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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.19 no.1 São Paulo Apr. 2014

 

ARTIGO

 

Ressonâncias do inconsciente materno e familiar na sintomatologia infantil e no setting analítico à luz de um caso clínico

 

Resonances of maternal and family unconscious in child symptomatology and in the analytic setting in light of a clinical case

 

Resonancias del inconsciente materno y familiar en la sintomatología infantil y en el setting analítico a la luz de un caso clínico

 

 

Ana Laura Moraes Martinez

Psicóloga. Doutora em Psicologia pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP), Ribeirão Preto, SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo discutir a importância do terapeuta infantil manter dentro de si uma visão binocular, que priorize tanto a escuta do mundo interno de seu pequeno paciente, mas também as interferências do inconsciente familiar e materno na sintomatologia infantil e no setting analítico. Partindo da perspectiva de que o mundo interno do infance se constrói também, embora não somente, pela demanda inconsciente dos pais, será ainda propósito deste artigo demonstrar como, neste caso clínico, a sintomatologia da criança foi influenciada por conflitivas inconscientes maternas e pela modalidade de cuidado parental presente nesta família.

Descritores: psicanálise; ludoterapia; mundo interno; família; transgeracionalidade.


ABSTRACT

This study aims to discuss the importance for a child therapist to keep a binocular vision which both prioritizes listening to the inner world of his/her little patient and the interferences of the family and maternal unconscious in the child symptomatology and in the analytic setting. From the perspective that the infant's inner world is also, although not only, built by the parental unconscious demand, the further purpose of this study is to demonstrate how, in this clinical case, the symptoms of the child were influenced by maternal unconscious conflicts and by the parental care modality existing in such family.

Index terms: psychoanalysis; play therapy; internal world; family; transgenerationality.


RESUMEN

El presente trabajo tiene como objetivo discutir la importancia del terapeuta infantil mantener dentro de si una visión binocular que priorice tanto la escucha del mundo interno de su pequeño paciente, pero también las interferencias del inconsciente familiar y materno en la sintomatología infantil en el setting analítico. Partiendo de la perspectiva de que el mundo interno del infante se construye también, aunque no solamente, por la demanda inconsciente de los padres, va a ser todavía propósito de este artículo demonstrar cómo, en este caso clínico, la sintomatología del niño ha sido influenciada por conflictivas inconscientes maternas y por la modalidad de cuidado parental presente en esta familia.

Palabras clave: psicoanálisis; terapia del juego; mundo interno; familia; transgeneracionalidad.


 

 

Introdução

Freud ([1901]1905/1996a; 1905/1996b) valorizou, em grande parte de seus textos, o papel dos aspectos constitucionais e das fantasias inconscientes no desenvolvimento do psiquismo humano e, consequentemente, no estabelecimento das neuroses. Apesar de ter compreendido que em toda a neurose estão implicados fatores constitucionais e ambientais, cunhando o que ele chamou de "séries complementares" (Freud, [1915-17]1916-17/1996c) ele não chegou a dar ênfase ao modo como o inconsciente familiar, sobretudo o materno, interfere na construção dos sintomas. É verdade, por outro lado, que em algumas passagens, Freud lembra que a neurose dos pais é fonte importante na fixação dos sintomas infantis, não pela via da transmissão hereditária, mas pela via dos hábitos e costumes, sobretudo, o hábito materno de mimar a criança, tornando-a objeto de seu próprio investimento libidinal. Assim, diz ele:

É verdade que o excesso de ternura por parte dos pais torna-se pernicioso na medida em que acelera a maturidade sexual e também, mimando a criança, torna-a incapaz de renunciar temporariamente ao amor em épocas posteriores da vida ou de se contentar com menor dose dele. Um dos melhores prenúncios de neurose posterior é quando a criança se mostra insaciável em sua demanda de ternura dos pais. Por outro lado, são os pais neuropáticos que em geral tendem a exibir uma ternura desmedida. (Freud, 1905/1996b, p. 211)

No trecho transcrito acima fica evidente a preocupação de Freud em inscrever o desejo infantil a partir das zonas erógenas (existentes de forma constitucional em cada humano), mas também em função do manejo que o cuidador tem com a criança, derivado de sua própria vida sexual. Dito de outro modo, Freud estava ciente de que a intensidade com que uma zona erógena será investida pela criança depende não só de sua constitucionalidade, mas do modo como a primeira cuidadora, em geral a mãe, irá investir libidinalmente nesta. Com isso, ele relativiza a questão abrindo perspectivas para se pensar que o mundo fantasmático infantil é constituído também, embora não só, pelo inconsciente materno e familiar.

Indo além desta questão da fixação dos sintomas infantis pelo hábito de se mimar a criança, pensadores de linhagem psicanalítica francesa, tais como Lacan (1969/2003), Françoise Dolto (1989), Maud Mannonni (1982) e Pierra Aulagnier (1978) consideram que o inconsciente familiar é transmitido ao infante pela via do discurso. Ou seja, quando nasce uma criança, ou ainda antes mesmo de ela ser gerada, já existe no inconsciente dos genitores, e também no inconsciente dos pais de cada um destes, demandas específicas e bem instaladas do lugar fantasmático que esta deverá ocupar dentro daquela configuração familiar – lugar com o qual todo sujeito deve se confrontar em análise buscando questionar o que Lacan (1969/2003) chamou de discurso familiar. Neste sentido, será tarefa do terapeuta frente a uma criança que é trazida para atendimento não somente oferecer uma escuta continente ao seu mundo interno, mas também manter dentro de si o que Bion (1965/2004) cunhou de visão binocular frente às comunicações inconscientes que são feitas pelos genitores, já nos primeiros contatos, e que revelam o lugar fantasmático que esta criança específica ocupa naquela configuração familiar.

