os dedos cruzados, ou com uma mão segurando a outra fortemente. No plano da linguagem, é constantemente ecolálica, em uma adesividade imediata ou atrasada em tom monocórdico. Por outro lado, consegue fazer frases curtas, com duas ou três palavras, e, na maior parte das vezes, com uma voz cochichada, tornando o sentido inaudível. Quanto ao grafismo, faz alguns traços raros, lançados sem retorno, sem nenhum ritmo. Não tem condutas exploratórias dos objetos.

Estas são minhas lembranças de seu primeiro ano na instituição, aos 8 anos : trata-se de uma criança pequena, magrinha, com grandes olhos escuros e muito assustada com o contato. Quando alguém se aproxima, ela desvia o rosto sistematicamente, piscando muito e intensificando o batimento do objeto duro que ela sempre está segurando nas mãos. A troca verbal é impossível. Ela tem acesso à linguagem, mas é quase muda; o contato pelo olhar é evitado ou extremamente furtivo. Caminhando com seu balanço lateral, alternando de uma perna para outra, ela bate com as pontas dos dedos na parede a seu lado, mantendo o rosto inclinado para o mesmo lado da mão que vai dando batidinhas, olhando de viés e andando para frente. Ao mesmo tempo, ela dá pulinhos. Ela parece escorregar sobre o solo, como se seus pés apenas o tocassem. Quando perambula no pátio e não tem como se apoiar em uma parede, ela avança batendo as mãos como um batimento de asas, com os braços dobrados, em uma deriva aparentemente sem objetivo, mas em geral dirigindo-se para a enfermaria, com a cabeça virada para o lado e inclinada, olhando para frente com o canto exterior do olho, nunca de frente.

Eis uma breve descrição do tratamento institucional:

- ela faz parte de um grupo de referência com dois educadores que organizam diferentes atividades : reuniões, participação da vida em grupo, piscina, cozinha, cerâmica, passeios, jogos, etc.;

- ela é cuidada individualmente pela enfermeira. O lugar da enfermeira foi, desde o início, muito importante para Irene;

- ela tem um período escolar diário, com oficinas de artes plásticas, música e canto;

- um pequeno grupo de expressão duas vezes por semana;

- duas sessões semanais de fonoaudiologia;

- pequenas separações dos membros da equipe;

- psicoterapia.

Todos os meses há uma entrevista com os pais e o médico. Estão presentes o educador de referência, a enfermeira e eu. A escolha desse enquadre foi feita por essa família especial, não sendo a modalidade mais frequente de nossa prática. Também é realizada uma reunião anual com o médico, os membros da equipe em questão, e os pais de Irene. Minhas trocas com o conjunto dos intervenientes institucionais serão constantes durante todo o tempo da psicoterapia.

 

Psicoterapia

1 -No primeiro período da psicoterapia nada se inscreve; ela se encontra em um desmantelamento sensorial e na autosensualidade. Ou está colada adesivamente, ou se sente arrancada desta colagem (ela tem entre nove e dez anos).

Durante vários meses, tratou-se essencialmente de tornar possível a permanência de Irene no consultório. Isso compreendia duas vertentes: o trabalho de separação da enfermeira, Isabelle, com quem ela tinha uma relação intensa e quase exclusiva, e sua necessidade vital de liberdade motora.

Para que ela pudesse aceitar a saída da enfermeira Isabelle, que a havia trazido à sessão, era preciso muito tempo para evitar que Irene se sentisse como se algo lhe tivesse sido arrancado: Isabelle devia reassegurá-la várias vezes, dizendo-lhe o que ela iria fazer durante a sessão, onde ela estaria, que ela iria encontrá-la no fim da sessão, que Irene almoçaria com ela... e ela lhe dizia até logo com tapinhas na mão como garantia de sua confiabilidade. Irene era acessível à sua palavra e a uma relação de confiança com ela, o que era notável considerando-se seu estado geral. Depois da sessão, eu a levava sempre para a enfermeira ou para os educadores, pois eu havia constatado que se a deixasse ir sozinha, ela não ia encontrar os educadores ou Isabelle, mas perambulava como se estivesse perdida.

