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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.18 no.3 São Paulo Dec. 2013

 

DOSSIÊ

 

Notas introdutórias sobre os processos psíquicos na infância e adolescência

 

Introductorial notes on psychological processes in childhood and adolescence

 

Notas introductorias respecto los procesos psíquicos en la infancia y la adolescencia

 

 

Gustavo Caetano de Mattos Mano

Psicólogo. Mestre em Psicologia Social e Institucional e pesquisador no Laboratório de Pesquisa em Psicanálise, Arte e Política (LAPPAP) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS), Porto Alegre, RS, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A prática clínica com crianças e adolescentes segue disparando interrogações que oxigenam a teoria psicanalítica. Nesse sentido, o presente escrito propõe-se a oferecer uma abordagem introdutória acerca da infância e da adolescência à luz das formulações lacanianas sobre o tempo lógico. Fazendo operar as noções de instante de ver, tempo de compreender e momento de concluir, deslocamos a infância e a adolescência do estatuto de etapas do desenvolvimento para tomá-las como processos psíquicos constituintes do sujeito. A partir disso, problematizamos a questão da estruturação, considerando para tal a referência aos significantes-mestres que norteia a psicopatologia psicanalítica.

Descritores: psicanálise; infância; adolescência; estruturação.


ABSTRACT

Clinical practice with children and adolescents keeps releasing questions that renew psychoanalysis. As so, the present essay offers an introductory approach on childhood and youth based on Jacques Lacan's logical time. Working with the lacanian concepts of instant to see, time to understand and moment to end, the authors displace childhood and adolescence, taking it from the status of development stages to conceive them as psychological processes. From that point, the authors debate the matter of structuration, considering, in order to do so, the master-significants reference that guide psychoanalytic psychopathology.

Index terms: psychoanalysis; childhood; adolescence; structuration.


RESUMÉN

La práctica clínica con niños y adolescentes sigue generando interrogantes que oxigenan la teoría psicoanalítica. Con esa intención, este escrito se propone a ofrecer un abordaje introductorio respecto la infancia y la adolescencia, y bajo la luz de las formulaciones lacanianas sobre el tiempo lógico. Haciendo operar las nociones de instante de mirar, tiempo de comprender y momento de concluir, desplazamos la infancia y adolescencia del estatuto de etapas del desarrollo para tomarlas como procesos psíquicos constituyentes del sujeto. Así, problematizamos la cuestión de la estructuración, teniendo en cuenta la referencia a los significantes-maestros que nortean a psicopatología psicoanalítica.

Palavras clave: psicoanálisis; infancia; adolescencia; estructuración.


 

 

A prática clínica com crianças e adolescentes segue disparando interrogações que oxigenam a psicanálise, complexificando progressivamente o arcabouço teórico que nos serve de suporte. Propusemo-nos, então, à composição de um escrito introdutório que permitisse ao leitor uma aproximação à psicopatologia psicanalítica na infância e adolescência. No entanto, para realizar essa abordagem seria necessário, em primeiro lugar, operar algumas escansões: psicopatologia, infância e adolescência merecem receber atenção própria, permitindo um desdobramento mais apurado de cada uma das categorias. Nossa pergunta inicial poderia, então, ser assim enunciada: como se define a infância na psicanálise?

De acordo com Bernardino (2007, p. 54), "a infância sedia o tempo de passagem do infans - filhote humano ainda não falante - ao estatuto de falasser, sujeito falante e desejante". Seria tentador apelar para balizas etárias: propor que a infância se inicia no nascimento e segue até os 7, 10, 12 ou 15 anos. Mas essa perspectiva talvez interessasse mais às correntes da psicologia do desenvolvimento do que à psicanálise. Se os desenvolvimentistas se debruçam sobre a normatização e classificação dos períodos de uma maturação típica, para nós interessam muito mais os tempos do sujeito. Em lugar de tempos cronológicos, poderíamos conceber a infância a partir dos tempos lógicos1 propostos por Lacan (1998): o instante de ver, o tempo de compreender e o momento de concluir.

