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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.18 no.2 São Paulo Aug. 2013

 

DOSSIÊ
PSICANÁLISE, EDUCAÇÃO E CINEMA

 

Psicanálise, educação e cinema: diálogos possíveis1

 

Psychoanalysis, education and movies: possible dialogues

 

Psicoanálisis, educación y cine: diálogos posibles

 

 

Roselene GurskiI; Carla VasquezII; Simone MoschenIII

IPsicanalista. Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Professora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil. Rua Ramiro Barcelos, 2600 90035-003 - Porto Alegre - RS - Brasil. roselenegurski@terra.com.br
IIPsicóloga. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil. Rua Ramiro Barcelos, 2600 90035-003 - Porto Alegre - RS - Brasil. k.recuero@gmail.com
IIIPsicanalista. Professora do programa de Pós-Graduação em Educação e em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Porto Alegre, RS, Brasil. Rua Ramiro Barcelos, 2600 90035-003 - Porto Alegre - RS - Brasil. simonemoschen@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo discute as possibilidades colocadas na articulação do tripé psicanálise, educação e cinema. Em meio ao propalado empobrecimento da dimensão da experiência na cultura, o artigo problematiza em que medida a potência polissêmica do cinema poderia ser aproveitada como ferramenta de transmissão do legado da cultura aos sujeitos ainda apartados do acesso aos bens culturais. A partir da articulação da psicanálise com o tema da experiência em Benjamin, o cinema na escola é proposto como um dispositivo de articulação de uma Outra cena, passível de produzir outros e novos sentidos para a educação especial.

Descritores: psicanálise; educação; cinema; educação especial; experiência.


ABSTRACT

This paper discusses the possibilities created by the conjunction of psychoanalysis, education and movies. Under the widespread notion of a smaller dimension of experience in culture, this work discusses to what extent the polysemic power of movies could be used as a tool for the transference of legacy by culture to subjects still restricted from the access to cultural goods. From the conjunction of Psychoanalysis and Benjamin's idea of experience, showing movies in school is proposed as a mechanism for articulating an Other scene, capable of producing new and different meanings for the inclusive education.

Index terms: psychoanalysis; education; movies; special education; experience.


RESUMEN

Este artículo discute las posibilidades de la articulación del trípode psicoanálisis, educación y cine. En medio del tan propagado empobrecimiento de la dimensión de la experiencia en la cultura, el trabajo analiza el grado en que la potencia polisémica del cine se podría aprovechar como una herramienta para transmitir la herencia cultural a los sujetos al margen del acceso a los bienes culturales. Desde la articulación del Psicoanálisis con el tema de la experiencia en Benjamin, se propone el cine en la escuela como un medio para articular una Otra escena, con la posibilidad de producir nuevos sentidos para la educación inclusiva.

Palabras clave: psicoanálisis; educación; cine; educación especial; experiencia.


 

 

Inclusão é o próprio fato de o cinema levar para as telas um filme
em que os atores são Down.

(Alexandre, 18 anos, portador de síndrome de Down, em depoimento
sobre o filme Colegas)

Sabemos que o tema da diversidade e da inclusão tem tomado o protagonismo nas agendas das políticas públicas de saúde e educação nos últimos anos. Em meio a debates acalorados e alguns avanços importantes, chegamos ao início do século XXI com relevantes propostas de inserção e inclusão de meninos e meninas que carregam diferenças no âmbito tanto educacional como social.

Entretanto, mesmo que se identifiquem avanços importantes no que se refere às tentativas legais nos processos de inclusão, a legislação não encerra o debate da sociedade acerca dos temas que lhe são caros. Já não são poucas as narrativas da cultura, especialmente no cinema, que tratam do tema da diferença em seus mais diversos âmbitos. Filmes como o Oitavo dia, Meu filho, meu mundo, Meu pé esquerdo, e os recentíssimos e nacionais Cromossomo 21 e Colegas, entre outros, contam, cada um a seu modo, as nuances do cotidiano dos sujeitos que portam diferenças e daqueles que convivem com eles.

A sétima arte, como ficou conhecido o cinema, além de entretenimento e cultura, tem-se estabelecido como um modo de pensar a vida e de apresentar problematizações referentes e pertinentes ao laço social. Nesse sentido, apesar da juventude histórica que marca o nascimento tanto da psicanálise quanto do cinema, várias já foram as tentativas de fazer com que os dois campos pudessem dialogar. Relação marcada por uma nuance caleidoscópica por excelência, suas experimentações resultaram quase sempre em um interessante dispositivo polissêmico, produzindo outros e novos sentidos. Não por acaso, neste texto, a educação encontra-se tensionada como um dos elementos dessa trindade. Salvem as composições, pois sabemos que não há nada mais integrador para uma criança ocidental do que a pertença a um espaço educacional.

