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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.18 no.2 São Paulo ago. 2013

 

ARTIGO

 

O laço social na adolescência: a violência como ficção de uma vida desqualificada

 

Adolescence and social tie: violence as a fiction of a disqualified life

 

Lazo social y adolescencia: la violencia como ficción de una vida descalificada

 

 

Viviani S. C. CatroliI; Miriam Debieux RosaII

IDoutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Doutora em Ciências da Educação pela Universidade de Paris VIII (cotutela). Pesquisadora do Grupo Sujeitos, Sociedade e Política em Psicanálise da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. 32, Rue Sainte Marthe 75010 - Paris - França. vivianisc@gmail.com
IIProfessora do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo (IPUSP). Professora titular do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, SP, Brasil. Avenida Prof. Melo Moraes, 1721 Bloco F 05508-030 - São Paulo - SP - Brasil. debieux@terra.com.br

 

 


RESUMO

Este trabalho discute as estratégias dos adolescentes dos grandes centros urbanos, periferias e favelas na sua inscrição no laço social. A partir de um trabalho clínico de orientação psicanalítica com adolescentes em ambiente escolar, formulamos a hipótese: diante da violenta desqualificação de suas vidas e da falta de perspectivas de inscrição em um laço indicador de participação fálica no social, alguns jovens fazem da violência sua própria ficção, de modo a inverter lugares - de passivos à violência passam a ativos, em uma produção fantasmática, na qual a violência se torna a modalidade normatizada de laço social.

Descritores: adolescência; laço social; psicanálise; educação.


ABSTRACT

This paper discusses the strategies of adolescents in large urban centers, suburbs and slums for subscribing to the social bond. Based on a clinical work, under a psychoanalytic orientation, with adolescents from a public school, we formulated the following hypothesis: in face of the violent disqualification of their lives and the lack of prospects of an inscription in a bond minimally indicative of phallic participation in the social field, some youth make violence their own fiction in order to reverse the places - from passive to violence they begin to be active in producing a fantasmatic production in which violence becomes the standardized form of social bond.

Index terms: adolescence; social bond; psychoanalysis; education.


RESUMEN

Este trabajo pretende discutir las estrategias de los adolescentes de los grandes centros urbanos, periferias y chabolas en su inscripción en el lazo social. A partir de un trabajo clínico, de orientación psicoanalítica, con adolescentes de una escuela municipal, pudimos formular la hipótesis: delante de la violenta descalificación de sus vidas y de la falta de perspectivas de una inscripción en un lazo mínimamente indicador de participación fálica en el campo social, algunos jóvenes hacen de la violencia su propia ficción, de modo a invertir los lugares - de pasivos a la violencia pasan a ser activos en una producción fantasmática en que la violencia se torna la modalidad normatizada de lazo social.

Palabras clave: adolescencia; lazo social; psicoanálisis; educación; violencia urbana.


 

 

Este trabalho discute quais são as estratégias dos adolescentes dos grandes centros urbanos, periferias e favelas em sua inscrição no laço social, mais particularmente, como se inscrevem no campo social quando este se caracteriza como cenário de anomia social e de violência, em que sua vida e sua morte deixam de ter qualquer valor social positivo. Essa questão norteou a tese de doutorado de Viviani S. C. Catroli, intitulada Anonimato de vida e de morte: contemporaneidade e laço social na adolescência.1 A partir de um trabalho clínico de orientação psicanalítica com adolescentes de uma escola municipal brasileira na cidade de São Paulo, pudemos formular a seguinte hipótese: em face da violenta desqualificação de suas vidas e da absoluta falta de perspectivas de uma inscrição em um laço minimamente indicador de participação fálica no campo social, alguns jovens fazem da violência a sua própria ficção, de modo a inverter os lugares - de passivos à violência, passam a ser ativos em uma produção fantasmática em que a violência se torna a modalidade normatizada de laço social. Cabe ressaltar que estamos falando de uma produção fantasmática, e não de ação violenta.

Sabemos que o tempo da adolescência muitas vezes é associado a um momento de contestação e reivindicação. Mas diremos que, antes de tudo, a adolescência é um momento de destituição e constituição da ficção fantasmática que passará a orientar o sujeito no mundo. Muitas imagens povoam o imaginário social que alia, não poucas vezes, esse tempo do sujeito à violência, à delinquência e à agressividade. O imaginário social evidencia, segundo Castoriadis (1988), o lugar concreto que ocupa o sujeito na sociedade. No entanto, muitas vezes o lugar destinado ao jovem sujeito num determinado contexto social pode produzir apenas abandono e deriva subjetiva. O sujeito adolescente adere a esse lugar que lhe é atribuído pelo campo social, que lhe priva de um nome e lhe atribui apenas um número: ser um entre outros, a entrar e a sair da instituição correcional, prisional, escolar.

Diremos que, na contemporaneidade, o sujeito adolescente é confrontado com uma perda de referência discursiva por causa da justaposição de representações contraditórias enviadas como significantes de pertencimento ao campo social. Trata-se, como veremos mais adiante, da preponderância de um socius regido pela lógica do discurso do capitalismo, em detrimento do sistema nominativo e identificatório do discurso do mestre. Se o discurso do capitalismo se efetiva pela mensagem - certamente ideológica - de uma igualdade de lugares entre sujeitos, ele ao mesmo tempo fixa uma certa parcela da população, numa posição de exterioridade, de exceção, a esse mesmo sistema que parece incluir. Sob a égide do discurso do capitalismo, o sujeito, sobretudo o sujeito adolescente, pode acabar caindo numa errância subjetiva diante da incapacidade de nomeação positiva de um Outro de um social anômico, conceito que trabalharemos adiante com Agamben e Lacan.