Durante muitos meses, ela aceita vir acompanhada por Isabelle, a enfermeira, mas tão logo ela entra, ela tem que sair ainda que eu deixe a porta do consultório bem aberta para que ela não se sinta presa. Mas ela precisa continuar a perambular, a errar. Isto está muito além de uma recusa, pois para ela é impossível fazer de outro modo. Estar em movimento no espaço parece ser sua única maneira de se sentir viva.

Posso apenas acompanhá-la em suas perambulações, comentando o que penso que ela pode sentir. Quando passa alguns instantes no consultório, ela repete infinitamente a mesma pergunta, à qual permanece colada de modo adesivo : "Onde está Isabelle?" sem que nenhuma resposta acalme sua angústia.

Finalmente encontro-me convencida de que as palavras são insuficientes para acalmar seu mal-estar. Foi assim que tive a ideia de um carrinho de bebê / bengala que permitiria a Irene viver experiências de holding no presente.

Ela irá se apoderar do carrinho com uma determinação surpreendente e, finalmente, terá sessões no consultório...dentro do carrinho. Uma vez instalada alí, a agitação gestual desaparece e o estetoscópio, objeto autístico preferido, é abandonado momentaneamente. Trocas tornam-se possíveis, Irene torna-se viva.

Fico atrás dela, sentada, embalando-a no carrinho, ou em pé, indo e vindo na sala, contando, com uma voz cantante, histórias em que viajamos para o sol à beira-mar (inspiro-me no que me foi contado por seus pais sobre as férias e o prazer de Irene na praia); os trajetos do carrinho imitam a partida, a viagem, a chegada na praia. Ela toma banho de mar, brinca com os pais, comigo, etc.; falo das diferentes percepções sobre a pele, do calor da água, sobre a areia, etc., através de imagens, pois ela tem um nível de compreensão suficiente, e ela tem com isso grande prazer; seu rosto fica relaxado, sorridente, ela ri um pouquinho e me pede para repetir: "Mais, mais, mais Sra. Cerf, conte mais!" Nessa época, compreendo claramente que as palavras não musicalizadas são intrusivas e causam confusão para ela, o que indica uma clivagem sensorial entre o duro e o doce da voz, que eu interpreto para ela.

Parece-me que a tela arredondada do carrinho em movimento, sólida e ao mesmo tempo não rígida, completando o enrolamento de seu corpo, proporciona-lhe uma sensação táctil profunda nas costas a qual, ligada ao ritmo sonoro de minha voz, permite que ela se sinta embalada em uma relação de natureza muito arcaica, pré e pós-natal. Ela encontra ali uma experiência de continência que, para ela, foi muito transtornada no período pós-natal. O contato com o olhar irá se desenvolver em seguida, ao longo das sessões, paralelamente à diminuição de sua claustrofobia.

Os fins de sessão ainda são difíceis, pois peço-lhe que saia do carrinho para que eu possa levá-la até a enfermaria ou até o grupo.

2 - Um segundo período se seguirá com um início de espaço transicional, o estabelecimento do comum, um acesso menos desorganizador às separações; ela tem 10-11 anos.

Pouco a pouco, o movimento do carrinho vai sendo substituído por trocas com imitação precoce, em mirroring, às quais ela é muito sensível: canto o que lhe digo e ela repete minhas palavras com a mesma prosódia; esses jogos vocais são acompanhados de batidas ritmadas em tamborins ou com as mãos ou pés ; isso irá se transformar em alternância pois ela tem bastante segurança para tomar a iniciativa da escolha dos instrumentos, dos ritmos, e ela tem grande prazer em ser imitada. Esses jogos produzem um envelope sonoro, rítmico, trocas de olhar, em resumo, uma reunião de diferentes modalidades sensoriais que se constituem em um vai e vem. Esses jogos de alternância, de imitar, cada uma por sua vez, despertam nela um prazer partilhado possibilitando-lhe sentir emoções e sensações que se tecem conjuntamente, que se integram. Com frequência, fico comovida vendo-a animar-se assim.

