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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.18 no.2 São Paulo Aug. 2013

 

ARTIGO

 

Ética da psicanálise, educação e civilização

 

Ethics of psychoanalysis, education and civilization

 

Ética del psicoanálisis, educación y civilización

 

 

Gabriela Gomes CostardiI; Paulo Cesar EndoII

IPsicanalista. Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), doutoranda em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil. Rua Afonso de Freitas, 451/13 04006-052 - São Paulo - SP - Brasil. gabicostardi@hotmail.com
IIPsicanalista. Professor doutor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil. Rua Tanabi, 162/12 05002-010 - São Paulo - SP - Brasil. pauloendo@uol.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo propõe-se a discutir o encontro entre psicanálise e educação a partir da dimensão ética. Abordamos algumas proposições de Freud sobre a educação e a aproximação dessas com suas concepções sobre a sociedade, demarcando o paradoxo que constitui essas diferentes posições. Para refletir sobre esse paradoxo, utilizamos o conceito de pulsão de morte e observamos que a moralidade tornou-se um ponto central na análise metapsicológica do sujeito educado e socializado. Por fim, confrontamos a posição ética na psicanálise e na educação e propomos que elas se distanciam em relação a suportar o furo no saber.

Descritores: psicanálise; educação; ética; pulsão de morte.


ABSTRACT

This paper discusses the dialogue between psychoanalysis and education on the dimension of ethics. We take into account some of Freud's propositions about education and their proximity to the author's conception of society as well as how these positions are paradoxical. In order to analyze these paradoxes, we use the death drive concept, and we consider that morality becomes a central point in the metapsychological analysis of the educated and socialized subject. Finally, we examine the relation between the ethics of psychoanalysis and education, and we propose that they are different in the way they support the hole in knowledge.

Index terms: psychoanalysis; education; ethics; death drive.


RESUMEN

Este articulo discute el encuentro entre psicoanálisis y la educación a partir de la dimensión ética. Consideramos algunas proposiciones de Freud sobre la educación y su proximidad a el concepto de la sociedad del autor y como estas posiciones son paradójicas. Para analizar estas paradojas, utilizamos el concepto de la pulsión de muerte, y consideramos que la moralidad se convierte en un punto central en el análisis metapsicológico de el sujeto educado y socializado. Finalmente, examinamos la relación entre la ética de psicoanálisis y la sublimación, y proponemos que son diferentes en la manera que apoyan el hueco de conocimiento.

Palabras clave: psicoanálisis; educación; ética; pulsión de muerte.


 

 

O belo é a dimensão do terrível que desdenha destruir-nos.
Rilke

O encontro entre psicanálise e educação pode ser proposto tomando-se por base inúmeros vieses. Freud não tinha na educação um tema privilegiado de sua pesquisa, ele fez pronunciamentos pontuais sobre a questão e propôs esse encontro a partir de diversas perspectivas, ora entendendo que a psicanálise pode oferecer um importante esclarecimento sobre o desenvolvimento infantil aos educadores (Freud, 1913/1969, 1913/1976a), ora propondo que os educadores se beneficiariam em sua tarefa se passassem por um processo analítico (Freud, 1925/1976b, Freud, 1933/1976c). Além disso, o próprio Freud definiu o processo de análise como uma pós-educação (1913/1969, 1925/1976b), e até hoje se discute a proximidade "indesejável" da posição do analista com a do educador.1

O que queremos ressaltar de início é que, apesar de aparecerem algumas referências à educação ao longo da obra de Freud, ele não se propôs a dialogar com ela enquanto um campo de saber, como fez com inúmeras outras áreas, por exemplo, as pesquisas antropológicas que fundamentaram "Totem e tabu" (Freud, 1913/1976d) ou os estudos biológicos que inspiraram noções sobre a teoria das pulsões (Freud, 1920/2006); e, se ele se pôs a aprender com a arte e a ciência, isso não ocorreu com a educação. Entendemos que o fundador da psicanálise tomou a educação mais como uma prática social do que como uma área do conhecimento, tanto que não fez uma distinção clara entre educação e pedagogia, e a educação parece ter-lhe interessado naquilo que ela tem de proximidade com a psicanálise: o fato de que ambas são profissões impossíveis, juntamente com a ação de governar (Freud, 1925/1976b).

