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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.18 no.1 São Paulo abr. 2013

 

EXPERIÊNCIA INSTITUCIONAL

 

Família, violência e o trabalho na rede: possibilidades e desafios

 

Family, violence and network: possibilities and challenges

 

Familia, violencia y el trabajo en la red: posibilidades y desafíos

 

 

Nathalia Teixeira Caldas CampanaI; Maria Carolina Rissoni AnderyII; Isabel da Silva Kahn MarinIII

IPsicóloga. Mestranda em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), São Paulo, SP, Brasil. Av. Macuco, 726/1602 04523-001 – São Paulo – SP – Brasil. nacampana@gmail.com
IIPsicóloga e Assistente Social. Mestranda do Programa de Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, SP, Brasil. Rua Vergueiro, 1421/1110 04101-000 – São Paulo – SP – Brasil. carolandery@gmail.com
IIIPsicóloga e Psicanalista. Professora, pesquisadora e supervisora clínica/institucional do Curso de Psicologia da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, São Paulo, SP, Brasil. Rua Capote Valente, 439/113 05409-001 – São Paulo – SP – Brasil. belkahn@gmail.com

 

 


RESUMO

Este trabalho propõe uma discussão a respeito da necessidade de construir e trabalhar na rede em casos que apresentam dinâmicas violentas. Dado que a rede só pode ser construída no caso a caso, serão apresentados dois atendimentos clínicos: o de uma família e o de uma criança, com suas respectivas discussões e encaminhamentos. Destacamos que, nestes casos, o trabalho em rede foi fundamental para a evolução do tratamento. Porém, apesar da relevância do tema, desafios se impõem.

Descritores: atendimento clínico; rede; violência.


ABSTRACT

This article proposes a discussion about the necessity of building and working on a network in cases involving violence. This network can only be constructed case by case, and we will present two clinical examples – one of them with a family and the other one with a child – and their corresponding discussions and referrals. We emphasize that, in these cases, networking was the key for the progress. Despite of the relevance of the topic, there are some challenges we have to deal with.

Index terms: clinical treatment; network; violence.


RESUMEN

Este trabajo propone una discusión sobre la necesidad de construir y trabajar en red en casos que presentan dinámicas violentas. Dado que la red solo puede construirse caso a caso, se presentarán dos casos clínicos: uno de una familia y otro de un niño, y sus respectivas discusiones y direccionamientos. Destacamos que el trabajo en red fue fundamental para la evolución de estos casos. Sin embargo, a pesar de la relevancia del tema, desafíos se imponen.

Palabras clave: atención clínica; red; violencia.


 

 

1. Introdução

Este trabalho é o resultado de dois anos de atendimento e discussões realizadas no Aprimoramento Clínico Institucional de Casal e Família, oferecido pela Clínica Psicológica Ana Maria Popovic, da PUC-SP, sob supervisão da Profa. Dra. Isabel Kahn Marin. Ao longo dos dois últimos anos, observamos um aumento na demanda de terapia familiar em casos que envolviam violência física e/ ou psicológica. Diante disso, perguntávamo-nos: será que a violência vem aumentando ou as famílias passaram a procurar ajuda? Seja qual for a causa, fato é que o grupo de supervisão era convocado a atender essa demanda.

Montagna (2004) afirma que atualmente vivemos uma epidemia de violência e que esta é, por excelência, um tema multidisciplinar. De fato, as famílias atendidas por nós estavam inseridas em outros contextos profissionais que também se ocupavam do caso (tratamentos individuais, Centros de Atenção Psicossocial [CAPS], Sistema Judiciário e escola). Assim, configurou-se para nós outra necessidade: a de tecer uma rede profissional e trabalhar nela.

Canavez e Brandão (2009) afirmam que a articulação da rede de profissionais é um campo relativamente novo e que a legislação, que concretiza ações nesta área, data da última década. A revisão da literatura, por sua vez, revela uma escassez de publicações sobre o tema. No entanto, algumas iniciativas na direção de discutir a necessidade e eficácia deste tipo de trabalho já podem ser encontradas, como a revista eletrônica CliniCAPS, que contém artigos escritos segundo o paradigma de Carlos Viganò, da Construção do Caso Clínico, em continuidade da proposta de Di Ciaccia, da chamada clínica feita por muitos.