Nesse contexto, a partir de um trabalho clínico com grupos de adolescentes em ambiente escolar, pudemos localizar algumas de suas estratégias de subjetivação nesses tempos sombrios. Para fins deste artigo, tentaremos mostrar que quando o sujeito adolescente é confrontado com a segregação de um Outro de uma sociedade anômica, quando é identificado ao lugar de resto do social, muitas vezes irá se narrar a partir de uma história ficcional violenta e socialmente desqualificada.

 

O adolescente no contemporâneo: o desamparo diante do Outro de um socius anômico

Em "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", Freud (1905/2006) irá dedicar um ensaio inteiro às reconfigurações da puberdade. Nesse texto, vemos que a teoria freudiana da sexualidade infantil apontará uma linha de desenvolvimento sexual em três etapas: autoerótica, narcísica e objetal. Tais etapas dariam conta de uma sexualidade infantil iniciada numa indistinção do corpo próprio, organizado como uma série de zonas erógenas parciais (órgãos genitais, boca, ânus, orifício urinário) e numa fragmentação dos objetos de satisfação. Posteriormente, estaria ancorada numa fase narcísica, imaginária, em que o sujeito renuncia ao investimento libidinal dirigido aos objetos de satisfação e se contenta com seus substitutos imaginários encenados na fantasia. Finalmente, propõe-se a uma escolha de objeto palpada em objetos externos reais, mediados pela diferenciação simbólica entre eu e outro, operada pela castração. E, a partir daí, uma série de objetos aparecerão como forma de suprir uma falta de objeto já instalada; objetos que irão assegurar uma satisfação sempre parcial e precária. Podemos assim dizer que, para o desenvolvimento da sexualidade humana, se faz necessário um recalcamento das pulsões sexuais infantis incestuosas, operação que leva a um período de latência, e um segundo velamento posterior, na adolescência, dessas mesmas moções pulsionais que serão trazidas novamente à tona nessa fase do desenvolvimento, em que a maturação do corpo reativa uma grande descarga de energia sexual que não pode mais ser contida pelo recalcamento.

O sujeito é convocado, na adolescência, a ressignificar todas essas moções pulsionais que estavam adormecidas. Desse trabalho de atribuir um novo sentido ao sexual antes adormecido, algo permanece e resiste a significação, "um resto carente de sentido - o traumático - a partir do qual o psiquismo se organiza. Esse resto diz respeito tanto ao sexual diretamente considerado, quanto às questões narcísicas que entram em cena em função dos conflitos de autoridade e poder" (Matheus, 2008, p. 622). Será esse novo velamento do real da castração que irá permitir ao adolescente ir de encontro ao Outro sexo, quando consegue suportar o trauma da castração pela via da construção de uma ficção que dê conta do sexual.

Em Lacan (1938/2001a), vemos como a questão adolescente se atualiza com a desestabilização da imagem do corpo próprio garantida pelo olhar da mãe e também pelo confronto com a dimensão do Outro sexo, simbolizado por meio da lei. Essa questão da imagem do corpo próprio foi trabalhada por Lacan (1998) no início de sua obra, no texto "O estádio do espelho como formador da função do eu" e em "Les complexes familiaux dans la formation de l'individu " (1938/2001a). O estádio do espelho marcaria o início de uma fase narcísica e o ultrapassamento da fase autoerótica do corpo fragmentado. Em Lacan, será pela função do olhar que a criança sairá, progressivamente, da confusão de um corpo despedaçado, graças à ilusão de um ideal da imagem de um Outro. Inicialmente, a criança se desloca da posição de ser o objeto do gozo da mãe, e, num segundo tempo, como forma de se defender da ausência desse Outro primordial do qual se faz objeto, elege um objeto do mundo externo com o qual irá gozar, como forma de dar conta da falta desse primeiro Outro. Temos aqui o momento da inscrição no campo do simbólico, em que o sujeito deve abrir mão do gozo e ficar com a promessa de um dia poder também gozar. Nessa operação, algo se perde, o objeto a, causa do desejo, responsável pela circulação do sujeito na cadeia significante. O sujeito se constitui por relação a uma falta e, supõe no Outro, o detentor de uma verdade que lhe permita aceder a esse momento primeiro, anterior, de satisfação. Nas palavras de Lacan: "a unidade que ela introduz nas tendências irá contribuir, portanto, para a formação do eu. Mas, antes que se possa afirmar sua identidade, o sujeito se confundirá com essa imagem que o forma, mas que também o aliena primordialmente"2 (Lacan, 1938/2001a, p. 43, tradução nossa).

É, então, essa conta do gozo perdido e prometido que vem o adolescente cobrar. Mas qual será sua surpresa? A de que não há, no campo do Outro, esse significante que dê provas de sua verdade enquanto sujeito, e que esse Outro não detém a chave para o seu encontro singular com o sexual. Nas palavras de Poli (2005), não haveria um significante pleno que garanta a significação do sujeito, ele falta também ao campo do Outro. Segundo a autora, o sujeito se desloca, na adolescência, de uma promessa de gozo fálico (masculino) para cair no impossível da satisfação sexual do Outro sexo, representado como falta, como feminino.

