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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.17 no.2 São Paulo dez. 2012

 

FUNDAMENTOS

 

Da moral nietzschiana ao mal-estar freudiano: algumas aproximações e decorrências éticas

 

From the nietzschean morals to the freudian discontents: some approaches and ethical consequences

 

De la moral nietzscheana al malestar freudiano: algunas aproximaciones y consecuencias éticas

 

 

Renee Volpato ViaroI; Luciana Albanese ValoreII

IPsicólogo. Mestre em Práticas Educativas e Produção de Subjetividade pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil. reneevolpato@yahoo.com.br Praça Santos Andrade, 39 / 63 80020-300 - Curitiba - PR - Brasil
IIProfessora do Departamento de Psicologia e diretora do Centro de Estudos e Assessoria em Psicologia e Educação (CEAPE) da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil. luvalore@uol.com.br Travessa Alfredo Bufren, 140 - 1º andar Departamento de Psicologia - UFPR 80020-240 - Curitiba - PR - Brasil

 

 


RESUMO

Tomam-se as obras A genealogia da moral, de Nietzsche, e O mal-estar na civilização, de Freud, como leituras modernas acerca do papel desempenhado pelo sentimento de culpa no processo civilizatório. Algumas medidas (discutidas por ambos os autores) tomadas contra o sofrimento advindo da socialização humana são focadas como diagnósticos modernos do processo civilizacional e de seu atual estado, para então, a partir da problemática dos ideais, serem traçadas algumas decorrências éticas (concernentes à psicanálise) diante do conflito entre indivíduo e civilização.

Descritores: sentimento de culpa; ética; interpretação; mal-estar; moral.


ABSTRACT

The authors consider the works On the genealogy of morals by Nietzsche and Civilization and its discontents by Freud as Modern readings about the role played by guilt feeling on the civilizing process. Some measures (discussed by both authors) taken against the suffering that comes from human socialization are focused as diagnostics of Modern civilization process and its current state. Then, from the issue of ideals, some ethical consequences (concerning psychoanalysis) are placed about the conflict between individual and civilization.

Index terms: guilt feeling; ethics; interpretation; discontents; moral.


RESUMEN

Se toman las obras La genealogía de la moral, de Nietzsche, y El mal-estar en la civilización, de Freud, como lecturas modernas del papel desempeñado por el sentimiento de culpabilidad en el proceso de civilización. Se caracterizan algunas de las medidas (que ambos autores examinan) tomadas contra el sufrimiento que proviene de la socialización humana como diagnósticos modernos del proceso de civilización y su estado actual, para después, partiendo de la cuestión de los ideales, considerar algunas de las consecuencias éticas (en relación con el psicoanálisis) ante el conflicto entre el individuo y la civilización.

Palabras clave: sentimiento de culpabilidad; ética; interpretación; mal-estar general; moral.


 

 

As mutilações do homem selvagem têm sua trágica sobrevivência na renúncia que nos estraga a vida. Somos punidos por nossas recusas. Cada impulso que tentamos abafar fermenta em nosso espírito e nos envenena.

Oscar Wilde, O retrato de Dorian Gray

 

Introdução1

Muito já se falou de aproximações e distanciamentos entre as obras de Sigmund Freud e Friedrich Wilhelm Nietzsche.2 Em muitos desses comentários, foram debatidas questões concernentes a "O mal-estar na civilização" (Freud, 1930/1996) e A genealogia da moral (Nietzsche, 1887/2007). Assim, iniciamos nossa elaboração ao sabor das repetições, pois serão estes os textos primeiros sobre os quais nos debruçaremos com o intuito de aproximá-los, tomando-os como leituras modernas do processo civilizatório que conferem lugar fundamental ao sentimento de culpa na constituição de tal processo - isso para que algumas decorrências éticas referentes à psicanálise possam ser depreendidas.

Contudo, a despeito do não ineditismo da proposta, esperamos, em nosso comentário, contar com a fecundidade de uma repetição diferencial, que possibilite um horizonte de (re)significações no mesmo ato em que conjura nosso discurso e seu acaso para que, enfim e paradoxalmente, possamos dizer pela primeira vez aquilo que desde há muito já estava dito, repetindo, no entanto, aquilo que jamais havia sido articulado,3 de tal sorte que possamos conduzir o mal-estar de uma ética avessa à ética a expressar-se através de uma certa ruptura com a moral.

De forma geral, pode-se dizer que, nessas obras, tanto Freud quanto Nietzsche estão às voltas com o impasse da manutenção do indivíduo na cultura - manutenção, pois ambos bem concebem sua inserção. De maneira semelhante, através deste impasse, ambos realizam uma certa leitura - mais ou menos profética - do período histórico no qual se encontram, da Modernidade. Trata-se, então, de visões modernas sobre um impasse que extrapola o modernismo, mas que apenas nele puderam ser assim formuladas. Ressaltamos tal aspecto por considerá-lo, em parte, esclarecedor das semelhanças entre duas obras cujas publicações distam quase meio século, sem que haja qualquer referência da mais tardia à primeira. Os textos em pauta podem ser aproximados se tomados como hermenêuticas modernas, tal como em Foucault (1980), capazes de representar os modos de análise desses autores - modos de análise cujo potencial para (re)situar perspectivas históricas (sejam elas do paciente, da civilização ou do valor dos valores morais) configura metodologias capazes de reposicionar perspectivas acerca de nossas próprias análises, de nossos próprios distanciamentos e aproximações, inclusive dos realizados aqui.

 

Método(s)

Se Freud busca fazer de seu mal-estar a fundamentação da relação tortuosa entre indivíduo e cultura, Nietzsche, por sua vez, busca com sua moral investigar sua própria origem, de maneira a criticar o valor dos valores morais (e a ambiguidade da construção frasal não é, logicamente, gratuita). Contudo, suponhamos a possibilidade de abandonar a parcialidade de nossa leitura, suspendendoa com o uso de um jargão tranquilizador: impressões pessoais à parte, o fato que buscamos formular é o de que os autores, cada um a sua maneira, desenvolvem suas ideias por meio de uma gênese interpretativa.