Sabemos, contudo, que a escola já não pode mais ser tomada como a única instituição social a delinear um lugar para esses sujeitos; faz-se necessário um acolhimento genuíno, que possibilite a experiência de vivenciar as dores e as delícias de circular em um mundo organizado por valores fálicos, com todos os efeitos que disso advêm.

Considerando o crescimento significativo de narrativas fílmicas que acolhem, como atores, sujeitos portadores de diferenças e a discussão de suas problematizações nas telas, acreditamos que o cinema tem-se constituído como um desses sítios! Propomos, portanto, pensar de que modo a conexão do tripé psicanálise-educação-cinema pode trazer elementos potentes a sempre tão discutida seara da educação especial.2 Para esse caminho, façamos um primeiro percorrido histórico acerca dos litorais que se estabelecem no encontro da trindade citada.

 

Escola, educação especial e psicanálise: algumas notas e possíveis enlaces

Comecemos historiando, brevemente, a chegada da instituição escolar à vida social e à cultura ocidental. Na atualidade, não cabem dúvidas acerca da função social e psíquica da inserção das crianças em uma instituição escolar. Sabemos que não há nada mais integrador para uma criança de nossa época do que fazer suas aprendizagens numa escola. Se o adulto desempregado é presa fácil de um processo de diluição de traços identitários, tal é a importância do fator laboral, o mesmo podemos dizer da criança e/ou adolescente na sua relação com o espaço escolar (Gurski, 2008).

Contudo, aquilo que hoje se nos apresenta como uma realidade tácita deve ser relativizado à luz de aspectos sócio-históricos. Sabemos que tanto a escolarização formal quanto a própria noção de infância, tal qual as entendemos na atualidade, foram forjadas socialmente, filhas do casamento do Iluminismo com a Modernidade (Ariès, 1981).

Pode-se dizer que a escola assinala uma ruptura no tipo de educação e formação dispensada às crianças e adolescentes. Eles passam a ser formados em lugares cada vez mais fechados e isolados - os colégios, coordenados por equipes de especialistas adultos que se apresentam às famílias como modelo educativo.

Nessa direção, sabemos que, mesmo antes do surgimento da escola como instituição, já havia a noção de que as aprendizagens sociais deveriam se dar em outros espaços que não a casa. Na Idade Média, por exemplo, o jovem não era submetido a uma autoridade disciplinar ou a uma hierarquia escolar, porque não ia à escola; sua educação ficava a cargo de outras famílias ou de jovens mais velhos, com quem apreendia formas de socialização fora dos domínios do próprio lar. Tal questão demarca a importância da dimensão da alteridade no que se refere à educação, pois foi somente da Modernidade em diante que a escola se tornou uma instituição social essencial da cultura, quando, a partir de uma rígida disciplina, as crianças e jovens passaram a receber no espaço da instituição escolar a transmissão das diferentes leis do mundo adulto.

Deste preâmbulo, podemos recolher a noção de que para as crianças, desde a Modernidade, a construção de um lugar no laço social e na comunidade passou a se dar a partir de um espaço de pertença ao ambiente escolar. O propalado diálogo entre a psicanálise e a educação tem produzido, de algumas décadas para cá, efeitos de larga escala, especialmente para aqueles que se encontram sob a égide da denominada educação especial.

Especificamente no que se refere à articulação da psicanálise com a educação especial, desde a publicação nos anos 1960 do livro A criança atrasada e a mãe, escrito pela psicanalista francesa Maud Mannoni, temos agregado algumas produções interessantes ao que atualmente chamamos de inclusão. Segundo Bernardino (2007), as ideias de Mannoni não só revolucionaram o conceito de deficiência mental, como também todo o sistema de atendimento clínico e educacional dirigido aos sujeitos, na época ainda chamados excepcionais na França.3

Mannoni, filiada ao ensino de Lacan, influenciada por algumas premissas da antipsiquiatria e seduzida pela nascente crítica de Winnicott à medicalização excessiva dos problemas mentais - fruto de sua passagem por Londres na década de 1960 -, criou algo diferente para os moldes da época: a École Experimental de Bonneuil-sur-Marne, uma intervenção nas bordas da saúde e da educação que pretendeu levar os princípios da psicanálise a fim de construir um lugar alternativo aos sujeitos que apresentavam quadros psíquicos graves e dificuldades escolares expressivas.4