O trabalho na rede tem como objetivo possibilitar intervenções mais amplas, que levem em conta o conhecimento de diversos profissionais, mas, segundo Viganò (2007), a rede por si só não cura ninguém. Assim, Canavez e Brandão (2009) destacam que a posição técnica do profissional não deve coincidir com o saber técnico, de modo que seja possível responsabilizar o sujeito por sua posição sem tratá-lo como objeto de investigação. Segundo Teixeira (2007), a imagem da rede remete à ideia de uma realidade que deve ser pensada mais pela ligação do que pela substância de seus elementos. Nesta perspectiva, a rede seria uma abstração virtual que só se torna real quando posta em ação, em seu uso concreto na experiência, permitindo-nos passar do universal para o singular. Desta forma, pensar e trabalhar na rede significa fazê-lo no caso a caso.

 

2. Tecendo a rede: fios, nós, laços e amarrações

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança,
Todo mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
(Luiz Vaz de Camões)

A família Silva, composta por João (13 anos), Ana e José (pais), foi atendida em coterapia por dois anos e meio na Clínica Psicológica. Quando iniciaram a terapia familiar, João já participava de Oficinas Terapêuticas1 e era atendido individualmente na mesma Clínica. O encaminhamento para terapia familiar foi feito pelos profissionais responsáveis pelo atendimento de João, pois observaram que a dinâmica familiar era marcada por pouca discriminação entre os membros. A rotina de João se restringia aos horários de tratamento e a vida dos pais girava em torno das dificuldades do filho. Apesar de eles trabalharem como autônomos, não apresentavam nenhum outro interesse que não fosse o menino. Desta forma, limitavam-se ao papel de pais de uma "criança problema".

Desde os 8 meses, João sofria constantes crises convulsivas. Devido às crises, foi acompanhado por médicos neurologistas e, aos 12 anos, passou por uma cirurgia neurológica. Os pais não sabiam informar ao certo o que havia sido essa cirurgia, mas diziam que João mudou radicalmente após o procedimento, que estava mais esperto e comunicativo. O tratamento médico era feito em um hospital de referência e o contato com os profissionais de lá ocorria por meio da neurologista da Clínica-Escola. Porém, quando essa médica encerrou seu trabalho na Clínica, o contato com os neurologistas do Hospital se perdeu, o que se configurou como um furo na rede. Aos 13 anos, João apresentava um atraso significativo em seu desenvolvimento cognitivo e emocional. Apesar de os pais reconhecerem mudanças no filho, manifestavam preocupação com o fato de ele se "fechar no próprio mundo", não encarar as pessoas, rir sem motivo aparente e não frequentar escola com regularidade. A mãe detinha todo o saber a respeito do filho – inclusive, se autorizava a medicá-lo da maneira que queria; por outro lado, o pai se autorizava pouco, parecia enfraquecido e ausente na relação com João e com a esposa.

O início da terapia familiar foi marcado por cenas de violência que ocorriam no aqui-agora das sessões. João batia e cuspia nos pais e depois perguntava: "por que bateu?" Os pais, por sua vez, não reagiam às convocações do menino – defendiam-se quando os socos eram fortes, mas pareciam não se incomodar com os cuspes que levavam. Segundo Viganò (2007, p. 6),

o problema do psicótico é que sua produção simbólica não é reconhecida pelo Outro. É propriamente por isso que seus gestos tornam-se repetitivos, não acabam mais. A nós parece que não acabarão, esperamos que ele canse, mas não acabam porque não encontra o outro que o reconheça.

Assim, a violência atuada por João constituiu-se como foco de trabalho, pois percebemos que esta era a forma que ele encontrava para se comunicar, ou seja, não eram tapas e cuspes aleatórios e indiscriminados – ele sempre demonstrava que havia uma intenção com esse comportamento. Era possível levantar a hipótese de que a violência era usada como forma de expressar recusa e tentativa de evocar a força do pai, do masculino, que se encontrava enfraquecido naquele contexto familiar.

