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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.18 no.3 São Paulo dez. 2013

 

ARTIGO

 

O caso da "pequena sereia" - uma reflexão sobre diagnóstico diferencial e final de análise com crianças

 

The case of "little mermaid" - a reflection on diferential diagnosis and the end of the analysis with children

 

El caso de la "sirenita" – una reflexión sobre diagnóstico diferencial y final de análisis con niños

 

 

Rinalda de Oliveira Duarte

Psicanalista e psicóloga pela Universidade de Taubaté (Unitau), com especialização em Psicanálise da Criança pelo Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo, e em Teoria, Técnicas e Estratégias Psicanalíticas, pela Universidade de São Paulo (USP). Atua em consultório particular

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo propõe uma reflexão clínica sobre o diagnóstico estrutural de psicose e as dificuldades em se considerar tal diagnóstico na ausência de delírios e alucinações. A constatação foi embasada na noção de estruturas psíquicas, baseadas na teoria psicanalítica de Lacan. Discutem-se, com passagens do atendimento clínico, a consequência desorganizadora de uma intervenção que consistiu em uma hipótese diagnóstica de neurose e os efeitos da mudança no manejo, produzidos ao se reformular a hipótese diagnóstica, encaminhando o caso para o final de análise.

Descritores: clínica psicanalítica; tratamento psicanalítico de crianças; diagnóstico estrutural; psicose; final de análise.


ABSTRACT

The article proposes a clinical reflection on the psychosis structural diagnosis and also on the difficulties of considering this diagnosis for lack of delirium and hallucinations. The finding was based on the notion of such as psychic structures, based on Lacan's psychoanalytic theory. It is discussed, with clinical service events, the disorganizer consequence of an intervention that consisted of a diagnosis hypothesis of neurosis and the effects of change in management, produced by reformulating the diagnosis hypothesis, referring the case to the end of analysis.

Index terms: psychoanalytic clinic; psychoanalytic treatment of children; structural diagnosis; psychosis; end of the analysis.


RESUMÉN

El articulo propone una reflexión clínica sobre el diagnostico estructural de psicosis y las dificultades en considerar tal diagnóstico, en la ausencia de delirios y alucinaciones. Esa observación fue basada en la noción estructuras psíquicas, basadas en la teoría psicoanalítica de Lacan, se discute, con ejemplos del atendimiento clínico, la consecuencia desorganizadora de una intervención que se constituyó en una hipótesis diagnostica de neurosis y los efectos de los cambios en el manejo, producidos al reformularse la hipótesis diagnostica, encaminando el caso para el final del análisis.

Palabras clave: clínica psicoanalítica; tratamiento psicoanalítico de niños; diagnostico estructural; psicosis; final de análisis.


 

 

Servindo-me de fragmentos de um caso clínico de uma criança que chamo de "Pequena Sereia", pretendo refletir, neste artigo, sobre a importância do diagnóstico estrutural no manejo clínico e final de análise, segundo Jacques Lacan (1998; 1955-1956/2002; 1962-1963/2005). Esse caso foi o grande divisor de águas para meu pensamento clínico, pois somente quando o canto da sereia, a estrutura do seu canto e do seu discurso, foram ouvidos, nas profundezas do encontro analítico, é que foi possível rever a hipótese diagnóstica inicial de neurose1 e, portanto, rever o manejo clínico que conduziu o trabalho para o final da análise. A hipótese diagnóstica inicial foi de neurose, e todo o manejo foi sustentado nessa hipótese, o que não viabilizou o avanço do caso e sim sua desorganização. O efeito desorganizador das intervenções da analista foi crucial para repensar a hipótese diagnóstica e, então, a direção do tratamento.

O presente artigo considera a posição de Robert Lefort (1991, p. 13), que sugere que "não há especificidade na psicanálise de crianças. A estrutura, o significante e a relação com o Outro não concernem de maneira diferente à criança e ao adulto".

 

Apresento a "Pequena Sereia"

Chamarei de "Pequena Sereia" uma criança de cinco anos, trazida pela mãe, para realizar uma análise, por praticar o que a mãe considerava "coisas esquisitas", depois do nascimento de sua irmãzinha.