Bonneuill, nas décadas de 1960 e 1970, a partir da proposta de constituir um lugar para viver, consolidou-se como uma das instituições mais vanguardistas no trato de crianças e adolescentes com problemas graves de escolarização. Mannoni, ao importar a noção de desejo5 da psicanálise, criou uma instituição na qual os especialistas não detinham o lugar classicamente ocupado pelos profissionais da saúde no trato dos distúrbios graves de desenvolvimento. Imbuída pelas experiências de Winnicott e Lacan no trato da psicose, Mannoni buscou criar uma instituição eclatée, ou seja, uma instituição aberta, estilhaçada como era denominada.

O conceito de instituição estilhaçada é interessante porque acolhe simultaneamente o fora e o dentro, de um modo flexível, sem as amarras das instituições consagradamente dedicadas aos diferentes. Sua ideia era ofertar às crianças e adolescentes, marcados pelo que Laznik-Penot (1989) chamou de "efeito carta roubada",6 um outro lugar para viver. Para Bernardino (2007), a subversão maior de Mannoni está justamente na proposta de estender o conceito psicanalítico de sujeito a todas as crianças, até mesmo àquelas tomadas, na época, como "treináveis".

Assim, a psicanalista francesa tentou criar uma instituição na qual a educação fosse uma condição de possibilidade de surgimento do sujeito do desejo. Em vez da educação ideal - cuja mirada é suprir com respostas toda e qualquer inquietação e cujo paradigma maior foi, no final do século XIX, a educação preconizada pelo Dr. Daniel Gottlieb Schreber7 -, Mannoni propunha a presença de ideais educativos também para os sujeitos alijados da socialização e, às vezes, até mesmo do convívio familiar. Em sua concepção, o encontro com um Outro8 não mortífero poderia trazer a essas crianças e adolescentes a chance de não cair no efeito de repetição.

Atualmente, diante do incremento das novas políticas públicas de educação e de todo movimento de inclusão das diferenças, muitas articulações foram construídas, inclusive em âmbito nacional. Inspirada na "subversão" proposta por Maud Mannoni e refletindo sobre as possibilidades, até então restritas da conexão psicanálise e educação, em São Paulo, na década de 1990, a psicanalista Maria Cristina Kupfer (2000) questionou essas limitações e juntou-se a outras vozes para cunhar o conceito de educação terapêutica.

No livro Educação para o futuro, Kupfer (2000) mostrou que a psicanálise tem muito a fazer pela educação, especialmente, como bem demonstrara Mannoni, quando se trata dos sujeitos da educação especial. É desse modo que Kupfer e o grupo do Lugar de Vida9 reacenderam a discussão sobre o alargamento do conceito de educação e seus diálogos com a psicanálise, valendo-se do conceito de educação terapêutica.

A educação, na concepção da educação terapêutica, não fica restrita aos aspectos pedagógicos, mas estende-se a toda humanização, do bebê à imersão na linguagem e na cultura da qual faz parte. Kupfer (2000) diz que

O ato de educar está no cerne da visão psicanalítica de sujeito. Pode-se concebê-lo como o ato por meio do qual o Outro primordial se intromete na carne do infans (a criança que ainda não fala), transformando-a em linguagem. É pela educação que um adulto marca seu filho com as marcas de desejo (p. 35).

A educação, conforme indica Jerusalinsky (1994), é a colocação em ato de uma inscrição, é a oferta de condições para que o sujeito siga na sua estruturação. Quando tratamos dessa dimensão, estamos tratando da educação terapêutica.

 

Educação, laço social e bens culturais

O conceito de educação terapêutica é um belo exemplo do que se pode produzir nas fronteiras e/ou na conjugação da educação e da psicanálise. Esse termo foi cunhado para dar conta de um determinado tipo de intervenção com crianças portadoras de problemas de desenvolvimento e de escolarização, a saber, crianças com diagnósticos não decididos de autismo, psicose e problemas orgânicos associados a falhas graves na constituição psíquica. A educação terapêutica, portanto, consiste em um conjunto de práticas interdisciplinares de tratamento com ênfase nas intervenções educativas e visa, sobretudo, à retomada da estruturação psíquica da criança (Kupfer, 2000).

Um dos eixos da educação terapêutica é a inclusão escolar. Isso porque, em nossa época, a escola ainda é uma das instituições com mais potência para avalizar a inserção social de uma criança. Entretanto, conforme declara Jerusalinsky (1999), nem sempre as crianças psicóticas ou com graves falhas de estruturação psíquica contam com condições de aprendizagem suficientes para produzir a curiosidade necessária a esse processo.