Esta gênese não escapou a um certo comentário a respeito dos encontros e desencontros entre as técnicas de interpretação de Freud, Nietzsche e também de Marx. Referimo-nos à fala de Foucault (1980), intitulada Nietzsche, Freud e Marx, apresentada em 1964 num colóquio sobre Nietzsche: ali, Foucault elegeu estes pensadores como aqueles que fundamentaram a possibilidade de uma hermenêutica específica - a hermenêutica moderna. Nietzsche e Freud estariam, assim, alinhados na medida em que, juntamente com Marx, nos teriam colocado numa posição incômoda, visto que suas técnicas de interpretação nos dizem respeito, e já que nós, como intérpretes, teríamos que nos interpretar a partir destas técnicas. "E é a partir destas técnicas interpretativas, que pelo nosso lado, devemos interrogar aos intérpretes que foram Freud, Nietzsche e Marx, ainda que sejamos perpetuamente refletidos, num perpétuo jogo de espelhos" (Foucault, 1980, p. 10). Em nossa leitura, interpretamos interpretações eminentemente modernas, estando situados num dado tempo e lugar, vale lembrar. Destarte, ao posicionarmos os olhares de Freud e Nietzsche no âmbito de gêneses interpretativas modernas, não fazemos menção a qualquer busca de origens puras, essenciais, cuidadosamente recolhidas em si mesmas, ou ainda resguardadas numa forma anterior a tudo o que é externo e, assim, verdadeiras em si. Preferimos, antes, interpretar seus olhares como jogos de astúcia que, diante do vazio da gênese, em vez de recuarem ao conforto daquelas "origens puras", propõem-se a forjar, a lançar ponte (por meio do homem) e a construir (em análise).

No início de "O mal-estar na civilização", ao se debruçar sobre o sentimento oceânico, Freud afirma que não tem nada de decisivo a sugerir acerca de tal experiência, mas que, diante de semelhante fato tão estranho ao contexto de sua psicologia, "se torna justificável a tentativa de descobrir uma explicação psicanalítica - isto é, genética - para esse sentimento" (Freud, 1930/1996, p. 74, itálico nosso). Na sequência, afirmará que o ego "deve ter passado por um processo de desenvolvimento, que, se não pode ser demonstrado, pode ser construído com um razoável grau de probabilidade" (Freud, 1930/1996, p. 75, itálicos nossos). Desta forma, Freud exibe algo (com toda a consistência clínica que lhe é própria) do processo de desenvolvimento egoico para afirmar que o sentimento oceânico remete a um estado primário do ego, anterior à diferenciação do mundo externo. O que queremos deixar patente aqui é o caráter eminentemente interpretativo da avaliação freudiana sobre o desenvolvimento individual, sobre a historicidade do sujeito. Uma historicidade interpretada, construída, não factual, não demonstrativa, é o que Freud desenrola.

A reconstrução interpretativa do passado pode ser agora menos apreendida e mais inferida quando Freud expõe a analogia entre a questão da preservação na esfera da mente e as Romas de diversos tempos. Esta analogia revela algo da marca interpretativa da construção psicanalítica do passado, marca que permite ao observador "apenas mudar a direção do olhar ou a sua posição para invocar uma visão ou outra [da cidade]" (Freud, 1930/1996, p. 79).

A equiparação entre explicação psicanalítica e genética está presente novamente quando Freud aponta "a maneira descuidada com que a linguagem utiliza a palavra 'amor'" (Freud, 1930/1996, p. 108). Mais uma vez, as origens profundas de um sentimento serão demarcadas nos meandros de um processo cheio de retrocessos que inibe a finalidade do amor plenamente sensual, bastando "apenas mudar a direção do olhar ou a sua posição para invocar uma visão ou outra [do sentimento amoroso]" (Freud, 1930/1996, p. 79).

Assim, aquilo que Freud nomeia como genético associa-se a todo o processo de desenvolvimento (na maior parte das vezes, individual) de uma determinada instância psíquica, sentimento ou característica mental qualquer, processo este marcado por vicissitudes que a explicação psicanalítica - isto é, genética - buscará elucidar com razoável grau de probabilidade (e historicidade interpretativa, acrescentemos). Nossa insistência neste aspecto se deve ao objetivo deste trabalho: aproximar algo dos pensamentos de Freud e Nietzsche (sem fazer crer uma identidade, mas sim algumas proximidades), pois se Freud faz uso de uma genética, Nietzsche faz uso de uma genealogia.

Já no prefácio de A genealogia da moral, Nietzsche (1887/2007) aponta que a leitura de seu livro exige do leitor uma "ruminante arte de interpretação" (da qual, segundo o autor, o homem moderno carece), sem a qual seus aforismos não podem "ser decifrados". Com isso, Nietzsche nos faz ocupar a posição que ele mesmo ocupa diante das origens dos preceitos morais, isto é, nos faz interpretar uma realidade já transcorrida estando munidos apenas de nossa evidente limitação num "aqui e agora". Adiante, no aforismo 12 do Terceiro Tratado, Nietzsche afirma necessitar de um senso histórico para empreender sua pesquisa, senso esse que, muito antes de visar a uma objetividade factual, se apodera das "limitações" às quais nossa perspectiva está sujeita para invocar uma visão que difere daquela a que estamos habituados:

o querer ver de modo diverso dos outros, não é pouca disciplina nem pouca preparação do intelecto para sua futura "objetividade", entendendo por essa palavra não a "contemplação desinteressada" (que é um monstro intelectual e um contra-senso), senão a faculdade de dominar o pró e o contra, servindo-se de um e de outro para a interpretação dos fenômenos e das paixões úteis para o conhecimento.... Só há um ver em perspectiva, um conhecer em perspectiva; mais deixamos afetos tomar a palavra a respeito de outra coisa, mais sabemos dar-nos olhos, olhos diferentes para essa mesma coisa, e mais nosso "conceito" dessa coisa, nossa "objetividade" serão completos. Mas eliminar a vontade em geral, suprimir inteiramente as paixões - supondo que isso fosse possível - como? Isso não significaria castrar o intelecto? (Nietzsche, 1887/2007, p. 116, itálicos do autor)