Progressivamente, introduzo pequenas mudanças de ritmo que mantenho quando ela pode reproduzi-los sem se desorganizar. Essas pequenas diferenças permitem que as trocas se separem aos poucos da inamovibilidade autística.

Irene entra na relação de modo mais ativo, ela se torna mais presente, mais aberta a trocas, com um olhar mais focalizado. Das alternâncias, ela passa aos jogos simbólicos de trocas como o jogo da comerciante, e finalmente ousa cortar um rolo de massa de modelar. Ela solicita menos o pele a pele das arranhadinhas na mão, ela está menos na sensação e mais no discurso. Às vezes, ela me pergunta o sentido de uma palavra, como no dia em que ela me disse : "O que é a vida?". E ela não repete mais a ladainha: "Onde está Isabelle?", mas ela diz: "Estou preocupada porque Isabelle está na piscina, tenho medo de que ela morra... tenho medo de que ela não me ame mais".

Até então, seus raros desenhos eram feitos com traços lançados de modo isolado e sem retorno. Ela faz um belo desenho bicolor preto e roxo, com vigorosas pinceladas ritmadas entrecruzando-se nos eixos oblíquos e verticais, com um aspecto de textura de tweed, dando uma impressão de relevo, de consistência. Pela primeira vez, ela apoia realmente o pincel no papel.

Entretanto, todo início de sessão é particularmente difícil durante os dez primeiros minutos ou mais. Irene fica em um estado de não receptividade tenaz à minha palavra. Ela perambula, vai, vem, ocupada com suas diversas estereotipias, como se eu não estivesse ali. Tenho que aceitar esse lugar, essa dependência. Assim, sempre tenho que dizer o que penso que ela sente para que ela possa entrar na relação. Proponho hipóteses - sem me dirigir diretamente a ela para não ser intrusiva. Questioná-la é uma intromissão e provoca um sentimento de perseguição.

Para que ela se aproprie de seus sentimentos sem medo, devo expressá-los com uma voz doce e em tom lúdico, cantando, fazendo um refrão. Digo, por exemplo: "A Sra. Cerf me chateia porque ela não quer coçar minhas mãos". Isso lhe dá um apoio, um trampolim para entoar o refrão várias vezes antes de acrescentar, de repente, com intensidade: "Estou com muita raiva!" A descontinuidade de uma sessão para outra causa uma perda do ritmo necessário ao sentimento de existir, e o tempo necessário ao reencontro se repete a cada início de sessão. Depois das férias, ela volta em um estado de petrificação motora e expressiva muito acentuado.

Durante seus momentos de isolamento em estereotipias, consigo penetrar paulatinamente em seu circuito de excitação por ruídos, imitações, ritmos, até que esse objeto autístico possa se transformar em objeto de jogo partilhado, pelo menos temporariamente.

3 - Irene irá passar para uma terceira etapa caracterizada particularmente por um acesso ao estágio do espelho e pela comunicação de suas experiências; ela tem 12-13 anos.

Ela desenvolve manifestações pulsionais orais. Por um lado, sua raiva tem uma expressão mais expulsiva: ela sopra com força a corneta, dizendo: "Estou com raiva". Por outro lado, ela exerce sua esfincterização oral: enche a boca na torneira e cospe a água com alegria, brinca comigo de produzir toda espécie de sons, de bater os dentes, de explorar o interior de sua boca, de mostrar a língua, muitas vezes olhando-se no espelho. Essa partilha lúdica dá lugar a um jogo com a corneta em que ela alterna incorporação e expressão sonoras : ela sopra, produzindo sons, depois enche-a de água e bebe.