Parte importante da terapia foi reconstruir com a família a história do casal e a de João. As histórias se repetiam, mas nunca da mesma forma. Assim, a oferta do espaço terapêutico para que as vivências fossem relatadas era uma oportunidade de reconstrução e novas atribuições de sentido. Aos poucos, o pai foi se apropriando do espaço terapêutico, dizendo como entendia e sentia os acontecimentos; além disso, passou a exercer um papel mais ativo no dia a dia familiar.

Ao longo do processo, os profissionais que compunham a rede de atendimento se reuniram para discutir a evolução do projeto terapêutico proposto e intervenções necessárias. Utilizando a metáfora do caleidoscópio – em que as mesmas peças formam diferentes imagens dependendo do movimento executado –, podemos dizer que cada profissional trabalhava em seu setting e trazia percepções particulares. Desta forma, eram discussões que enriqueciam a compreensão do caso, mas também geravam dúvidas, discordâncias. Nesta direção, Figueiredo (2005) afirma que

não se pode trabalhar sozinho, isoladamente, mas a responsabilidade do ato se situa no um a um. O que se partilha é o que se recolhe de cada caso, a cada intervenção, para se tecer um saber. Como mais uma indicação da psicanálise, o que se recolhe são os elementos fornecidos pelo sujeito, como pistas para a direção do tratamento, para o chamado "projeto terapêutico". (p. 45, itálico da autora)

Concomitantemente ao início da terapia familiar, ocorreu uma mudança na forma com que João investia em seu espaço terapêutico individual. A terapeuta responsável por este atendimento observou, ao longo do ano, que o menino já não queria mais entrar na sala e preferia ficar andando pela clínica, cumprimentando as pessoas que passavam, em busca de contato. Ao mesmo tempo, o projeto das Oficinas Terapêuticas estava atravessando um período de reestruturação e, muitas vezes, João era o único a comparecer no dia do atendimento. A equipe se deu conta do excesso de tratamento ao qual João estava sendo submetido e da pouca convivência que tinha com crianças de sua idade em espaços que não fossem os de tratamento; assim, decidiu-se que o atendimento individual se encerraria e, caso fosse percebida a necessidade, poderia ser retomado. A equipe das oficinas ficou responsável por investir no espaço escolar que ele frequentava apenas três vezes por semana, por menos de duas horas.

No ano seguinte, foram feitas três reuniões de rede. Discutiu-se a respeito da necessidade de seguir investindo na escola, pois, apesar dos ganhos, a permanência de João nesse espaço ainda era frágil e os pais precisavam se implicar na luta pela escolarização do filho. João demonstrava cada vez mais claramente sua vontade de "ir para o mundo" – por exemplo, não descia do ônibus quando chegava à clínica; preferia passear, ir até o ponto final e voltar. Por esta razão, discutiu-se a possibilidade de se iniciar um acompanhamento terapêutico. Apesar de os profissionais estarem de acordo com as intervenções que eram necessárias, discordavam a respeito de como isso deveria ser feito, o que travava as discussões e exigia tempo para que cada um digerisse e repensasse suas posições.

Aos poucos, foi possível observar mudanças tanto na qualidade da interação entre os membros da família quanto nos papéis que cada um ocupava na dinâmica. O desamparo e a falta de lugar encontraram espaço para serem pensados no decorrer da análise, a violência física desapareceu por completo e os pais passaram a ter uma visão mais integrada do filho, reconhecendo suas limitações, mas também seus recursos. A título de exemplificação, o pai, que trabalhava como mecânico, relatou nas sessões que o filho o ajudava a recolocar o banco do carro após um conserto. No atendimento familiar, as questões do casal passaram a ganhar evidência: podiam falar sobre trabalho, projetos, mágoas e dúvidas.