A visão binocular ou multifocal de Bion (1965/2004) alude à importância de o ser humano poder manter contato com as múltiplas e diversas partes de sua personalidade. Em outros termos, refere-se à importante capacidade psíquica de se estabelecer confrontos e correlações entre distintos e diversos vértices, situação que capacita o sujeito a transitar de um ponto de vista a outro acerca do que se sucede em uma determinada experiência emocional, sem ficar firmemente aferrado em uma ou outra perspectiva somente; situação que mobiliza engessamento e paralisia mental. No caso em que se está considerando aqui, chama-se a atenção para a importância de o terapeuta infantil poder manter dentro de si diferentes perspectivas e vértices de sua escuta analítica: uma que prioriza o mundo interno da criança, com suas lutas pulsionais, com seus objetos internos fantásticos e formas defensivas de enfrentamento de angústias persecutórias e depressivas; outra que prioriza a escuta das comunicações inconscientes feitas pelos genitores no que se refere ao lugar fantasmático ocupado por esta criança na família; outra ainda que prioriza o trânsito da dupla terapeuta – criança, terapeuta – família no que se refere às experiências emocionais que são mobilizadas no encontro do aqui-agora da sessão. Tudo isso faz com que o trabalho do terapeuta infantil ocorra, em muitos momentos, no "escuro", já que a integração desta ampla gama de vértices de escuta demanda tempo, capacidade de tolerar incertezas e grande trabalho de elaboração mental (Favilli, 1988).

É importante, portanto, que o terapeuta se sinta apto a tolerar estas zonas de indefinição, este quantum de mistério que envolve as questões da mente e, conforme nos ensinou o próprio Freud (1912/1996d) e depois Bion (1965/2004), esteja preparado para manter sua própria mente em um estado de atenção flutuante/sem memória e sem desejo, de modo a não colonizar sentidos precoces, que servem mais para acalmá-lo do que para auxiliar efetivamente o seu paciente.

Vejamos agora como a psicanálise infantil tem abordado esta questão da escuta familiar na sintomatologia do paciente, desde a ludoterapia de Melanie Klein até a atualidade.

 

A entrada da família na sala de análise

Ao contrário da análise de adultos – amplamente investigada pelo fundador da psicanálise – a psicanálise infantil nasceu cercada de obscuridades e num espírito de luta por reconhecimento (Camarotti, 2010). Pois, vale lembrar, o próprio Freud nunca analisara, ele mesmo, uma criança, a não ser através da figura do pai do pequeno Hans (Freud, 1909/1996e). Para ele, a análise de crianças era algo inviável porque esta não era considerada capaz de desenvolver a transferência junto à figura do médico. Uma das razões para isso se devia, segundo ele, ao fato de haver, no caso das crianças, a interferência direta da figura de autoridade dos pais, algo que não acontecia com os adultos. Assim, advogava que uma psicanálise infantil só seria possível se se congregassem na mesma figura as funções do médico e do pai, que foi o que aconteceu no caso pequeno Hans.

Depois de Freud, sua filha Anna envolveu-se em calorosas discussões com Melanie Klein na tentativa de mapear o que seria propriamente uma psicanálise infantil. Apesar disso, considera-se, na história da psicanálise, que foi Melanie Klein quem verdadeiramente fundou o que depois viria a ser conhecido como ludoterapia, já que Anna Freud advogava a favor de um atendimento mais voltado ao fortalecimento das funções egóicas em detrimento da análise das fantasias inconscientes, como advogava Klein (Roudinesco & Plon, 1998).

Nos primórdios da técnica, Melanie Klein realizava inicialmente seus atendimentos no domicílio da criança, além de utilizar seus próprios brinquedos, trabalho que teve início no ano de 1919. Nesta época, Hug-Hellmuth já empreendia um trabalho psicoterápico com crianças maiores de seis anos (portanto, no período de latência), mas, diferente de Klein, não utilizava o brinquedo como material de uma técnica específica, assim como não acreditava ser necessário nomear para o pequeno paciente suas vivências inconscientes. Considerava-se, nesta época, que explorações mais profundas do inconsciente infantil apresentavam riscos às crianças e também ao analista (Roudinesco & Plon, 1998).

O primeiro paciente atendido por Klein foi um menino de cinco anos, que ela chamou de Fritz (Klein, 1975/1996). Também entre os anos de 1920 e 1923, ela acumulou grande experiência com outros casos de crianças, sendo o mais emblemático deles o de Rita (Klein, 1932/1997), uma menina de dois anos e nove meses, que fora atendida por ela no ano de 1923. Estas duas análises – a de Fritz e a de Rita – foram empreendidas na casa da criança e com seus próprios brinquedos, mas, durante estes tratamentos, que duraram poucos meses, Klein chegou à conclusão que a psicanálise não deveria ser realizada no lar da criança. Vejamos o que a fez pensar assim:

Verifiquei que, embora ela (a criança) tivesse muita necessidade de ajuda e seus pais houvessem decidido que eu deveria tentar a psicanálise, a atitude da mãe em relação a mim era muito ambivalente e a atmosfera, de modo geral, era hostil ao tratamento. (Klein, 1969, p.28)

Melanie Klein percebera com muita perspicácia a ambivalência ma terna com relação à sua figura, ou seja, a manifestação de sentimentos amistosos (desejo de receber ajuda) e de sentimentos hostis de ódio e inveja pela condição mental mais equilibrada demonstrada pela analista.