Irene começa a se afirmar dizendo, sobre a massa de modelar: "Sou eu que corto a salsicha!" e "Não olhe quando corto a massa de modelar, isso me irrita!". Sua voz pode penetrar em meus ouvidos sem perigo, como seus dedos na massa de modelar. Ela aceita cada vez mais facilmente amassar a massa e enfiar nela seus dedos. Esses movimentos de penetração perdem o perigo para dar lugar ao prazer de enfiar, separar, arrancar, recolar, etc. Vemos aí a expressão da passagem da bidimensionalidade, universo de superfície feita de colagens, para a tridimensionalidade, em que aparecem volume e profundidade, evolução que se deve à diminuição da qualidade invasiva, muito dura, da penetração. Ela começa a pular pelo corredor no caminho do consultório.

Paralelamente, sua capacidade de ficar triste se consolida, bem como seu domínio da ausência. Não apenas ela sente a falta e a tristeza, mas pode falar sobre elas, expressá-las, fazer a ligação entre a ausência e a presença, entre a instituição e sua casa. Pela primeira vez, ela me pergunta, na sessão de sexta-feira, se irei na segunda-feira seguinte. Fala da ausência de sua mãe, dizendo que sente falta dela e que é difícil. Antes, as ausências de seus pais eram evocadas apenas quando havia uma diminuição do contato. Ela pede à enfermeira para brincar de fazê-la sair da enfermaria. Pouco tempo depois, ela chega à sessão com um coelho de pelúcia que me diz bom dia estendendo a pata: "É um coelho, ele se chama Isabelle" ela diz. Ela faz um desenho de fragmentos pretos que caem uns após os outros para a parte de baixo da folha. Ela quer que esse grande medo, que ela sente quando a sra. Cerf não está, fique preso no carrinho-terapia que eu desenho. Em seus raros desenhos começam a surgir figuras esféricas que vão se fechando, que representam a analista e que contêm uma forma não fechada para representá-la, mais ainda com indiferenciações interior/exterior, invaginações. É um início de introjeção de uma continência, de uma "pele" psíquica que se assemelha a elementos do self.

Ela retoma os jogos de faz-deconta. Brinca de lutar boxe comigo, o que dá lugar a um início de controle pulsional agressivo. Um dia, ela me diz: "Eu evito incomodar meus avós". Ela prefere os jogos: abertura/fechamento da porta do consultório de forma lúdica; jogo da boneca que está mal, cuidada, consolada, acalentada, que ela veste imitando a mãe ou o doutor; jogos de separação - ela brinca de ir embora, deixar-me, fazer-me esperar, etc.; jogo da vendedora; jogo do telefone.

Ela retoma jogos mais primitivos de continente/conteúdo com transvasamentos de água, consolidando desse modo o eu corporal em uma teatralização das trocas, fazendo ao mesmo tempo um grande investimento cognitivo na capacidade de continência das formas.

4 - No quarto período a consolidação dos grandes eixos do corpo prossegue, paralelamente ao desenvolvimento da expressão emocional, do jogo, da simbolização; ela tem 13-14 anos.

A construção do eu corporal continua com a integração da parte de baixo de seu corpo, até então muito pouco investida. Ela começa a chutar com prazer, sem temer perder as pernas, a movimentar as articulações acariciando-as, a sentar-se com as pernas cruzadas. Ela aborda sua imagem especular no espelho; ela pode olhar-se, me olhar olhando sua imagem no espelho, e ter prazer com isso. Seu narcisismo secundário começa a se desenvolver: ela se admira com mais frequência, apoiada por meu olhar e meus comentários, com momentos de assombro; enquanto penteio sua boneca a seu pedido, ela solta seus próprios cabelos diante do espelho.

