SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.18 número2Ela se chama Sabine...I am Sam: deficiência mental e relação com o saber índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.18 no.2 São Paulo ago. 2013

 

DOSSIÊ
PSICANÁLISE, EDUCAÇÃO E CINEMA

 

Menino-menina1

 

Boy-girl

 

Chico-chica

 

 

Marcelo Ricardo Pereira

Psicólogo e psicanalista. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil. Rua Perdigão Malheiros, 294/201 30380-174 - Belo Horizonte - MG - Brasil. mrp@fae.ufmg.br

 

 


RESUMO

Ludovic, protagonista de "Minha vida em cor-de-rosa" (Berliner), é um menino de 7 anos que, crendo ser menina, se veste, se comporta e se pensa como tal. Ele sofre os efeitos discriminatórios de uma sociedade provinciana da França, inclusive sua própria família. Nesse cenário, será possível a Ludô organizar sua sexuação, agindo em conformidade com o seu desejo? Examinaremos a questão considerando que "a pesquisa psicanalítica se opõe com o máximo de decisão que se destaquem os homossexuais, colocando-os em um grupo à parte do resto da humanidade" (Freud, 1905, p. 146, [adição de 1915]).

Descritores: sexuação; desejo; fantasia.


ABSTRACT

Ludovic, main character of "My life in pink (Berliner), is a 7-year-old boy who believes he is a girl. He dresses, behaves and thinks as such. He suffers the effects of a discriminatory society in provincial France, including his own family. Is it possible, in such scenario, to regulate his sexuation in compliance with his desire? We will examine this issue considering that "psychoanalytic research strongly opposes the segregation of homosexuals, placing them as a separate group from the rest of humanity"(Freud, 1905, note added in 1915).

Index terms: sexuation; desire; fantasy.


RESUMEN

Ludovic, protagonista de "Mi vida en rosa (Berliner), es un niño de 7 años que, creyendo ser una niña, se viste, se comporta y se piensa como tal. Él sufre los efectos de una sociedad discriminatoria de la Francia provincial, incluyendo a su propia familia. En este escenario, ¿es posible a Ludó organizar su sexuación, actuando en conformidad con su deseo? Vamos a examinar la cuestión teniendo en cuenta que "la investigación psicoanalítica se opone con decisión que se destaquen los homosexuales, colocándolos en un grupo separado del resto de la humanidad" (Freud, 1905, nota añadida en 1915).

Palabras clave: sexuación; deseo; fantasía.


 

 

Ludovic Fabre, protagonista do drama Minha vida em cor-de-rosa, é um menino de 7 anos que, crendo ser uma menina, se veste, se comporta e se pensa como tal. Ele passa a sofrer os efeitos discriminatórios de uma sociedade conservadora e provinciana da França, em fins do século XX. Disso resulta uma sucessão de experiências que coloca em questão não apenas a condição sexual do menino, mas também os valores sociais da família, da escola e do ambiente em que vive. Exasperações, rejeições, punições e tentativas de normalização estão entre essas experiências, que tornam a película de Alain Berliner tão delicada quanto atual. Nem a Sra. Fabre, mãe de Ludovic, escapa dos sentimentos mais hostis em relação ao filho - mesmo que estejam mesclados aos de conivência.

Não obstante, de maneira anacrônica, suponhamos que a Sra. Fabre houvesse escrito uma carta a Freud pedindo ajuda sobre a aberração sexual de seu menino. Provavelmente, o psicanalista lhe responderia como o fizera em 9 de abril de 1935 a uma mãe norte-americana atordoada com as tendências sexuais do filho. As palavras da carta foram as seguintes:

Minha senhora... A homossexualidade não é evidentemente uma vantagem, mas nada há nela que se deva ter vergonha; não é um vício, nem se pode qualificá-la como doença. Nós a consideramos uma variação da função sexual provocada por uma suspensão do desenvolvimento sexual. Diversos indivíduos sumamente respeitáveis, nos tempos antigos e modernos, foram homossexuais e dentre eles encontramos alguns dos maiores de nós (Platão, Leonardo da Vinci, Michelangelo, Oscar Wilde, dentre outros)... É uma grande injustiça perseguir a homossexualidade como um crime, além de ser uma crueldade humana. (Freud, 1967, p. 353, tradução nossa)