Comecemos pelo instante de ver - o ingresso do infans, o não falante, em um universo linguístico que o atravessa, ao qual, no entanto, está alienado. Note-se que o ver, nessa concepção, não se restringe à operação sensorial efetuada pelos olhos, senão que engloba toda a sorte de órgãos e sistemas utilizados para tomar conhecimento daquilo que se apresenta. Assim, o instante de ver é o tempo em que começará a construção psíquica de nosso protosujeito a partir do testemunho da castração - de sua própria castração e da castração no Outro. Não se trata somente da percepção da diferença anatômica entre os sexos, do menino que vislumbra a genitália feminina e fica temeroso de ter seu pênis extirpado ou da menina que constata algo que o corpo do pai possui e o dela não, supondo então ter sido previamente removido. Não é isso - ou melhor, esse seria o exemplo mais radical, mítico, de um processo descontínuo de separação do Outro que se apresenta sob uma miríade de facetas. Algumas já eram vislumbradas, por exemplo, em A organização genital infantil, quando Freud (1923/1996) observa que a criança detém registros muito precoces dessas separações: "A criança obtém um dano narcísico mediante uma perda corporal originária da experiência de perder o seio da mãe após o sugar, da entrega diária de suas fezes e, em verdade, até da separação do útero, ao nascer". (p. 160).

Não podemos deixar de notar uma alusão muito clara à interlocução de Freud com Otto Rank e sua tese acerca do nascimento como trauma originário. Pois bem: esses recortes (a distinção do corpo materno, a separação dos excrementos, a inevitável exposição aos agentes da natureza) só adquirem a gravidade necessária na estruturação psíquica do sujeito quando se faz operar a significação advinda do Outro - lugar primordialmente ocupado pela mãe, mas do qual podem se ocupar, sem prejuízo, também o pai, um irmão ou irmã mais velha, um professor, um cuidador, enfim, qualquer entidade que possa oferecer um suporte significante a um sujeito que, doutra maneira, estaria jogado a um deserto simbólico, quando não ao Real do Hilflosigkeit. E, casualmente, essa entidade-suporte poderá ser até mesmo um analista. Mais adiante talvez fique claro o porquê desse assinalamento.

Consideramos que o instante de ver corresponde à entrada de nosso projeto de sujeito na linguagem. Mas sabemos também que o sujeito psicanalítico começa sua fundação na linguagem em um tempo muito anterior, prévio ao próprio nascimento, a partir das idealizações dos pais, dos significantes que habitam a novela familiar, de um universo simbólico antecedente ao engendramento de uma conjunção orgânica mínima que pudesse experienciar algo como um instante de ver. Como articular então essas duas formulações aparentemente paradoxais?

Seria interessante apontar a opinião de Alfredo Jerusalinsky sobre a questão da enunciação. Jerusalinsky (2001) assinala que, durante algum tempo na vida de uma criança, não há de fato uma posição de sujeito. O sujeito antecipado não equivale a um sujeito efetivo; a criança que desponta nas narrativas parentais está eminentemente em uma posição de objeto, não de sujeito. Cotidianamente, na clínica com crianças, presenciamos a pré-individualização do sujeito, recortada e carregada por inúmeros discursos: a fala queixosa dos pais, a perspectiva patológica dos médicos, a normatividade exigida pela escola. Chegamos, por vezes, a nos perguntar quem fala, quando fala uma criança - e, no entanto, na maioria das vezes, exatamente do que essas crianças carecem é de um lugar a partir do qual possam enunciar-se como sujeitos. Elas são faladas, mas ainda não conseguem (ou não lhes é permitido) falar por si. Recorda-nos Jerusalinsky (2008) que, "quando alguém tem de falar por determinado objeto, não há sujeito ali" (p. 127); e esse é precisamente o lugar do infans: situado como objeto de gozo do Outro. Não é necessário apontar o quanto essa posição, gozada e gozosa, é crucial para a própria sobrevivência da criança. O choro, o grito, os resmungos, nada disso constitui uma fala por si: trata-se de apelos que só adquirirão significação na medida em que o Outro, desejante, possa oferecer algo além do que a necessidade pede. Em outras palavras, é possível oferecer-lhe significantes e significados quando a palavra ainda está aquém. Mas essa é também uma posição de aprisionamento: o acesso à palavra implica abdicar do gozo de ser o objeto para o Outro. O trabalho psíquico na infância, então, diz respeito à passagem da posição de objeto, eminentemente falada, à posição de sujeito falante - mas esse complicado processo desenvolve-se no que poderíamos propor como o segundo tempo da infância: o tempo de compreender.