Nesse sentido, a educação terapêutica faria uma intervenção nas bordas do tratamento e da escolarização, propiciando uma espécie de ponte entre a quase sempre tensa esfera familiar e a esfera escolar e social desses sujeitos. A marca do escolar na vida de crianças com transtornos graves de desenvolvimento pode, muitas vezes, funcionar como uma espécie de passaporte para a vida "lá fora". Jerusalinsky (1999) destaca tal dimensão, quando fala sobre a função da inserção escolar para uma criança psicótica:

A figura da escola vem a calhar porque a escola não é socialmente um depósito como o hospital psiquiátrico, a escola é um lugar para entrar e sair, é um lugar de trânsito. Além do mais, do ponto de vista da representação social, a escola é uma instituição normal da sociedade, por onde circula, em certa proporção, a normalidade da sociedade. Portanto, alguém que frequenta a escola se sente geralmente mais reconhecido socialmente do que aquele que não frequenta. (p. 91)

Em outras palavras, efetivamente essa dose de reconhecimento acaba produzindo um efeito terapêutico. Isso porque, conforme declara Kupfer (2000), a escola entendida como discurso social oferece mais do que a aprendizagem, oferece o contato com leis que regem tanto as relações entre os humanos quanto o simbólico. Essa dimensão propicia que dali a criança retire elementos necessários à construção de seu lugar simbólico.

A educação sempre pressupõe um saber que extrapola em muito o conhecimento. Se, muitas vezes, as práticas pedagógicas estão voltadas para a instrumentalização das aprendizagens e do aparato cognitivo do aluno, o ato educativo vislumbra uma dose de saberes existenciais em relação aos quais a questão da tradição, por exemplo, fica sempre posta. Ou seja, aprender é aprender algo que constitui um saber que foi construído ao longo de uma história e pressupõe um enlace entre diferentes tempos, um laço entre os que vieram antes e os que virão depois.

Para Gutierra (2003, p. 85), a transmissão nunca se restringe ao ato de oferecer um saber teórico. Quer dizer, aquilo que está em cena na transmissão nunca é a pura demonstração de um saber formal, mas sim revela "a responsabilidade simbólica do professor em relação ao ato de transmitir, assumindo o dever implicado no ato de transmissão e sustentando a lei e a cultura, ou seja, algo da função paterna" (p. 85).

Podemos, portanto, pensar que a transmissão dos bens culturais não pertence nem ao professor e tampouco ao aluno: pertence à cultura da qual os dois fazem parte. Ambos deveriam estar posicionados do mesmo modo ante a transmissão do conhecimento acumulado, tocados por uma espécie de dívida simbólica que deve marcar a posição tanto de quem transmite como de quem aprende.

Gutierra (2003) sugere que há sempre uma dívida simbólica na aprendizagem, pois o professor invoca a potência própria da tradição dos mestres, na qual está contida a dimensão de dívida simbólica para com o legado da cultura. Isso significa que todo aquele que aprende fica sempre sujeito a uma transmissão, ou seja, à noção de que o conhecimento adquirido é uma marca de pertinência, uma marca que carrega certo "saber fazer com a vida". Tal posição de reconhecimento da tradição cultural em qualquer processo de ensino-aprendizagem outorga ao professor um lugar de abertura e simultaneamente de limite pessoal; é o que chamamos de posição do mestre não-todo,10 aquele que suporta o não saber como condição de transmissão.

Ora, a arte em suas diferentes expressões, seja na pintura, escultura, literatura, cinema ou outra, constitui o paradigma daquilo que se pode denominar como um "patrimônio" da humanidade; são produções construídas na esteira do tempo e pelo acúmulo de sucessivas gerações. Nesse sentido, teriam de ser acessíveis a quaisquer sujeitos que empreendem um processo educacional. Fazendo uma brincadeira, poderíamos pensar o acesso aos bens culturais como "direito (de um) humano".

Nesse diapasão, perguntamos: o que se passa com aqueles que ficam como que apartados dessa transmissão? Mesmo considerando as políticas afirmativas da atualidade, questionamos como de fato se dá a inclusão educacional dos sujeitos que apresentam transtornos graves do desenvolvimento (TGD) ou outras diferenças. Como pensar uma educação inclusiva passível de transmitir o que realmente importa para a construção de um sujeito que aprende?