No início do terceiro ano de atendimento, houve mais uma reunião de rede para pensar o seguimento do trabalho. As terapeutas de família estavam encerrando suas atividades na Clínica-Escola e pretendiam encaminhar apenas os pais para psicoterapia de casal. Esse encaminhamento se justificava, pois cada vez mais eram as questões do casal que tomavam as sessões e, quando isso ocorria, o menino se retirava espontaneamente da sala. João seguiria participando do projeto Oficinas, com ênfase na inclusão escolar, mas também foi encaminhado para um CAPS Infantil, onde poderia estar em contato com outras crianças e teria a oportunidade de buscar novas formas de convivência e arranjos relacionais.

 

3. Assentamento:2 o ajustamento das peças de uma construção

Quando eu morrer, que me enterrem na beira do chapadão
– contente com minha terra
cansado de tanta guerra
crescido de coração
(Guimarães Rosa)

Marcos iniciou atendimento individual em 2007, a pedido da escola, por apresentar baixo rendimento escolar, comportamentos de "autoagressão" e pela suspeita da direção de que ele sofria violência física em casa. Naquela ocasião, a mãe já não trabalhava mais e foi diagnosticada como paciente psiquiátrica; por esta razão, é atendida até hoje em um CAPS. O pai era alcoólico, mas sustentava a família trabalhando no comércio. A escola recebia estagiários que se propunham a atender as crianças individualmente no próprio espaço escolar. Marcos foi atendido nesse contexto durante dois anos e também foi encaminhado para terapia familiar na Clínica Psicológica da PUC. Com o término de seu estágio, a psicóloga responsável pelo atendimento individual concluiu que o paciente deveria seguir em terapia, mas fora da escola, onde já estava estigmatizado pela direção e isolado dos colegas.

Em 2010, quando iniciou o atendimento individual na Clínica Psicológica, Marcos estava com 11 anos. Ao longo da entrevista inicial, apareceram as queixas de constipação seguidas de encoprese, baixo rendimento escolar, agressividade e alucinações. Segundo os pais, Marcos sofreu negligência quando bebê por parte da cuidadora, chegando a cair do berço e ficar desacordado. Quatro anos depois, nasceu a segunda filha do casal – a mãe menciona depressão pós-parto e também diz que Marcos tentou matar a irmã; por isso, decidiu que os filhos deveriam ser cuidados durante o dia por pessoas diferentes. Ainda segundo a mãe, a família da segunda cuidadora de seu filho brigava com frequência e Marcos presenciava as discussões. Os pais relacionam a queda que o filho sofreu ainda bebê e as brigas que presenciou aos 4 anos como fatos que influenciaram seu comportamento agressivo atual.

Fragilizados emocionalmente, os pais ofereciam pouca sustentação no que se refere aos cuidados emocionais com os filhos; quando se sentiam impotentes no contato com Marcos, acabavam por bater nele. Mesmo a mãe dizendo que também bate em Marcos, essa queixa sempre recaiu sobre o pai, que pouco frequentou os atendimentos de família no ano de 2009, justificando sua ausência por questões de trabalho. Segundo Marin (1988/1999), a família, a mãe que abandona ou o pai que bebe não são, necessariamente, o mal: "A família desestruturada é fruto de todo um sistema que explica um sistema familiar" (p. 15). Desta forma, ainda segundo a autora, os pareceres de comprometimento emocional, limítrofe, família inapta são rótulos que explicam tudo e absolvem todos da responsabilidade social e da necessidade de buscar alternativas.

Em 2010, a rede composta por psicólogos da Clínica e profissionais da Escola e do CAPS fizeram uma denúncia por maus-tratos à criança na Vara da Infância e da Juventude. Mas, apesar da decisão comum, as motivações de cada profissional da rede em assumir esta posição eram opostas: a equipe do CAPS insistia na necessidade de retirar o pai de cena e vitimizar a mãe; os psicólogos da Clínica propunham uma avaliação do papel do pai na família; e a escola ficava dividida, sem assumir uma posição. Esta situação tornava as reuniões de discussão do caso tensionadas por um frequente mal-estar. Freitas e Andrade (2009) apontam para a necessidade de novas construções que os casos impõem diariamente – os impasses se apresentam a todo o momento, fazendo do trabalho uma aposta sem garantias. Nesse caso, por exemplo, um dos efeitos da denúncia foi problematizar para a família a situação de violência existente e, por ordem judicial, o pai passou a comparecer aos atendimentos familiares.