Durante as entrevistas iniciais, a mãe contou que estava preocupada porque a "pequenina" ficava extremamente chorosa quando a mãe se dedicava aos cuidados da filha recém-nascida. Disse, também, que não conseguia lidar com nenhum tipo de repreensão, isolando-se dos pais quando eles posicionavam-se contrários a ela.

Essas atitudes da criança deixavam a mãe preocupada, porém, ela entendia que, com o nascimento da irmã, seria até esperado certa dificuldade por parte da "pequenina". Ocorre, no entanto, que, quando a criança começou a fazer, sem hesitar, o que os amiguinhos lhe pediam, desobedecendo abertamente aos pais, e se colocando em risco, os pais tomaram a iniciativa de procurar um profissional, pois entendiam que "havia algo de esquisito" se passando com a filha.

Os pais não conseguiam dimensionar o que seria esperado pela idade, pelo impacto do nascimento da irmã, e o que poderia ser um prelúdio de algo mais problemático. Sabiam que algo não ia bem, que havia uma dor enorme em jogo e queriam ajudá-la.

Como uma menina de cinco anos, que tem um desempenho excelente na escola, muitos amigos, com uma noção corporal adequada para sua idade e que estava vivenciando a experiência do nascimento de sua irmãzinha poderia ser avaliada como psicótica, sem apresentar delírio e alucinação?

Desde os primórdios da história da psiquiatria, os fenômenos de delírio e alucinação são decisivos para o diagnóstico de psicose, mas Lacan (1998; 2005) propõe o diagnóstico estrutural, que não está baseado unicamente no fenômeno.

Esse questionamento por si só localiza um preconceito em relação à psicose, "status de menos" em relação à neurose, partindo do pressuposto de que a neurose seria menos grave que a psicose. Deparei-me, portanto, impregnada da visão psiquiátrica clássica.

A respeito de tal impregnação, Antônio Quinet (2006) reflete sobre ela, ao afirmar que:

O que vemos nos manuais psiquiátricos de diagnósticos? Os tipos clínicos clássicos da neurose (histeria, neurose obsessiva e fobia) não mais se encontram no DSM-IV ou no CID-10. E dos tipos clínicos da psicose encontramos apenas a esquizofrenia, e não mais a paranoia e nem a melancolia. Ao substituir as doenças próprias da psiquiatria clássica por transtornos, opta-se mais pela descrição e pela comunicação desses fenômenos entre colegas que por uma clínica em que cada caso seja efetivamente um caso e onde os fenômenos sejam considerados sintomas, ou seja, formação de compromisso entre as diversas instâncias do aparelho psíquico. (p. 11)

A clínica tem demonstrado que algumas psicoses não parecem se enquadrar no diagnóstico da psiquiatria clássica do tipo esquizofrenia, paranoia ou psicoses afetivas, porque não apresentam delírios e/ou alucinação.

Alain Miller (2003) denomina essas psicoses de ordinárias, cujos sintomas de delírio e alucinação podem estar ausentes, diferentemente das psicoses que se apresentam descritas pelos manuais clássicos de psiquiatria.

Segundo Quinet (1991):

É a partir do simbólico, portanto, que se pode fazer o diagnóstico diferencial estrutural por meio dos três modos de negação do Édipo - negação da castração do Outro - correspondentes às três estruturas clínicas. Um tipo de negação nega o elemento, mas o conserva, manifestando de dois modos: no recalque (Verdrängung) do neurótico, nega conservando o elemento no inconsciente e o desmentido (Verleugnung) do perverso, o nega conservando-o no fetiche. A foraclusão (Verwerfung) do psicótico é um modo de negação que não deixa traço ou vestígio algum: ela não conserva, arrasa. Os dois modos de negação que conservam implicam a admissão do Édipo no simbólico, o que não acontece na foraclusão (p. 23).