 

O cinema e a produção de uma "Outra" cena

O cinema tem-se estabelecido como uma das experiências sociais mais intensas desde o início do século XX. Nascido na esteira de tantas outras invenções da Modernidade, a linguagem cinematográfica tem-se configurado como uma experiência estética e cultural de vasta qualidade também para o campo da educação.

As narrativas fílmicas, da mesma forma que outras narrativas da cultura, são cada vez mais responsáveis por levar às massas aspectos da cultura e perspectivas diversas acerca das questões e dos valores do mundo. Além disso, o desenvolvimento de todo o aparato técnico do cinema, nas últimas décadas, tem possibilitado, por meio da riqueza imagética e das múltiplas possibilidades tecnológicas, a expressão de questões e reflexões em âmbitos extraordinários, emprestando uma enriquecedora pluralidade de dimensões ao que é transmitido.

Como, então, fazer com que essa experiência estética e cultural decante em um elemento potente para a construção de um genuíno espaço de criação de si? Como fazer com que a dimensão da imaginação e do sonho, sempre presentes nas narrativas do cinema, possam alçar um voo maior, constituindo uma espécie de experiência "aurática"11 com a imagem e/ou com a história da tela?

Na escola, por exemplo, o uso dos textos imagéticos e das narrativas fílmicas ainda é tímido. A utilização de filmes como ilustração dos conteúdos costuma ser o modo mais frequente de interação com a linguagem do cinema na escola; a instituição escolar, ao utilizar o cinema como uma figuração daquilo que está sendo "ensinado", pode acabar empobrecendo a dimensão da experiência ética e estética, deixando escapar uma série de sutilezas e nuances que a linguagem da sétima arte tem possibilidade de oferecer.

Propomos, aqui, pensar na inserção dos filmes na escola realmente como um Outro, um outro lugar de transmissão, um outro modo de transmissão da experiência; ou seja, que o cinema, a partir de seus caracteres, possa ser visto como um elemento em si, um documento que utiliza um modo determinado e próprio de apresentação e representação.

Sendo assim, nossa proposta justifica-se pelo fato de que uma das noções importantes acerca dos diálogos possíveis da educação com o cinema refere-se exatamente à dimensão da experiência. A propalada crise da educação também está relacionada a certa aridez que se abate sobre as práticas docentes e sobre a própria noção do que se legitima como o "aprender". O cinema, além de "representar" a realidade por meio dos mitos, ideologias e mesmo dos códigos das diferentes culturas, também opera a partir de práticas que significam e ressignificam conceitos, hábitos e valores. Ao mesmo tempo que trás elementos da cultura, a narrativa fílmica os transforma, reordenando sentidos e criando novos e múltiplos significados.

Nessa direção, nos interessa pensar as produções fílmicas como uma experiência que leva a certo excesso da visão. As lentes do cinema, enquanto representação de um outro olhar, podem ser tomadas na dimensão da alteridade. Alguns autores propõem até mesmo que se tome o "olho" do cinema como um modo de poder ver nos "olhos do outro" a esfera de um invisível (Aumont & Marie, 2003). No livro Dicionário teórico e crítico de cinema, Aumont e Marie (2003) falam de seis formas diferentes de compreender a sétima arte. Dentre elas, gostaríamos de destacar a compreensão do cinema como arte.

A experiência do cinema como arte está relacionada à dimensão do sensível, daquilo que toca o sujeito e que, muitas vezes, não é passível de tradução, nem mesmo pelas palavras. Marcello (2009), quando discorre sobre os enlaces entre educação e cinema, diz que a escola, ao promover o encontro entre a infância e o cinema, faz muito mais do que meramente "ensinar". A transmissão da arte na escola, além de ter uma dimensão política - pois para muitas crianças e jovens a instituição escolar acaba sendo o único espaço de contato com a arte -, é algo que não se ensina, "ela se encontra, se experimenta, se transmite por outras vias que não a do discurso do saber único e, por vezes, mesmo sem nenhum discurso" (p. 4).

Não por acaso, o tema da arte e o tema da experiência tantas vezes se encontram amalgamados. Parece que ambos constituem formas de fazer com que a palavra se reinvente, de modo a não se tornar letra morta. Isso porque a arte é capaz de despertar no homem o que há de mais contundente e essencial, trazendo à tona, numa brecha fugaz, o que faz dele realmente um sujeito. A arte talvez seja a forma mais aguda de apontar esse não lugar espacial do sujeito. Nas palavras de Rivera (2009), quando comenta as relações entre psicanálise e cinema: "Mais do que a promessa ou esperança de um lugar ideal, saturado imaginariamente, a utopia do sujeito é um não lugar, é uma aventura para longe da 'casa' de que o eu é ilusoriamente o senhor. Utopia móvel, perpétua travessia" (p. 37).