A ideia de impossibilidade, nesse contexto, não é claramente definida pelo fundador da psicanálise, e a tomamos aqui a partir da experiência de que o homem não pode ser completamente educado, analisado ou governado. Haverá sempre um ponto de resistência, um resto ineducável, inanalisável e ingovernável que testemunha a presença do sujeito. Isso significa que esses processos não apenas colocam em jogo o âmbito da consciência, mas também mobilizam o sujeito do desejo por meio da ligação do indivíduo com um outro encarnado, o que Freud chamou de transferência. Assim, enquanto empreitadas comandadas pelo desejo, educar, governar e psicanalisar nunca alcançarão plena fidelidade entre seus objetivos e resultados. O que será aprendido, qual destino pode ter uma análise ou qual a eficiência de um governo são questões que nunca poderão ser respondidas de antemão, e isso não se deve a alguma deficiência dos instrumentos utilizados nesses campos para a obtenção de seus fins, mas à própria estrutura do objeto sobre o qual pretendem intervir: o ser humano. Isso não significa que os meios empreendidos na educação, na psicanálise ou no governo não tenham influência em sua operacionalização, e sim que há algo além disso, o qual não está comprometido com o projeto homogeneizador da civilização e ao qual podemos chamar singularidade, desejo, sujeito ou mesmo impossível.

Dito isso, entendemos que se faz necessária uma justificativa. Se Freud não dialogou com a educação, por que nós, enquanto psicanalistas, nos propomos a tal? O que nos interessa argumentar aqui é que há, na estrutura tanto da psicanálise quanto da educação, uma questão sobre a ética e que o modo como ela se apresenta em cada um desses campos dá provas da diferença radical de suas possibilidades de incidência sobre o sujeito.2 Portanto, a dimensão ética será o viés de nossa interlocução entre a psicanálise e a educação.

 

A sublimação como saída para o mal-estar

questão da moralidade está diretamente ligada ao processo educativo, e a psicanálise tem algo a dizer sobre isso. Freud trouxe para o centro do seu debate a função moral, e Lacan confrontou as proposições freudianas com algumas leituras tradicionais sobre o tema, para postular uma ética própria à psicanálise. A ética da psicanálise não pode ser estendida ao mundo, ela tem origem e operacionalidade na experiência própria de uma análise; mas, diante do questionamento da tradição, iniciado na modernidade, as convicções estabelecidas sobre a relação do homem com a moral foram colocadas em xeque e a novidade freudiana sobre o inconsciente e o desejo trouxe elementos importantes para esse questionamento (Kehl, 2002). Portanto, não pretendemos aqui propor a substituição da moralidade própria à educação pela ética da psicanálise, e sim confrontar esses campos heterogêneos entre si, a fim de provocar alguma dispersão e invenção necessárias àqueles que se dispõem a lidar com tarefas impossíveis.

Em "Moral sexual 'civilizada' e doença nervosa moderna", Freud (1908/1976e) define a moral sexual da época como aquela que condena qualquer prazer sexual não genital, que seja buscado fora do casamento monogâmico, sem vistas à procriação. O autor denuncia o quanto a permissão de um modo exclusivo de gozo sexual causa a doença neurótica, na medida em que, mesmo sendo possível deslocar parte da libido para fins não sexuais, sempre será necessária alguma satisfação sexual direta, e as possibilidades dessa satisfação são particulares a cada sujeito. Ao longo da análise da sociedade que faz nesse momento, Freud apresenta sua concepção de educação, a qual diz respeito a um mecanismo da civilização utilizado para inserir cada indivíduo nos ideais coletivos.