Lacan (1998) teorizou que a estrutura psicótica é efeito da foraclusão do Nome-do-Pai: "É num acidente desse registro e do que nele se realiza, a saber, na foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro, e no fracasso da metáfora paterna, que apontamos a falha que confere à psicose sua condição essencial, com a estrutura que a separa da neurose." (pp. 581-582)

O que distingue a estrutura do neurótico da do psicótico? Colette Soler (2007) nos ajuda a pensar sobre esse questionamento, afirmando que:

Lacan definiu a foraclusão como uma falha, uma ausência, no nível do Outro: a ausência de um significante, o Nome-do-Pai, e de seu efeito metafórico. Esse acidente, diz ele, confere à psicose "sua condição essencial, com a estrutura que a separa da neurose". O termo "condição" implica que a foraclusão não é um fenômeno. Não faz parte do observado: é uma hipótese causal. É a hipótese pela qual Lacan designa a causalidade significante da psicose. Esse ponto tem importância no que tange à questão do diagnóstico. (p. 12)

Se o diagnóstico não é baseado apenas no fenômeno, então como fazer o diagnóstico estrutural? A partir dos efeitos de nossas intervenções clínicas.

De acordo com Quinet (1991) "Se o sujeito é psicótico, é importante que o analista o saiba, pois a condução da análise não poderá ter referência o Nome-do-Pai e a castração. Daí a importância de se detectar a estrutura clínica do sujeito nas entrevistas preliminares" (p. 26).

Esse foi o caminho teórico percorrido nesse estudo clínico, que me possibilitou rever a hipótese diagnóstica inicial de neurose.

 

Manejo clínico inicial

O nome que atribuo a esse caso, "Pequena Sereia", tem a marca do espelhamento que foi possível acontecer, devido a uma semelhança entre nós - as características dos nossos cabelos. Fizemos muitas atividades gráficas por iniciativa dela, desenhando sereias. O que parecia um traço da transferência foi se mostrando uma demanda maciça, pois meu cabelo nunca podia estar diferente do dela, assim como as sereias na praia não podiam querer brincar de coisas distintas.

Não havia espaço para nenhum tipo de diferença entre nós, era como se eu tivesse que ser o espelho da sereia e não "outra" sereia brincando com ela. Qualquer proposta diferente do que ela queria brincar era sentida como ameaçadora, como se eu estivesse contra ela. Inicialmente não fiz a leitura que minhas intervenções a ameaçavam; minha hipótese era de que se tratava de uma forma de tirania da ordem da disputa fálica, de quem controlava o espaço. Até que, numa sessão, ela me disse que eu sabia tudo o que ela pensava! Essa afirmação veio carregada de certeza; não parecia haver dúvida da nossa extensão; para ela, eu tinha que ser sua continuidade. Diante dessa afirmação, propus a brincadeira de adivinhação de pensamentos.

A "Pequena Sereia" ficava muito irritada quando eu não acertava, era como se eu pudesse e não quisesse adivinhar seus pensamentos. Não foi possível, de forma nenhuma, relativizar, com esse manejo, o meu saber a respeito da "Pequena Sereia". Para ela, meu saber tinha que ser absoluto. Não consegui brincar com a maneira que ela interpretava o meu não saber. À medida que avançávamos na brincadeira (e, aquilo não parecia ser uma brincadeira para ela), sua irritação ia ficando exagerada e desmedida.

Esse manejo possibilitou uma primeira reflexão que apontava o diagnóstico diferencial: o Outro estaria barrado para ela? Afinal, a relação transferencial mostrava que ela esperava que o outro pudesse ler seus pensamentos! Era uma demanda maciça por parte dela, em que o que não era espelho dela mesma a deixava transtornada.

A cada encerramento de sessão, a situação ficava mais tensa entre nós, pois meu manejo era de apontar a falta e marcar que o tempo tinha seus limites. Ela tinha muita dificuldade em lidar com o limite que as coisas poderiam ter. Eu aproveitava essa situação para articular com o limite da mãe, interpretando que esta não podia estar com ela o quanto gostaria. Como também eu não poderia ler seus pensamentos!

Meu manejo não surtia efeito e causava profunda desordem e nenhuma mudança subjetiva. Então, a princípio questionei meu manejo e não o diagnóstico! Mas, segundo Quinet (1991), "o diagnóstico só tem sentido se servir de orientação para a condução da análise" (p. 23).