Assim, o cinema/arte, a psicanálise e a experiência parecem partilhar do mesmo mote. O próprio Freud dizia que a arte, ou melhor, o artista detém mais saber sobre o inconsciente do que o próprio psicanalista. Logo, não se trata de aplicar a psicanálise ao cinema no atravessamento com a educação e apontar nas obras "escolhidas" alguma verdade que só "Freud explica". Ao contrário, trata-se de buscar conhecimento sobre o homem nessas narrativas e, mais especificamente, com elas aprender sobre o sujeito e sua relação com o mundo (Rivera, 2009).

Walter Benjamin, filósofo alemão e crítico sagaz da Modernidade, buscava pensar um modo de reduzir o achatamento da dimensão aurática da experiência, produzido em meio às novas condições sociais da Modernidade. Ao sugerir que nossa época tinha muitas informações para trocar, mas poucas histórias para contar, Benjamin nos convocava, de certo modo, a buscar formas de contato com uma dimensão Outra - questão que não deixa de ser o que o cinema nos convida a fazer: fechar os olhos para ter contato com a Outra cena, que pode ser o inconsciente, o sonho, a poesia, etc. Modo pelo qual muitas vezes somos tocados por sensações e experiências incomunicáveis no campo da palavra.

Benjamin (1935/1994), na década de 1930, ao problematizar a experiência em contraponto às excessivas vivências, tão pregnantes da Modernidade em diante, dizia que estávamos diante de uma espécie de esgotamento da narratividade. Para ele, junto com a aceleração do tempo, a partir das condições sociais trazidas pelos novos modos de produção, advinha um empobrecimento da arte de contar - o que ele denominou de declínio da arte de narrar. Segundo o pensador, os antigos narradores eram aqueles que não estavam preocupados em trazer uma verdade tácita ao leitor ou ouvinte, mas sim especialmente interessados em narrar e manter a abertura daquilo que era dito (Gurski, 2008b).

Apesar da complexa crítica de Benjamin e dos frankfurtianos à perda da aura da obra de arte em razão dos novos modos de transmissão da cultura, entre eles o cinema, podemos recolher algumas de suas posições construtivas e otimistas com relação à sétima arte. No texto A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, Benjamin (1935/1994) consegue ver que o cinema aprofundou um novo modo de percepção do homem, alargando o mundo dos objetos que nos cercam, tanto no que se refere à dimensão visual quanto ao que concerne à dimensão auditiva. Destaca também as transformações causadas pelo cinema quanto ao espaço e movimento, revelando outras estruturas da matéria. Além da matéria, Benjamin nota que mediante as diferentes técnicas de filmagem, tais como os cortes, isolamentos, reduções, retardamentos da câmara, surge, pela primeira vez, a experiência do inconsciente visual ou ótico. Tal dimensão, inacessível ao olho nu, seria possível pela intensa química entre ciência e arte presente nas produções fílmicas. O cinema, na visão de Benjamin (1935/1994), a partir dos dispositivos tecnológicos presentes na imagem, traria a possibilidade de criar nas telas o revolucionário e o indizível, tendo por isso a possibilidade de "reauratizar".

Para Kothe (1978), Benjamin, ao contrário de Adorno, tem uma postura construtiva diante dos novos meios de produção da cultura. Em suas análises acerca do lugar da obra de arte, a partir dos séculos XIX e XX, aparece a indicação de que seria possível certa superação do conceito tradicional de arte. A aura, que antes emprestava autoridade e autenticidade à obra, estava perdida em meio às novas condições sociais da Modernidade; porém, dada a constatação do achatamento, o autor sugere a possibilidade de que um novo modo de percepção e de transmissão da cultura se estabeleça, não mais regido pela autenticidade, mas sim pela reprodução.

Apesar do silêncio dos narradores e de estarmos assistindo a uma crescente proliferação de oráculos como lugares de verdades tácitas, nos quais a palavra parece ter uma só face, acreditamos que o cinema pode constituir um dispositivo prenhe de potencial multiplicador de polissemia e de utopia, também no que se refere ao âmbito da educação de crianças e jovens com distúrbios graves de desenvolvimento.

 

Uma torção a mais: a presença da diferença no cinema

O relacionamento amoroso entre uma adolescente com síndrome de Down e um rapaz dito "normal" é o centro do enredo do filme gaúcho Cromossomo 21. Ao escancarar o tema da sexualidade dos sujeitos com síndrome de Down, o diretor Alex Duarte provoca uma reflexão profunda acerca do que é relevante para as famílias e a sociedade quando se trata de lidar com as repercussões das diferenças e da circulação social desses sujeitos.

