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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.18 no.1 São Paulo abr. 2013

 

RESENHA

 

 

Marcia Regina Fogaça

Psicanalista, doutora em Educação, membro do Laboratório de Estudos e Pesquisas Psicanalíticas e Educacionais sobre a Infância (LEPSI), docente da Faculdade de Itapecerica da Serra (FIT), São Paulo, SP, Brasil. Estradas dos Maciéis, 198 06854-120 – Itapecerica da Serra – SP – Brasil. mfogaca@usp.br

 

 

Batista, Douglas Emiliano

O declínio da transmissão na educação: notas psicanalíticas
São Paulo: Annablume; FAPESP, 2012, 230 p.

As notas psicanalíticas de Douglas Emiliano Batista se constituem em torno de um eixo central, como o aponta em seu título, que é a questão do declínio da transmissão na educação. A partir de análises muito bem estabelecidas e relações muito bem escolhidas na contextualização da questão no interior da questão maior que é a modernidade, tais notas nos conduzem a reflexões que ampliam seu alcance. No texto de Batista, cuja formação é em Filosofia, Leandro de Lajonquière identifica, na "Apresentação", o movimento que parte dos desdobramentos da leitura feita sobre a tese freudiana – de que Leonardo da Vinci teria sido um precursor do homem moderno, de sua maneira de lidar com a tradição – que levou o autor a se confrontar com Freud, ou seja, com a psicanálise. O encontro com o Leonardo de Freud conduziu ao aprofundamento das teses psicanalíticas que o guiaram no exame daquilo que constitui seu objeto.

Na "Introdução", Batista indica aos interessados especificamente em "questões escolares" que eles podem iniciar sua leitura no capítulo III. Pode-se concordar que haja uma certa independência entre os capítulos iniciais e o terceiro capítulo; porém, de nossa parte, avisamos que aqueles que seguirem a sugestão do autor vão perder uma discussão riquíssima – no primeiro capítulo – que, em muitos pontos, faz avançar o debate sobre a questão da modernidade naquilo que esta incide e faz refletir quanto ao estatuto da transmissão que pressupõe e implica a dialética entre as gerações – ponto essencial de qualquer discussão sobre questões educacionais e escolares. Vão perder também a leitura do autor sobre o estudo do "caso" Leonardo apresentado por Freud, que em muito contribui para a elucidação da subjetividade moderna, marcada pela secularização da cultura ocidental, algo que traz em seu bojo a constituição de uma nova modalidade de laço social, que se funda no colocar em questão a autoridade – em última instância, em colocar a igualdade na ordem do dia. Tampouco se pode prescindir dessas ideias para se pensar questões educacionais e escolares em nossos dias.

Um ponto que merece destaque nas ideias desenvolvidas por Batista é quanto a seu posicionamento em relação à secularização – posicionamento já marcado por seu encontro com a psicanálise, na medida em que seu estudo se pauta na questão do pai tal como essa teoria a toma –, cujo papel determinante no chamado declínio da transmissão em educação é de consenso geral. Porém, o autor não concorda com a opinião dominante de que tal processo seja pivô do "declínio da imago social do pai. Declínio esse que, por sua vez, seria comprometedor da função paterna, e graças ao que teria então se seguido, na outra cena, o recrudescimento dos dispositivos narcísicos de subjetivação" (p. 21) que teriam, por conseguinte, problematizado gravemente a diferenciação simbólica entre gerações, que, por sua vez ainda, teria provocado um "relaxamento" do laço social cujas consequências só poderiam ser desastrosas. Diversamente, sua linha de pensamento o leva a afirmar que o laço social constituído na modernidade fez surgir uma oportunidade de "sobrelevação" da esfera pública que veio a ressignificar a questão do compartilhamento da responsabilidade humana pelo mundo, de onde se pode pensar a política como responsabilidade sobre o espaço social e a educação em relação à história e ao estabelecimento da diferença geracional. Aqui podemos perceber a influência marcante de Hannah Arendt no pensamento de Batista. Embora componha suas teses com outros pensadores e filósofos – Habermas, Benjamin... –, podemos identificar em Arendt um ponto de ancoragem do pensar a modernidade enquanto tempo localizado entre o passado e o futuro, assim como a responsabilidade compartida pelo mundo enquanto possível a partir da igualdade que então se coloca.