Segundo Giongo (2011) "Do tempo infantil até a adolescência há um percurso a ser transcorrido para que alguém saia da posição de objeto e construa um saber sobre o lugar que ocupa para o Outro" (p. 18).

Se o instante de ver corresponde aos testemunhos primordiais da castração, o tempo de compreender comporta o ordenamento dos significantes que permitirão o engendrar da estruturação psíquica. Instante, tempo e momento nomeiam períodos de duração qualitativamente distinta. Os instantes de ver, em todas as suas edições, sobrevivem não mais do que a duração da mirada. Nessa existência ínfima, instalam um processo de alienação2; toda tentativa de recuperação da experiência percebida pertence, assim, ao tempo de compreender. Lacan nos lembra que uma das características do significante é poder se apagar. À diferença do signo, o significante prescinde de um suporte concreto para operar; aliás, é justamente na possibilidade de presença-em-ausência, de seu estar-não estando, que sua função de significante se faz possível. Logo, será através do manejo com os significantes emprestados, que aparecem, desaparecem, reaparecem e somem de novo, que o sujeito configurará seu posicionamento no mundo. Assim, a criança poderá passar, no tempo de compreender, ao movimento de separação - ou seja, recortar uma história própria, autoral, que a posicione de maneira singular diante da castração.

De acordo com Bernardino (2007): "É dessa trajetória que resulta sua mudança de posição: de objeto para o Outro, ela passará a ser sujeito de sua história. De externa, a estrutura simbólica torna-se o eixo inconsciente a partir do qual ela posicionará sua enunciação." (p. 58).

Tomamos de empréstimo uma partícula retirada de Jerusalinsky, bastante eloquente acerca do ordenamento significante oferecido pelo Outro. Suponhamos que um filho interpele sua mãe com questões referidas ao desabrochar sexual e esta lhe responda:

Ora, meu filho. O que você precisa é de uma mulher
Sábio conselho! Vou procurar. Mas por que não você, mamãe? Você não é mulher?
Não, eu não sou mulher.
Mas como? Você tem todos os atributos!
Sim, mas não no seu caso. No seu caso eu sou mamãe.
(Jerusalinsky, 2001, p. 65)

Fica colocado, nesse exemplo, o intervalo entre dois significantes: o significante "mulher" e o significante "mamãe". Não são o mesmo significante, não estão acoplados, mas há uma relação que permite, no campo do sexual, o estabelecimento de uma identificação. A recusa paterna do acoplamento entre os significantes produzirá, na passagem de um significante a outro, um sujeito barrado desde sua experiência significante, remetido então a um terceiro significante - o significante "filho" - que coloca em movimento a cadeia.

Mas como pensar o lugar de agente da criança em seu processo de subjetivação? De um modo geral, poderíamos esquematicamente dizer que a literatura psicanalítica privilegia duas vertentes, que não são mutuamente excludentes nem facilmente destacáveis uma da outra: de um lado, a construção das teorias sexuais infantis a partir dos significantes emprestados pelo mito familiar; de outro, o brincar e as complexas operações envolvidas nele. Apesar de não ser possível, nesse escrito, desenvolver satisfatoriamente as operações envolvidas nas atividades que constituem o tempo de compreender a castração, observamos que muito precocemente a criança faz-se ativa em seu processo de estruturação - diferentemente do que poderia supor o senso comum. É isso que torna possível o trabalho clínico com crianças. Acompanhando Rodulfo (1990), diríamos que não é a mãe quem provê o alimento a uma criança que o recebe passivamente, e sim que a criança alimenta a si mesma através do seio da mãe. É a criança que, a partir dos recursos que lhe forem oferecidos, estabelecerá sua tentativa de passagem da posição de objeto para a de sujeito a partir da realidade da castração, inscrevendo nesse processo de separação do Outro o significante do Nome-do-Pai. Essa compreensão é crucial para problematizarmos a noção de psicopatologia em psicanálise.