Diríamos que a enunciação dessas problemáticas acerca da diferença, no cinema, não raro excede a mera reflexão racional - sempre tão aclamada pelas pedagogias! Pensamos que o melhor efeito de iniciativas como essas ainda seguem sendo aquilo que escapa à razão e que acaba constituindo um efeito da própria arte da narrativa fílmica, a dimensão daquilo que "vemos" e do que "nos olha".

No caso específico de Cromossomo 21, isso aparece já no elenco. A protagonista principal, Adriele, uma adolescente Down, conhece, através da experiência do cinema, uma possibilidade nova em sua vida, a chance de contracenar sendo uma espécie de "si mesmo" na tela. Na condição de atriz, ela mostrou os efeitos da inserção social e da inclusão, ao mesmo tempo que revelou, no desenlace da personagem e de quem se relaciona com ela, os intensos entraves de quem topa "bancar" esse desafio - isso no duplo sentido: tanto do sujeito com a síndrome quanto daquele que é tomado como "normal".

Podemos considerar o enredo desse filme uma interessante alegoria do que o cinema, em conexão com a educação e com a psicanálise, pode fazer quando se trata, por exemplo, do tema da diferença. Não como marco legal, ou tampouco como prescrição de como fazer "a" inclusão, mas, ao tratar de uma nuance cara a qualquer ser humano, o filme nos leva um pouco mais além dos debates ensejados pelas políticas de inclusão.

Ao mostrar as dificuldades enfrentadas por todos aqueles que aceitam o encargo de ultrapassar a barreira da diferença no campo amoroso, o diretor nos apresenta uma espécie de faceta pós-inclusão. Ora, nesse sentido, o cinema confirma a possibilidade de "filmar a imaginação", porque, ao levar para as telas o invisível e o ainda não sensível, produz o interessante efeito de não só potencializar a multiplicidade de sentidos, mas sobretudo de levar os sujeitos e a sociedade a nomear, pela via das imagens, seus mais caros anseios e angústias.

Da mesma forma, o longa-metragem Colegas, premiado no Festival de Gramado de 2012 e em muito outros festivais nacionais e internacionais, também mostra a vida de três jovens portadores de Down, cujas trajetórias são marcadas por sonhos semelhantes aos sonhos de qualquer adolescente de mesma idade. O interessante em Colegas é ver como o diretor debate o mal-estar juvenil desses sujeitos, ao colocar em cena seus sonhos, anseios e angústias. Apaixonados por cinema e embalados pela narrativa de Thelma e Louise, os três amigos saem em busca de aventuras. A licenciosidade poética fica por conta do sonho de cada um deles como fio condutor da narrativa.

Parece-nos que é desse modo, como arte, que o cinema pode seguir confirmado como um criativo modo de elaboração de questões para o sujeito e como uma ferramenta de inclusão cultural. No caso dos filmes Cromossomo 21 e Colegas, a narrativa parece contribuir para que se possam extrair os melhores efeitos dos intervalos entre "o que vemos" e "o que nos olha", através desse outro "olho" que, ao nos "olhar" desde a tela, possibilita a confecção de outros e novos sentidos. Tudo isso a fim de nos levar a um contato mais intenso acerca do que nos constitui como sujeitos e como sociedade.

 

REFERÊNCIAS

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NOTAS

1. Este artigo é parte da pesquisa "Cine na Escola: a arte de assinar o que se vê", inscrita no contexto das investigações do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NUPPEC/UFRGS).

2. As proposições da educação inclusiva, presentes Declaração de Salamanca, de 1990, apesar de mesclarem-se ao conceito de integração, ressignificaram a educação especial no âmbito da proposta da educação para todos. A direção da educação inclusiva, na educação especial, além de inaugurar um novo capítulo para os sujeitos privados da educação, deu a oportunidade de a educação para as necessidades especiais fazer parte de uma estrutura mais ampla, a já referida educação para todos.

3. Voltolini (2004) lembra, com precisão, que o pioneirismo de Maud Mannoni no que se refere ao tema das políticas de inclusão deve ser relativizado. Segundo o autor, Mannoni era avessa a qualquer iniciativa em nome de uma possível política pública dirigida aos sujeitos com os quais trabalhava. Isso porque preferia evoluir em seu trabalho pela via da elaboração, declarando, inclusive, que uma certa dose de marginalidade em relação ao poder público poderia constituir uma promissora condição de trabalho.