Vemos aqui de que modo se articulam a emergência do prazer e da emoção na relação com o outro, o estabelecimento da relação especular e o aparecimento de condutas de imitação revestidas de uma dimensão identificatória.

Eis uma sequência de sessões que mostram o desenvolvimento interdependente do eu corporal e da subjetivação:

Na segunda-feira ela deveria me ligar, junto com a secretária, para retomar contato depois do fim de semana, pois sua primeira sessão da semana havia passado de segunda para terça-feira, somando assim um quarto dia ao espaço de tempo desde a sexta-feira da semana anterior. Nesse dia, pela primeira vez, é ela que fala diretamente comigo pelo telefone.

Na terça-feira, ela toca diferentes partes de meu corpo, nomeandoas, depois as suas e se deita no chão esticando as pernas, depois cruzando-as e dobrando-as, esticando os braços, muito feliz por experimentar essa vivência corporal e o apoio dorsal de todo seu corpo e dos movimentos de seus membros.

Em seguida, ela vai admirar suas roupas no espelho. Ela está se tornando graciosa desde que sua mãe começou a lhe comprar lindas roupas de adolescente.

Depois, ela começa a brincar de lobo: escondida sob uma toalha, ela avança em minha direção, dizendo: "Diga ai, ai, ai, peça socorro!" e isso rosnando de modo ameaçador a plenos pulmões, contente, sem se angustiar em me ver representar o terror, e insistindo para que eu tenha realmente muito, muito medo; tenho que limitar sua energia quando ela agarra minha cabeça, lembrando-lhe que é apenas uma brincadeira, que não é de verdade, o que confirma para ela a interdição de atuar destruindo, mas também confirma a permissão do fantasma, e principalmente do fantasma de incorporação, através da transformação lúdica, contribuindo para a diferenciação da realidade externa e da realidade interna. Essa teatralização corresponde a uma organização fantasmática mais complexa, incluindo elementos mais genitalizados e uma certa erotização dos medos do encontro. Irene se encontra em uma exploração da modulação possível, pois recebida pelo outro; não há modulação no estado autístico; é preciso um mínimo de continência para que uma modulação pulsional seja possível.

Na sessão de quarta-feira, ela me pergunta se a agressão de que ela foi objeto uma semana antes por parte de meninos da instituição foi por sua culpa.

Na sexta-feira, ela me diz : "Você desenha o Sr. C. Ausente (é o outro psicanalista da instituição, e dividimos a mesma sala); depois, a Sra. Cerf não aí, está em sua casa. Você desenha e escreve: Sr. C. Ausente hoje, o Sr. não está ; ele estará aqui na segunda-feira. A Sra. Cerf estará em sua casa na segunda-feira. Irene estará ausente nesse fim de semana pois ela estará em sua casa com X, e também na quarta-feira, pois é o dia da instituição. Isabelle está ausente nesse momento. Ela virá para a refeição, para almoçar. Irene vai almoçar com Isabelle. Irene irá almoçar na mesa de Isabelle. Isabelle estará ausente segunda e terça da semana que vem."

Em seguida fazemos a lista dos ausentes e dos presentes em cada dia da semana seguinte.

Na quarta-feira da semana seguinte, ela me dá veneno e eu tenho que me fingir de morta, pois ela está brava porque teve que me esperar e, portanto, faz a mesma coisa: ela vai embora e volta.

Seu progresso na subjetivação avança com uma busca mais efetiva de verdadeiras trocas relacionais em seu meio: ela desenvolve ao mesmo tempo sua capacidade de fazer laço e de separação. O laço de confiança está bem estabelecido: frequentemente, quando nem tudo está bem, ela me diz: "Não sei por que estou com raiva, você me diz". Surge a relação de causalidade.