Coriat (1997) afirma que:

O Nome-do-Pai é o significante que vai se inscrevendo em cada uma destas pequenas ou grandes experiências de separação. Melhor dizendo: será significante quando a criança se apropriar da palavra; enquanto isso, é a marca que vai ficando como saldo do corte exercido pela função paterna, condição necessária para que se transforme em significante alguma vez. (p. 223)

Se o instante de ver da infância corresponde à captação dos significantes primordiais e o tempo de compreender marca a ascensão da posição de objeto no discurso do Outro ao lugar de sujeito a partir da elaboração da castração, o tempo de concluir convoca esse sujeito a enunciar-se. O sujeito é o que um significante representa para outro significante, aprendemos desde cedo na formação lacaniana, e é justamente isso que o momento de concluir precipita: que a articulação entre os significantes-chave do laço discursivo, S1 e S23, venha à tona através do ato de enunciação - operação que marca a entrada na adolescência.

Talvez por se tratar de um fenômeno relativamente recente na história da humanidade - a introdução de um tempo intermediário entre a infância e a idade adulta -, a adolescência ainda constitui um campo pouco problemático à psicanálise. Como definir o tempo da adolescência? Tendo abdicado de referências etárias para pensar a infância, não encontramos nenhum motivo para lançar mão delas agora. Isso significa que os fenômenos biológicos que comumente indicariam o início da puberdade - a maturação genital ou as modificações hormonais, por exemplo - não são tão relevantes a nós quanto as operações psíquicas referentes à adolescência (ainda que, muitas vezes, uns e outros coincidam cronologicamente). Retornamos à hipótese constitutiva com a qual viemos trabalhando: proponho que, na estruturação psíquica, poderíamos conceber a adolescência como o deslocamento dos tempos lógicos estabelecidos na infância, atualizado pela convocação do Outro.

Assinalamos anteriormente que a infância compreende o tempo de transição da posição de objeto para o Outro à posição de sujeito. Sendo assim, o momento de concluir da infância instaura um novo instante de ver: perceber que, no Outro, falta precisamente um significante que designe plenamente o sujeito. Não há tal significante, pelo menos no que tange aos sujeitos neuróticos. Vimos que, na infância, a ilusão de onipotência do bebê lhe era estruturante: permitia que pudesse suportar sua condição de desamparo absoluto para, posteriormente, escavar sua própria separação do corpo materno. Algo similar se passa na adolescência: se faz presente a utopia de um significante absoluto, que poderia representar sem falha o sujeito diante da demanda do Outro, para que, posteriormente, a queda dessa ilusão permita ao sujeito fazer algo com a falta que encontra no Outro. Em outras palavras, que possa usar o suporte simbólico do Outro para uma enunciação própria.

Vianna (2008) afirma que:

A adolescência é entendida como a operação que possibilita o sujeito fazer a transposição entre essa posição, na qual a narratividade em relação ao seu lugar está mais diretamente referida a Outro primordial (condição infantil), para outra condição, na qual o sujeito se autoriza a falar em nome próprio a partir do reordenamento desse Outro (condição adulta). (p. 166).

Em termos gerais, poderíamos assinalar o processo psíquico referido à passagem pela adolescência como um tempo de compreender a demanda do Outro, cujo momento de concluir garantiria o acesso ao mundo adulto. Na infância, tratava-se de um tempo de compreender estabelecido a partir de uma posição radicalmente diferente. A criança, enquanto mantida na posição de objeto, goza de um salvo-conduto, um anteparo às exigências fálicas do Outro - e a experiência clínica testemunha os efeitos nocivos produzidos pela remoção prematura desse salvo-conduto. Na adolescência, esse salvo-conduto é suspenso e dá lugar a uma demanda maciça: não que o sujeito responda por seu próprio desejo, mas que responda pelo desejo do Outro: que se torne desejante e desejável, que triunfe no circuito do capital e que supere as expectativas sobre ele depositadas.