No primeiro contato de Marcos com a terapeuta, ele se apresentou como um "menino mau", que não aprendia na escola, via cobras saindo das árvores, rosto de macaco nos homens, e por isso deveria ficar isolado das "pessoas boas". Apesar da aparente convicção com que se atribuía essas características, com ajuda da terapeuta, o paciente passou a questionar o lugar que ocupava e a se perguntar se existiriam novas possibilidades para ele.

A riqueza da produção gráfica e imaginativa de Marcos demonstrava que ele tinha competência cognitiva e que, portanto, não era essa que justificava seu baixo rendimento escolar. Porém, mesmo diante de tantas competências e potencialidades, era preciso acolher as dificuldades e acompanhar o paciente nesse processo.

O que no início da terapia se apresentava como um destino selado mudou, pôde ser questionado. Marcos já não precisava afirmar que, quando crescesse, iria para o exército sem dúvida alguma; até hoje ele diz que esta é uma opção, mas que também pode tentar ser jogador de futebol ou ir para a faculdade. Além de descobrir novos aspectos sobre si mesmo, também apresentou para a terapeuta novas visões a respeito do pai – visto até então como um homem que se resumia a ser violento.

Essas construções de Marcos foram fundamentais para nortear o trabalho na rede. Segundo Teixeira (2007), os modos de solução encontrados pelo próprio sujeito em atendimento, assim como o saber que ele próprio engendrou, devem ser o principal vetor de orientação a ser utilizado nos trabalhos em equipe e sempre uma construção provisória, sujeita aos limites do material que já emergiu.

A dificuldade do casal em exercer a parentalidade era evidente e, muitas vezes, eram as crianças que se sentiam responsáveis por zelar pelos pais. A terapeuta os convocou ao longo do processo para conversar a respeito das potencialidades e dificuldades de Marcos e pensar com eles como poderiam ajudar o filho. Segundo Romagnoli (2004), em vez de culpabilizar os pais, é mais proveitoso suscitar neles um papel ativo na construção de novas formas de convivência com a criança. Nesta perspectiva, foi importante que a terapeuta reconhecesse as competências da mãe para fortalecê-la em sua função materna, ao mesmo tempo que a convocava em situações nas quais ainda não era capaz de assumir seu papel. Outro fator que também parecia fortalecê-la em suas competências era falar do potencial de Marcos; o pai, porém, não se fortalecia diante disso – pelo contrário, sentia-se impotente.

Segundo a diretora da escola, Marcos tinha poucos amigos, isolava-se no recreio e tinha mais facilidade para se relacionar com crianças que também apresentassem algum tipo de dificuldade. Em 2010, ele repetiu a 4ª série nesta escola em que estudava desde pequeno, pois, segundo a professora, ele era distraído e desinteressado na sala de aula.

Na escola, ocupava o lugar do aluno com dificuldades familiares e por isso não aprendia, não tinha amigos e era agressivo. Em reunião com a diretora e a orientadora pedagógica, foi possível reconhecer que Marcos é inteligente e, apesar das dificuldades emocionais, tem recursos para aprender. Episódios em que ele reagia com agressividade e desrespeito foram contextualizados pela própria diretora durante a reunião de rede e ela pôde entender esse comportamento do menino como reação a uma provocação; desta forma, ele deixou de ser visto como louco [sic, diretora] que xinga sem razão. Além disso, foi aberta a discussão sobre a necessidade de Marcos passar para a 5ª série. A diretora resistia a aprová-lo, pois isto implicava mudança de escola e ela considerava que precisava proteger Marcos e sua família, mantendo-os sob sua vigilância.