É nesse sentido que Nietzsche propõe sua "metodologia histórica" (como chama a genealogia), calcada num "querer ver de modo diverso", nessa vontade peculiar. Para tanto, ao longo dos aforismos 12 e 13 do Segundo Tratado, o autor opera uma distinção simples, porém fundamental: ao versar sobre o castigo, explicita a diferença entre origem e finalidade. Nietzsche atenta para o entendimento corriqueiro (mesmo para alguns estudiosos) que descobre no castigo uma finalidade qualquer - por exemplo, a vingança - e coloca esse fim na origem, na causa dele, como se o castigo tivesse sido criado justamente para vingar ou punir. Quebrando com essa lógica, o autor aponta para a significativa distância entre a causa de emergência de algo - sua origem - e a aplicação que lhe é dada - sua finalidade. Uma vez criado, o procedimento "não cessa de ser interpretado em função de novas intenções por um poder que lhe é superior, de se ver reconfigurado e reordenado para novo uso... [o procedimento é subjugado, dominado] e toda dominação equivale a uma interpretação sucessiva" (Nietzsche, 1887/2007, p. 73). Assim, o procedimento se constitui enquanto uma origem, uma anterioridade de algo duradouro que sofre a introdução de novos sentidos por meio de interpretações sucessivas; uma origem que, se sobreposta à finalidade, viria a configurar o equívoco de considerar o sentido último do procedimento como o equivalente de seu surgimento, o que favoreceria a precipitação de um olhar objetivista avesso à interpretação, uma vez que, ao fazer a equivalência finalidade = origem, perde-se de vista justamente toda a história constitutiva do procedimento - e a mobilidade (a nosso ver, interpretativa) que ele comporta. Isto porque, se o procedimento é duradouro, o sentido é o que há de mais fluído: ele acompanha a direção de uma síntese do passado histórico daquela coisa, de suas diversas representações, síntese esta difícil de definir, pois, de acordo com essa visão, "só se define o que não tem história" (Nietzsche, 1887/2007, p. 76). Não seria, então, por mero acaso que Freud constrói ao invés de demonstrar. Com base no mencionado, fica evidente o caráter violento que a interpretação tem sobre a realidade, violência forte o bastante para suplantar uma finalidade, um sentido, em prol de outra. É a trilha dessa vontade de subjugação e dominação, dessa vontade de poder, que intervém em todo processo de produção que Nietzsche segue em sua genealogia. Vale ainda mencionar o caráter hostil e cruel que atribui prazer à agressão, à mudança e à destruição, que a vontade de poder comporta: é necessário destruir o instituído para que uma nova visão possa advir - processo prazeroso, nos diz Nietzsche.

Julgamos que, em sua genealogia, Nietzsche realiza uma análise histórica relativamente ampla que remete a classes sociais, povos, épocas, bem como a seus respectivos valores, costumes e usos de si. Em síntese, pode-se dizer que "a moral será encarada de um ponto de vista histórico, o que a retira imediatamente da esfera do absoluto" (Vieira da Silva, 2000, p. 44). A partir desta amplitude, ou melhor, desta análise histórica de coletividades, o autor eventualmente estabelece categorias individuais que lhe permitem concluir algo sobre o sujeito moderno, encarando-o como o produto mais recente e não linear deste processo. No método de Nietzsche, a passagem se dá do coletivo para o individual. Freud, ao se dedicar a seus estudos socioantropológicos, segue o mesmo caminho, mas em sentido inverso: com base na construção singular que a clínica lhe proporciona, busca conceber o âmbito coletivo como dedução e em analogia com o individual. O autor expressa tal movimento algumas vezes em "O mal-estar na civilização" (Freud, 1930/1996): "não podemos deixar de ficar impressionados pela semelhança existente entre os processos civilizatórios e o desenvolvimento libidinal do indivíduo" (p. 103) - filogênese e ontogênese (não numa acepção estritamente cientificista, como indica Mariguela [2001]) servindo como pontos de apoio mútuos para a elaboração da hermenêutica visada. Inverte-se o sentido do pensamento, mas permanece o método interpretativo histórico: Freud, tributário de uma gênese da individualidade; Nietzsche, de uma gênese da coletividade, por assim dizer. Hermeneutas da gênese, pensadores que metodologicamente rumam em direções diametralmente opostas, um buscando alcançar o ponto de origem do outro numa mesma via de mão dupla chamada Modernidade.

 

Gêneses do m(or)al-estar

Vejamos agora aquele que foi o ponto de partida para a execução deste trabalho, isto é, o desenvolvimento que cada autor atribui ao sentimento de culpa. Seremos sucintos, pois, sob determinado ângulo, ambas as obras podem ser tomadas quase que por inteiras como uma investigação da origem do sentimento de culpa, de suas correlações e implicações.

No capítulo VII de "O mal-estar na civilização", Freud formula a origem da consciência como proveniente da introjeção da agressividade, ou seja, de seu retorno ao lugar de onde proveio, ao ego, origem cujo propósito maior é possibilitar e favorecer a ordem civilizatória frente à inclinação originária à agressividade do ser humano. A consciência moral assim formada, ou superego, assume a agressividade que o ego inicialmente dirigia ao mundo externo e volta-a contra o próprio ego gerando uma tensão entre este e o superego, tensão denominada sentimento de culpa e que se expressa por meio de uma necessidade de punição.

Seguindo os passos de Freud, detenhamo-nos um pouco mais na origem deste sentimento tão caro à tradição cristã. Freud é claro e didático ao postular duas origens para o sentimento de culpa: remontando ao complexo edípico, o autor frisa um primeiro momento no qual a criança renunciaria a levar a cabo a realização de um impulso devido ao medo que a autoridade externa lhe imputa; ou, ainda, graças ao medo de perder o amor dessa figura de autoridade e toda a proteção que isso implica (e, por conseguinte, encontrar-se sujeita aos golpes de sua fúria, em desamparo), a criança aceita ceder em sua ação satisfatória. A tensão aqui estabelecida entre o infante e a autoridade externa é chamada por Freud de má consciência, um estado que exige, por parte do primeiro, "apenas" a renúncia à satisfação pulsional. Contudo, na sequencia do desenvolvimento infantil, esta autoridade, alvo de amor e ódio, é conduzida, ela mesma, a estranhos caminhos nesse deserto pleno de miragens que é o complexo de Édipo; a inatingível autoridade externa é internalizada pela criança por meio de uma poderosa identificação, em que o investimento energético dirigido aos objetos incestuosos se volta contra o sujeito, precipitando uma modificação - parte consciente e parte inconsciente - em seu aparelho psíquico, que toma posse da quota de agressividade contida naquele investimento empregando-a contra o próprio ego do sujeito. Diante da interioridade do superego formado, a renúncia à satisfação pulsional não é mais suficiente para livrar o sujeito da tensão com a autoridade, pois, uma vez introjetada, a autoridade estará apta a identificar até mesmo as mais escusas intenções que nunca seriam levadas a cabo, mas que serão, ainda assim, severamente supervisionadas e taxadas como dignas de punição, uma vez que suas origens inconscientes permanecerão ativas e evidentes à autoritária voz interior. Acerca da tensão entre o ego e a autoridade internalizada, fala-se não mais em má consciência, mas em sentimento de culpa propriamente dito.