Quando tem sentimentos difíceis, duas situações são possíveis. Ou ela se fecha e então, se eu me mostro muito contrariada, tanto quanto ela, ela entra no jogo me imitando, para em seguida me ordenar: "Chore!" e depois : "Pare de chorar!", o que permite que ela trabalhe suas emoções. Ou então ela confunde a troca, fazendo diferentes ruídos até que eu possa sentir e expressar o fato de que ela esteja tentando me irritar para se livrar de sua própria irritação, cuja origem, evidentemente, devo compreender e interpretar. Tão logo as palavras colocadas restituem a projeção, a manobra cessa. Esse processo pode se estender como uma defesa pela descarga no outro de uma emoção que ela não pode tratar psiquicamente, o que já é positivo se comparado ao refúgio na adesividade. Essa projeção pode se estender à função primeira de comunicação de seu sentimento como faz a criança pequena, o que significa um grande progresso.

Surgem novos sentimentos, mais matizados. Os momentos de meiguice são cada vez mais frequentes, em geral nos reencontros. Esses são cada vez menos furtivos, e cada vez mais amplos e espontâneos. Sentimentos edípicos se expressam mais e mais ao longo das sessões, com o aparecimento do ciúme em relação à minha vida particular e às outras crianças que estão em terapia comigo...

Quando tem que esperar um pouco, essa frustração desencadeia sua raiva e ela me faz esperar do mesmo modo, e em seguida vem bater vigorosamente à porta e entra, declarando: "Eu me vingo fazendo-a esperar!". A rivalidade fraterna com as outras crianças pode ser melhor vivenciada, mais negociada, e expressa de modo mais corriqueiro. Ela começa a se defender, a empurrar as crianças com brincadeiras de boxe cada vez mais lúdicas para ela.

Começa a dizer o quanto ela vive inconscientemente na brincadeira com sua boneca de terapia, expressando sua fragilidade narcísica e a ambivalência dos sentimentos nos quais está presa: "Coralie cheira mal e é feia. Eu a detesto... eu não disse que a detesto...gosto muito de Coralie. Tenho vontade de dizer que eu a amo. Nos damos beijinhos. Às vezes ela me irrita, mas sabemos que isso a assusta".

Nas sessões, ela começa a representar personagens mais complexos, mais ricos, que trabalham os temas de bruxas, de envenenamento, o período edípico. Constantemente, ela me dá o papel da criança. Ela pode representar aí o desejo de envenenamento, a ternura, o ódio, o medo, os traumas médicos...

Eis a seguir três pequenas sequências de jogos:

- Jogo em que eu devo me fingir de morta por causa da poção envenenada que ela me dá, ou então devo fazer o papel do bebê que chora muito, muito alto.

- Jogo da bruxa: alternamos o papel da bruxa, eu primeiro, ela em seguida insistindo para que eu diga: "Não, pare, socorro!". Ela se torna aquela que amedronta com uma alegria incomensurável. Depois, uma sequência de grande ternura possessiva: ela segura minha cabeça sob uma toalha, apertando com força sua cabeça contra a minha. Fico sentada, ela em pé ao lado de minha poltrona. Ela me dá beijos na face sobre a toalha e esfrega minha cabeça manifestando muita emoção. Depois senta em meu colo, colando suas costas contra mim. A experiência de tantos sentimentos no jogo não foi excessiva para ela, mas despertou uma preocupação suficiente para que ela viesse "se apoiar" para assegurar-se de suas amarras corporais, de seus laços intrasubjetivos e intersubjetivos.

- Jogo do bebê que chora e que ela me pede para desenhar no quadro. Ela apaga e diz: "Mamãe, papai!" e depois representa uma conversa telefônica: "Papai, estou na minha sessão, hein, com a Sra. Cerf". Devo representar o pai. Depois ela se torna o médico que a faz sentir dor : ela olha dentro de minha orelha com uma certa brutalidade e brinca de me dar injeções, ordenando-me: "Diga ai, ai, ai!", o que ela repete longamente. Quando eu lhe peço, ela brinca facilmente de "fingir que provoca dor". No fim da sessão, ela exclama: "Pronto, brincamos muito bem!"