A forma como a escola via o menino se transformou tão rapidamente que é possível pensar que os educadores já haviam observado o que foi dito pela psicóloga e, a partir de então, sentiram-se autorizados a adotar outra postura com o aluno. No final de 2010, não só ele pôde passar para a quinta série como também escreveu uma redação muito bem avaliada na prova do SARESP.3

 

4. Considerações finais

Os atendimentos que foram relatados destacam a importância de os profissionais buscarem um papel ativo dos participantes do processo terapêutico para construção e intervenções na rede. Como pode ser visto, as decisões foram tomadas levando-se em conta o que era observado nos atendimentos e o que era pensado, discutido, a partir das percepções dos profissionais, uma vez que o trabalho na rede é feito entre o que é da ordem do sujeito e o que é da ordem do contexto das instituições envolvidas (CAPS, Clínica-Escola Psicológica e Escola), com o desafio de não ceder à tensão e ao ideal, pois "a responsabilidade do ato de cada um também é partilhável e deve ser retomada em determinado momento do trabalho coletivo" (Figueiredo, 2005, p. 45).

Neste sentido, trabalhar na rede implica uma constante construção, em que não existem lugares previamente definidos, mas, ao mesmo tempo, os profissionais não devem perder de vista sua responsabilidade nessa construção e na escuta dos sujeitos. Canavez e Brandão (2009) afirmam que a escuta deve ser o fio norteador da prática, embora esta possa ir além dos limites do ambulatório. Além dessa perspectiva, Viganò (2007) enfatiza que é necessário ter cuidado para que o trabalho da rede não caia no automatismo e não impeça o paciente de fazer dela uma alavanca pela sua própria criatividade.

A articulação de profissionais de áreas diversas, que funcionam por lógicas diferentes, não se dá sem impasses. Assim, é preciso estar alerta para que, em vez de rede, não se forme um emaranhado, em que o sujeito não se insere, mas se perde (Canavez & Brandão, 2009).

Dolto (1995/2006), em palestra conferida para um público de trabalhadores sociais, afirmou que o trabalho em equipe necessita que cada um aprofunde o saber relativo a seu ofício, sabendo até onde vão seus poderes e deveres, mas que é comum que, dentro das equipes, um profissional invada o terreno do outro, critique o trabalho, ou mesmo a pessoa e seu caráter, num ridículo jogo da verdade. É problemático o fato de cada profissional reivindicar o direito de seu narcisismo e defender sua maneira pessoal de desempenhar seu papel junto aos pacientes, de que todos são responsáveis.

Segundo Gomes e Levy (2009), pesquisas brasileiras acerca do tema família e casal vêm sendo desenvolvidas por estudiosos das principais universidades do país, o que denota uma tendência em atribuir à universidade o lugar e o status de organizar e formar um saber científico sobre essa clínica específica. No que se refere ao trabalho na rede, publicações se fazem necessárias, pois, como afirma Teixeira (2007), um procedimento cujo efeito só pode ser verificado em uma experiência singular está longe de ser considerado científico.

A escassez de material teórico e a dificuldade em colocar o trabalho de rede em prática ficaram evidentes a partir da pesquisa bibliográfica realizada sobre o tema. O trabalho em equipe dos diversos profissionais foi pensado e executado a cada reunião, e, neste sentido, a supervisão clínica das terapeutas se constituiu como espaço fundamental de reflexão e construção do pensamento clínico que nortearia as intervenções.

Figueiredo (2005) destaca a importância do supervisor quando afirma que este permite a ocorrência de desdobramentos do trabalho, assim como a produção de um registro. Segundo a autora, a supervisão opera como garantia do trabalho e da produção em equipe. Nos casos mencionados, a supervisão deu condições para que fosse possível suportar as diferenças, as contradições, as individualidades, as reivindicações e as desconfianças que existem no relacionamento entre os profissionais, e entre eles e as pessoas atendidas. Como nos diz Marin (1988/1999), é preciso "conscientizar os trabalhadores das instituições a compreenderem a natureza das contradições implícitas no seu trabalho, para terem coragem de suportar a origem da dor do outro" (p. 16).