A crítica de Freud sobre a civilização também se estende à educação e tem a ver com o fato de ele estar em plena formulação da teoria das neuroses e observar o quanto os conteúdos recalcados não se extinguem, mas atuam com maior potência desde o inconsciente. A ideia de profilaxia das neuroses está no centro de suas preocupações, e é isso que ele pretende legar à educação. Em "O interesse científico da psicanálise", Freud (1913/1976a) tem um tom unívoco em sua orientação: esclarecer os educadores sobre os prejuízos da supressão das pulsões e propor-lhes que conduzam o desenvolvimento das crianças através do deslocamento das pulsões sexuais para fins não sexuais; ou seja, a sublimação aparece, nesse momento, como um destino pulsional que tem a capacidade de conjugar a existência individual e coletiva sem fazer sintoma, sem causar sofrimento. Seria uma aposta freudiana na possibilidade de uma civilização sem mal-estar?

A educação deve escrupulosamente abster-se de soterrar essas preciosas fontes de ação e restringir-se a incentivar os processos pelos quais essas energias são conduzidas ao longo de trilhas seguras. Tudo o que podemos esperar a título de profilaxia das neuroses do indivíduo se encontra nas mãos de uma educação psicanaliticamente orientada. (Freud, 1913/1976a, p. 226)

Mas há um ponto de virada na teoria pulsional freudiana, a partir do qual os grandes temas de sua pesquisa sofrerão transformações. A agressividade, que até então era um componente da pulsão sexual - seja como sadismo, seja como masoquismo - ou uma inversão do seu conteúdo - a transformação do amor em ódio (Freud, 1915/2004) -, passou a ter uma fonte específica, a qual é constitutiva do ser humano. A partir desse momento, a pulsão sexual e a pulsão de autoconservação ficaram reunidas na pulsão de vida, a qual passou a se opor à pulsão de morte (Freud, 1920/2006). O fato é que, enquanto tomava a agressividade como uma modificação da pulsão sexual, ou seja, apenas a pulsão sexual precisava "ser domesticada" em nome da convivência social, Freud apostava que o recalque poderia ser substituído pela sublimação com sucesso; mas, quando a agressividade passou a ser considerada uma força pulsional específica, a sublimação não ocupou mais o mesmo lugar na proposta freudiana sobre a sociedade e a educação.

O conceito de pulsão de morte terá efeitos revolucionários para o pensamento de Freud e assumirá um valor indiscutível ao longo de sua pesquisa. O que começou como uma hipótese mítica, lançada para dar conta de fenômenos da clínica, passou a figurar como conceito fundamental na metapsicologia freudiana e em sua leitura sobre a sociedade. Se, antes da pulsão de morte, a sublimação era a possibilidade de um destino pulsional sem conflito, sem resto, sem sintoma, isso não se manteve assim depois dela. E, sabendo que, a partir desse momento, o recalque foi compreendido por Freud como um mecanismo necessário para lidar com a pulsão e mesmo responsável pela estruturação psíquica, importa-nos ressaltar que o fundador da psicanálise perdeu a esperança de que o descompasso entre o homem e a sociedade pudesse ser resolvido pela sublimação, e isso teve grande influência em sua concepção sobre a moralidade.

 

A moral em tempos de inconsciente

Um dos primeiros textos em que Freud trabalhou as consequências da pulsão de morte foi "O ego e o id" (1923/1976f), no qual ele propôs uma nova tópica psíquica e a relacionou com o binômio pulsão de vida × pulsão de morte. Não nos deteremos nessa nova configuração do aparelho psíquico, mas importa-nos observar que houve uma modificação fundamental em relação à instância que se referia à moralidade até então. Quando tratara do narcisismo, o fundador da psicanálise havia proposto que a função moral seria exercida pelo ideal do ego, uma diferenciação do ego responsável por medi-lo a partir do ideal narcísico que foi atribuído ao filho pelos seus pais; agora, porém, o autor propõe nesse lugar uma instância ligada à função crítica, a qual advém dos complexos inconscientes derivados da repressão das escolhas objetais do Édipo.