O conceito de moratória, introduzido por Eric Erikson, mostra-se pertinente para refletirmos sobre a posição da adolescência na cultura. Suponhamos que o sujeito adolescente já adquiriu certa maturação corporal e foi capaz de assimilar os valores da sociedade. Estaria, então, pronto para usufruir a vida adulta - mas, no momento em que apresenta suas credencias, tem o acesso impedido. Como se dissessem a ele: "espere mais um pouco, você ainda não está pronto", sem que fossem determinados os novos critérios de ingresso ou quanto tempo mais se deveria esperar. É paradoxal: o mundo ocidental, à medida que aboliu quase todos os rituais que poderiam demarcar a entrada no campo adulto, erotizou a adolescência - lançou-lhe o olhar desejante sobre seus corpos (em oposição à recusa da sexualidade do corpo infantil), exigiu que gozassem dos prazeres da juventude (ainda que os condenando por isso), impôs um tempo de suspensão sem que se delimitassem as condições de entrada e, principalmente, de saída. Segundo Calligaris (2011, p. 33), "o fato é que a adolescência é uma interpretação dos sonhos dos adultos, produzida por uma moratória que força o adolescente a tentar descobrir o que os adultos querem dele".

Os fenômenos da adolescência são diversos - e, por nascerem com a marca da contestação ao mundo adulto, se recusam a envelhecer. Eis a indisciplina em sua forma mais pura: a impossibilidade de apreensão pelos sistemas disciplinares, produzindo sempre um resíduo inassimilável que se transmite à geração seguinte apenas para ser completamente subvertido. A passagem adolescente testemunha que, no Outro, falta um significante que represente o sujeito e, diante dessa falha, abre fogo contra a própria cultura, lar dos significantes. Mas, assim como inexiste a metalinguagem (isto é, uma linguagem idônea, que permitisse falar sem implicações), inexiste a metacultura - a própria contestação será reabsorvida pela malha dos significantes, sem que reste ao sujeito opção senão experimentar-se como faltante e fazer algo em face dessa condição. Diante disso, teorizar sobre os fenômenos adolescentes é uma prática perigosa: corre-se o risco de que a reflexão envelheça junto com o objeto a que ela se dirige - o que, nesse caso, costuma ter uma duração muito breve.

Como estabelecer, então, um momento de concluir a adolescência? Haveríamos de considerar, para tanto, a presença de um salto qualitativo no qual a contestação do fantasiado universo adulto cede lugar a uma posição efetiva nesse mesmo universo. Todavia, testemunhamos na contemporaneidade algo historicamente expressivo: em vez de um momento de concluir precipitado, nossa época parece viver um prolongamento indefinido da adolescência. As antigas balizas, os velhos rituais que marcavam a passagem de um tempo ao outro perderam sua função; correlativamente, também a cultura substituiu seu ideal de sujeito, destronando o adulto e colocando o adolescente em seu lugar. Clinicamente, observamos nas narrativas dos pacientes uma expansão territorial da adolescência tanto na direção da infância quanto na do mundo adulto. Talvez ainda seja cedo demais para compreender que efeitos surgem da suspensão cultural do momento de concluir a adolescência, ainda que não seja inoportuno assinalar esse fenômeno.

Passemos, pois, ao terceiro termo de nossa proposta inicial: a psicopatologia. Pensar em psicopatologia, na perspectiva psicanalítica, implica debruçar-se sobre as questões da estruturação. Discorrer suficientemente sobre as diferentes categorias estruturais - neurose, psicose e perversão, bem como seus desdobramentos - requereria uma elaboração que ultrapassa os objetivos desse artigo. Interessa-nos, contudo, acentuar que a estruturação corresponde a um processo de defesa, como assinala Quinet (2005): defesa contra a assunção da castração do Outro. Desde Lacan, sabemos que isso tem a ver com a inscrição do Nome-do-Pai, significante responsável por estabelecer o corte entre o sujeito e o Outro, que lhes demarca que não sejam Um. Cada estrutura dispõe o Nome-do-Pai através de um mecanismo específico: o recalque na neurose, a denegação na perversão, a foraclusão na psicose.

O problema é que, como lembra Elsa Coriat (1997), as crianças chegaram tarde na distribuição de diagnósticos. E, diante deles, comportam-se mal. As categorias estruturais, desenvolvidas majoritariamente a partir da clínica com adultos, revelaram-se problemáticas quando encarregadas de acolher a infância. Testemunhamos, na bibliografia psicanalítica, a existência de um longo debate envolvendo a diferenciação entre os termos "neurose infantil" e "neurose na infância" - cuja função é para lembrar que as neuroses das crianças talvez não sejam iguais às neuroses dos adultos. O mesmo se aplica às psicoses e perversões. Como manejar essa questão?