Assim Klein concluiu que era muito importante que o atendimento analítico se passasse em um lugar físico separado do contexto familiar habitual da criança, algo que minimizaria os riscos da interferência dos sentimentos hostis dos cuidadores na análise e também facilitaria o processo de comunicação da criança de suas fantasias inconscientes. Depois desta primeira fase de experimentação, Klein considerou que o atendimento ludoterápico deveria se restringir à criança e que o analista deveria reduzir ao mínimo necessário o contato com os pais. Dito de outro modo: nesse modelo, a tarefa do terapeuta seria interpretar as fantasias presentes no mundo interno infantil, vinculando-as, sobretudo, aos movimentos transferenciais (Klein, 1932/1997).

Longe de desconsiderar a importância da fundamentação teórica e técnica que Melanie Klein desenvolveu no atendimento de crianças, o trabalho cotidiano com pacientes pequenos e seus pais, na prática, mostra-se mais delicado e mais difícil do que se apreende na teoria kleiniana, em parte porque o afastamento dos pais do atendimento desperta neles, com frequência, angústias persecutórias intensas que, se não forem contidas pelo terapeuta infantil, podem contribuir para impasses e atuações que visam colocar fim ao trabalho terapêutico.

De qualquer forma, o que se observa atualmente é o movimento de uma profunda revisão por parte dos analistas infantis no que se refere aos moldes tradicionais propostos pela psicanálise de crianças, havendo uma tendência cada vez maior de incluir os pais no processo, sob a forma de encontros periódicos com os mesmos. Esses psicanalistas nutrem-se também do pensamento desenvolvido por Bion (1962/2000) que trouxe com maior ênfase a importância da qualidade do continente materno para o incremento ou aplacamento das vivências persecutórias infantis – algo que é bastante verdadeiro na medida em que se observa que é da qualidade do continente analítico que surgem possibilidades de reestruturações e reorganizações do mundo interno do paciente. Sem essa abertura necessária ao caráter relacional e altamente fluido do mundo interno, não há outra forma de explicar as mudanças analíticas.

Há ainda outras linhagens de pensamento e desenvolvimentos interessantes que partiram, sobretudo, das ideias de Donald W. Winnicott (1958/2000a) com a valorização do ambiente e de Lacan (1969/2003) com a ideia de que somos constituídos a partir da linguagem do Outro – sobretudo o outro materno. Para este último, o sintoma infantil precisa ser compreendido a partir do sintoma familiar e remetido principalmente ao fantasma materno. Partindo dessa ideia há, na França, interessantes desdobramentos da teoria lacaniana expressos no pensamento de Françoise Dolto, Maud Mannoni e Pierra Aulagnier, conforme já citado acima.

Todos esses autores possibilitaram expansões na forma de se compreender qual é o lugar que os pais devem ocupar dentro da sala de atendimento infantil – não um lugar marginal, um apêndice do atendimento, mas um lugar central na escuta analítica. De formas diferentes, todos chamaram a atenção para a ordem do traumático que o inconsciente infantil carrega. Nas palavras de Dolto (2013), o analista de crianças deverá ter condições internas de ser afetado pelo que há de traumático no inconsciente infantil, o que torna a prática da análise de crianças muito mais difícil e delicada do que o trabalho com adultos. Recorrendo brevemente ao conceito de trauma, para Freud ([1915-1917]1916-1917/1996c), uma experiência traumática é aquela que excede a capacidade de compreensão e de contenção do ego, ou seja, aquilo que é excessivo, que é intrusivo para a mente.

Deste ponto de vista, há que se considerar o caráter traumático que o inconsciente materno tem sobre a mente infantil, pois, quando nasce uma criança, ela nada sabe sobre o que irá constituí-la, determiná-la do ponto de vista do inconsciente que a transcende. É daí que deriva sua experiência traumática – deste inconsciente que a determina, mas do qual ele ainda nada sabe.

Com o auxílio de outras identificações, mas, sobretudo, com a presença ativa da função paterna, a criança terá, para se constituir como um sujeito (no sentido pleno do termo), que conseguir questionar o lugar de objeto do desejo do Outro, atravessando zonas de desamparo, marca constitutiva do humano. Trata-se de uma experiência dolorosa e árdua, pois, conforme ensinou Freud (1918/1996f), tudo o que o ego infantil mais deseja é ser amado pelo objeto. Ou seja, na medida em que o sujeito tece estes questionamentos necessariamente terá que se deparar com o medo da perda de amor do objeto. Mas, por outro lado, é só por meio do atravessamento deste árduo e longo processo que a pessoa pode gozar e usufruir da vida tendo uma mente própria.

No caso específico do atendimento infantil, por se saber que a criança almeja mais que tudo ser objeto de desejo da mãe, este vértice de escuta que prioriza o entendimento de qual desejo materno é este que esta sendo posto em ação e de como a criança busca preencher a falta da mãe é fundamental. Também é fundamental compreender como a função paterna, que é aquela que fará a interdição no desejo materno ou que impedirá que a criança seja tudo para a mãe, está sendo permitida ou barrada no exercício de parentalidade da família que vem buscar ajuda.

Tendo situado em linhas gerais como a psicanálise infantil vem compreendendo o lugar ocupado pelos pais no atendimento da criança e as tarefas a serem desempenhadas pelo terapeuta neste difícil processo, será apresentada agora uma vinheta clínica em que se evidencia a predominância da interferência do inconsciente materno e da modalidade do cuidado parental na construção dos sintomas da criança.