Graças à continuidade entre a autoridade externa e a interna, intenção equivale a ação, e a renúncia à satisfação pulsional não mais livra o indivíduo da punição que pagaria caso tivesse se satisfeito, sendo que, paradoxalmente, quanto mais o indivíduo se submete ao seu superego, renunciando a suas satisfações e acatando para si o Crime e o Castigo decorrente, mais severo e exigente o superego se torna, uma vez que é ele quem se apodera do impulso renunciado, fortificando-se diante do ego masoquista.

Recorrendo ao mito antropológico de "Totem e tabu", Freud recria uma espécie de suposta primeira encenação edípica para explicar a inevitabilidade da culpa no caso de o sujeito levar a cabo seu impulso, eliminando a autoridade externa que pretende barrar sua satisfação. Nesse caso, devido à ambivalência dos sentimentos dirigidos ao pai totêmico (ambivalência que se encontra igualmente no ordinário complexo de Édipo), após a execução do ato de ódio sobrevém, juntamente com o amor, o remorso por tal ato e a identificação reparatória que erigirá o superego (paralelamente, ocorrerá a instauração de uma lei entre os pares daquela comunidade).

A entrada do ser humano no processo civilizatório é análoga à entrada do indivíduo na cultura e propiciada pela ambivalência constitucional entre os impulsos eróticos e agressivos da espécie. De tal forma, quando considerado em sua relação com a ambivalência edípica, o sentimento de culpa aparece não somente como inevitável, mas como necessário para a execução do projeto civilizatório. Agregar unidades implica o estabelecimento de vínculos afetivos que suprimam a agressividade. Para Freud, o homem está fadado à introjeção desta agressividade, ou seja, fadado à culpa: "Enquanto a humanidade não assume outra forma que não seja a da família o conflito está fadado a se expressar no complexo edipiano, a estabelecer a consciência e a criar o primeiro sentimento de culpa" (Freud, 1930/1996, p. 135).

A interpretação freudiana explicita (ou planta?) as raízes para o fundamento da cultura, alocando uma verdade profunda acerca da gênese da consciência e do sentimento de culpa na ambivalência do terreno edípico: "a alguns é concedido salvar, sem esforço, do torvelinho de seus próprios sentimentos as mais profundas verdades" (Freud, 1930/1996, p. 136). Freud, um homem moderno - de verdade.

Enquanto Freud percorre a sinuosa via da impossibilidade constitucional da felicidade humana para chegar à formulação de uma consciência moral advinda da internalização da agressividade, Nietzsche trilha outro caminho para chegar a uma formulação um tanto semelhante. Vejamos.

De forma geral, Nietzsche dedica todo o Primeiro Tratado de seu livro à elaboração de uma etiologia sociopolítica dos sentidos dos valores que intitulam este tratado: "Bem e mal" - "Bom e mau". O autor vai esclarecendo o ponto de vista que associa historicamente a qualidade de "bom" à nobreza e a de "mau" à plebe; vai reconhecendo como "se perpetua ainda e muitas vezes, nas palavras e nas raízes que significam 'bom', o matiz principal pelo qual os 'nobres' se tinham por homens de classe superior" (Nietzsche, 1887/2007, p. 27); vai deslizando na superfície do olhar a transformação de um conceito eminentemente político (sobre a nobreza, ou melhor, sobre a superioridade de poder de uma classe) num conceito psicológico (que molda a nobreza da alma num traço de caráter).

Contudo, o sentido dessa "nobre bondade" não é ainda aquele que reconhecemos hoje quando evocamos um "bem". Nietzsche aponta uma virada decisiva, um golpe judeu de ressentimento diria o autor, que inverte a fórmula greco-romana sobre o "bom" e o "mau" para associar à pobreza e à miséria a qualidade do "bom", do abençoado por Deus, e à nobreza a qualidade do "mau". Segundo Nietzsche, no coração dessa reviravolta de valores judaica está a semente do ódio e do ressentimento de Israel contra Roma, semente da qual vigora a árvore de um novo amor, o mais sublime, profundo e ideal amor que será acolhido pela tradição cristã. É curioso observar que, também para Nietzsche, é uma espécie de "árvore ambivalente" (que vai do ódio ao amor) que produzirá o fruto do pecado tributário da consciência moral. Findado o Primeiro Tratado, o autor abordará aspectos do processo civilizatório em si, que fundariam as condições de possibilidade do "bom" e do "mau" como visto imediatamente acima.

Educar um animal capaz de fazer promessas, eis a tarefa paradoxal que a natureza se impôs com relação ao homem. Para isso, é necessário tornar o homem uniforme, semelhante, regular e, por conseguinte, calculável. Entra em ação aquilo que Nietzsche nomeará moralidade dos costumes, ou seja, o trabalho pré-histórico do homem sobre si mesmo na moldagem de uma "camisa de força" social. Tais aspectos serão mais bem desenvolvidos na sequencia. Para prometer, foi necessário aprender a lembrar, e aqui o melhor instrumento para a memória foi a dor capaz de deixar marcas indeléveis. Nietzsche aponta para o alto preço que o animal humano pagou para se tornar civilizadamente razoável - e Freud provavelmente não discordaria da assertiva.