Para desdobrá-la, é necessário considerar que as categorias estruturais contemplam certa configuração de significantes - e não são significantes quaisquer; Lacan os chamou de significantes-mestres - a partir dos quais se ordena a cadeia simbólica. E, para que esses significantes-mestres operem, é necessário que esteja cumprida uma operação primordial: sua inscrição. "Uma inscrição ocorre quando uma mãe diz não."(Jerusalinsky, 2010, p. 133).

Observemos que processos complexos estão condensados sob essa frase aparentemente simples. Em primeiro lugar, supõe a existência de dois sujeitos: um sujeito efetivo, alguém capaz de enunciar algo desde algum lugar, e outro sujeito que seja minimamente suposto. Se formos capazes de dialetizar pelo terreno do significante, podemos deduzir, a partir do significante mãe, que o endereçado pelo não está na posição filho, embora esse elemento se encontre velado na construção frasal - notem que a faculdade de poder completar o enunciado deriva de uma determinada forma de amarragem dos significantes em certo tipo de estruturação que nos coloca em um território linguístico compartilhado.

Em segundo lugar, estabelece uma assimetria na relação entre um sujeito e outro. Não se trata de um mesmo lugar, de uma posição especular, de um outro idêntico. São dois sujeitos que se encontram em lugares distintos, de forma que a fala de um deles afeta diferencialmente o outro, produzindo um efeito.

E, por fim, há a introdução de um elemento terceiro, o não, que opera um corte a partir do emissor que se revela, em sua enunciação, ele mesmo cindido por um agente alheio a si - um elemento não mãe. É evidente que a mãe não é o único ator na inscrição dos significantes e nem que ela se dá somente através do enunciado de nãos; creio, porém, que esse recorte cumpre suficientemente bem o papel de assinalar a operação da função materna.

Mas ocorre que os indicadores da inscrição dos significantes-mestres - a fantasia, o sintoma, o fetiche, o delírio -, colhidos a partir da experiência com pacientes adultos, se revelam inadequados quando aplicados às crianças. Nenhuma surpresa: isso ocorre porque a infância consiste precisamente no tempo em que tais significantes se encontram no processo de sua própria inscrição. Elsa Coriat é rigorosa ao defender que não é possível definir que uma criança será neurótica, psicótica ou perversa, pois os processos aos quais podemos, a posteriori, referir como determinantes da estruturação de um sujeito, durante a infância, estão em pleno curso.

O esperado é que, a partir dos significantes que lhe são oferecidos, a criança, defrontada com a castração, constitua no curso de seu desenvolvimento um saber sobre sua posição em relação ao Outro. É a construção de sua própria estrutura. Entretanto, a prática clínica nos evidencia que, não raras vezes, esse processo de estruturação faz crise - seja por um aprisionamento em um tempo de constituição corporal muito primitivo, seja por um empobrecimento simbólico que manifesta a angústia através de eclosões de violência ou pela intrusão excessiva do imaginário familiar ao qual a criança não encontra modo de defesa senão através de sintomas. De toda forma, mais do que estabelecer o arrolamento de todas as possíveis morbidades infantis, é importante aqui assinalar a posição ética da psicanálise diante da psicopatologia estrutural.

Por isso, as estruturas psicopatológicas da infância são necessariamente indecididas do ponto de vista lógico, porque elas se decidem no andar dessa inscrição, na medida em que a experiência do sujeito vai lhe confirmando a falha com que foi inscrito." (Jerusalinsky, 2008, p. 141).