E não precisamos ir longe: basta examinarmos as ideias de Freud - para permanecer apenas nesse autor - e verificarmos que há um século a condenação da homossexualidade se tornara pauta presente de pensadores das sociedades ocidentais desde aquela época. Muito se deve à psicanálise, que se mostrou precursora em fazer ruir a fronteira entre o normal e o patológico, entre a correção moral e a degenerescência, ou entre aqueles que fingiam cumprir a regra contra os que se expunham como diferentes (Foucault, 1976/1988). Lembremos, por exemplo, a cena em que a Sra. Fabre, de maneira vingativa, beija a boca do vizinho e chefe do marido, o qual silenciosamente discriminava a manifestação sexual do seu filho. Estupefato, mas sem esconder sua satisfação oculta, o vizinho se contém e a Sra. Fabre parece dizer que, como Ludovic, ele, ela, todos têm igualmente desejos proibidos. Nesse sentido, temos de admitir que entre quatro paredes ou mesmo fora delas ninguém é definitivamente normal. Gastamos muita energia tentando nos modelar e nos espelhar à norma, às convenções sociais, em nome de um discurso normativo e hegemônico. Como diz André Forastieri (2001), fazendo menção ao roqueiro contemporâneo Supla: "Eu não sou nem quero ser igual a quem me diz que sendo igual eu posso ser feliz".

Freud só poderia escrever uma carta como aquela porque antes, em 1915 - há quase cem anos -, abordara a questão da sexualidade homoerótica da seguinte maneira:

A pesquisa psicanalítica se opõe com o máximo de decisão que se destaquem os homossexuais, colocando-os em um grupo à parte do resto da humanidade, como possuidores de características especiais. Estudando as excitações sexuais, além das que se manifestam abertamente, descobriu-se que todos os seres humanos são capazes de fazer uma escolha de objeto homossexual e que na realidade o fizeram no seu inconsciente. Realmente, as ligações libidinosas com pessoas do mesmo sexo desempenham um papel tão importante como fatores na vida psíquica normal quanto ligações idênticas com o sexo oposto. A psicanálise considera que a escolha de um objeto, independentemente de seu sexo - e que recai igualmente em objetos femininos e masculinos - ... é a base original da qual, como consequência da restrição num ou noutro sentido, se desenvolve tanto os tipos normais quanto homossexuais. Assim, do ponto de vista da psicanálise, o interesse sexual exclusivo de homens por mulheres também constitui um problema que precisa ser elucidado, pois não é fato evidente em si mesmo, baseado numa atração apenas de natureza química. (Freud, 1905/1980a, p. 146, nota 2 [adição de 1915])

Não estamos preocupados aqui em definir a causa da homossexualidade, da transexualidade ou de qualquer outra conduta sexual fora da norma. "O que a psicanálise considera o ponto essencial não é a gênese da excitação e sim a questão de sua relação com um objeto" (Freud, 1905/1980a, p. 186, nota 1[adição em 1920]). Portanto, o problema não é a gênese de determinado comportamento sexual, nem se sua natureza é biológica ou psíquica, e sim o que fazemos com ele. Ou seja, não devemos nos deter em buscar obsedantemente a origem da manifestação sexual para ser curada ou normalizada, mas em mostrar a corda que essa manifestação insiste em tencionar e constranger a todos no que se refere ao confronto propiciado pelas relações sociais.

Ludovic, ou simplesmente Ludô, na pele do excelente ator mirim Georges du Fresne, parece segurar essa corda com firmeza. A todo o momento, ele nos leva a achar que a corda irá puir-se contra si mesmo. O menino-menina, que magistralmente cria uma teoria sexual infantil para se autorreconhecer, dizendo que o seu XY cromossômico fora acidentalmente substituído por um XX, demonstra resistir com docilidade e rigor a toda investida social contra sua afirmação sexual. A rejeição contra ele é largamente testemunhada: percebemo-la no bairro onde reside, nos vizinhos conservadores, na escola que o expulsa e, de maneira ambígua, em sua professora que começa a abordar o assunto em classe, na psicóloga que o trata em seu consultório e no próprio meio familiar - que ora demonstra acolher sua diferença, ora a rechaça; ora se diverte com sua idiossincrasia, ora se enfurece com ela. Senão, o que diríamos acerca dessa ambiguidade quando a família se dirige a uma festa do bairro, admitindo que Ludô se apresentasse de saias, porém no local anuncia que se trata de uma brincadeira de um menino que é sempre "ótimo em disfarces"! Apenas a avó manifesta abertamente seu apoio afetivo e procura demonstrar, em relação ao pequeno, uma aceitação incondicional.