Um dos próximos itens no rol do processo civilizatório é o castigo (Nietzsche descreve outras experiências fundamentais, como a relação credor-devedor, mas nos concentraremos naquelas imediatamente relacionadas a nossos fins). O castigo é colocado como parte da primeira linha de barreiras que a organização social construiu para se defender contra os instintos de liberdade do indivíduo, barreiras estas que propiciam a origem daquilo que Nietzsche chamará de má consciência. É importante notar que, apesar da semelhança entre os termos, a má consciência de Nietzsche não corresponde à de Freud: este usa o termo para designar o momento em que o sentimento de culpa se relaciona exclusivamente com o medo da perda do amor da autoridade externa, momento em que a renúncia pulsional diante desse referencial externo é o suficiente para proteger-se do desamparo e aplacar a culpa; Nietzsche, porém, quando fala em má consciência, está se referindo a algo muito mais próximo daquilo que Freud nomeia como sentimento de culpa propriamente dito. Nietzsche associa a má consciência a um "sofrimento interior" e ao "sentimento de culpabilidade". Vê-se que seu entendimento acerca da má consciência já remete a uma interioridade culpabilizada.

Se o castigo é parte das barreiras sociais impostas contra os instintos de liberdade do indivíduo, não devemos confundi-lo com a origem mesma da má consciência. Lembremo-nos da distinção metodológica nietzschiana entre origem e finalidade. O castigo não surgiu para despertar ou expiar a culpa - a associação entre castigo e culpa é uma interpretação posterior de um procedimento mais antigo. De acordo com o autor, antes de se relacionar à culpa, o castigo se destinou a domar o homem, a torná-lo frio, resistente, a aumentar sua prudência. O golpe do castigo era visto como uma fatalidade irresponsável, como a irrupção brutal de um imprevisto, um fenômeno natural que o indivíduo entendia como um "não foi senão um acidente", em vez de transmitir (como transmite hoje) um "eu não devia ter feito isso". O castigo apenas domava o homem, não se propunha a torná-lo moralmente melhor.

O advento de uma moralidade internalizada através da qual o indivíduo passa a se ver como responsável pelo golpe recebido, ou melhor, o advento da má consciência acontecerá somente (e aqui julgamos encontrar um dos pontos de maior aproximação entre nossos autores) com a volta dos instintos reprimidos pela civilização contra o próprio homem. Vejamos melhor.

Nietzsche apresenta esta ideia chamando-a de "minha própria hipótese acerca da origem da 'má consciência'" e continua dizendo que considera a má consciência

como a profunda doença, na qual o homem que devia ter caído sob a pressão da mais radical de todas as modificações que viveu de maneira geral - a modificação que sobreveio quando se viu definitivamente prisioneiro da feitiçaria da sociedade e da paz. (Nietzsche, 1887/2007, p. 80, itálico nosso)

Tamanha modificação obrigou o indivíduo a, de repente, renunciar a seus instintos de liberdade quando eles mesmos não haviam renunciado às suas exigências:

era difícil e raramente possível satisfazê-las; era preciso procurar satisfações novas e subterrâneas. Todos os instintos sob a enorme força repressiva, volvem para dentro, e a isso chamo interiorização do homem; assim se desenvolve o que mais tarde será chamada "alma". (Nietzsche, 1887/2007, p. 80, itálicos do autor)

Eis a interioridade surgindo com a inibição da exteriorização: as barreiras sociais propiciaram que os instintos do homem se voltassem contra o próprio homem, dando origem à (má) consciência. Não bastassem tais semelhanças entre as gêneses freudiana e nietzschiana da culpa, nesta última, o autor ainda arremata dizendo que os instintos de liberdade (ou a vontade de poder) aos quais se refere são "a hostilidade, a crueldade, o prazer em perseguir, na agressão, na mudança, na destruição, [e que] tudo isso se dirigia contra o detentor desses instintos; [que] essa é a origem da 'má consciência'" (Nietzsche, 1887/2007, p. 81). Passemos a palavra a Freud:

Na literatura analítica mais recente, mostra-se predileção pela idéia de que qualquer tipo de frustração, qualquer satisfação instintiva frustrada, resulta, ou pode resultar numa elevação do sentimento de culpa. Acho que se conseguirá uma grande simplificação teórica, se se encarar isso como sendo aplicável apenas aos instintos agressivos, e não se encontrará nada que contradiga essa afirmação. (Freud, 1930/1996, p. 141, itálico do autor)

Um pouco antes desta passagem, Freud afirma que sua intenção é "representar o sentimento de culpa como o mais importante problema no desenvolvimento da civilização" (Freud, 1930/1996, p. 137). Nietzsche, na sequencia do que estava sendo exposto acima, diz que, com a má consciência,

foi introduzida a maior e mais inquietante doença, da qual a humanidade não se curou até hoje, o sofrimento suscitado no homem pelo homem, por ele mesmo, conseqüência de uma ruptura violenta com o passado animal, de um salto e de uma caída, por assim dizer, em situações e condições de existência novas, de uma declaração de guerra contra os antigos instintos que antes constituíam sua força e seu temível caráter. (Nietzsche, 1887/2007, p. 81, itálico do autor)

Difícil não nos lembrarmos das notas freudianas sobre um curioso conceito, a saber, uma repressão orgânica que entrou em ação para que o homem pudesse se defender de uma fase do desenvolvimento superada (um "passado animal") e do papel da adoção da postura ereta nesse ínterim. Então, foi de fato "preciso andar a pé, a 'levarem-se a si mesmos'" (Nietzsche, 1887/2007, p. 80) para que a civilização vingasse?! Segundo esses pensadores modernos, sim.

Mas não somente. Se para Freud o advento da consciência (enquanto internalização da autoridade parental) está intimamente ligado às necessidades religiosas e ao medo do poder superior do Destino (e de Deus), para Nietzsche tal advento foi tão novo, enigmático, profundo e pleno de futuro que

faltavam espectadores divinos para apreciar o espetáculo que começou assim.... Desde então o homem, entre golpes de sorte, inesperados e apaixonantes, veio figurar como personagem do jogo da "criança grande" de Heráclito, que tem por nome Zeus ou acaso. (Nietzsche, 1887/2007, p. 81)

 

Civilização moderna

Nietzsche e Freud, ao se debruçarem sobre o processo civilizatório, encontram em seu cerne um mesmo elemento nevrálgico: a culpa. Dissemos que a culpa é "encontrada" na problemática civilizatória. Contudo, ainda em tempo, preferimos pensar que a culpa pôde ser assim constituída (como o grande problema ou doença) não no cerne da civilização, mas, antes, no cerne da modernidade. Vemos esse momento histórico como um momento profícuo na reunião das condições de possibilidade necessárias para semelhantes enunciações. Sem nos atermos à história em si (o que, sem dúvida, geraria interessantes reflexões), continuaremos salientando algumas similaridades e continuidades dos pensamentos de Freud e Nietzsche, que os aproximam enquanto espíritos modernos às voltas com um diagnóstico civilizacional, por assim dizer. Para isso focaremos algumas medidas, problematizadas por esses autores, que a cultura criou para lidar com seu mal-estar. Tomaremos a liberdade de utilizar diversas passagens do texto de Freud a fim de aproximá-lo do de Nietzsche e vice-versa (como vem sendo feito desde o início do trabalho).