Em primeiro lugar, pensar em estruturas não decididas implica considerar a mobilidade como atributo fundamental da estrutura nesse tempo constituinte. O que quer dizer que, diante de uma criança cuja estruturação segue em determinado curso, a intervenção analítica é capaz de operar modificações substanciais na montagem da estrutura. Em adultos não se fala muito disso: a vasta maioria dos autores concorda que o final da adolescência constitui o período onde a estrutura definir-se-á de uma vez por todas. Existem ressalvas a esse respeito, especialmente no relato de psicoses desencadeadas muito tardiamente na vida adulta, mas esse debate ultrapassa o propósito deste escrito. Interessa, contudo, apontar que, se a constelação de significantes que produzirá a estrutura está em pleno processo de inscrição, a intervenção clínica pode ser decisiva - para bem ou para mal. Eis o risco dos diagnósticos precipitados: aplicar à criança um novo nome, calcado em um discurso que lhe é alheio (seja ele médico, religioso, pedagógico ou psicanalítico), mas que nem por isso deixa de marcá-la com uma identidade. Some-se a isso toda a série de ferramentas disponíveis pelos saberes contemporâneos - medicamentos, testagens psicodiagnósticas, classes especiais, exercícios de segregação velada - e teremos a confecção de uma nefasta imagem através da qual o sujeito se olha e é olhado pelo Outro, um lugar do qual encontrará muita dificuldade para dali se desvencilhar. Eu chamaria isso de iatrogenia dos diagnósticos.

Sustentar um diagnóstico fechado de psicose na infância não só contraria o estado de inacabamento próprio da infância como ainda pode imprimir à direção do tratamento condições contrárias às necessárias para o surgimento do sujeito. (Bernardino, 2007, p. 63)

Em segundo lugar, é importante assinalar que não se trata absolutamente de discriminar as estruturas em termos de melhor ou pior. E isso, que soa como uma obviedade, precisa ser enunciado para que não se perca de vista a ética da psicanálise. Uma neurose não é melhor do que uma psicose, ao menos em termos de sofrimento psíquico, e os casos graves de ambas as estruturas dão-nos prova suficiente disso.

É claro que temos todo o direito de nos preocuparmos se observamos que uma criança está submetida a uma construção psicotizante. Existem excelentes razões para isso: afinal, como lembra Calligaris, o sintoma social dominante ainda é o neurótico, balizado por significações fálicas amarradas aos Nomes-do-Pai. E, defrontado à norma fálica, sem recursos simbólicos ou suplências imaginárias para defender-se do transbordamento do Real, o sujeito psicótico encontra-se extremamente vulnerável ao tipo de experiência que chamamos de injunções - situações onde a própria existência do sujeito encontra-se por um fio. Mas existem injunções também nas neuroses. Não é surpreendente que uma parcela considerável dos desencadeamentos de crises ocorra durante a adolescência, quando o jovem é impelido a confrontar-se com os organizadores fálicos sociais: a sexualidade, a morte, a parentalidade, o trabalho, o futuro…Especialmente se essa convocação, ao mesmo tempo em que exige a enunciação do sujeito, o desautoriza através da moratória. Por isso a adolescência é considerada uma experiência-limite, em que o que está em causa parece justamente ser a exigência de apresentar-se como sujeito diante do Outro, apressando aquilo que, na infância, estabelecia-se como uma estrutura não decidida, impelindo-a a que se decida - e, decidida, se declare. Logo, quando endereçada a um sujeito que encaminha uma estruturação psicótica, a demanda a responder desde o Nome-do-Pai, que supostamente o receberia na norma social, nada mais faz do que apressar o desencadeamento da crise ao apelar a um significante-mestre que se encontra foracluído e que ainda não pode armar nenhuma defesa suplementar - um delírio, por exemplo.

Mas a verdade é que a psicose, que é um dos nomes da loucura, ainda constitui um grande nó que apenas muito lentamente estamos conseguindo desembaraçar. Não é gratuitamente que Lacan definiu o psicótico como aquele que se encontra fora do discurso. O perigo reside em considerar que o único meio capaz de colocar o sujeito em bons termos com a demanda do Outro é o recalque, recaindo em uma espécie de pedagogia da neurose. Nada mais distante da ética da psicanálise.