O superego, contudo, não é simplesmente um resíduo das primitivas escolhas objetais do id; ele também representa uma formação reativa enérgica contra essas escolhas. A sua relação com o ego não se exaure com o preceito: "Você deveria ser assim (como o seu pai)". Ela também compreende a proibição: "Você não pode ser assim (como o seu pai), isto é, você não pode fazer tudo o que ele faz; certas coisas são prerrogativas dele". (Freud, 1923/1976f, p. 49, itálico nosso)

Além de impor como o sujeito deve ser, a instância moral também proíbe, e o faz de forma intransigente, até cruel, porque, ao levar em conta a pulsão de morte, Freud percebe que o superego é um dos destinos da agressividade que deriva dessa pulsão, ou seja, quando a agressividade não encontra expressão em relação ao exterior, é absorvida pelo superego, que exerce sua crítica contra o ego de forma hostil. "Permanece, contudo, o fato de que, como afirmamos, quanto mais um homem controla a sua agressividade, mais intensa se torna a inclinação de seu ideal à agressividade contra seu ego" (Freud, 1923/1976f, p. 71).

Portanto, o caráter censor da moral não se apresenta como um regulador das tendências que pedem satisfação no sujeito a partir de seu sentido de adaptação ao mundo externo, à voz da ponderação ou do bom senso; mas, enquanto função de uma instância psíquica que é destinatária da pulsão de morte, a censura do superego contra o ego é realizada de forma cruel e voraz. Melhor dizendo, ela tem como efeito moderar a satisfação das pulsões em relação aos objetos do mundo externo, mas o que fica em geral desconhecido é que ela gera um outro tipo de satisfação para o sujeito, uma satisfação paradoxal, ligada ao próprio sofrimento, à necessidade de expiar a culpa inconsciente, colocando em jogo o masoquismo moral. O que queremos destacar aqui é que, no quadro de referência da pulsão de morte, Freud coloca a instância moral como um dos destinos privilegiados da destrutividade que foi impedida de ser dirigida ao outro. Isso nos interessa porque pensamos ser o ponto diferencial das concepções freudianas sobre a moralidade em relação a outras concepções tradicionais, como abordaremos adiante.

O curioso é que a necessidade de lidar com a pulsão de morte e a questão de sua absorção pelo superego não se colocam somente quando a pulsão sofreu recalque, mas também no processo de sublimação. A última teoria pulsional prevê que pulsão de vida e pulsão de morte se apresentam sempre fusionadas, o que permite que elas sejam parcialmente neutralizadas uma pela outra. Levando em conta que a pulsão de vida é composta, em grande parte, pela pulsão sexual e sabendo que a sublimação provoca a dessexualização da pulsão, na medida em que ela é o direcionamento da pulsão sexual para fins não sexuais, fica claro que a sublimação implica um desfusionamento pulsional. Assim, a pulsão de morte, que não está mais neutralizada pela pulsão de vida, acaba sendo direcionada para o superego, e constitui seu caráter de crueldade.

Após a sublimação, o componente erótico não mais tem o poder de unir a totalidade da agressividade que com ele se achava combinada, e esta é liberada sob a forma de uma inclinação à agressão e à destruição. Essa desfusão seria a fonte do caráter geral de severidade e crueldade apresentado pelo ideal - o seu ditatorial "farás". (Freud, 1923/1976f, p. 71)

A consequência disso é que não temos mais uma aposta de Freud em uma saída pulsional que poderia reconciliar o individual e o coletivo sem resto, sem mal-estar, sem sintoma. A sublimação muda de estatuto, ela coloca em jogo a pulsão de morte, e não há mais a noção de que o recalque está do lado do mal do sujeito e a sublimação do seu bem. A própria noção de bem, no sentido moral, não tem a ver com bem-estar do sujeito, porque, muitas vezes, aquilo que traria prazer ao sujeito é moralmente condenável, e o bem implica sacrifício e renúncia. Quer dizer, o bem é um parâmetro que deriva do Outro, é a voz do Outro que fala através do superego, no sentido de que essa instância é fruto de uma identificação que o sujeito estabeleceu com a função do pai no Édipo, o pai estrangeiro à relação da mãe com a criança, o pai que porta uma referência ao social. Isso está conforme a ideia de Freud (1930/1974) de que a criança tem sua primeira aproximação com os preceitos morais como uma forma de responder à demanda do Outro para não perder o seu amor; ou seja, em princípio, o censo moral não diz respeito a um consentimento em renunciar à satisfação em nome da convivência comum, mas a acatar um pedido em nome de ser amado, até o ponto de isso, que vem do exterior, passar a constituir o mais íntimo do sujeito.