Ambos os autores designam um espaço de suas obras para a reflexão em torno da religião. É assim que Freud abre seu texto, indagando o sentimento oceânico e suas relações com a religiosidade. Sua conclusão é de que tal sentimento se refere, na realidade, a resquícios de um estado egoico anterior, que remeteriam a um narcisismo onipotente que, posteriormente, no decorrer do desenvolvimento do sujeito, seria vinculado à atitude religiosa (eis uma bela genealogia, diríamos com Nietzsche: uma diferenciação entre uma origem e uma finalidade atribuída a posteriori). Freud dirige críticas implacáveis à religiosidade, estabelecendo-a como uma medida paliativa capaz de provocar ilusões, ou melhor, delírios de massa diante da dura e árdua realidade da vida.

Se Freud aponta a religiosidade como uma dentre várias medidas possíveis no evitamento da dor e do desprazer, e na busca da felicidade e do prazer, Nietzsche se detém um pouco mais nesse ponto, indicando a religiosidade (ou a atitude sacerdotal, como a nomeia o autor) como berço de diversas práticas (fármacos, diz Nietzsche) contra a doença da civilização. O sacerdote agiria como o médico de seu rebanho delirante, prescrevendo um conjunto de práticas que, segundo Nietzsche, combate os sintomas do sofrimento advindo da socialização do homem, mas não suas causas. A primeira de tais práticas é o rebaixamento do sentimento de vida, tipicamente cristão. Freud também atenta para esse aspecto: "um fator desse tipo, hostil à civilização, já devia estar em ação na vitória do cristianismo sobre as religiões pagãs, de uma vez que se achava intimamente relacionado à baixa estima dada à vida terrena pela doutrina cristã" (Freud, 1930/1996, p. 94).

A atividade maquinal, ou a "bênção do trabalho", seria outra maneira de distanciar a consciência do sofrimento. Novamente, tal aspecto também é mencionado por Freud como fator de peso tanto na constituição da civilização quanto na busca do homem pela felicidade através da sublimação enquanto trabalho psíquico e intelectual. A diferença é que Freud parece refletir sobre o trabalho tomando-o num colorido mais positivo, ao passo que Nietzsche lhe empresta um tom negativo que o torna alvo de críticas. Porém, pode-se argumentar que os autores não se referem ao mesmo tipo de trabalho: o de Nietzsche é visivelmente uma fuga de si mesmo e da dor decorrente, ao passo que o de Freud parece apontar para a ordem da satisfação através da criatividade.

Uma terceira prática receitada é aquilo que Nietzsche denominou de "pequena alegria", ou seja, a alegria em suscitar alegria, o "amor ao próximo" que denota uma deformada vontade de ínfima superioridade implicada em "fazer o bem". Abordaremos adiante as reflexões freudianas sobre a receita do "amor ao próximo" - por hora, é válido salientar que o autor também se detém sobre ela.

A próxima prescrição é a da formação de um rebanho. Nietzsche propõe que "os fracos se agregam sentindo justamente prazer nessa agregação porque isso satisfaz tanto seu instinto como organização [quanto] irrita e inquieta fundamentalmente o instinto dos fortes" (Nietzsche, 1887/2007, p. 131, itálico do autor). Freud, além de mencionar a agregação de uma maioria que se faça mais forte que os indivíduos isolados, ao tratar do narcisismo das pequenas diferenças, diz que

É sempre possível unir um considerável numero de pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para receberem as manifestações de sua agressividade. [E que] quando, outrora, o Apóstolo Paulo [figura não muito querida por Nietzsche] postulou o amor universal entre os homens como o fundamento de sua comunidade cristã, uma extrema intolerância por parte da cristandade para com os que permaneceram fora dela tornou-se uma conseqüência inevitável. (Freud, 1930/1996, p. 119)

Por fim, o último desse tipo de fármaco - pois existem outros, de outra ordem -, que também pode ser lido sob o prisma do narcisismo das pequenas diferenças, refere-se ao aumento de poder da comunidade, que se dá juntamente com o aumento da consciência do indivíduo, e que implica o fortalecimento dos laços (de fé) e o aumento da culpabilidade. Nesse sentido, Freud adverte: "Visto que a civilização obedece a um impulso erótico interno que leva os seres humanos a se unirem num grupo estreitamente ligado, ela só pode alcançar seu objetivo através de um crescente fortalecimento do sentimento de culpa" (Freud, 1930/1996, p. 135). Eros: pastor do rebanho civilizatório.

Aqui se abre espaço para o meio de luta contra o sofrimento que Nietzsche chamou de "culpado", qual seja, a libertinagem dos sentimentos conduzida pelo sacerdote asceta - libertinagem que consiste em tirar proveito das grandes paixões, de maneira a

despertar o homem de tristeza, eliminar, por algum tempo pelo menos, sua dor acabrunhadora, sua miséria indecisa, sempre em favor de uma interpretação e de uma "justificativa" religiosa.... O principal estratagema de que se serviu o sacerdote asceta ... [foi] explorar em seu benefício o sentimento de culpabilidade.... O "pecado", porque assim se chama a interpretação sacerdotal da "má consciência" animal, (da crueldade, cuja direção foi invertida), o pecado é o maior acontecimento que até o presente a alma doente tem conhecido: nela encontramos o que há de mais perigoso e funesto da interpretação religiosa. (Nietzsche, 1887/2007, p. 134-135, itálico do autor)

Podemos arriscar uma aproximação entre a manipulação religiosa dos sentimentos (em especial do de culpa) com vistas ao fortalecimento do rebanho e a tendência cultural indicada por Freud quando afirma que "a civilização está obedecendo às leis da necessidade econômica, visto que uma grande quantidade da energia psíquica que ela utiliza para seus próprios fins tem de ser retirada da sexualidade" (Freud, 1930/1996, p. 109). Esta exploração da sexualidade conduz à utilização de medidas repressivas cada vez mais estritas para a manutenção da ordem estabelecida - ou seja, conduz a mais culpa. A interpretação religiosa mencionada por Nietzsche leva ao mesmo caminho. O pecado da falta cometida contra o pai roga penitência, e não há, no projeto de Eros, qualquer limite de expiação desta culpa.