Toda essa lógica de manejo clínico foi baseada na hipótese diagnóstica de neurose, que supõe o Outro barrado e a simbolização da falta. O efeito que o manejo produziu foi desorganizador. Quinet (2009) pode nos ajudar a pensar sobre o efeito desestruturante de uma intervenção, por meio desta afirmação:

Tomar a palavra, fazer uso dela, é algo que já evoca o Outro, lugar onde se constitui o sujeito (je) que fala com aquele que ouve. A dimensão da alteridade aparece a quem está falando e, nesse sentido, a situação analítica, que é uma forma de tomar a palavra, pode ser desencadeadora de uma psicose. Daí a importância do diagnóstico estrutural nas entrevistas preliminares, para o analista conduzir a análise de acordo com a estrutura da psicose. (p. 21)

O que permitiu uma interrogação sobre o diagnóstico inicial foi o fato de as intervenções não terem surtido o efeito esperado em um caso de neurose, que é o de implicação do sujeito no desdobramento significante, mas, sim, uma angústia desmedida, que se manifestava em forma de ato. A criança chegou ao extremo de atirar objetos para fora da sala, num sofrido descontrole emocional.

A relação de uma criança de cinco anos com o tempo tem suas delicadezas, mas o que ocorria no encerramento da sessão foi se tornando caótico; era preciso ficar quase sempre mais um tempo significativo depois da comunicação do fim da sessão, pois a criança ficava absolutamente transtornada. Tinha algo ali, para além de uma dificuldade em lidar com o limite ao seu desejo, como pensado na hipótese diagnóstica inicial.

O encerramento da sessão para a "pequenina" era mesmo da ordem da castração, como se supõe na neurose? Essa situação era vivida de forma cortante pela "pequenina", e foi repensando a resposta que ela apresentava às minhas intervenções que levantei outra hipótese diagnóstica: passei a considerar a hipótese diagnóstica diferencial de psicose, pois sua resposta parecia apontar para a impossibilidade de lidar simbolicamente com a falta. A emergência da angústia em ato não apontava para essa impossibilidade? Tratava-se de uma dificuldade em lidar com a castração ou era da ordem da falta do registro simbólico da falta?

A criança parecia cair como objeto num buraco, não havia borda nem recursos para lidar com o limite que se colocava, ecoando apenas seu grande sofrimento em forma de passagem ao ato diante do encerramento da sessão.

Comecei então a pensar que não era a sala que se desfigurava, que não eram os objetos que caíam, era ela mesma que caía como objeto!

Lacan (2005) nos diz que:

O momento da passagem ao ato é o do embaraço maior do sujeito, com o acréscimo comportamental da emoção como distúrbio do movimento. É então que, do lugar em que se encontra - ou seja, do lugar da cena em que, como sujeito fundamentalmente historizado, só ele pode manter-se em seu status de sujeito -, ele se precipita e cai fora da cena. (p. 129)

Então, depois de muitas aventuras dessa natureza, comecei a levantar a hipótese de que ela se sentia sem lugar na relação com a analista, quando era anunciado o fim da sessão, assim como quando sua mãe olhava e cuidava da irmãzinha mais nova. Não se tratava então da mesma vivência: ser jogada fora, descartada, sem lugar, tanto na relação com a mãe, como ali na sessão com a analista? A passagem ao ato como resposta ao encerramento da sessão não revelava a sua condição de objeto caído, sem lugar na cena?

Quando sua mãe cuidava da irmã caçula, ela se sentia sem lugar, não parecia haver tratamento simbólico para lidar com essa situação, pois o que se apresentava era pura angústia, desmedida, sem borda em forma de ato. Não demonstrava estar enciumada, com dúvida se a mãe gostava mais dela ou da irmã. Não demonstrava estar com dúvida em relação ao desejo da sua mãe, o que na neurose seria esperado, afinal são formas de dar tratamento simbólico à falta. Não havia palavras para dizer o que se passava com ela nesse momento.

Sua resposta em ato indicava uma imensa manifestação da angústia. Não indicava a passagem ao ato a única resposta possível como expressão da foraclusão da falta?

Soler (2007) reflete: "Passemos para o nível da causação da psicose. A psicose encontra sua 'condição' essencial na foraclusão do Nome-do-Pai. [...] Lacan não diz 'causa', e sim condição essencial" (p. 199).

Comecei a formular a questão sobre o que convocava sua angústia e a consequente passagem ao ato. Será que era o fato de não haver continuidade entre o que ela queria e o que Outro poderia oferecer? A resposta que ela apresentava a esse desencontro (entre ela e o Outro) indicava que ela era convocada no ponto em que não teria representação possível, devido à falta do significante Nome-do-Pai foracluído. O que se apresentava não era a angústia expressada na forma de passagem ato?