Essas articulações são ao mesmo tempo causa e efeito de um processo de subjetivação. Tenho a impressão de que Irene tem agora um espaço psíquico bem vivo. Ela tem insights e momentos de reflexão como, por exemplo: "Às vezes não consigo falar". Ou então, mais precisamente: "Sra. Cerf, gostaria de perguntar-lhe, o que há na minha cabeça?" e também: "O que significa 'é possível'?" ou "O que quer dizer a vida?". O modo com que ela me ouve mostra sua sensibilidade ao sentido. Entretanto, esses momentos não se inscrevem em uma duração, o que para nós é fonte de questionamento. Todavia, agora ela sabe dirigir uma pergunta ao outro de quem ela espera uma resposta.

Gostaria de relatar uma sessão que me parece muito importante, em que ela expressa seu fantasma de cena primitiva.

Irene brinca de lobo e eu devo pedir socorro e dizer que tenho medo. Ela prolonga a duração dessa cena. Estamos embaixo de uma toalha que ela havia colocado sobre sua cabeça para representar o lobo. Experimenta um grande prazer em grunhir e em me amedrontar. Pouco a pouco, percebo a intensidade que ela coloca nesse jogo. Não se trata apenas de prazer, percebo nela um sentimento de necessidade interna.

Ao me fazer representar o medo de modo consciente, Irene, inconscientemente, leva-me a representar sentimentos manifestados pela clivagem: os terrores infantis, as dores físicas, os tratamentos médicos vividos como ataques sádicos orais. Fui levada a essa compreensão pela insistência e a duração de suas brincadeiras de lobo. Foi por sua insistência que me veio a imagem dos médicos sob forma de lobos e que considerei o modo de agressão com que ela havia vivido os cuidados hospitalares. Eu lhe disse que os cuidados médicos haviam sido vividos pelo bebê como agressões. Rapidamente, ela associa, dizendo, com um tom decidido, o que eu jamais havia ouvido: "Quero desenhar ! Vou desenhar o medo." Dá fortes pinceladas violeta, longamente, sempre com esse movimento insistente. Depois continua com um pilot verde, com o qual recobre em parte o violeta, sempre muito atenta, concentrada em seu desenho. A segunda cor me faz pensar em um segundo lobo, o que lhe digo, e ela responde: "a casal de lobos se beija". É a primeira vez que esse fantasma se expressa nas sessões. Há uma passagem da obstinação sádica oral sobre a criança para a cena primitiva, universo de sexual arcaico onde há um casal de agressores que cuidam-atacam e talvez gozem. Durante todo o jogo ela fica atrás de mim, esfrega meus cabelos através da toalha e coloca sua cabeça contra a minha. São gestos vigorosos e carinhosos, sem absolutamente machucar. Esses estariam mais próximos da pulsão de domínio, do aperto-colagem.

No mesmo período ela desenha, pela primeira vez, duas figuras humanas reconhecíveis e em pé, ainda que muito primitivas: um traço vertical com um círculo no alto. Uma é a enfermeira e a outra a analista.

Algum tempo depois Irene parte para as férias de verão. Na volta, ela irá para um hospital-dia para adolescentes. Quer prosseguir sua psicoterapia. Vem duas vezes por semana ao EPI, pois não é possível recebê-la no consultório particular.

Tive muita dificuldade em reestabelecer uma relação vivaz com Irene, principalmente porque agora ela tem uma sessão a menos na semana. É indispensável que eu converse com a pessoa da instituição que vem buscá-la no EPI.

Penso que seja necessário construir um laço em torno dela e com ela. Gostaria que ela se integrasse no hospital-dia para adolescentes, o que vai ocorrer progressivamente. O trabalho de psicoterapia irá prosseguir retomando muito as questões de continuidade/descontinuidade. Por exemplo, durante o primeiro ano, ela para constantemente as frases no meio, sem terminá-las, para que eu as termine. Quando quero mudar o tema da discussão, eu lhe digo e isso facilita muito as coisas. Essa organização irá durar quatro anos, até que Irene diga claramente que ela não quer mais me encontrar no EPI.