Uma questão que se impõe, nesse ponto, é a de que estamos retirando consequências da ideia de desfusionamento pulsional, a qual não é sustentada de forma consistente pelo próprio Freud, sendo bem conhecida sua afirmação de que "Então, se não quisermos abandonar a hipótese sobre as pulsões de morte, teremos que associá-las já desde o início às pulsões de vida" (1920/2006, p. 177). Uma análise minuciosa desse ponto nos exigiria um esforço que está além de nosso objetivo neste artigo, e o que queremos apresentar aqui é que houve uma mudança substancial no posicionamento de Freud em relação à possibilidade de sanar o mal-estar do sujeito civilizado e que seu conceito de sublimação exerceu um papel fundamental nessa trajetória. Ele funcionou, inicialmente, como a esperança de convivência pacífica entre o indivíduo e a coletividade, mas essa esperança não resistiu à fratura que o conceito de pulsão de morte gerou no pensamento do fundador da psicanálise; e assim, apesar de nunca ter sido alinhada com o recalque, a sublimação não ficou isenta de flertar com a neurose e o sintoma. Dessa forma, se a ideia de uma pulsão desfusionada é controversa, entendemos que, no texto de apresentação da segunda tópica, ela serviu para demonstrar que a sublimação coloca em jogo a pulsão de morte, e isso teve profundo impacto no pensamento freudiano, como pode ser visto em seus posicionamentos posteriores sobre a sociedade (Freud, 1930/1974) e a educação (Freud, 1933/1976c). Nesse aspecto, afirma Endo (2005):

Se é verdade que permanecem discutíveis quaisquer manifestações puras da pulsão de morte, resulta indiscutível que Freud decidiu-se por manter a pulsão de morte (destruição) como um fenômeno teoricamente independente no qual a aliança (invariável) com o sexual seria um fenômeno secundário. Ele evitou assim algemar algo que acabara de libertar, mantendo em aberto todos os desdobramentos e consequências que a admissão de uma destrutividade não sexual pudesse vir a ter. (p. 209)

Ao escrever a ética no campo da psicanálise, Freud não a aparentou com os ideais que fazem a civilização caminhar para o progresso contínuo, mas com a potência destruidora que faz sofrer e, por outro lado, permite criar. O bem e o belo, produtos das operações moral e sublimatória, respectivamente, são modos de o sujeito colocar em jogo a pulsão de morte, como veremos com mais detalhes adiante; por isso dizemos que a pulsão de morte mostra o parentesco entre a moralidade e sublimação.

 

"Atingir o máximo com o mínimo de dano"

Enquanto comprometida com um projeto civilizatório, a educação faz referência à moral coletiva, à renúncia pulsional que a cultura exige de cada um, e Freud reconheceu isso em suas análises sobre a sociedade e a educação. Se antes observáramos que as posições do autor sobre esses temas mantinham proximidade em um primeiro tempo de sua obra - como em "Moral sexual..." e "O interesse científico da psicanálise" -, voltamos a demarcar a confluência de suas ideias sobre os processos civilizatório e educativo em um momento posterior de seu pensamento, em "O mal-estar na civilização" e na "Conferência 34", mas a partir de uma posição radicalmente diversa. Se, nos textos iniciais, o fundador da psicanálise fazia uma denúncia dos prejuízos do recalcamento e assumia uma postura profilática, sua perspectiva agora passa a ser menos conciliatória, pois ele não pode mais lançar mão da sublimação como uma saída para o impasse relativo à satisfação pulsional do sujeito.

Em "O mal-estar na civilização" (Freud, 1930/1974), a relação entre o indivíduo e a coletividade é tomada a partir de um paradoxo fundamental: os homens associam-se para enfrentar os perigos de sua exposição à natureza, os sofrimentos que advêm de seu corpo e de seus relacionamentos com outros homens, mas essa associação lhes exige uma renúncia quanto à satisfação; e isso gera mal-estar. Contudo, ao invés de propor que os indivíduos tenham aumentadas suas possibilidades de satisfação, diminuindo as restrições do mundo externo, o fundador da psicanálise leva em conta a impossibilidade estrutural da satisfação total e propõe que esse impasse seja enfrentado solitariamente: "Não existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo" (Freud, 1930/1974, p. 103).