Há, na realidade, um misto de conivência e exílio que parece deixar aquele menino-menina de sorriso meigo sem referências mais estáveis para afirmar-se como sujeito, seja qual for o modo de organização de sua sexuação.

 

Sexuação e anatomia

O questionamento da sexuação, com efeito, demonstra ser a base que conduz os passos de Alain Berliner em sua película, simultaneamente tocante e polêmica. A crise dos conceitos e práticas puras de masculinidade e feminilidade está por trás do véu róseo com que Ludô insiste em manter-se em suas fantasias infantis. Não somos mais machos e fêmeas, determinados exclusivamente por uma matriz biológica de natureza estável. Tornamos-nos masculinos e femininos, desde quando adquirimos a linguagem e recobrimos nossos corpos de palavras - formas culturais, não necessariamente estáveis, das quais nos valemos para interpretar nossos corpos anatômicos.

Em sua constituição, homens e mulheres buscam alcançar uma anatomia que nivele psiquismo e biologia, inscrevem seu desejo tentando emparelhá-lo ao seu corpo, mas o fazem em vão, pois nunca ser masculino se iguala a ser macho, ou ser feminino se iguala a ser fêmea. É por isso que se produzem sintomas, lapsos, sonhos... o inconsciente. Algo de si definitivamente excede tanto às determinações biológicas - como requerem, por exemplo, as neurociências - quanto às determinações culturais, como pedem os teóricos de gênero (Pereira, 2013).

Freud assim considerava essa questão:

Não devemos nos permitir ser desviados de tais conclusões pelas negações feministas... mas concordaremos de boa vontade que todos os indivíduos, em resultado de sua disposição bissexual e da herança cruzada, combinam em si características tanto masculinas quanto femininas, de maneira que a masculinidade e feminilidade puras permanecem sendo construções teóricas de conteúdo incerto. (Freud, 1925/1980d, p. 320)

"A bissexualidade! Estou-me acostumando a encarar todo ato sexual como um acontecimento entre quatro indivíduos" - eis o motejo de Freud em carta a Fliess, de 1899 (Freud, 1923/1980b, p. 48, nota 1). Considerando o fato de que, para a psicanálise, tanto homens quanto mulheres têm impulsos masculinos e femininos e que, no inconsciente, tais impulsos se derivam respectivamente da atividade e da passividade, Freud vai afirmar terminantemente que cada um dos sexos não pode ser equacionado de maneira exclusiva ao masculino e ao feminino, numa perspectiva cultural - de "conteúdo incerto" -, muito menos ao macho e à fêmea, numa perspectiva biológica - que não é mais do que um "destino" da anatomia. Temos aqui o que nos permite ler melhor outro dos aforismos da psicanálise que ainda hoje causa animosidades, mesmo entre os pares: "a anatomia é destino" - afirmação de Freud (1924/1980c, p. 222) contida em seu livro A dissolução do complexo de Édipo. A anatomia é destino, e não origem. Ela é destino, e não algo dado a priori ou determinado biologicamente. A anatomia é devir, é vir a ser.

São vários os momentos distintos em que Freud reforça tais argumentos Entre esses momentos, ressaltam-se duas passagens esclarecedoras:

Tal observação mostra que nos seres humanos a masculinidade pura ou a feminilidade pura não se pode encontrar nem num sentido psicológico nem num biológico. Todo indivíduo, ao contrário, revela uma mistura dos traços de caráter pertencentes a seu próprio sexo e ao sexo oposto, e mostra uma combinação de atividade e passividade, concordem ou não estes últimos traços de caráter com seus traços biológicos. (Freud, 1905/1980a, p. 226, nota 1 [adição de 1915])

Acostumamo-nos a dizer que todo ser humano apresenta impulsos, necessidades e atributos pulsionais tanto masculinos quanto femininos, e, ainda que a anatomia, é verdade, possa indicar as características de masculinidade e feminilidade, a psicologia não pode. (Freud, 1930/1980e, p. 126, nota 2)

Nesse sentido, o pensamento freudiano demite-se não apenas da matriz biológica que inicialmente o fundamenta, mas também da perspectiva culturalista ou psicológica que orienta, por exemplo, os teóricos de gênero, porque, caso assim o fizesse, a psicanálise se desviaria de sua posição original, que é a de operar na contramão de qualquer discurso determinista ou final.