Assinalamos anteriormente que a psicopatologia psicanalítica que se dispõe é estrutural, o que implica interrogar que tipo de relação estabelece o sujeito com os significantes que o representam, como se armam os registros de onde ele pode enunciar-se, de que forma esse sujeito defende-se da invasão do Real. Mas, fundamentalmente, como esses elementos se desvelam na transferência. Por isso, a clínica psicanalítica aponta sempre para a singularização. O que é bastante distinto de alguns discursos fenomenológico-descritivos que nos circundam e cuja existência não podemos denegar, se pretendemos sustentar uma prática articulada à cultura em que estamos inscritos. Esses discursos, massificantes em sua natureza, produzem imagens para tentar circunscrever tudo aquilo que escapa aos aparatos disciplinares, que tensiona uma norma estabelecida e que interroga os avatares da organização social - os corpos indóceis. Presenciamos diariamente a chegada à clínica de indivíduos submetidos a esses discursos, enquadrados em uma série de nomes preestabelecidos que de antemão definem o curso terapêutico, a conduta a ser adotada, os fármacos ministráveis e o prognóstico - ou seja, que falam pelo indivíduo antes mesmo que ele possa ousar abrir a boca. Sustentamos que a infância e a adolescência comportam o tempo de passagem da posição de objeto no discurso do Outro à posição de sujeito, construindo uma inscrição singular a partir de um ordenamento simbólico; e observamos que os processos de adoecimento psíquico residem justamente na impossibilidade de fazer essa transição - seja pela carência de significantes que possam ser recortados do corpo Outro, seja pelo aprisionamento em tempos constitutivos muito primitivos, seja pela precipitação das exigências fálicas e da convocação a responder desde o Nome-do-Pai ou por quaisquer outros fatores que, na estruturação do sujeito, façam crise. É aqui que entra a intervenção analítica: desobstruindo o estancamento significante, restituindo o percurso de S1 a S2, ou oferecendo as condições para que ele se instale. "É isto: ou a criança está inscrita na via do significante, ou o analista vai trabalhar (quando ela lhe chega aquém dessa operação simbólica) para que ela possa construir o caminho entre S1 e S2." (Silva & Brenner, 2011, p. 34)

Em outras palavras, que a partir da construção artesã da estrutura um lugar de sujeito possa advir. E que, desse lugar, produza-se uma singularidade que suporte o sujeito na cultura. Podemos então indagar: será que, apesar do semblante terapêutico ostentado, os discursos psicopatológicos atuais não operam justamente no sentido inverso, devolvendo um sujeito (ainda frágil, uma vez que está em constituição) à posição de objeto - ou seja, ser falado em vez de falar-se, ser significado em lugar de significar-se, que deve ter seu comportamento descrito, sua natureza categorizada e sua inquietude (a mesma que lhe permitiria marcar uma singularidade) forçosamente silenciada na sobra de saberes sem fissura?

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
Avenida Coronel Lucas de Oliveira, 2241/201
90460-001 - Porto Alegre - RS - Brasil
gustavo.mano@gmail.com

Recebido em agosto/2012.
Aceito em julho/2013.

 

 

NOTAS

1. Lacan cunha o conceito de tempo lógico como proposta de pensar a questão temporal no interior da experiência do inconsciente, marcando assim um distanciamento das práticas regidas pelo tempo cronológico e caracterizadas por ordenamentos externos fixos - dentre os quais a frequência e duração das sessões, se bem que toda a formação de analistas e o percurso da análise se encontrem, por aí também, atravessados. Em O tempo lógico e a assertiva da certeza antecipada, publicado em pela primeira vez em 1945, Lacan estabelece a formalização teórica desses pressupostos, trabalho este que acompanharia toda a extensão de seu ensino.

2. A conceitualização sobre alienação e separação. Alienação e separação constituem operações descontínuas que marcam a fundação do sujeito na linguagem. Para Lacan, a alienação tem o caráter de uma escolha forçada, um dilema entre a bolsa ou a vida em que qualquer escolha implica uma perda - ou seja, trata-se de decidir entre a fixação no significante-mestre e a indeterminação do deslizamento de sentido. Já a separação condiz com a constituição da lacuna comum entre o sujeito e o Outro, como uma intersecção das faltas, em que resta, como produto, o objeto causa do desejo - o objeto a.

3. Encontraremos, no ensino lacaniano, uma álgebra particular na qual S1 e S2 encontram residência - mais do que meras letras, esses elementos formalizam e condensam conceitos vitais enriquecidos ao longo de sua construção teórica. Se em um primeiro momento S1 e S2 indicavam fundamentalmente a divisão radical do sujeito no campo da linguagem, com a discussão estrutural sobre as psicoses e a construção da teoria dos quatro discursos, esses termos ganharam outros pesos. No presente texto, designaremos esquematicamente S1 como o lugar do significante da univocidade, responsável pela ordenação do S2, posição representante dos demais significantes da cadeia.