Contudo, falar da modernidade no contexto de uma leitura psicanalítica é colocar a questão do desejo na análise. Dessa perspectiva, é sobretudo em Lajonquière que o autor apoia seu pensamento sobre a questão. Assim, a laicização promovida pela modernidade é também abordada em termos de "uma reconfiguração do investimento libidinal em torno do devir humano" (p. 22). O que durante séculos foi creditado à vida eterna passa a ser creditado à posteridade: uma passagem do além para o aquém, ou seja, o futuro começa aqui e agora. Logo, é o futuro na terra, e não mais no céu, que passa a balizar o desejo do homem.

No primeiro capítulo, Batista faz uma análise da constituição da arte moderna laica em relação à questão da emergência da ruptura com a tradição, apontada como característica da época autodenominada moderna – ruptura que caracterizaria tal época como um "novo tempo", localizado entre o "não mais" e o "não ainda", porém, profundamente marcado pela impossibilidade de fundar-se a partir de uma tábula rasa, como pretendeu a Revolução Francesa. Isso quer dizer que o desejo de gestar algo novo e no aquém não produz apenas ruptura, mas também – conforme Lajonquière, citado por Batista – um inventário do passado, um passar a limpo a tradição, uma busca de sentido não contido no passado. A transitoriedade da vida passou a ser vivida como a transitoriedade do momento circunstancial, como despedida do passado paradigmático, como consciência de atualidade. Nas belas artes, tal Baudelaire via Habermas, a atualidade se situa no ponto em que o tempo e a eternidade se cruzam, localização do transitório cujo reconhecimento enquanto "passado autêntico de um presente futuro" é reivindicado pela modernidade. Tal reconhecimento a livraria da trivialidade, da banalidade cujo continuum seria quebrado pela constituição de uma legalidade "não toda" em torno da arte moderna e laica.

Assim, o que poderia ser caracterizado como rebeldia moderna frente à tradição – "fato" possível a partir da tomada de consciência da temporalidade humana enquanto continuum atravessado pela atualidade no encontro do passado com o futuro –, pode ser lido como uma atualização do "sabor do fantasma", tal como o diz Baudelaire. Não há mais passado, nem herança do passado, que possa ocupar o lugar do ato que deve ter lugar no ponto de cruzamento entre o passado e o presente – lugar do pensamento para Arendt. Porém, não há ato, ou seja, não há criação do novo, sem que haja um ponto de ancoragem em experiências passadas. Portanto, pode-se dizer que a modernidade, enquanto tempo que pensa a si mesmo, ao mesmo tempo que produz uma ruptura com a tradição, promove uma dívida em relação ao passado.

A diferença entre passado e tradição – tal como a concebe Arendt – é um ponto importante nas reflexões de Batista, uma vez que se trata de enfatizar que o que está em jogo na ruptura promovida pela modernidade é a tradição e não o passado. Tradição é, nas palavras de Arendt, "o fio que nos guiou com segurança através dos vastos domínios do passado". Tradição diz respeito a respostas fechadas, vindas do passado, que deixaram de ser os fios das condutas e pensamentos humanos, uma vez que a brecha da atualidade aberta à consciência moderna liberou o passado ao pensamento, transmutando-o em possibilidades.

É no marco do recurso ao pensamento, mais que às respostas autorizadas pela tradição, que Freud coloca Leonardo da Vinci como precursor do homem moderno, tese que Batista se propõe a analisar na segunda de suas notas. Uma interessante discussão sobre uma única recordação infantil de Leonardo da Vinci, encontrada entre suas anotações e trabalhada por Freud em seu texto sobre o renascentista, se dá em torno da tradução da palavra nibio, que se refere a uma ave presente naquela recordação. Nibio é traduzida por Freud como sendo "abutre", quando seria corretamente traduzida por "falcão" (milhafre). Em que pese o "erro" de Freud, as conclusões acerca da relação de Leonardo com a autoridade da tradição – que aparece ora como identificação, ora como rebeldia – o configuram como precursor da secularização moderna. A independência investigativa frente à autoridade da Igreja reflete uma margem de liberdade humana que Leonardo ilustra enquanto impossibilidade – no sentido que a psicanálise dá a essa palavra – de plena realização.

A "margem de liberdade que nunca pode ser previamente resolvida", marca do homem moderno que se resume a "gestar no presente um futuro inaudito ... simbolicamente enleado ao passado" (p. 100), é componente da fórmula que produz a invenção do "dispositivo escolar moderno", laico, público e gratuito, cuja finalidade é educar o homem novo dos novos tempos. "As duas fases da escolarização moderna: a religiosa e a secular" são examinadas por Batista com a ajuda de Nóvoa, Narodowski e Lefort. Enquanto Nóvoa defende a ideia de que a passagem da escola religiosa para a laica é marcada muito mais por continuidades do que por rupturas, muito mais por um deslocamento de tutela do que qualquer coisa parecida com o que houve no início dos tempos modernos, nosso autor é mais favorável a destacar as diferenças do que as semelhanças. Dentre as diferenças, aponta que o religioso educa em "nome de uma verdade transcendente e do interesse privado", ao passo que o laico educa em nome de princípios falíveis e revisáveis do interesse público.