Cabe aqui abrir um parêntese para ressaltar que o aparente vanguardismo de Freud em admitir a universalidade da bissexualidade psíquica dos seres humanos, bem como em posicionar-se contrariamente a toda discriminação de homossexuais, aceitando a influência do médico oitocentista Havelock Ellis, não se mostrou uma realidade para a psicanálise praticada nas cinco décadas subsequentes à criação da seminal Sociedade das Quartas-Feiras.2 Contrariando as premissas de Sigmund Freud, de Otto Rank e de Sandor Ferenczi, a maioria dos psicanalistas do período, embora admitisse a teoria da bissexualidade, recusou com extrema intolerância a prática da homossexualidade, cerceando, inclusive, o direito de homossexuais se tornarem psicanalistas. Fora essa a posição de Karl Abrahan, dos psicanalistas de Berlim, endossados pelas posições de Anna Freud e Ernest Jones, entre outros da geração heroica da psicanálise. Mesmo Melanie Klein e seguidores, que assinaram as maiores convulsões teóricas daquela época, mantiveram-se em silêncio no que diz respeito à discriminação de que eram vítimas os homossexuais de meados do século XX.

De acordo com Roudinesco (2003), foi graças a Jacques Lacan que homossexuais puderam tornar-se psicanalistas, ao fundar a Escola Freudiana de Paris em 1964, após sua "excomunhão" dos quadros da International Psychoanalytical Association (IPA). Para Lacan, a homossexualidade era uma espécie de perversão sublime da civilização (posição diferente de Freud, que não a considerava uma perversão). Era sublime, pois obrigava os sujeitos assim nomeados a endossarem a identidade infame atribuída a eles pelo discurso normativo. Do ponto de vista da medicina, foi necessário aguardar até 1974 para que, sem o menor debate teórico, mas sob a pressão de movimentos sexuais da época, a American Psychiatric Association (APA) decidisse retirar a homossexualidade da lista das doenças mentais para recolocá-la como "transtorno", como consta da revisão do não pouco polêmico DSM II (Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais).

 

Agiste em conformidade com o seu desejo?

Retomando nossa teorização com base no filme de Berliner, perguntamo-nos: o que afinal Ludovic sustenta quando demonstra não ceder mediante as exasperações e discriminações de que sofre quase ininterruptamente? Ora, Ludô mostra que, no âmago de sua jornada, ele não cede de seu desejo. Empunhando a bandeira de afirmar-se sexualmente, o menino-menina vai pouco a pouco minando as resistências e ganhando seu território. Seu artifício de, a cada momento de conflito, refugiar-se em sua fantasia com a boneca Pam3 revela ser fundamental para que ele suporte as adversidades impingidas pelas relações sociais do seu entorno. A despeito das investidas convencionais da civilização, Ludô, ao contrário do neurótico comum, não se acovarda e mantém, a duras penas, o desejo de inscrever o seu desejo. Talvez um dos poucos momentos em que tenha vacilado seja o da cena em que, tendo desaparecido, a mãe o reencontra na posição de morto, abraçado a um crucifixo dentro de um freezer, como se quisesse congelar-se para ser despertado em um futuro no qual sua sexualidade não seria mais um problema.

O imperativo ético do menino Ludô parece ser o mesmo que orienta um psicanalista na condução daqueles que recebe em suas pesquisas ou que acolhe em sua clínica sob a forma de uma pergunta fundamental: "Agiste em conformidade com o seu desejo?" (Lacan, 1988, p. 373). A história contemporânea do menino-menina nos remete de chofre a outra história igualmente tocante e polêmica, que também não passou ilesa às penas de Lacan. Juntas, acreditamos que poderão conduzir-nos a nossa ideia final. Trata-se da peça Antígona, cuja heroína homônima tem seu destino tragicamente marcado pela lei dos homens. Numa das mais belas e dramáticas tragédias já escritas, seu autor, Sófocles (496-406 a.C.), devassa em toda a sua profundidade o desejo, a lealdade e a dignidade da filha de Édipo, em uma narrativa cujo pano de fundo é a cidade de Tebas, na antiga Grécia. Vejamos sua síntese:

O trágico destino do parricida e incestuoso Édipo não foi suficiente para diminuir a ira dos deuses. A maldição pelo seu crime se estende a toda sua descendência. Seus filhos, Polinices e Etéocles, morrem lutando um pela espada do outro, às portas de Tebas, cidade da família Édipo-Jocasta, governada por Creonte. Polinices se aliou aos guerreiros de Argos para derrubar a tirania de Creonte, seu tio, defendido por seu irmão Etéocles. Creonte, para evitar novas revoltas em seu reino, concede a Etéocles as honras da sepultura e ordena que Polinices permaneça insepulto, sem homenagens fúnebres e entregue aos abutres. O decreto deixa Antígona e Ismênia, irmãs dos mortos, em delicada situação: seguir a lei divina (segundo a qual as mulheres da família devem honrar seus entes falecidos para que suas almas façam a transição adequada ao mundo dos mortos) ou seguir a lei dos homens (decretada por Creonte, que promulgou uma lei impedindo que os mortos que atentem contra a cidade fossem enterrados, gerando uma grande ofensa para o falecido e sua família). Antígona escolheu seguir a lei divina. Convidou Ismênia para juntas cumprirem os funerais do irmão. Ismênia, com receio da ira de Creonte, repreende a irmã e decide não tomar parte nessa loucura. Antígona faz tudo sozinha. Logo cedo se espalha a noticia de que o decreto real fora violado e não tardou para que Antígona fosse descoberta e condenada a ser emparedada viva (para que o rei não se sujasse com esse sangue derramado). Seu crime: a piedade pelo irmão insepulto. Creonte, por atentar contra as leis divinas (leis não escritas), fora advertido pelo cego adivinho, Tirésias, que sofreria a ira dos deuses. Sua descendência estaria condenada à desgraça. Hêmon, filho de Creonte, é noivo de Antígona e também tenta mudar a ideia do pai de punir a noiva. A cidade também se comove com decisão de Antígona. Mas Creonte, em nome da lei, não os escuta... Hêmon decide morrer com a amada e foge do pai dizendo que nunca mais quer rever seu rosto. Antígona foi encerrada em uma caverna com uma porção de comida que dê para um dia, para que a cidade não fosse maculada pelo sacrilégio. O velho Tirésias volta a falar com Creonte em seu palácio a respeito do castigo que os deuses reservam para o rei se este não voltasse atrás em seu injusto decreto. Consegue, por fim, convencê-lo e Creonte vai com suas próprias mãos sepultar Polinices e libertar Antígona. Após certificar-se dos rituais fúnebres do cadáver já devorado por cães, e dirigindo-se para a gruta onde está Antígona, ouve um grito lancinante. Corre para dentro do túmulo e encontra Hêmon segurando o corpo de Antígona que se enforcou com o próprio cinto. Ao ver o pai, Hêmon o responsabiliza pela morte de sua amada e saca sua espada contra ele. Creonte escapa do golpe, mas Hêmon vergando a espada contra si próprio, crava-a no peito com furor e morre ao lado de sua noiva. Creonte, desolado, toma o filho nos braços e corre para seu palácio. Mas a notícia do acontecimento corre mais rápido e, quando ele chega, Eurídice, sua esposa, tão logo soube da morte de Hêmon, desferiu um profundo golpe com um ferro pontiagudo no fígado e já sem vida recebeu Creonte no palácio. A rainha morreu lançando sobre o marido a culpa pela morte de seu filho. O rei, amaldiçoado e infeliz, já não quer mais viver e aguarda com sua culpa a vinda de outra morte assim desejada: a sua própria. (Sófocles, s.d., pp. 75-111)

Nessa trágica história, temos no mínimo duas posições fundamentais, que nos colocam, a todos nós, uma questão ética capital: ou bem se é um sujeito à maneira de Antígona, que não cede de seu desejo, mas morre por essa causa; ou bem se é um sujeito à maneira de Ismênia, que dele cede em razão da lei do outro, da lei dos homens. Será mesmo que Ismênia vive?

À sua maneira, a mesma questão parece ocorrer com o pequeno Ludô: ou bem se é um sujeito à maneira do menino-menina, que moralmente não se acovarda mediante seu desejo, ao preço dos infortúnios sociais aos quais será acometido; ou bem se abre mão de seu desejo em nome do gozo medíocre a ser experimentado em conta-gotas a cada vez que se sente aprovado pela norma social.