 

Vinheta clínica

1. Síntese das primeiras entrevistas com os cuidadores

Rita procurou atendimento psicoterápico para seu único filho Pedro, de seis anos e meio por estar preocupada com seu comportamento. Segundo ela, o menino tem dificuldade em ser deixado na escola, sobretudo quando é levado por Rita. Nestas situações, frente à ameaça de separação, tem crises de vômito. Além disso, tem se mostrado cada vez mais agressivo com os colegas. Sobre sua história, Rita contou que engravidou acidentalmente quando ainda namorava o pai de Pedro, jovem músico descrito por ela como imaturo e sem responsabilidade. Assim que engravidou, Rita e o pai de Pedro foram morar juntos, mas devido às brigas constantes, logo se separaram e ela retornou à casa da mãe com o filho. Quando Pedro tinha cerca de quatro anos, Rita iniciou seu relacionamento com Marcos, tendo ido morar com ele logo em seguida. Veio para a entrevista inicial acompanhada de Marcos, a quem Pedro chama de pai. Rita conta, com ar descontraído, que Pedro tem três pais: o pai Marcos, seu atual parceiro, o seu tio, irmão de Rita a quem o menino chama de pai desde pequeno e o seu pai biológico.

Essas informações vão sendo dadas por ela com sofreguidão, evocando em mim, contratransferencialmente, um incômodo sentimento de falta de ar, já que Rita parece ter dificuldade para encontrar espaços de pausa entre uma palavra e outra. Durante a entrevista, noto também que Marcos quase não fala, parecendo estar ali como um coadjuvante de Rita. Outro sentimento evocado em mim contratransferencialmente é o de uma incômoda irritação, ao captar que Rita parece não estar falando comigo, em uma interação que pressupõe a percepção de uma alteridade, mas, através de mim – sensação semelhante àquela que mães de crianças com transtornos autísticos relatam sobre o fato de sentirem que seus filhos as olham, mas de fato, não as enxergam.

Deixo Rita dar seguimento ao seu fluxo incontinente de palavras sem propor interrupções, já que o meu intuito não é realizar uma anamnese no sentido clássico do termo, mas ter espaço interno para observar aquilo que é comunicado por este casal para além das palavras. Adoto nesse momento a mesma conduta proposta pela técnica freudiana de deixar-me levar pela minha atenção flutuante. Em alguns instantes, noto que Rita interrompe abruptamente a sua fala, e também o meu fluxo de pensamentos, e lança questões-relâmpago, retirando-me do meu estado de atenção flutuante. As perguntas giram em torno da sua angústia sobre ser ou não uma boa mãe. Então, ela pergunta: "Você acha que está certo o que eu estou fazendo?" ou mais diretamente ainda: "Você acha que sou boa mãe". Ao invés de lhe oferecer magicamente o objeto que, conforme ela alucina, irá lhe tirar do apuro de se ver em falta, digo que com esta pergunta assim abrupta ela me conta que dentro dela não há muito espaço para ela refletir sobre como se sente sendo mãe e que, diante da ausência destes espaços, ela espera que eu possa acalmá-la dizendo que sim, que ela é, de fato, uma boa mãe. Talvez por ser uma fala muito longa, demorada demais diante da sua baixa tolerância frente à ausência, ela rapidamente devolve (vômito) o que eu disse e responde: "Não sei por que penso nessas coisas!". Com isso, levanto a seguinte hipótese em minha mente: será que os vômitos de Pedro tem algo a ver com este mecanismo materno de evacuar a angústia? Estaria Pedro já profundamente identificado a este sintoma materno que se vincula à total impossibilidade de Rita de gestar seus próprios pensamentos, de ter tolerância diante das incertezas e da ausência de respostas prontas para suas angústias? Mantenho essa hipótese dentro de mim e ao final da entrevista tenho uma confirmação dela: logo ao se levantar, enquanto nos despedíamos, Rita conta de forma despretensiosa que ela também tem crises frequentes de vômito!

Na segunda entrevista, Rita começou a falar de suas crises de vômito, algo que ela relacionou com situações de separação e pôde pensar que Pedro talvez sentisse o mesmo medo que ela sentia ao ficar sozinha. Relembrou que quando criança tinha muito medo de ficar sozinha e que sua mãe era extremamente ansiosa, assim como ela. Diante dessa reflexão, disse: "Deve ser por isso que eu sou assim. É uma coisa que vai passando de mãe pra filho. E agora eu tô passando isso pro meu filho também!" (sic).

Ainda nessa entrevista, trouxe elementos que puderam me informar melhor sobre sua relação culposa com o filho. Contou-me que sempre adorou trabalhar e que quando o menino nasceu ficou muito dividida entre o trabalho e as necessidades prementes do filho. Impossibilitada de lidar com essa alta dose de angústia e culpa, decidiu abandonar o emprego e cuidar integralmente de Pedro, o que aumentou seus sentimentos de ódio e frustração por ter que abdicar de algo que tanto gostava. No momento, porém, havia voltado a trabalhar intensamente; situação que vinha fazendo com que o menino, muitas vezes, passasse vários dias seguidos na casa da avó sem ver a mãe. Por outro lado, nos instantes em que Rita está com Pedro, ela busca preenchê-lo com objetos de alto valor que o menino deseja, tais como tablets e jogos de vídeo-game. Contou, com ar descontraído, que Pedro já chegou a passar seis horas ininterruptas jogando em seu tablet.