O que esses autores nos mostram é que, paradoxalmente, os meios usados para o combate do mal-estar apenas melhor conduzem a ele. Na busca pela absolvição, o

ser que sofre procura, com efeito, instintivamente uma causa de seu sofrimento; mais exatamente ainda um agente, mais precisamente ainda, um agente culpado, suscetível de sofrimento.... "Eu sofro, alguém deve ser culpado disso". Assim pensam todas as ovelhas doentes. Mas seu pastor, o sacerdote asceta, responde: "É verdade, minha ovelha; alguém tem a culpa; mas esse alguém é você mesma, é sua culpa exclusiva - você é culpado perante você mesmo!"... (Nietzsche, 1887/2007, p. 123124, itálicos do autor)

Ao propor (ou impor) ao sujeito que "ame seu próximo como a si mesmo" o sacerdote asceta nada mais faz do que operar aquela libertinagem de sentimentos à qual Nietzsche se refere - faz com que a agressividade do indivíduo remonte apenas a ele mesmo. O "amor ao próximo" se revela como um dispositivo culpabilizante de primeira linha, dispositivo cuja reflexão freudiana não deixa escapar à crítica.

Freud toma o mandamento "amarás a teu próximo como a ti mesmo" como uma exigência ideal (fruto daquela reviravolta de valores judaica...) que, além de ser injusta para com aqueles que são realmente próximos, simplesmente não leva em conta a significativa e poderosa quota de agressividade da qual todo ser humano é dotado, isto é, não leva em conta que, no homem, a consideração, o respeito e o amor para com seu par são algo de muito estranho. Mais ainda: não leva em conta que seu próximo é muito antes alvo de ódio ao invés de amor.

Se no jogo de diagnóstico do processo civilizacional identificamos, dentre outras, duas cartas fundamentais que se repetem nas mãos de ambos os autores, quais sejam, o Ás de Amor e o Curinga de Culpa, podemos formular que, também Freud, recusa-se a fazer com essas cartas pares cristãos. Com isto, pretende-se dar especial destaque ao lugar central que o cristianismo, ou a moral cristã, ocupa na crítica freudiana. Semelhante circunscrição é feita porque julgamos que, em relação ao texto nietzschiano, o escrito de Freud é de estilo mais sutil e discreto ao tratar de tal aspecto; suas referências diretas ao cristianismo são mais pontuais. Contudo, elas estão implicitamente presentes em toda a proposta do texto: ao identificar o sentimento de culpa como cerne do mal-estar na civilização, correlacionando-o constitutivamente ao projeto de Eros e à introjeção da agressividade por ele requerida, consideramos que Freud denuncia, assim como Nietzsche, o papel desempenhado pela tradição cristã na disposição das cartas do jogo civilizacional.

Assim, a reflexão sobre o mandamento cristão do "amor ao próximo" torna-se crucial para que avancemos em nossa elaboração, uma vez que ela traz consigo a questão dos ideais e, paralelamente, a de uma direção ética em psicanálise.

 

De uma ética não ideal

Ao apontar para a falha do progresso técnico-científico, para a frágil constituição humana avessa ao constante estado de prazer, para o conflito entre os interesses do indivíduo e os da civilização e, finalmente, para a inclinação à agressão como fator perturbador das relações humanas, Freud denuncia o papel dos elevados ideais a que somos estimulados (e aos quais nos propomos) a perseguir - elementos inibidores e aplacadores desta inclinação à agressividade, ou seja, elementos repressores que podem se afirmar apenas a um custo: o de um mal-estar na civilização.

Atribuindo originalidade e autossubsistência à pulsão de morte, Freud realiza (mais) uma quebra na imagem ideal do ser humano. De maneira análoga, Nietzsche, ao questionar o valor dos valores morais e propor sua vontade de poder (e todo o desejo de destruição nela implicado), desfere um golpe nessa imagem bimilenar que tanto preza pelo ideal ascético. Entretanto, mais do que uma simples quebra, o reconhecimento (nada fácil, diga-se de passagem) da autonomia dessas forças implica, no caso do ser humano, o reconhecimento de sua natureza destrutiva, o que nos conduz a posturas éticas outras. Tomar a destrutividade como princípio autônomo e não mais como simples tendência significa reconhecer que a agressividade (com relação ao outro e a si mesmo) não se justifica mais como parte de um processo de vida, e, portanto, moralmente validado. A ética voltada à consecução do bem ideal, além de não estar em condições de recompensar as renúncias, esforços e sofrimentos requisitados, não pode mais justificar o mal-estar presente como uma espécie de dano colateral necessário à execução de um bem maior. Ao contrário, toda Ordem e todo Progresso são plasmados no e pelo mal-estar. Ele existe como elemento constituinte necessário: se o sacerdote asceta manipula a culpa para a constituição de seu rebanho, ele rende agradecimentos a Eros pela implementação do sentimento de culpa como engendrador do projeto civilizatório. E aí, onde Eros e destrutividade comungam aliança, somos forçados a reconhecer inclusive que "ver sofrer, faz bem; fazer sofrer, melhor ainda: aí está um duro princípio, mas um princípio fundamental, antigo, poderoso, humano, demasiado humano" (Nietzsche, 1887/2007, p. 64). Significa, finalmente, reconhecer que inclusive na punição há prazer e que "sem crueldade não há festa: é isso o que ensina a mais antiga e longa história do homem: no castigo há muita festa!" (Nietzsche, 1887/2007, p. 65, itálico do autor).

Ao colocar os padrões éticos como ignorantes acerca da determinação das diferenças presentes no comportamento humano (ou simplesmente, como não querendo saber da diferença) e como exigências ideais de um superego cultural, Freud está justamente apontando a falha desses padrões ao tentarem alcançar, por meio de uma exigência superegoica ideal (como "amarás teu próximo como a ti mesmo"), algo que elemento algum da cultura jamais conseguiu atingir: uma solução pacífica para a destrutividade inerente.