A adolescência é o tempo em que a imago parental é colocada em xeque pela confrontação com o engodo da promessa edipiana. O adolescente corre, então, em busca de um Outro discurso que possa orientá-lo rumo à tentativa de encontro com o objeto de amor, no social, que fará suplência a sua falta. É por isso que nessa passagem, em que o adolescente irá se confrontar com a ferida aberta - traumática - deixada pelo real da castração, a partir do qual o sujeito irá inscrever seu gozo na Lei da linguagem, da civilização, será fundamental encontrar um lugar de pertencimento no discurso social. O mesmo trabalho de inscrição deverá ter sido feito na cena familiar infantil, na qual pai e mãe investiram simbolicamente a criança com seu desejo parental, não anônimo. Em "Nota sobre a criança", Lacan (2003) aborda a posição que uma criança ocupa na família conjugal. A sua função "destaca a irredutibilidade de uma transmissão - que é de outra ordem que não a da vida segundo a satisfação das necessidades, mas é de uma constituição subjetiva, implicando a relação com um desejo que não seja anônimo" (Lacan, p. 369). Ou seja, um Outro deve responder pelo sujeito: responder a partir de sua própria castração.

Na obra de Lacan, a partir de Leséminaire, livre III: les psychoses 1957-1958, vemos delinear-se a concepção de que o Outro é ele mesmo barrado (Ⱥ), ou seja, é submetido às leis da linguagem, já tendo sido marcado pelo efeito do significante (Lacan, 1981). Será o pai simbólico o agente responsável pela inscrição da Lei no cerne do sujeito. Trata-se de uma inscrição no registro simbólico da linguagem, que funda a existência do ser como homem da cultura, marcado pelos interditos civilizatórios. Mas esse pai é ele mesmo castrado, carente e humilhado, nas palavras de Lacan, diferente do pai imaginário todo-poderoso. E é somente por isso que é capaz de transmitir a Lei, uma vez que também é a ela submetido. Deve-se entender aqui a diferença entre o pai imaginário todo-poderoso, não castrado, e o pai simbólico, pois este, pelo fato de ter assentido à Lei, é capaz de transmiti-la. O primeiro impõe a Lei a todo custo e é o fundador da instância do supereu; o segundo transmite a castração e insere o filho no mundo da cultura.

Nosso contexto contemporâneo dificulta a passagem, o luto, que permite a escolha pelos interditos do pai simbólico e sua função de responsável pela inscrição do sujeito como ser cultural. Mas por que dizemos que esse Outro do simbólico, cujo representante primeiro foi o pai dos interditos da civilização, se apresenta com as roupagens da anomia? Exatamente porque, como ele mesmo não se quer faltoso, ou seja, submetido à Lei que pretende carregar, consegue apenas produzir a paralisia do sujeito, que apenas obedece a um ordenamento sem lei, anômico. Diremos que o Outro de um social anômico é incapaz de responder ao sujeito com as balizas imaginárias garantidoras de uma existência num campo de sentido. E responder significa também suportar-se enquanto Outro faltoso, permitindo que o sujeito se confronte com o mal-estar inevitável de sua condição. Responder é suportar a angústia de sua própria incompletude.

Com essa ideia de um Outro, de um social que seria anômico, não pretendemos afirmar que o Outro do contemporâneo seria vazio de suas marcas significantes, não podendo disponibilizá-las aos sujeitos. Mas o conjunto de significantes que esse Outro coloca à disposição do sujeito adolescente dos grandes bolsões pauperizados, guetos e favelas são já marcados por significados portadores de desqualificação e geradores de dificuldades de inscrição adolescente no laço social.

Diremos que esse efeito de enganchamento significante pelo pior é mais evidente nesses bolsões em que a lei é desregrada, anômica, e os quais Agamben (2002) pôde nomear como zonas de exceção. Em Agamben (2002), o conceito de anomia é retomado acerca de sua análise sobre os campos como o novo estatuto dos espaços sociais de exceção do contemporâneo, representados pelas periferias, guetos e favelas dos grandes centros urbanos. A anomia da lei e seus espaços de exceção servem para abandonar aqueles sobre os quais deve deitar a mão para controlar e punir. Assim, o sujeito adquire um estatuto objetivizável, sobretudo quando faz parte do grupo daqueles identificados como resto social, amontoados nas limitações dos campos, ao abandono de uma lei que segrega.

Anomia e anonimato não se confundem. Sabemos, com Freud, que a lei jurídica é um dos braços da Lei simbólica. Quando a anomia se transforma no modo de funcionamento de boa parte de uma sociedade, o resultado é a produção de sujeitos sem afiliação nominativa no campo simbólico, sujeitos em deriva. Ou, muitas vezes, sujeitos identificados ao pior dos significantes disponibilizados a ele pelo social, sujeitos de vida e morte sem qualquer valor social positivo de pertencimento, sujeitos de existência desqualificada, anônima. Esses jovens são confrontados com um futuro incerto; relatórios apontam que, pelo menos, 81 mil adolescentes foram assassinados no Brasil nos últimos dez anos (UNICEF, 2011). Trata-se de vidas desqualificadas, jovens de futuro incerto, cercados pelo espectro de uma morte prematura e anônima. Veremos mais adiante, a partir de um fragmento de caso, os efeitos dessa maquinaria de exclusão.