Outro aspecto que começou a ganhar relevo disse respeito ao fato de Pedro ter sido concebido não de um projeto parental sustentado no amor e na cumplicidade, mas, ter sido gerado em um contexto afetivo e conjugal precário onde ambos – ela e o ex-marido – sentiam-se e sentem-se pouco amadurecidos para enfrentar o desafio que é cuidar de uma criança.

2. Síntese das primeiras entrevistas com Pedro

Recebo Pedro em meu consultório para o nosso primeiro encontro. Deparo-me com um menino muito pálido, com olheiras e de aspecto físico muito frágil. Entra comigo para a sala e, apesar de parecer desconfiado, logo começa a se expressar. Vai até a caixa lúdica que utilizo em entrevistas iniciais e retira vários objetos dela, sem, entretanto, brincar com nenhum. Em seguida, começa a falar rapidamente sobre várias coisas que tenho dificuldade para compreender. Ao mesmo tempo em que fala, movimenta-se pela sala fazendo círculos com o corpo duro e retesado – que seus movimentos me fazem lembrar de um robô. Digo a ele que seus movimentos lembrar um robô. Ele diz que sim, que adora robôs e que o seu melhor amigo é um robô. Pergunto a ele como é isso, de ter como melhor amigo um robô ao que ele responde: É, é o robô Garras! Ele é o meu melhor amigo! Até o final dessa entrevista, Pedro continua fazendo movimentos estereotipados, rodando em círculos e falando intempestivamente. O sentimento evocado em mim foi o de uma profunda solidão, como se Pedro habitasse um mundo repleto de objetos inanimados, um mundo de robôs. Além disso, permaneceu em mim, mesmo depois de sua partida, um profundo sentimento de caos interno, como se eu houvesse sido lançada para dentro de um mundo caótico e confuso – provavelmente o modo como Pedro sentia seu mundo interno.

Na segunda entrevista, por perceber que Pedro continuava submerso em seus movimentos auto calmantes e circulares, falando coisas que eu tinha muita dificuldade para compreender, disse a ele que estava interessada em construir um livro de histórias com ele – um livro em que eu pudesse conhecer mais sobre ele e sobre o seu melhor amigo Garras. Neste momento, seu olhar se acendeu e sua excitação foi evidente. Passamos, então, a fazer uma série de desenhos que fariam parte, no futuro, de muitas de nossas sessões analíticas1. Na confecção dos mesmos, Pedro desenha os robôs e me pede, gritando, para desenhar as figuras humanas, já que, segundo ele, tem muita dificuldade para desenhar "gente". Nesses desenhos, Pedro era Vinícius. Vinícius era um menino solitário, que tinha muito desejo de fazer parte da família do robô Garras. No desenho abaixo, Vinícius vai à casa de Garras, pois ambos farão aniversário. Vinícius fará seis anos e Garras, doze. Ao lado de Garras está sua mãe. O robozinho desenhado no canto superior direito da folha, deitado em uma rede, é o pai de Garras. Segundo Pedro, ele está deitado porque é preguiçoso e não quer ajudar a família com os preparativos da festa.

 

 

Nesse desenho, Pedro parece comunicar, em termos inconscientes, que se sente mais atraído pelo mundo de robôs (mundo das coisas inanimadas) do que pelo mundo dos humanos (das coisas animadas) – daí a sua imensa dificuldade em desenhar "gente". Esta configuração fez-me pensar, desde o início do trabalho com Pedro, que estava em contato com um menininho que, apesar de ter seis anos e meio, não pudera, até então, apreender o que era ser um ser humano em contato com outros seres humanos, percepção que foi se confirmando ao longo do processo analítico. Este trabalho de tornar-se humano que, no bebê humano, é um processo lento e delicado, depende, conforme se sabe, enormemente do ambiente materno e familiar (Winnicott, 1945/2000b). Outro elemento interpretativo que se depreende do material é o sentimento de Pedro referente à função paterna. Garras (a versão de Pedro inanimada, desvitalizada) tem um pai preguiçoso, que não quis se envolver com as tarefas ligadas ao nascimento (aniversário) do filho. Ele está deitado, indisposto afetivamente, para receber e comemorar o nascimento de sua criança. Essa configuração afetiva traz a Pedro um profundo sentimento de abandono e de solidão.

3. Análise e discussão do material clínico

Como se evidenciou na vinheta clínica, o menino Pedro, de seis anos e meio, vem encontrando sérias dificuldades em seu desenvolvimento psíquico e emocional. Conforme demonstrou nas entrevistas, sente-se mais identificado com o universo dos robôs e das coisas inanimadas do que com o que é particular e próprio do humano, ou seja, com a capacidade humana de sentir os sentimentos, de ter consciência da própria existência, de sua finitude, de suas limitações, etc. Seus sintomas – vômitos que eclodem, sobretudo, nos momentos em que tem que separar da mãe e agressividade – apontam para possíveis falhas no seu desenvolvimento emocional primitivo, momento em que as verdadeiras bases do psiquismo se instalam para que o ego possa surgir e fazer frente às demanda pulsionais do id (Winnicott, 1945/2000b). Há ainda nessa problemática apresentada por Pedro um elemento transgeracional que Rita pôde nomear ao dizer que sua mãe também era muito ansiosa e tinha muita dificuldade para se separar dela. Em suas palavras, é uma "coisa" que vai sendo passada de mãe para filho.