4. Especialmente aqueles que hoje são denominados nos Manuais de Psiquiatria como TGDs - portadores de transtornos graves de desenvolvimento - crianças do espectro autista e psicótico, dentre outros.

5. O desejo para a psicanálise não é a vontade. O desejo estrutura a relação do sujeito com o objeto e com o Outro. Para Freud, o desejo do sujeito está sempre remetido ao desejo sexual; segundo ele, o desconhecimento do desejo se dá pela operação do recalque e é a causa do sintoma. Para Lacan, o desejo do sujeito é sempre o desejo do Outro, pois é a condição de alienação no desejo do Outro parental e social que fará com que se constitua um sujeito no sentido psicanalítico (Chemama, 1995).

6. Lacan, no seminário A carta roubada e ao longo do seminário 2, teoriza sobre a importância do simbólico na determinação do sujeito. Diz que o homem está sujeitado às condições do símbolo, já que a Ordem simbólica o antecede e o constitui. Quando fez uso do conto A carta roubada, de Edgar Allan Poe, o psicanalista pretendeu achar uma fórmula de escrita desse registro. Ao dizer que o automatismo de repetição ocorre em função da insistência da cadeia significante, Lacan provou que o sujeito em seus atos sofre de uma determinação que é anterior e exterior a ele. Assim, a carta roubada, para Lacan, estaria no lugar do significante, a entidade que, independentemente do conteúdo, guarda um valor simbólico e demarca lugares que produzem significações. Nesse sentido, haveria uma determinação absoluta que o sujeito recebe do significante. O significante, assim como a carta, ao passar de um personagem a outro, modifica o lugar e o valor de todos e de cada um. Assim, a determinação significante tenderia à repetição, independentemente dos protagonistas das cenas. Para outros detalhes, ver Laznik-Penot (1989).

7. Daniel G. Schereber era pai de Daniel Paul Schereber, o jurista que sofria de sérios distúrbios mentais narrados em seu livro Memórias de um doente dos nervos, por meio do qual Freud os analisou. Daniel G. Schereber ficou famoso pela invenção de teorias educativas extremamente rígidas, baseadas no higienismo, na ginástica corporal e na ortopedia (Roudinesco & Plon, 1998).

8. Para tratar da constituição psíquica, Lacan diferencia duas instâncias: o chamado "pequeno outro", que seria o semelhante, o parceiro imaginário, e o "Outro" (grande Outro), que ele conceitua como a instância simbólica e, portanto, da linguagem, que determina o sujeito, sendo de natureza anterior e exterior a ele; lugar da palavra, lugar do tesouro dos significantes (Lacan, 1985, p. 297).

9. O Lugar de Vida é, atualmente, uma instituição de referência no tratamento e acompanhamento escolar de crianças e adolescentes com problemas graves de desenvolvimento. Criada em 1990 como um serviço do Departamento de Psicologia, do Desenvolvimento e da Personalidade da USP (PSA/IPUSP), após 18 anos de existência saiu da universidade para melhor atender à crescente demanda de crianças, adolescentes e suas famílias. A instituição foi criada pela psicanalista Maria Cristina Kupfer e por um grupo de colegas que tiveram sempre o casamento da psicanálise com a educação como azimute de trabalho.

10. O conceito de mestre não-todo refere-se a um mestre que não é o detentor do saber absoluto, nem mestre da verdade. Segundo Gutierrra (2003), seria o professor que consegue produzir no aluno o desejo de aprender. Para outros detalhes acerca do conceito de mestre não-todo, ver Pereira (2008) e Kupfer (2000).

11. O conceito de aura na obra de Benjamin é bastante complexo e está ligado ao caráter transcendente, fugidio e distante da obra de arte. Ou seja, aquilo que, apesar da proximidade, se encontra sempre distante, a distância intransponível do objeto artístico que remete à ideia filosófica do belo. Benjamin (1935/1994), por meio de toda a elaboração da sua teoria sobre o empobrecimento da experiência, via na mudança de posição com a tradição cultural, um efeito da era da reprodutibilidade técnica e, portanto, uma modificação no modo de o homem moderno perceber a arte. Este deixara de ver a obra em sua dimensão sacra e singular, para vê-la como um objeto de consumo. Benjamin (1935/1994) diz: "o conceito de aura permite resumir essas características: o que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte é a aura" (p. 168). Ele define a aura como "uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais próxima que ela esteja" (p. 101).

 

 

Recebido em fevereiro/2013.
Aceito em abril/2013.