 

Curto-circuito no laço social: do triunfo da culpa ao reinado do gozo

No entanto, como vimos, se a questão do laço social está no centro da passagem adolescente, ela é também central para a psicanálise. O laço social é o modo de tratamento do mal-estar resultante da entrada do sujeito na cultura. Podemos dizer que em Freud a manutenção dos homens no laço social só será possível graças à ação do sentimento de culpa. Em Lacan, o sujeito estará preso nas garras da linguagem, na qual se aliena e se transforma em um ser-da-civilização. Lacan poderá formalizar uma teoria do laço social graças ao conceito de alienação, que o levará a sua montagem discursiva de quatro patas. Laço social, em Lacan, é discurso. Para ele, o sujeito entraria no laço social pelo discurso do mestre, que é também o discurso próprio ao inconsciente, pela via da obediência.

Em "A dissolução do complexo de Édipo", Freud (1924/1996a) irá afirmar que esse complexo será o nó central da construção de uma sexualidade infantil. Nesse texto, ele trabalha os destinos da pulsão sexual infantil, que, em sua tendência libidinal incestuosa, sofrerá os interditos dessa satisfação e deverá sucumbir em face da ação do recalcamento e do sentimento de culpa. Diante da ação de interdição da satisfação imposta por uma autoridade externa, a saída perigosa encontrada pelo ego para escapar a esse controle despertado pela figura paterna será a identificação a essa autoridade e sua posterior introjeção pelo ego, resultando no onipresente supereu. No capítulo VII de "Psicologia de grupo e análise do ego", Freud (1921/1996b) irá afirmar que a identificação é a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa.

No entanto, a identificação não é certeza de total bem-estar para o ego. E é por causa da ambivalência dos sentimentos presente no cerne da identificação que não haverá garantias para o laço social. Para resumir, em Freud, vemos que constituição subjetiva inicia-se com o desenvolvimento, na criança, de uma moção pulsional agressiva advinda do confronto com a autoridade externa que lhe impede a satisfação pulsional. Em seguida, se é obrigado a abrir mão dessa agressividade para se guardar o amor parental; como saída para o sentimento de ambivalência - amor e ódio - pela autoridade paterna, a criança incorpora a própria autoridade castradora, introjeta-a, transformando-a em seu surmoi, o qual passa a estar de posse de toda a agressividade que a criança gostaria de exercer contra a autoridade da repressão. Tal agressividade se voltará contra o próprio ego, ou poderá ser desviada para o exterior, tornando-se um grande empecilho para a civilização. De toda forma, podemos afirmar que a alteridade, em Freud, se dá com a internalização da autoridade, formando o surmoi, cuja a expressão é o sentimento de culpa.

Enquanto a identificação pelo amor garantirá por algum tempo a ilusão de um laço social bem-sucedido, a introjeção da autoridade, criadora do supremo surmoi, cuidará da instalação do mal-estar nos laços sociais, graças a um sempre presente sentimento de culpa. Podemos então afirmar que, se a identificação é a base para a união num laço social, será o sentimento de culpa o princípio mantenedor dos homens no laço, para além do sentimento comum. Como garantir a manutenção do pacto social quando não há nenhum interesse comum que ligue os homens entre si? Como manter unidos, homens, já que estes não são capazes, livremente, de amar ao próximo como amam a si mesmos? De um lado, temos a instauração da lei jurídica, ou seja, de um ordenamento normativo que incide sobre os corpos individuais, limitando seus impulsos pulsionais em prol da manutenção do interesse comum. No entanto, mesmo a lei jurídica não é capaz de regular e controlar, de forma eficaz, as pulsões humanas. Mais eficaz é a força de controle do supereu. Como nos diz Ambertín (2011):

A lei estabelece os parâmetros do proibido e do permitido, no entanto, toda a humanidade, e a subjetividade que nela se aloja, manteve e mantém uma tentação sempre renovada de ultrapassar as bordas que demarcam o proibido, e o preço que se paga pela atração de condescender com esse interdito é o de uma humanidade culpada - aquilo que Freud estabeleceu como culpa inconsciente -, implicada nessa eterna atração de convocar o proibido. Ainda que a lei pacifique os humanos, não deixa de provocar-lhes a inquieta fascinação por transpor esse limite.3 (p. 1085, tradução nossa)

Logo, a lei não impede o ato, mas captura o sujeito no laço via sentimento de culpa. De acordo com Freud, o sentimento de culpa se instalaria com a passagem da identificação com a autoridade parental externa para a introjeção dessa autoridade no ego, com a criação do supereu, ou seja, de uma instância interna de controle da libido.

Na contemporaneidade, contudo, o sentimento de culpa sai de cena como organizador do laço social, e cede espaço à desregulação do liame graças à lei cega imposta pelo imperativo de gozo. Poli (2005) irá identificar os três tempos da alienação na obra de Lacan. O primeiro deles, da alienação primordial, seria trabalhado no estádio do espelho, em que Lacan irá situar o eu - moi, produto das identificações - numa relação de submissão à imagem especular garantida por um outro, representado inicialmente pela imago materna. O segundo tempo é trabalhado por Lacan (1981) em Le séminaire, livre 3: les psychoses, e é claramente inspirado no trabalho de Hegel. Nesse momento teórico de Lacan, a relação entre eu e outro se instalava numa relação intersubjetiva, baseada na ideia de uma eficácia discursiva que uniria eu-outro, em que nada faltaria à dialética da significação, ao simbólico, em cujo princípio haveria um significante no Outro que garantiria o sentido do sujeito. Nas palavras de Poli (2005):