Como bem lembra a psicanálise, não se trata aqui de tomar partido de alguma causa, pois nenhum discurso é o último, e, nesse sentido, todo discurso militante em defesa de um não será muito diferente do discurso em defesa do outro. Não estamos do lado de Ludô ou de Antígona, nem da norma social imposta desde fora, nem tampouco do lado das lutas das minorias sexuais para além da proteção social legítima a que se deve aos que se acham discriminados. Todos os discursos na realidade guardam seu peso alienador que subjuga sujeitos sem comiseração. Estamos do lado, aí sim, da assunção do desejo, do aparecimento do desejo, de fazê-lo surgir nesse mundo que parece induzir, a todos nós, à covardia moral, à miséria neurótica de não se deixar conduzir por seu desejo. Contra isso reside a causa genuína de um psicanalista, a qual, poderia ser também, e do mesmo modo, a causa daquele que se nomeia educador. "O que é o desconhecimento de seus desejos - ponto de partida da psicanálise? Essa é a pergunta que Freud não parou de fazer" (Foucault, 2010, p. 58).

E, para essa questão do aparecimento do desejo, a saída talvez seja a que Berliner generosamente nos empresta em seu filme, qual seja: a aceitação da fantasia do outro. A mãe de Ludovic consente com a condição sexual que seu filho apresenta somente quando ela "entra" na fantasia do menino-menina, quando essa fantasia a engole a ponto de querer vivo o seu filho, seja como ele for. Entrar na fantasia: eis, a nosso ver, o único modo pelo qual mães, pais, educadores, psicanalistas e sociedade de maneira geral podem agir para que os sujeitos se apresentem, para que seus desejos se inscrevam. E lembremos: a fantasia é o lócus essencial do desejo, é seu território; é desse desejo que se espera, à maneira de Ludô ou de Antígona, que o sujeito jamais venha a ceder-se.

O homem normal não apenas é muito mais imoral do que crê,
mas também muito mais moral do que sabe.

Sigmund Freud

 

REFERÊNCIAS

Berliner, A. (Diretor). (1997). Minha vida em cor-de-rosa [filme]. França/Bélgica: Sony Pictures. (Título original: Ma vie en rose)

Forastieri, A. (2001). Chega de escola: a formação clássica não faz nenhuma diferença. Caros Amigos. São Paulo: Editora Casa Amarela, 52, 38.         [ Links ]

Foucault, M. (1988). História da sexualidade I:a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal. (Trabalho original publicado em 1976)         [ Links ]

Foucault, M. (2010). Sexualidade e poder - 1978. In M. Foucault. Ditos e escritos V - Ética, sexualidade, política (M. Motta, org., 2ª ed., pp. 56-76). Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

Freud, S. (1967). Correspondance 1873-1939. Paris: Gallimard.         [ Links ]

Freud, S. (1980a). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 7, pp. 129-251). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905)         [ Links ]

Freud, S. (1980b). O ego e o id. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 19, pp. 23-90). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1923)         [ Links ]

Freud, S. (1980c). A dissolução do complexo de Édipo. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 19, pp. 217-228). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1924)         [ Links ]

Freud, S. (1980d). Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 19, pp. 309-324). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1925)         [ Links ]

Freud, S. (1980e). O mal-estar na civilização. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 21, pp. 81-178). Rio de Janeiro: Imago (Trabalho original publicado em 1930)         [ Links ]

Lacan, J. (1988). O seminário, livro 7: a ética da psicanálise, 1959-1960. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Pereira, M. R. (2013). O que quer uma professora? Educação e Realidade, 38(2),485-500.         [ Links ]

Roudinesco, E. (2003). A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Sófocles (s.d.). Antígone. Rio de Janeiro: Ediouro.         [ Links ]

 

NOTAS

1. O presente artigo comenta e teoriza, a partir da psicanálise, o filme Minha vida em cor-de-rosa, dirigido por Alain Berliner, numa produção franco-belgo-britânica de 1997.

2. Sociedade criada por Freud em 1902, que reunia o primeiro grupo seleto de psicanalistas e que serviu de embrião para a fundação da International Psychoanalytical Association (IPA).

3. No filme, em permanentes trajes cor-de-rosa, o que justificaria o título da película, a boneca Pam é uma espécie de réplica da conhecida boneca Barbie, da Mattel.

 

 

Recebido em março/2013.
Aceito em junho/2013.