Na esteira desse raciocínio, encontramos também uma mudança em sua análise sobre a educação. Na "Conferência 34", Freud (1933/1976c) não pensa mais na sublimação como alternativa para instaurar um processo educativo estranho à instalação da neurose, e diz que a primeira tarefa da educação é ensinar a criança a controlar seus instintos: "Por conseguinte, a educação deve inibir, proibir e suprimir, e isso ela procurou fazer em todos os períodos da história" (p. 182). O autor não desconhece os prejuízos da neurose, mas admite que a interdição é inevitável, e convoca os educadores a um manejo particular das situações, em uma empreitada que envolve risco e decisão: "A menos que o problema seja inteiramente insolúvel, deve-se descobrir um ponto ótimo que possibilite à educação atingir o máximo com o mínimo de dano. Será, portanto, uma questão de decidir quanto proibir, em que hora e por que meios" (p. 182).

Entendemos que essa mudança no pensamento freudiano testemunha a operacionalização de uma impossibilidade de completude que se instalou no cerne da lógica do autor ao longo do seu percurso. Contudo, melhor do que chamar isso de lógica, é tratá-la como uma ética. Em "Análise terminável e interminável" (Freud, 1937/1975), podemos reconhecer uma posição que tem consequências éticas para a psicanálise: o autor vê um limite à ação de uma análise. Ele diz que, embora o sujeito possa avançar na elucidação de seus complexos inconscientes, obtendo efeitos terapêuticos e mudando aspectos do seu caráter, o processo analítico não poderá transpor o impasse relativo à castração:

A importância suprema desses dois temas - nas mulheres, o desejo de um pênis, e, nos homens, a luta contra a passividade - não escapou à observação de Ferenczi. No artigo lido por ele em 1927, transformou num requisito que, em toda análise bem-sucedida, esses dois complexos tivessem sido dominados. Gostaria de acrescentar que, falando por minha própria experiência, acho que quanto a isso Ferenczi estava pedindo muito. Em nenhum ponto de nosso trabalho analítico, se sofre mais da sensação opressiva de que todos os nossos repetidos esforços foram em vão, e da suspeita de que estivemos "pregando ao vento", do que quando estamos tentando persuadir uma mulher a abandonar seu desejo de um pênis, com fundamento de que é irrealizável, ou quando estamos procurando convencer um homem de que uma atitude passiva para com homens nem sempre significa castração e que ela é indispensável em muitos relacionamentos na vida. (Freud, 1937/1975, p. 286)

O que ressaltamos dessa posição é o fato de que ela testemunha a incompletude que uma psicanálise sustenta; e mais, de que é a partir desse impossível de curar que ela opera, o que aparece em Freud com o nome de castração. É interessante que Lacan (1999) faz um deslocamento do complexo de castração tal como proposto por Freud, incluindo o Outro como castrado. A privação do pai incide sobre o falo da mãe - o filho; ou seja, é somente quando percebe que a mãe é castrada que o sujeito pode enfrentar essa questão. É ao descompletar o Outro que o sujeito pode ascender à sua condição desejante, o que não ocorre se ele permanecer preso aos ideais maternos. Levando em conta nossos desenvolvimentos anteriores sobre a moralidade, podemos dizer que a vertente moral, enquanto acato à demanda do Outro, diz de uma posição do sujeito diante da castração.

A devoção à pátria, à ideia, à causa, tudo valerá sempre mais que a descoberta da castração, e o feroz servidor do ideal ignora que no momento de seu maior rigor moral, como no instante de seu eventual sacrifício, nunca terá feito mais que forjar seu próprio "eu", talhado na medida do falo materno. (Pommier, 1990, p. 155)

Assim, se por um lado a moralidade contém uma injunção a completar o Outro, mas cobra o preço do assujeitamento, por outro lado castração e sujeito do desejo estão pareados, e por esse caminho começamos a adentrar o domínio do que Lacan chamou de ética da psicanálise.