Em síntese, na primeira apropriação psicogenética da dialética, Lacan elabora o processo de constituição do sujeito pautado pela dialética intersubjetiva. Ela se suporta em sua teoria da significação que parte da suposição de completude do universo discursivo. Isto é, tal como formulado no Seminário III, Lacan identifica no significante do Nome-do-pai e, posteriormente, no significante fálico, um representante, constituído pela via da metáfora, que seria suficiente para dar suporte à significação do sujeito. (p. 128)

Mas será apenas com a elaboração de uma teoria sobre o objeto a, que Lacan irá se reposicionar com relação ao uso do termo "intersubjetividade". Isso porque, ao contrário da elaboração anterior presente em Le séminaire, livre 3: les psychoses, a tomada do objeto a como ponto da falta estrutural do sujeito, implica entendermos que não há nada no Outro, ele não detém nenhuma coordenada que garanta a verdade do sujeito. Fala-se de laço discursivo, e não mais de intersubjetividade, pois será o discurso uma forma de aparelhamento do gozo do sujeito; ou melhor, a lógica discursiva é a forma encontrada por Lacan, na linguagem, para além da fala - a qual daria conta apenas da intersubjetividade entre dois sujeitos, em que haveria uma eficácia da comunicação, já que não se levaria em conta a dimensão do não sentido, do não senso, do inconsciente -, de incluir o objeto a na relação entre sujeitos e na relação do sujeito com o Outro.

Assim, como um sistema de quatro patas, com quatro tipos de articulação discursiva, Lacan definiu as possibilidades de enlaçamento social sustentadas por quatro tipos de posição subjetiva - o mestre, a histérica, o universitário e o analista -; quatro lugares habitados pelo sujeito em seu enlaçamento com o Outro do social. O discurso do mestre equivale à entrada do sujeito no campo da linguagem. É a entrada do sujeito na história, na civilização, o que implica que este abra mão de seu gozo, consentindo o ordenamento da lei social. Ele coloca em cena a dupla alienação do sujeito: ao significante e ao Outro social, da lei. Não nos cabe aqui pormenorizar os quatro discursos lacanianos, mas cabe-nos apontar que o psicanalista fez menção a mais um discurso; um que seria uma corruptela do discurso do mestre, a saber, o discurso do capitalista. Diremos que essa formação discursiva, que viria para corromper o ordenamento inicial do mestre, seria o laço social hegemônico do contemporâneo.

 

Da disciplina ao capitalista

Podemos analisar a transição do mestre para o capitalista se levarmos a cabo a pequena indicação dada por Zizek (1993), quando afirma que o trabalho de Foucault sobre as astúcias do exercício do poder disciplinar descreveria de forma exemplar a lógica do discurso do mestre construído por Lacan. O advento do capitalismo industrial produziu suas marcas não apenas na reorganização dos modos de produção, mas também nos processos de subjetivação da modernidade. Essa reorganização específica dos modos de produção e seus efeitos para a construção dos corpos individuais e para as instâncias grupais de organização marcou a formação de um modo específico de exercício do poder, chamado por Foucault (1987) as sociedades disciplinares.

Pode-se dizer que as tecnologias de poder da modernidade disciplinar irão se afirmar num duplo funcionamento. O primeiro deles foi nomeado por Foucault (1987) como anatomopolítica dos corpos individuais e se instaurou como as disciplinas. As disciplinas foram todos os métodos que tornaram possível o controle detalhado de todas as operações sobre o corpo, sujeitando suas forças e impondo a elas uma relação de utilidade-docilidade. Em concordância com esse funcionamento, observa-se, durante a segunda metade do século XVIII, o nascimento de uma biopolítica da espécie humana. De acordo com essa lógica, importará menos tratar do corpo individual do que dos fenômenos de conjunto, como forma de obter estados globais de equilíbrio e regularidade.

As sociedades contemporâneas, regidas por um capitalismo avançado e acumulativo, se sustentam distintamente. Uma diferença fundamental entre o funcionamento das sociedades disciplinares, juntamente com sua lógica capitalista industrial e pré-industrial, e as sociedades de controle contemporânea e seu capitalismo de mercado neoliberal diz respeito à categoria do excesso da produção, o que remete diretamente ao estatuto do objeto a. Nas disciplinas, teríamos um controle e normatização de tudo aquilo que excedia: pulsões, excessos de comportamento, acumulação da mais-valia.

Já nas sociedades de controle não se tratará mais de cercear o excedente, mas sim de acelerar a produção desse excedente, disponibilizando-o ao sujeito. Desse modo, o ponto central do qual partimos para situar a passagem da sociedade disciplinar, organizada segundo o modo discursivo do mestre, para as sociedades de controle, regidas pelo discurso do capitalista, será pela função que irá ocupar o objeto a, antes como excesso normatizado pela castração, agora puro gozo, ilimitado e destinado ao desperdício.

O discurso do capitalista não foi formalizado por Lacan como o foram os outros quatro: mestre, histérica, universitário e analista. Mas o psicanalista faz referência a esse discurso na conferência proferida em Milão, em 12 de maio de 1972, e podemos também encontrá-lo no ensino de Lacan entre 1970 e 1974, em Oseminário, livro16:de um Outro a outro e em O seminário, livro 19: ...ou pior, e ainda em Télévision, de 1973. Como uma corrupção do discurso do mestre, sua astúcia se porta em obliterar a impossibilidade de encontro entre sujeito e objeto. O discurso do capitalista inverte o discurso do mestre e produz um curto-circuito no sentido das setas, fazendo com que o sujeito ($) tenha acesso ao objeto (a). E o que antes restava disjunto, por força de estrutura e pela presença da barreira de impossibilidade - barrière de jouissance (Lacan, 2001b) -, no lado de baixo do matema, pode agora se juntar por força do discurso do capitalismo. Sob a égide do discurso do capitalista, o que resta ao sujeito é assentir ao imperativo de gozo pela promessa de satisfação via objetos de consumo. Trata-se de uma estratégia de amparo que desordena o laço social e incide sobre os modos de subjetivar e enlaçar dos sujeitos, já que estes passam a ser objetos-para-o-outro.