Depois disso, Irene é levada ao meu consultório na saída de sua instituição e um de seus pais vem buscála. Ela fica muito contente com esse novo enquadre, do qual se apropria rapidamente. Ela toca a campainha com alegria, instala-se na sala de espera respeitando as regras determinadas. Ainda que seu caminhar ainda tenha uma certa especificidade, não tem mais o jogo lateral dos primeiros anos e seus passos são muito mais encadeados, mais ligados. Pela primeira vez, mantenho um verdadeiro contato com seus pais, que gostam de vir buscar a filha em um local que não é um hospital. Esta organização requer flexibilidade e disponibilidade de horários. Por outro lado, posso realizar com Irene uma longa sessão, de pelo menos uma hora e quinze, o que é muito útil no plano da continuidade para ela e para mim. Sua sessão é seguida de uma curta conversa com o pai ou a mãe. Como pano de fundo, existe o hospital-dia que eu conheço, que permite a presença de um profissional para a psicoterapia, o que me parece necessário.

Irene se instala confortavelmente na poltrona à minha frente, depois de ter fechado a porta do consultório. Ela fica relaxada, encostada, com os braços pousados nos braços da poltrona. Cruza as pernas, ou coloca uma perna dobrada sobre a outra. E fica tranquila. Às vezes seus dedos tamborilam na poltrona mais ou me-nos intensamente conforme seu estado emocional. Diz com frequência: "vamos conversar". Ela cresceu: é uma jovem que acaba de fazer 20 anos. Fala espontaneamente do que mais gosta em sua instituição: o canto, a dança, os instrumentos musicais de percussão, as representações de que participa, as viagens. Começamos a abordar questões que tocam uma maior consciência de sua diferença, de seus limites, da diferença de desenvolvimento, de sua ausência de autonomia para se deslocar. Os elementos depressivos se expressam principalmente em casa por meio de comportamentos agressivos dificilmente decodificáveis por seus pais. Há muito trabalho a fazer em torno das vivências de sofrimento, de sua expressão, das fantasias subjacentes.

 

REFERÊNCIAS

Haag, G., Tordjman, S., Duprat, A., Cukierman, A., Druon, C., Jardin, F., Maufras du Chatellier, A., Tricaud, J., & Urwand, S. (1995). Présentation d'une grille de repérage clinique des étapes évolutives de l'autisme infantile traité. Psychiatrie de l'enfant, 38(2), p. 495-527.         [ Links ]

Haag, G., Botbol M., Graignic R.,Perez- Diaz F., Bronsard G., Kermarrec S.,, Clément M.-C., Cukierman A., Druon C., Duprat A., Jardin F., Maufras du Châtellier A., Tricaud J., Urwand S. : Haag G., Tordjman S., Clément M.-C., Cukierman A., Druon C., Duprat A., Jardin F., Maufras du Châtellier A., Tricaud J., Urwand S, Guilé J.M., Cohen D., Tordjman S. (2010). The autism sychodynamic evaluation of changes (APEC) scale : a reliability and validity study. Journal of Physiology, 104(6),323-336.         [ Links ]

 

NOTAS

1 Este caso foi objeto de uma apresentação na CIPPA (Coordination Internationale de Psychothérapeutes Psychanalystes et membres associés s'occupant de Personnes avec Autisme - Coordenação Internacional de Psicoterapeutas Psicanalistas e membros associados que tratam de Pessoas com Autismo] no dia 16 de junho de 2012, em Paris, França.

2 N da T.- EPCA : Évaluation Psychodynamique des Changements chez l'Autiste (Avaliação psicodinâmica das mudanças no autista).

 

 

Recebido em julho/2012.
Aceito em setembro/2012. 323