Serge Leclaire (2001) afirma em seu livro Escritos clínicos, que: "[...] a foraclusão (Verwerfung) designaria, assim, uma experiência marcada com o selo indelével de uma falta radical, de um 'BURACO NO SIGNIFICANTE' anterior a toda possibilidade de negação, logo de recalcamento" (p. 163).

Havia lugar na estrutura do discurso da "pequenina" para sustentá-la quando o outro lhe faltava?

Na neurose, a recusa do outro pode ser dialetizada pelo mesmo significante FALO, produto da metáfora paterna, da qual ela parecia não ter registro. A "pequenina" parecia não conseguir dialetizar a recusa do Outro, ela caía como objeto.

Diante da experiência clínica, dos efeitos do manejo, que promoveram desorganização, e das intervenções que não surtiram efeito esperado, levantei a hipótese de que a falta parecia não estar simbolizada, e sim foracluída do seu discurso. A respeito da foraclusão, Quinet (2009) nos diz que:

[...] o Nome-do-Pai se inscreve no Outro inaugurando a simbolização, a foraclusão do Nome-do-Pai na psicose corresponde no sujeito à abolição da lei simbólica, colocando em causa todo o sistema do significante. A foraclusão do Nome-do-Pai implica a não travessia da epopeia edipiana, uma vez que o sujeito não é submetido à castração simbólica, não havendo, portanto, possibilidade de a significação fálica advir. (p. 15)

 

Mudança no manejo clínico

Foi a própria experiência clínica, ao me fazer interrogar a respeito da forma que a "Pequena Sereia" respondia às intervenções, que possibilitou levantar uma nova hipótese diagnóstica. Não poderia se tratar de uma estrutura psicótica?

Segundo Lacan (1998):

A Verwerfung será tida por nós, portanto, como foraclusão do significante. No ponto em que, veremos de que maneira, é chamado o Nome-do-Pai, pode, pois, responder no Outro um puro e simples furo, o qual, pela carência do efeito metafórico, provocará um furo correspondente no lugar da significação fálica. (p. 564)

Em face dessa nova hipótese diagnóstica, a mudança no manejo clínico foi decisiva para o trabalho. Diante da angústia despertada pelo encerramento da sessão, passei a conversar com a "pequenina" sobre o significado do tempo, a colocar o relógio entre nós, como um anteparo/mediação imaginária entre mim e ela. Lembrando que parecia não haver mediação de um terceiro entre ela e o outro. Esse manejo consistia em encontrar recursos de linguagem para recobrir a significação foracluída. Como a castração não está simbolizada na psicose, o trabalho de análise consistiu em oferecer uma suplência do foracluído. Para tanto, fomos construindo uma referência imaginária sobre a separação, com a qual poderia se sustentar quando se deparasse com a significação ausente. Essa construção imaginária passou a servir como aporte para as situações angustiantes, funcionando como uma referência, produzindo efeito de acalmar a angústia. A grande aposta era que com essa referência ela pudesse se sustentar quando se deparasse com o buraco da significação ausente, e não mais caísse como objeto na forma da passagem ao ato.

Faria (2011) nos diz que:

O que o caso Robert nos mostra é que o simbólico não é o único recurso de ordenação do real pelo sujeito, há também a organização imaginária, na qual o sujeito encontra recursos para lidar com o real da ausência do Outro no par ausência absoluta - presença absoluta. Diante de um Outro que tem, para o sujeito psicótico, a consistência de um Outro absoluto, (A), o imaginário oferece recursos para lidar com a angústia da ausência não-simbolizada através de um significante que faz par com o significante da presença absoluta, negativizando-o no sentido de um (-A). O recurso imaginário implica fazer par ao Outro-todo-presença, construindo um Outro-não-presença. Esse recurso pode ser um significante, como o "mamãe" de Robert, mas pode também ser a arte, a literatura (é notável sua importância em casos como Aimée, Schreber, Joyce), ou o próprio delírio.