O sujeito fica à mercê do desarranjo de lei que sustenta o gozo. Se antes, no discurso do mestre, o ordenamento era claro, pois identificava o sujeito, vemos no discurso do capitalismo um imperativo, um ordenamento cego, porque sob o comando do gozo. Podemos assim afirmar que, com o discurso do capitalista, saímos definitivamente de uma lógica social fundada por meio da culpa deixada pela castração, para entrarmos na era em que o gozo triunfa. Essa hegemonia do gozo sobre a culpa pode ser vista pelo seu vínculo com o desregramento da lei. O laço social do capitalismo irá abolir a dimensão do semelhante, transformando-o como puro objeto, consumível, resto a ser aniquilado como tentativa de apagar o furo do cenário perfeito do capitalismo de consumo, que nos faz crer que somos todos "sujeitos-consumidores", quando, na verdade, estamos mais para sujeitos consumidos pelo objeto.

Assim, vemos não ser suficiente lançar mão dos objetos de consumo que desfilam pelas vitrines, como forma de sanar a angústia da castração, o que busca obliterar o discurso do capitalista. Desse modo, serão eleitos como sintoma social todos aqueles que forem pobres demais para a dívida capitalista (Deleuze, 1992), os "inimigos do sistema", que deturpariam a cena idílica perfeita instalada pela fantasia "sujeito-consumidor". Serão esses os sujeitos de uma sociedade anômica.

 

A violência como ficção de uma vida desqualificada

Sob a égide do discurso do capitalismo, a lei passa a ter a forma do abandono, por isso podemos falar de um Outro de um social anômico, incapaz de responder ao sujeito com o enigma que implica sua existência num laço que o antecede. Em um trabalho clínico realizado em uma escola municipal de São Paulo, nos questionamos sobre os modos e as estratégias de inscrição no laço social dos adolescentes imersos num contexto de violência urbana. Foi na tentativa de responder a essa interrogação que realizei a tese de doutorado intitulada Anonimato de vida e de morte: contemporaneidade e laço social na adolescência. Graças ao trabalho como psicóloga clínica orientada pela psicanálise, realizado nessa escola paulistana, pudemos lançar algumas hipóteses sobre os modos de subjetivação dos adolescente quando confrontados com as dificuldades de um futuro sem espera. Durante cerca de sete meses, realizamos três grupos de conversa com adolescentes de idade variável, entre 12 e 16 anos. Dois desses grupos foram conduzidos em conjunto com a psicanalista Ana Musatti Braga.

Constituir pequenos grupos de conversa, de orientação psicanalítica, foi nosso método de intervenção clínica no ambiente escolar. Esse dispositivo se inscreve no campo das práticas que convencionamos chamar clínico-políticas, na medida em que se constituem como estratégias de intervenção, orientadas pela teoria psicanalítica, implicadas com o contexto social em que se inserem. Essa clínica - que chamamos de prática psicanalítica clínico-política - lança desafios e exige estratégias em dois âmbitos: do sujeito e das práticas sociais. Do lado do sujeito, propõe considerar a questão da angústia em sua face política, ou seja, a produção sociopolítica da angústia diante das diversas modalidades de violência e ruptura e o consequente apagamento do sujeito, impedido de se separar do discurso social que o aliena e o impede de endereçar sua demanda. Do lado das instituições sociais (educacionais, de saúde e jurídicas), propõe considerar as formas sutis de preconceito de classe, de raça ou de gênero, presentes nos mecanismos de individualização, criminalização e patologização, efetivados mediante práticas ditas científicas, que desvinculam os acontecimentos da história pessoal, familiar dos sujeitos implicados na cena, dos aspectos institucionais, sociais e políticos.

Nessa situação escolar, que detalharemos a seguir, focamos nossa intervenção na potência do sujeito adolescente confrontado com os mecanismos de expulsão da instituição. A demanda dessa escola nos chegou sob a forma de uma pergunta: "O que se passa com alguns desses meninos, pois temos a sensação de que nossa palavra os atravessa sem deixar marcas, sem produzir efeitos?". A diretora da escola nos pedia que fizéssemos algum trabalho com os adolescentes, ditos, difíceis. O que pretendemos com esses grupos de conversa foi criar a possibilidade de o adolescente encontrar um Outro receptivo e disposto a lhe fornecer um Outro saber, não fechado, que desestabilizasse as identificações que o aprisionavam. Possibilitar ao adolescente um encontro com uma palavra prenhe de significação é dar-lhe a garantia de um sentido e a sensação de que haveria no mundo um lugar que o perdeu; ou seja, garantir sua existência como pertencimento. Para isso, nos inspiramos no trabalho de Lacan sobre os pequenos grupos, principalmente no que diz respeito à posição que ocupamos ao coordenarmos esses grupos de conversa, trabalhando pela desidentificação dos significantes-mestre fixos do discurso social.