Ambos os autores se detêm na dimensão conflitante do indivíduo (agressivo) com a cultura, sendo que Freud deliberadamente se recusa a acolher para si (e para a psicanálise) algum bem maior a ser perseguido como solução ética para este conflito, alegando que

a defesa contra ela [a agressividade] pode causar tanta infelicidade quanto a própria agressividade ... [que a] ética "natural", tal como é chamada, nada tem a oferecer aqui, exceto a satisfação narcísica de se poder pensar que se é melhor que os outros. Nesse ponto, a ética baseada na religião introduz suas promessas de uma vida melhor depois da morte. Enquanto, porém, a virtude não for recompensada aqui na Terra, a ética, imagino eu, pregará em vão. (Freud, 1930/1996, p. 146)

Nietzsche também denuncia nossos mais altos valores e ideais por meio da consideração que tece acerca do ideal ascético. Nela, o próprio ideal asceta é exposto como engendrador de um sofrimento, no mínimo, do calibre daquele que havia proposto aplacar, tendo sua dimensão mais crua e cruel evidenciada:

a vontade humana de se achar culpado e condenado a um ponto inexplicável, sua vontade de ver-se castigado sem que o castigo jamais possa tornar-se equivalente à falta, sua vontade de infectar e envenenar o fundamento último das coisas graças ao problema do castigo e da falta, a fim de fechar de uma vez por todas a saída que conduz para fora desse labirinto de "idéias fixas", sua vontade de erigir um ideal, aquele de "Deus santo", e, diante dele, ter a certeza palpável de sua absoluta indignidade. (Nietzsche, 1887/2007, p. 89, itálicos do autor)

Ainda por meio do ideal ascético, é exposto o engodo do discurso científico, sobre o qual Freud também se debruça em seu texto. Contrariando a expectativa vigente de que a ciência seria rival e oposta ao ideal ascético, Nietzsche apresenta-a, ao invés disso, como um dos mais refinados e tardios desenvolvimentos desse ideal. Isso se deve, grosso modo, justamente à vontade de ficar no factual do discurso científico e a renúncia geral à interpretação, ou seja, à crença desses incrédulos na verdade.

essa vontade de verdade incondicional, é a crença no próprio ideal ascético, embora sob a forma de seu imperativo inconsciente - que não nos iludamos a respeito - é a crença num valor metafísico, num valor em si da verdade, valor que o ideal ascético garante e consagra (esse valor se mantém e se expande com esse ideal). (Nietzsche, 1887/ 2007, p. 144, itálicos do autor)

Seja através da crítica à lógica civilizatória engendradora de mal-estar ou da crítica à moral cristã (em boa medida, seio desse mesmo mal-estar), nossos autores apontam para uma direção comum, cuja principal marca é a do ideal (civilizatório ou ascético).

Freud é claro ao dizer que as restrições à vida sexual e o ideal humanitário a ele contemporâneos não são, necessariamente, tendências do desenvolvimento impossíveis de serem suprimidas, mas que, pelo contrário, tais tendências vêm e vão na história da humanidade - a moral cristã atual é apenas uma interpretação possível, diria Nietzsche. Todavia, diante desta lacuna de infinitas possibilidades, Freud nada diz, senão que não tem coragem de se erguer perante seus semelhantes como um profeta, curvando-se ante a censura de que não lhes pode oferecer consolo algum.

A lacuna deixada por Freud foi e vem sendo interpretada de diversas maneiras. Em nossa leitura, consideramos que o fato de Freud dirigir censuras ao imperativo superegoico, opor-se aos ideais até então presentes e não apontar um substituto constitui, por si só, uma baliza ética para a psicanálise, baliza cuja orientação é a da vontade de uma ética avessa aos ideais (e, especificamente sob esse ponto de vista, a vontade de Nietzsche de quebra da verdade da moral cristã e de seu ideal ascético não soa tão distante da psicanálise); uma ética que, diante do "mal", não recua em direção ao "bem" - e se "mau é tudo aquilo que, com a perda do amor, nos faz sentir ameaçados" (Freud, 1930/1996, p. 128), estamos no terreno de uma ética do desamparo.

Quando, no início do trabalho, insistimos no caráter interpretativo do pensamento freudiano, tínhamos em mente marcar aquilo que entendemos como uma importante característica de sua postura: mesmo diante de um fenômeno de fundo clínico há anos entendido pela psicanálise (e de certa forma comprovado) - o desenvolvimento egoico -, Freud, em vez de demonstrar, se propõe a construir. Vemos aqui um indício da ética freudiana que permite e mantém uma lacuna em si para que seja possível a interpretação do outro, com tudo aquilo que uma interpretação implica.

 

REFERÊNCIAS

Assoun, P-L. (2009). Freud et Nietzsche. Paris: PUF.         [ Links ]

Foucault, M. (1980). Nietzsche, Freud e Marx. Porto, Portugal: Anagrama.         [ Links ]

Foucault, M. (2009). A ordem do discurso (18a ed.). São Paulo: Loyola.         [ Links ]

Freud, S. (1996). O mal-estar na civilização. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 21, pp. 65-148). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1930)        [ Links ]

Mariguela, M. A. (2001). Freud e Nietzsche: ontogênese e filogênese. Impulso, 12(28),105-113.         [ Links ]

Nietzsche, F. W. (2007). A genealogia da moral (A. C. Braga, trad.). São Paulo: Escala. (Trabalho original publicado em 1887)        [ Links ]

Vieira da Silva, C. (2000). Nietzsche, Freud e o problema da cultura. Cadernos Nietzsche, 8,43-54.         [ Links ]

 

NOTAS

1 Expressamos o sincero agradecimento ao Prof. Dr. Vinicius Anciães Darriba pela atenciosa revisão do manuscrito. Agradecemos também à Fundação Araucária pelo incentivo à pesquisa.

2 Vide P.-L. Assoun(2009) e M. Foucault (1980), para citar apenas alguns.

3 Pois, segundo Foucault (2009, pp. 25-6), "O comentário conjura o acaso do discurso fazendo-lhe sua parte: permite-lhe dizer algo além do texto mesmo, mas com a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado.... O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta".

 

 

Recebido em junho/2011.
Aceito em dezembro/2011.