Podemos assim concluir, afirmando que a grande contribuição de Lacan à clínica das psicoses no início de seu ensino está na ênfase ao efeito organizador do imaginário nas psicoses. Tal efeito constitui um norte no tratamento psicanalítico das psicoses, na medida em que a cura implica estabilização produzida por essa ordenação imaginária do real. (p. 16)

Um dos recursos introduzidos foi o relógio, como mais uma dessas referências imaginárias. Um mediador entre nós, para que ela pudesse se organizar para a hora da saída. O relógio viabilizou falarmos da separação, e ir construindo as razões pelas quais nos encontrávamos e por que tínhamos de nos separar. Fomos tecendo as condições para que ela pudesse dar outra resposta a tudo o que envolvia as separações em sua vida, inclusive diante do encerramento da sessão.

Essa intervenção teve um efeito radical para a suspensão das crises, não apenas nas sessões, mas na sua relação com a mãe e na escola. Foi organizadora, funcionou como mediação imaginária para que ela pudesse lidar com as mais variadas formas de limite apresentadas em sua vida. É nesse ponto que reside a diferença estrutural entre neurose e psicose: enquanto o neurótico aborda os limites simbolicamente pela castração, na psicose, não há recurso simbólico.

O manejo clínico foi justamente dar tratamento de linguagem para cada situação em que a angústia se apresentava. Recobrindo imaginariamente a significação ausente. Para tanto, foi necessário abordar cada problema que se apresentava, um a um: quando uma "amiguinha" não queria mais brincar com ela, quando sua mãe tinha de fazer outras atividades e não poderia dispor do tempo que a "pequenina" gostaria de ter, quando a sessão se encerrava. Era como se estivéssemos construindo juntas uma teoria da separação que dava suporte para o que antes desencadeava angústia.

Conforme Soler (2007):

A psicose e seus fenômenos, assim como os da neurose, têm uma estrutura de linguagem, mas o sintoma psicótico não é metáfora. Aí está a grande e simples diferença que será comentada num primeiro momento, e que fornece a chave da clínica diferencial: num caso, a metáfora e no outro, a ausência de metáfora. (p. 195)

Fomos recobrindo, imaginariamente, o seu ponto de angústia, que era o desencontro com o Outro, colocando significantes que pudessem dar tratamento à dificuldade de lidar com tudo o que não era espelhamento, continuidade do seu querer, como quando sua mãe tinha de cuidar da irmã, quando a professora não lhe dava razão numa briga de coleguinhas em classe, quando a analista encerrava a sessão, etc.

O trabalho consistiu na construção de uma suplência, para que ela pudesse se estabilizar nas situações que desencadeavam angústia. Como não havia um significante que a sustentasse quando o Outro lhe faltava, momento da separação, era crise, angústia. E, com a construção da teoria da separação fazendo função de suplência, ela poderia se assegurar do seu lugar, ainda que o Outro lhe faltasse.

Lacan (1998) afirma que:

Para que a psicose se desencadeie, é preciso que o Nome-do-Pai, Verworfen, foracluído, isto é, jamais advindo no lugar do outro, seja ali invocado em oposição simbólica ao sujeito.

É a falta do Nome-do-Pai nesse lugar que, pelo que abre no significado, dá início à cascata de remanejamento do significante de onde provém o desastre crescente do imaginário, até que seja alcançado o nível em que significado e significante se estabilizam na metáfora delirante. (p. 584)

Na psicose, a suplência do significante que falta é uma construção imaginária que dá estabilidade quando o sujeito se depara com o real de uma não resposta do Outro, a qual produz angústia. Essa construção imaginária possibilita ao sujeito não descompensar perante a significação foracluída.

Segundo Soler (2007):

Quando falamos em metáfora e suplência estamos no vocabulário psicanalítico e até num vocabulário estritamente lacaniano. Esses são termos de Lacan, definidos por ele, introduzidos por ele, e utilizados pelos que seguem sua orientação. É com esses dois termos que tentamos dar um sentido preciso ao termo estabilização. (p. 193)

Ainda de acordo com Soler (2007), o trabalho com a psicose "consiste em construir uma ficção, diferente da ficção edipiana e em levá-la a um ponto de estabilização, obtido pelo que Lacan situou, em certa época, como uma metáfora de suplência: a metáfora delirante" (p. 187).

O manejo clínico foi construir essa ficção; a teoria da separação fez função de suplência ao grande buraco onde a "Pequena Sereia" se afogava. Essa teoria foi se formulando a partir das situações em que a "pequenina" apresentava muita dificuldade de experienciar.