No que concerne ao funcionamento desses grupos, cabe ressaltar que eram semanais e organizados por série escolar. A participação dos adolescentes era facultativa, mas, uma vez que se engajavam, pedíamos que sustentassem esse compromisso para não causar problemas à organização da rotina escolar de cada um. A temática dessas conversas era livre. Nesses grupos que realizamos com os adolescentes, pudemos localizar algumas de suas estratégias de subjetivação. Traremos, para este artigo, um pequeno fragmento de caso em que o sujeito, ao se identificar ao lugar de resto do social, irá se construir a partir de uma narrativa violenta, uma história de guerras e tiros, uma ficção desqualificada na qual achara exílio e pertencimento. A partir desse fragmento de caso relatado a seguir, anunciaremos a hipótese que pudemos construir em detalhe em nossa tese de doutorado; qual seja, a de que a violência contemporânea seria componente de uma produção ficcional e modalidade de laço social ao aparecer como produção fantasmática no relato de certos adolescentes.

Havíamos começado um grupo de conversa composto apenas por meninas. Não era excludente a participação de meninos, mas uma das dificuldades desse grupo suportar qualquer tipo de abertura. Um menino, R., diz que gostaria de participar das conversas e se apresenta às meninas, explicando suas razões. Ele havia sido reprovado no ano anterior e agora estava numa turma de alunos mais novos; R. nos diz que seus amigos só falavam besteiras e que, ali, com as meninas, poderia falar coisas mais interessantes. Ele conta que ainda não podia entender os motivos de ter sido reprovado no ano anterior; acredita ser vítima de uma perseguição da diretora da escola. As meninas, que sabiam o porquê de ele ter sido reprovado, contestam sua versão. R. então, nos diz que havia feito todas as tarefas da escola, mas que, para isso, tinha pegado de empréstimo "a letra" de seu pai. Ele nos diz que fez suas tarefas com as mãos de seu pai. Quando é acuado pelas meninas, que fazem com que ele se posicione como sujeito de seu destino, R. conta que de fato viajou ao ter "tomado de empréstimo a letra de seu pai". Perguntamos que tipo de viagem tinha sido essa. Ele nos relata um conto que imaginou de uma viagem feita com sua mãe ao Afeganistão. No meio de uma história cheia de tiros e lançamentos de granadas, R. diz ter ido ao Afeganistão, pois este seria o único lugar para onde os pobres teriam o direito de viajar nas férias.

Depois da construção dessa ficção, que se assemelhava a uma narrativa fantástica, de métrica precisa e mesmo musical, as meninas o aceitam no grupo. Contudo, na semana seguinte, R. aparece no grupo acompanhado de mais dois meninos, o que causa um reboliço generalizado entre as meninas. Elas dizem que os meninos não eram confiáveis. R. acaba sendo expulso e, por isso, nos pede a criação de um grupo formado apenas por meninos. Esse grupo de meninos irá carregar como marca de nascença a aderência ao significante não confiáveis.

O grupo de meninos tem início, mas, no lugar de palavras, temos pedras. Esse grupo se reúne em um espaço localizado entre a escola e a rua, um espaço fechado e reservado, localizado no jardim da escola. No caminho que os leva ao espaço do grupo, os meninos recolhem algumas pedras que estão no jardim da escola, e passam boa parte do nosso tempo de conversa arremessando essas pedras contra a parede, enquanto passamos boa parte do tempo pedindo que deixem de lado as pedras para que possamos conversar. Uma vez dentro do espaço do grupo, as pedras continuavam a interromper as palavras, sendo arremessadas de todos os lados. Até que, em vez de esperar que deixem do lado de fora as pedras, decidimos aceitar sua presença no grupo. Eles nos prometem não jogá-las uma vez começada a conversa. Conseguimos conversar por certo tempo, até percebermos que o arremesso de pedras não havia cessado; dessa vez elas eram lançadas por alguém do lado de fora do espaço do grupo. Como dissemos, nossas conversas eram realizadas num espaço fechado, localizado no jardim da escola. Esse espaço tinha diversos furos que faziam a ligação com o mundo exterior. As pedras que atingiam o grupo eram, dessa vez, arremessadas por crianças pequenas que aproveitavam seu tempo de recreação para invadir o grupo com seus olhares e pedras.

Devemos lembrar que esse grupo se constituiu em torno do significante "não confiáveis", lançado anteriormente pelas meninas. As pedras que vinham do exterior do grupo serviam para que não se esquecessem do lugar de resto que ocupavam no imaginário social-escolar. Para esses meninos, a construção de um lugar de pertencimento não foi possível, e diante do ataque do Outro do social, só puderam calar. Apenas no ultimo dia do trabalho com o grupo, sem a presença dos meninos mais novos que povoavam o grupo com seus olhares, pudemos conversar. R., nos diz de seu desejo de fazer música no futuro. Nesse último encontro, eles nos perguntam: "ainda nos resta 5 minutos, o que vamos fazer?" Ao que respondemos: "vamos limpar esse espaço e catar essas pedras".