Na visão de Batista, Narodowski não se afasta muito de Nóvoa ao afirmar que a escola moderna se dirige à infância constituída pelo afastamento das crianças da vida cotidiana dos adultos, constituindo-se, por sua vez, em tecnologia de formação da infância que resultou numa "pedagogia da intimidação". Batista, por seu lado, pensa que "nem tudo com respeito à vida escolar está pautado apenas nisso" (p. 110) e busca respaldo em Lefort para defender a ideia de que há uma diferença substancial entre as duas escolas e que esta se funda na noção de que somente a escola laica poderia pensar uma educação com fim em si mesma, uma educação sem fins utilitários. Nesse sentido, pode afirmar que a "Era Moderna não veio a lume mediante esquecimento do passado (tal como se tornaria praxe dizer acerca dela), mas sim mediante uma ruptura no tempo que implicou imperiosamente a reconstrução recapitulante das heranças de pretérito com vistas ao estabelecimento da autocompreensão" de si própria.

A noção de infância que passa a se recortar na modernidade e, com Rousseau, a delinear um intenso interesse sobre o corpo infantil, sobre o que é próprio da infância com vistas à educação das crianças, levou a que esse "próprio da infância" fosse "naturalmente" tomado como natural. Porém, o naturalismo de Rousseau é diferente do naturalismo do médicopedagogo Itard, embora ambos estejam dentro do típico do naturalismo moderno. Citando Lajonquière, Batista afirma que, para Rousseau, a natureza era um significante; para Itard, era uma "coisa", que poderia e deveria ter conhecidas suas formas ocultas de manifestação pela observação científica e, uma vez compreendida, ser obtida através de metodologias. O conhecimento científico como mimese da realidade dá substância à pedagogia pela ciência a ponto de se pensar ser possível fazer a natureza operar seus princípios através da aplicação de métodos adequados. Tal ideário, nos lembra o autor no rastro de Lajonquière, nos visita fantasmagoricamente na pedagogia colonizada pela psicologia científica de nossos dias.

Outro aspecto da herança rousseauniana, abordado por Batista em "A escola em nome do pai", diz respeito a um importante problema da educação contemporânea. Na medida em que o pai Rousseau substitui o filho pelo aluno, ele faz erigir a figura do professor como educador substituto do pai. Essa seria uma das formas fortes sob as quais o declínio da autoridade do pai se apresentaria. Na opinião de Narodowski, Rousseau mata os pais, levando a que a educação moderna passe cada vez mais das mãos destes para as da escola. Na opinião de Batista, há mais ambivalência no que diz respeito à questão do pai na Era Moderna do que se costuma admitir. Colocando a questão no contexto de uma discussão mais ampla que se refere às relações entre as esferas pública e privada, questiona a ideia de que a escola estaria totalmente do lado da vigilância e controle do estado e lhe dá um voto de confiança, ou, melhor dizendo, dá à política e ao caráter público da escola um voto de que esta pode "devolver" o filho ao pai, tendo este sido educado em seu nome. Esse voto de confiança se relaciona à leitura de que a obrigatoriedade da escolarização laica, pública e gratuita "representou a contrapartida educacional da revitalização da esfera política nos tempos modernos" (p. 141). Tal revitalização está associada à questão temporal que se coloca aos modernos em termos de atribuição de densidade política ao tempo presente, que, por sua vez, coloca o futuro como tempo forte da humanidade, no sentido de um responsabilizar-se por ele no presente. Porém, essa atitude, própria dos iluministas, muito difere da posição positivista quanto à força do futuro. Assim como Itard poderia ser considerado um herdeiro paradoxal do naturalismo de Rousseau, o Positivismo descartou da herança iluminista o caráter político do presente enquanto tempo de engendramento de um futuro indeterminável. O futuro positivista se engendra pela adequação do presente a um futuro supostamente cognoscível, ou seja, esvazia o presente de seu caráter político, de ação.