Mas, que "coisa" é esta a qual se refere Rita? E como um terapeuta infantil, diante desta comunicação, pode encontrar representabilidade para esta "coisa" que comparece no sintoma do vômito, seu e de seu filho?

No texto metapsicológico "O inconsciente", Freud (1915/1996g) propõe uma perspectiva interessante – e bastante diferente da visão filosófica vigente na época – para compreender o que ele chamou de "representação de coisa". Para ele, essas representações de coisas constituem o próprio conteúdo do inconsciente, ou melhor, da realidade psíquica. A essas representações de coisas vinculam-se representações de palavras, que têm a função de trazer figurabilidade ou representabilidade à coisa em si (inconsciente). Disso resulta a necessidade, própria do humano, de buscar constantemente formas de representabilidade para seus conteúdos mentais. Essa busca constante se deve ao fato de que "a coisa", ou o Real, nos dizeres de Lacan (1992), é insuportável para a mente em seu estado puro. Nesse sentido, o animal humano é um ser em constante busca por representação para seus conteúdos mentais.

Nessa perspectiva, "a coisa" de que fala Rita pode ser traduzida por "conteúdos mentais que nunca puderam ser representados por palavras", nem na mente de sua mãe, nem em sua própria, nem na mente de seu filho Pedro. Como se apreende na psicanálise, este trabalho de tradução, de representação ou de figurabilidade psíquica (Botella, 2002), no ser humano, depende do trabalho mental de outro ser humano. Dito de outro modo: o infante necessita, ao nascer, de um continente mental que faça o trabalho de representação de seus conteúdos intoleráveis, algo que ele não tem condições de fazer sozinho. Na análise, esta será uma das tarefas primordiais do analista – emprestar sua mente para sonhar os sonhos nunca sonhados e / ou os gritos interrompidos do paciente (Ogden, 2010). Nessa linha interpretativa, o vômito surge exatamente porque as mentes de Rita e Pedro estão intoxicadas por conteúdos indigestos que não estão sendo "digeridos"; na linguagem psicanalítica, esses conteúdos não estão sendo representados psiquicamente. A situação de excesso de conteúdos mentais não metabolizados explica a alta carga contratransferencial (sensação incômoda de falta de ar, sentimento de estar sendo invadida intrusivamente pela mente de Rita) sentida pela terapeuta, desde os primeiros contatos com a família. Isso explica também as perguntas intempestivas de Rita dirigidas à terapeuta; situação que aponta para uma condição mental carente de espaços de pensabilidade, necessários à gestação de novos pensamentos.

Esta situação de carência mental explica ainda a identificação de Pedro com o universo dos robôs. Bion (1962/2000) assevera em "Aprendendo com a experiência" que a mente humana necessita da verdade assim como o corpo necessita do alimento para viver. Caso a mente esteja sofrendo de carência de verdade ou, no modelo que se está discutindo aqui, se ela está carente do trabalho de representação de conteúdos mentais indigestos em algo representável, ela passa a sofrer de inanição e o humano perde seus contornos, adquirindo formas de vida que mais se assemelham a coisas inanimadas; situação mental que explica o fato de Pedro sentir-se povoado internamente por objetos inanimados, por "coisas" que não servem ao pensamento, somente à evacuação.

Há ainda outro elemento que comparece no material clínico e que requer uma análise minuciosa. Trata-se da comunicação de Pedro referente aos sentimentos inconscientes profundos que ele capta na comunicação feita pelos pais, referente ao lugar que ocupa em seus projetos de vida. Na entrevista, Rita comenta com ar descontraído que Pedro tinha três pais. Já na entrevista com Pedro, há uma comunicação profunda sua que difere da percepção de sua mãe. Em sua produção gráfica, Pedro sente não possuir uma família de humanos. Ele deseja fazer parte da família do seu melhor amigo, o robô Garras. Nessa, a figura paterna é sentida por ele como alguém preguiçoso, que está indisponível psiquicamente para comemorar o seu nascimento (aniversário). Na prática, sua mãe Rita fazia inúmeras tentativas para que o pai biológico de Pedro se aproximasse do menino, mas em termos inconscientes, Pedro parecia captar a indisponibilidade afetiva de seu pai para ter um filho. De fato, a gravidez de Pedro fora acidental e nem Rita, nem o pai de Pedro sentiam-se disponíveis psiquicamente para gerarem um bebê naquele momento específico de suas vidas. No momento em que conheci Pedro, o menino chegava a dormir de três a quatro noites por semana na casa de sua avó materna, enquanto Rita viajava a trabalho para oferecer uma vida financeira mais confortável para o filho. Planejava fazer uma viagem à Disney com ele no final do ano.

Considera-se a partir daí que havia, de fato, na vida de Pedro uma configuração familiar que favorecia seu sentimento de solidão pela carência de um vínculo parental estável. Na prática, o exercício de parentalidade de seus pais parecia ser menos sustentado pela confiança e pela valorização da presença viva junto ao filho e mais pela aquisição de posses e bens materiais visando suprir carências do ser. Sabe-se pela psicanálise que o exercício da parentalidade, que envolve o desempenho das funções materna e paterna, é crucial para que o pequeno infante possa vir, de fato, a se tornar um ser humano, desenvolvendo seu psiquismo com todas as suas potencialidades. Sabe-se ainda, que, conforme já dito na introdução do presente trabalho, significações inconsciente dos genitores no que se refere ao exercício da parentalidade são transmitidas à criança para além das palavras faladas (Lacan, 1969/2003; Mannoni, 1982; Aulagnier, 1978).