De acordo com Quinet (2009):

No "Seminário 3" de Lacan há uma indicação que poderíamos designar de posição de princípio. Ele propõe que os alienistas sejam os secretários do alienado, ou seja, que tomemos ao pé da letra o que ele nos conta, o que não implica uma confissão de impotência. Trata-se de saber escutar aquilo que os psicóticos manifestam de sua relação com o significante. (p. 130)

Por meio dessa teoria, que comporta e sustenta a separação, a "pequenina" passa a ter um recurso para lidar com o fato de que as pessoas não poderiam estar o tempo todo juntas e que elas se separam porque é assim para todo mundo. Que existe a hora de entrar na sessão e sair, hora de entrar na escola e sair, de brincar e parar de brincar, não dá para ficar todo o tempo junto. Há a hora de encontrar e de separar, a hora em que ela quer e que o Outro não pode, a hora em que o outro quer e ela não pode. Fomos recheando esse repertório dos encontros e desencontros com a construção de uma teoria da separação.

O final da análise foi o resultado dessa construção, que fez função de suplência no lugar onde antes o que se produzia era angústia. Funcionando como ponto de basta, promovendo estabilização das situações que antes se apresentavam com a resposta da passagem ao ato.

Conforme Soler (2007):

A função do Nome-do-Pai é uma função de basteamento do imaginário e do simbólico. Mas o termo que efetua esse basteamento e que funciona como uma variável da função pode, por sua vez, ser diverso. Portanto, há que fazer uma clínica dos substitutos do Nome-do-Pai, dos diferentes termos que a clínica nos apresenta e que exercem a função de estabilizadores.

A suplência pela metáfora delirante está longe de ser perfeita, e poderíamos até dizer que a metáfora delirante é uma pseudometáfora. (p. 205)

Depois de certo tempo a "pequenina" começou a formular: "não preciso mais vir aqui, pois agora eu sei que mesmo quando minha mãe não me olha, ela gosta de mim! Quando uma amiguinha não quer brincar comigo, não me desespero, pois sei que isso pode acontecer entre amigas, nem sempre vamos querer fazer as mesmas coisas, e tudo bem! E você não vai me esquecer só porque eu vou embora, eu vou estar no seu coração e você no meu!"

Essas novas afirmações da "Pequena Sereia" são uma evidência de que ela passou a ter outras possibilidades subjetivas para lidar com as situações que não eram espelho do seu querer. O que antes se apresentava como passagem ao ato, revelando a falta de lugar para a criança, com esse trabalho clínico, ela passa a ter referências para lidar com as situações de desencontro e, com isso, passa a responder de outra forma às situações que antes promoviam crise em sua vida.

Quinet (2009) reflete:

No caso da foraclusão do Nome-do-Pai, como o sujeito vai sustentar esse pai? Com o sintoma, que no caso de James Joyce é sua relação com a linguagem, ou seja, sua arte. É em sua tentativa de suprir o Pai que o psicótico é criador de teoria, inventor de um modo fora da norma fálica de ex-sistir.

Essa formulação da teoria do sintoma permite uma generalização do conceito de suplência, e uma nova definição do sintoma é a maneira com a qual (ou através da qual) cada um goza do inconsciente na medida em que o inconsciente o determina. (p. 102)

Podemos, portanto, concluir que a construção da teoria da separação funcionou como suplência, trazendo efeito estabilizador para essa criança. A não resposta especular do outro já não provocava angústia na criança, que passou a ter, com o efeito da análise, referências imaginárias, conseguindo manter-se na cena, não despencando como objeto, não caindo no buraco da falta da significação fálica. O efeito clínico desse manejo parece indicar a hipótese de diagnóstico diferencial de psicose.

Essa construção, essa ficção, lhe deu condição de ir embora para outros mares, pois já podia nadar, com sua "boiazinha"/suplência, não se afogando nas ondas altas e baixas, nos desencontros das marés da vida!

 

REFERÊNCIAS

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Soler, C. (2007). O inconsciente a céu aberto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

 

 

 

Endereço para correspondência:
Rua João Ramalho, 257, conjunto 53
05008-010 - São Paulo - SP - Brasil

duarterinalda@hotmail.com

Recebido em janeiro/2012.
Aceito em maio/2013.