 

"Não ceder de seu desejo"

Em seu seminário A ética da psicanálise, Lacan (2008) desdobrou as ideias freudianas sobre a moral, em busca de formular uma ética da psicanálise. Para tal, ele estabeleceu um diálogo entre o fundador da psicanálise e a tradição filosófica sobre o pensamento moral. Com o objetivo de pensar o que o confronto com a ética pode gerar para o campo educativo, faremos alguns recortes relativos às análises de Lacan sobre Aristóteles, com vistas a avançarmos em nossa análise da questão do bem.

O primeiro ponto que vale citar é um desacordo que Lacan reconhece entre Aristóteles e Freud quanto à ligação entre moralidade e bem-estar. Aristóteles, em Ética a Nicômano,3 diz que o bem está ligado ao prazer. Nessa perspectiva, a confirmação de que uma ação foi realizada de acordo com a ética, ou seja, de que ela teve uma orientação para o bem, está no sentimento de prazer que resulta para aquele que a realizou. Na Antiguidade, a ética serve para alinhar um projeto de vida individual a um bem coletivo; não é uma ética universal, mas conjuga o um e o todos, tendo como resultado o bem-estar do indivíduo. Segundo nosso argumento, fica claro que isso está em desacordo com Freud, na medida em que ele aponta o paradoxo da satisfação que está em jogo para o ego no julgamento moral que sofre do superego, sendo essa satisfação da ordem do masoquismo, do prazer com o sofrimento.

Outra proposição aristotélica que Lacan utiliza destacadamente, no referido seminário, para contrapor à moralidade freudiana é a questão do Bem Supremo, o qual, em Aristóteles, faz referência a uma imitação da ordem cósmica, no sentido de naturalidade e universalidade. O psicanalista francês diz que Freud desloca essa perspectiva do Bem Supremo para a economia dos bens. Segundo ele, o fundador da psicanálise propõe que o sujeito pode ter acesso a bens no plural (parciais, provisórios, pontuais); há uma economia dos bens, e o sujeito os faz circular para atender ao Outro e, em nome disso, cede de seu desejo. O sujeito paga com seu desejo o bem do Outro, mas nessa oferta ele lucra uma parcela de gozo. É isso que Freud (1930/1974) formula em "O mal-estar na civilização": não há bem que não tenha um preço para o sujeito.

Nesse ponto, Lacan acrescenta algo às ideias freudianas para pensar uma ética da psicanálise: "Não há outro bem senão o que pode servir para pagar o preço do acesso ao desejo, na medida em que esse bem, nós o definimos alhures como metonímia do nosso ser" (Lacan, 2008, p. 376). Ou seja, para não ceder do desejo, é preciso perder algo, fazer falta na demanda do Outro, o que em palavras psicanalíticas se chama sustentar a castração.

É aí que Lacan insere uma reflexão sobre a sublimação. Nesse seminário, o psicanalista pensa sobre o que está além do princípio do prazer, sobre a pulsão de morte, sobre o fato de que a simbolização não recobre o real, mas o produz a partir de seus excessos e faltas; ele dá a isso o nome de Coisa, na qual se aloja o inominável do desejo e a destruição radical e necessária à criação do novo. Esse é o âmbito da maldade fundamental que, se não puder se deslocar mediante os objetos produzidos pela sublimação, retorna assombrando o destino do sujeito através de atuações sintomáticas.4

Segundo Lacan, tanto o bem, lotado no campo da moralidade, quanto o belo, fenômeno estético derivado da sublimação, são barreiras que se colocam entre o sujeito e o âmbito da destruição absoluta, ainda que eles se posicionem em níveis diferentes nessa relação com a Coisa: "na escala do que nos separa do campo central do desejo, se o bem constitui a primeira rede que detém, o belo forma a segunda e chega mais perto. Ele nos detém, mas também nos indica em que sentido se encontra o campo da destruição" (Lacan, 2008, p. 260). Se o bem nos afasta do mal radical, o belo vela e revela essa potência destruidora, na qual encontramos a dispersão necessária à sublimação criativa. Assim, fica claro que é em relação à pulsão de morte que temos a possiblidade de situar tanto o parentesco quanto a disjunção entre a moralidade e a sublimação.