No campo educacional, o esvaziamento do caráter político do presente favorece a ideia do desenvolvimento de pretensas potencialidades naturais do indivíduo, ou seja, engendra um futuro cognoscível para as crianças desprezando a importância imprescindível da transmissão de marcas simbólicas e incrementando a desconsideração, a desresponsabilização e a desautorização dos sujeitos frente à transmissão. Isto vai na contramão da experiência narrada por Batista, via Boto, em "Um debate educacional na Revolução Francesa", da qual vale ressaltar o caráter de indeterminabilidade atribuído por Condorcet ao processo educativo responsável pela "regeneração" da teia social, que deveria estar, a todo tempo, aberto a novas significações, em contraste com o projeto pedagógico que se seguiu ao seu, qual seja, o de Lepeletier; este passa a pretender modelar o homem completo e a totalidade dos alunos com o objetivo de perpetuar a revolução, evitando um refluxo social e político. Nesse contexto, a revolução passa a ser a "encarnação da 'verdade última'", da verdade transcendente, perdendo seu caráter de inconclusividade. A escola pública passa a acolher a criança em sua totalidade para prepará-la para o futuro prefigurado pela revolução. Há aí, portanto, a passagem de uma educação com fim em si mesma para uma educação utilitarista. No entanto, a escola onde se aprendia "para a escola e não para a vida" alcançou ainda muitas gerações e Freud foi um dos alunos que se beneficiaram de uma formação humanista, como relata Batista em um breve "Excurso sobre a formação de Freud na escola pública", componente de seu cosmopolitismo.

O século XX foi alcançado por "figurações utilitaristas que ganharam hegemonia pedagógica" (p. 166) e marcaram "A (psico)pedagogia contemporânea ou 'pós-moderna'" por um "declínio da transmissão e ascensão do suposto desenvolvimento natural das potencialidades". Indícios das origens do movimento em direção a tal hegemonia podem ser localizados no utilitarismo do século XIX, adotado pela pedagogia através do sistema monitorial em detrimento do sistema áulico. No sistema monitorial, a docência era dividida entre alunos mais velhos, que sabiam apenas um pouco mais que aqueles que eram ensinados. Os monitores traziam para a docência muito de sua vivência não escolar, fazendo com que sua habilidade em ensinar preponderasse sobre o currículo. Há, portanto, um movimento de tirar a escola de seu território próprio (pré-político, na concepção de Arendt) e incluí-la no social, ou seja, tirar dela a função de formar cidadãos "livres" de verdades transcendentes e últimas, para mergulhála no social cientificista, político, mercadológico, etc. Desta forma, opina o autor, a "função pública da formação cultural" arrefeceu em consonância com o esquecimento da política e, poderíamos dizer, com o esmaecimento das fronteiras entre as esferas do público e do privado característico da ascensão do social, como aponta Arendt. Como consequência, o utilitarismo teria trazido de volta a certeza em detrimento da imprevisibilidade e da abertura do futuro, que novamente se fecha, se torna previsível. Há, como afirma Batista, um esvaziamento do "teor significante da tradição escolar que embasava a formação cultural como fim em si, e de tal maneira que a fórmula 'não aprendemos para a vida e sim para a escola' foi posta finalmente de cabeça para baixo: 'não aprendemos para a escola e sim para a vida'" (p. 171, itálicos do autor). Por outro lado, todo esse movimento é solidário do apagamento da assimetria estrutural entre aquele que ensina e aquele que aprende e, por conseguinte, atrapalha a necessária filiação simbólica.

Nesse sentido, pode parecer incompreensível àqueles que desmerecem o ensino de conteúdos em prol de um ensino voltado quase que exclusivamente às "necessidades" dos alunos que, "mediante o contemporâneo ocaso da transmissão de conteúdos, a escola siga então se descaracterizando crescentemente, e a ponto tal de se tornar, ao cabo de tudo, irremediavelmente 'chata' (muito mais do que se supunha ser as aulas expositivas de antigamente), e isso exatamente porque, ao contrário de alargar os horizontes não escolares de significantes epistêmicos, a escola se limita agora ao papel achatador ou afunilante de fazer apenas desabrochar a rota já profetizada das capacidades ditas naturais ou endógenas dos alunos" (p. 175) – fruto da ascensão da imaginarização naturalista levada a cabo pela (psico)pedagogia e do "esboroamento do real".

As conclusões tiradas por Batista do extenso, minucioso e nada "chato" – nos dois sentidos – estudo que apresenta acerca do declínio da transmissão na educação, desde que os fundamentos da modernidade foram gradativamente sendo deslocados pelos votos de fechamento do espaço aberto por ela ao pensamento e à ação, deixo em suspenso para que o leitor se sinta instigado a lê-las em sua própria letra e, assim, ter o privilégio da experiência dos efeitos significantes de sua transmissão.

 

 

Recebido em outubro/2012.
Aceito em fevereiro/2013.