 

REFERÊNCIAS

Canavez, F. & Brandão Jr., P. M. C. (2009). Um caso que fala para a rede: a escuta analítica na articulação da assistência em saúde mental. Mental, 7(12), 139-152. Recuperado em 22 de abril, 2011, de PePSIC (Periódicos Eletrônicos em Psicologia): http://pepsic.bvsalud.org        [ Links ]

Dolto, F. (2006). Destinos de crianças (E. Brandão, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1995)        [ Links ]

Freitas, M. C. A. & Andrade, R. D. R. (2009). Fio da navalha: a construção de uma rede. CliniCAPS, 8. Recuperado em 22 de abril, 2011, de CliniCAPS: Impasses da clínica (Espaço clínico de interlocução e construção de referências para reflexões sobre o Modelo de Atenção a Saúde Mental de Minas Gerais – CAPS): http://www.clinicaps.com.br        [ Links ]

Figueiredo, A. C. (2005). Uma proposta da psicanálise para o trabalho em equipe na atenção psicossocial. Mental, 3(5), 43-55. Recuperado em 1º de abril, 2012, de PePSIC (Periódicos Eletrônicos em Psicologia): http://pepsic.bvsalud.org        [ Links ]

Gomes, I. C. & Levy, L. (2009). Psicanálise de família e casal: principais referenciais teóricos e perspectivas brasileiras. Aletheia, 29, 151-160. Recuperado em 22 de abril, 2011, de PePSIC (Periódicos Eletrônicos em Psicologia): http://pepsic.bvsalud.org        [ Links ]

Marin, I. S. K. (1999). Febem, família e identidade: o lugar do outro. São Paulo: Escuta. (Trabalho original publicado em 1988)        [ Links ]

Montagna, P. (2004). Violência, psicanálise e interdisciplinaridade. In P. C. Sandler (Org.), Leituras psicanalíticas da violência (pp. 101-118). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Romagnoli, R. C. (2004). Trabalhando com famílias na rede de Saúde Mental: dificuldades e desafios. Pulsional, 17(180), 71-80.         [ Links ]

Teixeira, A. M. R. (2007). Tecendo a rede: a psicanálise na saúde mental. CliniCAPS, 1. Recuperado em 22 de abril, 2011, de CliniCAPS: Impasses da clínica (Espaço clínico de interlocução e construção de referências para reflexões sobre o Modelo de Atenção a Saúde Mental de Minas Gerais – CAPS): http://www.clinicaps.com.br        [ Links ]

Viganò, C. (2007). Trabalho em equipe na rede: a enfermeira e a instituição parceira. CliniCAPS, 3. Recuperado em 22 de abril, 2011, de CliniCAPS: Impasses da clínica (Espaço clínico de interlocução e construção de referências para reflexões sobre o Modelo de Atenção a Saúde Mental de Minas Gerais – CAPS): http://www.clinicaps.com.br        [ Links ]

 

NOTAS

1 As atividades oferecidas pelo projeto das Oficinas Terapêuticas sofreram modificações ao longo dos anos de 2009 e 2010, e hoje ele é chamado de Projeto Giramundo. Atende casos graves, particularmente, crianças e adolescentes com diagnósticos de psicose ou autismo. Atualmente a proposta de trabalho consiste em acolhimento de casos novos, grupo de pais, oficinas, acompanhamento terapêutico, participação na construção de projetos terapêuticos junto aos parceiros da Clínica Psicológica e da rede municipal de saúde.

2 Título de uma música de Chico Buarque de Holanda, do álbum As Cidades (1999).

3 O Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (SARESP) é uma avaliação externa em larga escala da Educação Básica, aplicada a cada ano, desde 1996, pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. Sua finalidade é produzir um diagnóstico da situação da escolaridade básica na rede pública de ensino paulista, visando a orientar os gestores do ensino no monitoramento das políticas voltadas para a melhoria da qualidade educacional. O SARESP está aberto à participação das redes municipais e escolas particulares por meio de adesão.

 

 

Recebido em julho/2012.
Aceito em setembro/2012.