Portanto, considerando que a educação está comprometida com um projeto civilizatório e que ela faz uma demanda moral à criança, estaríamos nós propondo que ela se retirasse desse âmbito para se inspirar na ética do desejo, advinda da psicanálise? Não é essa a nossa intenção, na medida em que pensamos que a especificidade da ação educativa está ligada a inserir os ideais coletivos no regime da singularidade, ainda que o sujeito tenha de pagar com seu desejo a possibilidade de partilhar da herança de seus ancestrais. Por outro lado, não podemos negar que a proposta homogeneizadora da educação sofre resistências das singularidades às quais ela se dirige e disso ela não pode se prevenir; como consequência, todas as técnicas didáticas e os saberes especializados que se dirigem à educação, seja ela realizada dentro da escola ou no sentido mais amplo da experiência social, têm sua capacidade de provocar efeitos no real apenas enquanto o sujeito do inconsciente não entra em cena. Dessa forma, pensamos que a ética da psicanálise pode afetar a educação, na medida em que ela tem a ver com a capacidade de lidar com a maldade fundamental por outras vias que não a bondade, de suportar um furo no saber que pretendia aliar meios e fins, para colocar em jogo um saber inédito e particular que, às vezes, precisa ser inventado pelos sujeitos que estão implicados na empreitada educativa.

 

REFERÊNCIAS

Endo, P. (2005). A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico sobre as violências na cidade de São Paulo. São Paulo: Escuta/FAPESP.         [ Links ]

Freud, S. (1969). Introdução a The psycho-analyticmethod, de Pfister. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 12, pp. 415-420). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1913)         [ Links ]

Freud, S. (1974). O mal-estar na civilização. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Jayme Salomão, trad., Vol. 21, pp. 75-171). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1930)         [ Links ]

Freud, S. (1975). Análise terminável e interminável. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 23, pp. 239-287). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1937)         [ Links ]

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NOTAS

1. Lacan (1992) dedica seu seminário O avesso da psicanálise a mostrar como a posição de mestria mantém uma relação de avesso com a posição do analista, ou seja, não como aquilo que se distancia e que se opõe, mas como aquilo que se atinge em um giro.

2. É importante esclarecer que, ao dizer "sujeito", não desconhecemos que lidamos com diferentes significados desse termo na psicanálise e na educação. Se a psicanálise toma o sujeito do inconsciente como cerne de sua operação, a educação não se propõe a lidar com ele, mas com o indivíduo em sua vertente cognitiva e social. Dizer "sujeito", no campo educativo, faz referência à ideia de agente, o sujeito (no sentido do inconsciente) que aparece no processo educativo como algo estranho e, frequentemente, perturbador.

3. Principal obra de Aristóteles sobre a ética, escrita em torno do ano 300 a.C. Referências a essa obra foram trabalhadas a partir dos comentários de Lacan em O seminário: livro 7.

4. Em A fita branca, filme de 2009 dirigido por Michael Haneke, vemos a impotência do bem "onipresente" para lidar com a maldade fundamental. No período que antecede a Primeira Guerra Mundial, uma pequena comunidade se estabelecera em torno de uma moralidade severa, o que não constituía impedimento para as perversões privadas. Nessa atmosfera, começam a acontecer eventos estranhos, relativos à destruição e à morte, e os habitantes do povoado observam que o mal advém do interior da própria comunidade. O filme demonstra que a pulsão destrutiva pode retornar em sua face mais devastadora quando não há possibilidade de sofrer deslocamentos, sendo essa noção fundamental na discussão que estamos empreendendo, pois é a partir dos deslocamentos da pulsão que tem lugar a sublimação, e essa pode ser uma saída para que o mal não vire o pior. Talvez aí estejamos diante do possível da educação.

 

 

Recebido em maio/2012.
Aceito em fevereiro/ 2013.