Agamben (2008) irá afirmar que o emudecimento é uma forma de subjetivar na mais completa dessubjetivação do socius. R., o menino fabricador de casos de nosso grupo de conversa, emudece ao ser segregado pelo grupo de meninas. Ele considerava que ali era o lugar que poderia acolher sua história. Quando pôde nos contar sobre os motivos que o levaram a querer conversar em grupo, apresentou-se como aquele que escrevia com as mãos de seu pai e como aquele que viajou por terras do Afeganistão, no meio de tiros e granadas, porque, segundo ele, esse era o único tipo de viagem a que tinham direito os pobres. Essa sua primeira construção ficcional diz respeito a um impossível de responsabilização do sujeito pelo seu destino: escreveu com as mãos de seu pai, foi alvo de perseguição da diretora, por isso não passou de ano. Jerusalinsky (2004), em seu artigo "Adolescência e contemporaneidade", irá afirmar que nossa sociedade se afirma numa aleatoriedade do destino, na qual o sujeito é desresponsabilizado, suprimido, de suas próprias escolhas. Ao contrário das sociedades gregas, que possuíam uma forte consciência trágica, nossa sociedade atual substituiu a dimensão da experiência pela dimensão do conhecimento técnico, que desconsidera a historicidade do sujeito.

Em sua outra construção, uma história ficcional de guerras e de tiros, R. aparece colado a um lugar de resto do social, do refugo, podendo situar-se como sujeito a partir dessa ficção socialmente desqualificada, que terá na violência urbana contemporânea sua linha de construção. Vemos, então, como as histórias de violência não aparecem tanto como relatos da realidade diária dos sujeitos a ela expostos, mas sim como construções ficcionais em que os sujeitos se contam e conseguem se incluir. Nas conversas que tivemos em grupo, em alguns poucos momentos pudemos tocar em pontos delicados da história de cada um desses meninos: as feridas abertas pelo assombro diário da violência, pela morte ou pelo encarceramento dos pais e tios, ou pelo simples desaparecimento dessas figuras masculinas. No discurso desses jovens, vemos a violência aparecer como um forte componente ficcional da construção narrativa. Então, retomando o que afirmamos no início deste artigo, diremos que, diante da violenta desqualificação de suas vidas e da falta de perspectivas de inscrição em um laço indicador de participação fálica no social, alguns jovens fazem da violência sua própria ficção, Desse modo, invertem lugares: de passivos à violência, passam a ativos, em uma produção fantasmática na qual a violência vem a ser a modalidade normatizada de laço social. Voltamos a ressaltar que se trata de produção fantasmática, e não de ação violenta.

Num contexto de fragilização social caracterizado por enormes zonas anômicas e seus bolsões de exceção, o sujeito adolescente pode encontrar dificuldades de arrimar, de ancorar sua existência em um Outro que se faça fiador de seu desejo. Assim, como diz Rosa (2010), o adolescente se expõe ao risco de confrontação com o traumático e de emudecimento diante deste, já que esse Outro não lhe garante mais uma experiência de sentido e pertencimento que lhe facilite sair da solidão e de responder como sujeito. Rosa e Poli (2009) seguem as pistas de Agamben (2008) e se interrogam sobre essa espécie de exílio identificatório do sujeito, que poderia significar uma estratégia de subjetivação. As autoras nos dizem desse estranho paradoxo que consiste num "retirar-se da identificação com o semelhante e assim tocar no solo comum, no ponto de identificação máxima, de objeto-resto, que situa - como indica Agamben - aquele que é impossível de olhar, mas que não se pode não ver, que perfaz uma imagem absoluta, 'imagem-tabu' " (Rosa & Poli, 2009, p. 8).

Diremos que R. pode transitar entre alguns tempos de subjetivação: desresponsabilização, identificação pelo pior, emudecimento e redescoberta da palavra. Ele nos conta, em nosso último encontro, que antes queria ser policial ou militar, mas que talvez quisesse também fazer rap. Nesse quarto tempo de subjetivação, R. encontra um outro destino na mesma viagem que havia feito ao Afeganistão: dessa , ele é aquele que pôde fazer música com sua história, em vez de ser aquele que, por ser pobre, estaria destinado a um mundo de tiros e granadas.

Ao apontarmos a existência de tempos da subjetivação, nos posicionamos contra a ideia de que a estrutura do sujeito entraria em pane nesses tempos difíceis. Afirmamos, sim, que o laço social do contemporâneo é um laço em curto-circuito, que dificulta as estratégias de subjetivação singulares e não massificadas. Pensamos que não consentir o lugar a que estamos destinados pelo contexto social que nos conta, segundo seus significantes, pode acontecer quando se arremessa uma pedra ou quando se faz uma música. Existem vidas e histórias que são, elas mesmas, histórias de uma resistência. Esse destino não será para todos. Mas será para todos uma vida composta de tempos, de padecimentos, de consentimento, de desejo, de singularidade.

 

REFERÊNCIAS

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NOTAS

1. Doutorado realizado em 2011, em cotutela entre o Programa de Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e o Laboratório de Ciências da Educação da Universidade de Paris VIII.

2. Do original consultado: "l'unité qu'elle introduit dans les tendances contribuera pourtant à la formation du moi. Mais, avant que le moi affirme son identité, il se confond avec cette image qui le forme, mais l'aliène primordialement" (Lacan, 1938/2001, p.43).

3. Do original consultado: "La ley establece los parámetros de lo prohibido y lo permitido, sin embargo, la humanidad toda y la subjetividad que se aloja en ella, ha mantenido y mantiene una tentación siempre renovada a franquear los bordes que demarcam lo prohibido y el costo que se paga por la atracción a condescender hacia lo interdito es el de una humanidad culpable - aquello que Freud ha establecido como culpa inconsciente - implicada en esa eterna atracción a la que convoca lo prohibido. Aunque la ley pacifica a los humanos, no deja de provocarles la inquietante fascinación por abimarse más allá de ese límite" (Ambertín, 2011, p. 1085).

 

 

Recebido em março/2012.
Aceito em abril/2013.