Nesse caso específico, conforme se pôde observar, havia uma espécie de dupla mensagem que era transmitida a Pedro por sua mãe Rita. Ao mesmo tempo em que ela lhe dizia que ele tinha três pais, seu sentimento profundo de dor pela sua percepção de que seu pai biológico nunca pudera acolhê-lo afetivamente não era reconhecido e, portanto, não podia ganhar expressão verbal. Isso explicava, por exemplo, o fato de que quando Pedro se queixava com a mãe dizendo que seu pai biológico nunca ligava para ele, ela lhe dizia para não ficar triste porque ele era a única criança que ela conhecia que tinha três pais. Com isso, seu sentimento de profundo pesar não podia ser espelhado e acolhido, nem ser reconhecido como real. Assim também quando Rita passava vários dias longe de Pedro a trabalho e, em seguida, sentia uma profunda necessidade de realizar todos os desejos do menino, essa situação parecia gerar na criança um sentimento confuso de ter uma mãe perfeita, mas ao mesmo tempo ausente afetivamente. Em qual estímulo sua mente deveria confiar? Naquilo que ele ouvia e via ou naquilo que ele sentia? Conforme se pretendeu mostrar, este parece ser outro aspecto crucial para o adoecimento psíquico de Pedro já que o que ele captava vindo do inconsciente de seus pais era muito diferente do que estes lhe diziam acerca do seu lugar como filho; situação que gerava nele muita confusão. Indo um pouco além na interpretação de seu desejo de ter uma família de robôs, talvez ele quisesse dizer que o mundo dos robôs é menos confuso que o mundo dos humanos, tão repleto de contradições, de não ditos e de mensagens ambíguas.

Partindo em busca de outras representações mentais que pudessem estar vinculadas à "coisa", evacuada na forma de vômito e, levando-se em conta a quantidade de ódio que Pedro necessitou despertar em sua terapeuta, tão logo o trabalho analítico teve início, hipotetiza-se que uma destas representações mentais que necessitava ser evacuada por Rita referia-se aos seus sentimentos de ódio pelo filho; ódio que, conforme apontou Winnicott (1947/2000c), faz parte do complexo rol de sentimentos que uma mãe irá nutrir por sua criança e que, nessa situação familiar específica, era ainda mais presente pelo fato de Rita ter engravidado sem desejar; situação que a impediu, durante muitos anos, de se desenvolver profissionalmente, algo que lhe trazia muito pesar. Interessante destacar aqui que as crises de vômito de Rita e de Pedro compareciam nos momentos em que ambos se separavam.

Winnicott (1947/2000c), em seu texto "O ódio na contratransferência" encontra um sentido interpretativo interessante para o analista que termina a sessão e manda o paciente embora. Para esse criativo analista, neste momento, o terapeuta tem a oportunidade de expressar seu ódio pelo paciente, através de seu gesto. Corroborando esta interpretação, é sabido que muitas mães encontram sérias dificuldades para se separarem de seus filhos não porque desejem intensamente permanecer com eles, mas porque, em termos inconscientes, interpretam seu afastamento como uma manifestação de sua rejeição e recusa ao filho o que, conforme demonstrou Winnicott, pode ser realmente verdadeiro. Nesse sentido, assevera-se que o ódio aprisiona muito mais as pessoas em suas relações afetivas do que o amor.

No caso de Rita, pelo fato de seu sentimento de ódio pelo filho não ter encontrado espaços de representação em sua mente, esse sentimento acabava por ser comunicado concretamente por meio do vômito e também por meio do vínculo ambivalente que ela matinha com ele; ambivalência expressa em seu afastamento por longos períodos do filho, seguido de sua necessidade de aplacar a culpa, dando-lhe presentes caros e realizando todos os seus desejos. Dito de outro modo, o ódio de Rita, nesse caso, era expresso sob o formato de um intenso sentimento de culpa que, conforme asseverou Freud (1923/1996h), vem a ser ódio voltado contra o próprio ego.

Winnicott (1947/2000c) argumenta ainda em seu texto "O ódio na contratransferência" que, para que a criança possa aprender a lidar com o seu ódio de forma objetiva, ela necessita sentir que a mãe consegue lidar com seu próprio ódio, também de forma objetiva. Caso isso não ocorra, a criança seguirá seu desenvolvimento encontrando dificuldade para gerenciar sua própria agressividade; dificuldade que Pedro vinha demonstrando ter, uma vez que era muito difícil para ele conter sua violência, particularmente nos momentos em que era frustrado. Nesse caso, a criança sente que seu ódio passa a ter um poder destruidor ilimitado, dado o caráter onipotente das fantasias infantis que não puderam ser transformadas pelo aparelho psíquico. Esta questão – da onipotência das fantasias destrutivas – tornou-se cada vez mais evidente ao longo do atendimento de Pedro, pois, em suas dramáticas encenações de seu mundo interno, ele vivenciava situações em que batalhas terríveis eram travadas entre bichos selvagens, batalhas que terminavam em uma verdadeira catástrofe já que todos morriam no final, até mesmo as plantas. Nessa dramatização, ele evidenciava como seu mundo interno seguia ameaçado pelos seus impulsos de morte, carentes de um trabalho de representabilidade mental.

Longe de se pretender negar os aspectos constitucionais que pudessem estar dificultando o desenvolvimento psíquico de Pedro, o que se argumenta aqui é que a presença viva e real de seus pais – neste caso específico, de uma mãe capaz de lidar com seu próprio ódio e também o do filho de forma mais objetiva e de um pai forte e presente que pudesse sobreviver aos ataques fantasiados por ele – poderiam ter ajudado enormemente este menino a compreender que seus impulsos destrutivos dirigidos a seus objetos internos não tinham a capacidade aniquiladora que ele imaginava. Conforme ficou evidente ao longo do atendimento de Pedro, ele nutria uma fantasia edípica de que havia sido bem sucedido em aniquilar e expulsar seu pai junto da mãe; fantasia que, conforme se discutiu aqui, encontrava um forte embasamento na realidade, dado o afastamento real de seu pai e sua pequena disponibilidade afetiva para assumir a função paterna. Pode-se discutir até que ponto seus outros dois "pais", sobretudo o parceiro Marcos, poderia se oferecer como um substituto paterno. Entretanto, até onde foi possível observar, Marcos sentia-se fraco e bastante impotente diante de Rita para assumir plenamente a função paterna junto de Pedro. Como se observou na entrevista, o parceiro de Rita sentia-se como um coadjuvante na relação entre ela e seu filho. Toda essa configuração familiar acabou por tornar ainda mais difícil para Pedro o já tão trabalhoso percurso que todo ser humano deve trilhar em seu processo de humanização.

 

Alinhavando algumas considerações finais

O presente artigo começou chamando a atenção para o fato de que Freud em suas elaborações teóricas sobre o desenvolvimento infantil priorizou o mundo mental do infante destinando pouca atenção para as imbrincadas relações que se estabelecem entre o inconsciente de uma criança que nasce e o inconsciente dos genitores. Em seguida, procurou-se chamar a atenção para o fato de que o mundo interno infantil necessita ser compreendido como um lugar psíquico que é construído mediante complexas tramas de identificações feitas, não só na direção da criança para os pais, mas também no caminho inverso; perspectiva que coloca os pais em um lugar central no atendimento infantil.

Levando-se em conta o contexto social e cultura atual e dadas as novas demandas trazidas pela família ao terapeuta infantil, esse não pode mais se eximir de ouvir essas pessoas e encontrar, dentro de sua mente, lugar para o sofrimento familiar que, muitas vezes, é expresso através do sintoma infantil. Sem isso o trabalho analítico com crianças tenderá a ser inócuo e correrá o risco de ser interrompido prematuramente, dadas as altas cargas de emoções não metabolizadas com as quais os pais, muitas vezes, sobrecarregam o atendimento. Assim, oferecer um espaço de escuta (não só na sala física, mas dentro da mente do analista) para o que nos dizem os pais é fundamental para o avanço do trabalho.

Tendo como norte essas questões, buscou-se mostrar, através de vinheta clínica, como os sintomas expressos por Pedro – crises de vômito e dificuldade no controle de sua agressividade – pareceram estar fortemente vinculados a dificuldades emocionais de seus genitores; situação que pôde ser captada pela terapeuta já nas entrevistas preliminares em que se priorizou, desde o início, um modelo da escuta analítica e não o clássico modelo de anamnese. Obviamente, por se tratar de um único caso clínico, chama-se a atenção para as limitações dos resultados apresentados aqui, que não podem ser expandidos a outras configurações familiares, nem tampouco devem ser utilizados para explicar sintomas semelhantes em outros casos. O objetivo do artigo consistiu na proposta de um exercício clínico que pudesse lançar alguma luz sobre os delicados entrelaçamentos que se estabelecem entre os inconscientes dos membros familiares envolvidos em uma situação de sofrimento mental na infância e na busca por compreender como determinados conflitos parentais podem se presentificar nos sintomas infantis.

Como se pretendeu mostrar, neste modo de escuta analítica voltado ao sofrimento familiar, a tarefa do terapeuta infantil não é fácil, pois exatamente não há modelos a serem seguidos. Ao contrário, o percurso vai sendo descoberto na medida em que ele é trilhado e não antes. Para ter sucesso em sua empreitada, o terapeuta infantil deverá, desde o início, seguir à risca a máxima freudiana, mantendo sua mente em um estado de atenção flutuante (Freud, 1912/1996d) para captar comunicações inconscientes que vem tanto de seu potencial paciente criança, mas também dos genitores, assim como dos avôs e avós, que entram na sala de análise na voz dos cuidadores. O estado de permanecer no escuro, às vezes por um bom tempo, até que alguns eixos de significados interpretativos possam começar a surgir requer da mente do terapeuta infantil condições de desenvolver sua capacidade negativa, conceito que Bion emprestou do poeta Keats (Bion, 1973). Por outro lado, colocar-se à disposição psiquicamente de todos os membros familiares em sofrimento para auxiliá-los na nomeação de conteúdos mentais indigestos e intoleráveis tem se mostrado, pelo menos até o momento, a maneira mais produtiva e fértil de oferecer a estas pessoas a verdade, da qual a psicanálise se nutre e se alimenta.

 

REFERÊNCIAS

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NOTA

1. Após a avaliação do caso, propôs-se que Pedro iniciasse um processo analítico com três encontros semanais. Além disso, a terapeuta propôs que Rita e Marcos se encontrassem com ela uma vez por mês. O pai biológico de Pedro foi contatado pela terapeuta, com o intuito de se marcar uma conversa, mas, segundo ele, sua rotina era muito tumultuada, o que o impossibilitava de vir até o consultório.

 

 

Endereço para correspondência
Rua Eliseu Guilherme, 1033
14025-020 – Ribeirão Preto – SP – Brasil
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Recebido em maio/2013.
Aceito em fevereiro/2014.