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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.19 no.1 São Paulo Apr. 2014

 

ARTIGO

 

A transferência, o analista e a angústia

 

The transfer, the analyst and the anguish

 

La transferencia, el analista e la angustia

 

 

Rafael de Castro DoradoI; Alessandra Fernandes CarreiraII

IPsicólogo pela Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP). Membro do Espaço de Interlocução em Psicanálise - Lalíngua, Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil
IIPsicanalista. Professora titular do curso de Psicologia da Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP) e membro-fundador do Espaço de Interlocução em Psicanálise – Lalíngua Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho aborda a emergência de angústia no analista em um caso de psicanálise com crianças. Lacan (2005) aponta que não é raro o analista ser tomado pela angústia quando em contato com seu paciente. A questão evocada é: o que acontece? Não se pretende responder ou fechar a questão, contudo, com base em um caso clínico, pretende-se ler nas entrelinhas o que está em jogo na análise e, por conseguinte, refletir sobre a emergência da transferência como correlata ao surgimento da angústia. No caso clínico apresentado, a analista que recebe o paciente lança mão da interpretação para manejar uma transferência negativa. A transferência é o campo em que o analista atua, e é nesse campo que o analista, saindo de sua função, converte-se em um sujeito afetado pela angústia. Nesse momento de emergência da angústia, mostra-se como a analista utiliza táticas para retornar à função de causa, fazendo semblante de objeto.

Descritores: transferência; analista; angústia.


ABSTRACT

This paper approaches the emergence of anguish in the analyst in a case of psychoanalysis with children. Lacan (2005) shows that is not uncommon the analyst be taken by anguish when he is in contact with his patient. The question raised is: what happens? It is not our aim respond or finalize this question, but, based on a clinical case, read between the lines what is at stake in the analysis and, therefore, reflect about the transference emergence as co-related to the anguish emergence. In the clinical case in question, the analyst who receives the patient utilizes the interpretation to manage a negative transference. The transfer is the field where the analyst operates, and it is in this field that the analyst, leaving their function, becomes a subject affected by anguish. At this moment, of emergence of the anguish, will be shown how the analyst utilizes tactics to return to the function of cause by doing semblance of object.

Index terms: transfer; analyst; anguish.


RESUMEN

Este trabajo aborda el surgimiento de la angustia en el analista en un caso de psicoanálisis con niños. Lacan (2005) muestra que no es raro el analista embargarse por la angustia cuando entra en contacto con el paciente. La pregunta que se plantea es: ¿qué pasa? El objetivo no es responder o cerrar esta pregunta, pero, a partir de un caso clínico, leer entre líneas lo que está en juego en el análisis y, por tanto, reflexionar sobre la emergencia de la transferencia en relación a la aparición de la angustia. En el caso en cuestión, el analista que recibe el paciente hace uso de la interpretación para manejar una transferencia negativa. La transferencia es el campo en el que el analista opera, y es en este campo que el analista, dejando a su función, se convierte en un sujeto afectado por la angustia. En este momento de emergencia de la angustia, se mostrará como el analista utiliza tácticas para volver a la función de la causa, haciendo semblante del objeto.

Palabras clave: transferencia; analista; angustia.


 

 

Introdução

Inserido no projeto de pesquisa "Psicanálise com crianças: teoria e clínica"1, o presente trabalho aborda a angústia de um sujeito ao perceber-se na posição de analista, em uma sessão psicanalítica com criança. Trata-se de tomar a irrupção dessa angústia, para além da subjetividade do sujeito-analista, como um possível indicador clínico do próprio caso em atendimento.

O caso clínico estudado neste trabalho refere-se a um menino que foi adotado, de nome fictício João, que iniciou seu tratamento com três anos de idade. Sua mãe queixava-se de sua agressividade e recusa em ir à escola. O caso conta com registros não literais das sessões, utilizados como material para análise.

Este artigo tem por objetivo explorar e discutir o que está envolvido na angústia que pode tomar o analista quando conduz uma análise. Em que ponto o analista é implicado no jogo transferencial capaz de causar a angústia? Diante de sua angústia, quais direcionamento(s) e manejo(s) o analista pode se utilizar?

Diante dessas questões, espera-se fomentar a discussão em torno da clínica psicanalítica; haja vista que a psicanálise é a clínica, a teoria é consequência e carece de ser revista amiúde.

 

Caso clínico

A mãe de João procura atendimento para ele quando ele tem três anos de idade; sua queixa consiste na agressividade da criança dentro e fora de casa e sua aversão à escola. Os atendimentos ocorreram na Clínica Escola de Psicologia da Universidade de Ribeirão Preto (UnAERP), englobando quatro entrevistas com a mãe e quase quatro anos de atendimento ao menino.

João foi abandonado por sua mãe biológica, uma andarilha que já havia entregado vários bebês para adoção assim que nasceram. Quando deu à luz João, porém, relutou em entregá-lo, levando-o consigo durante dias, mas deixando-o na calçada, próximo ao hospital, ainda com o cueiro e a pulseira da maternidade, dias depois.

A mãe adotiva ficou muito tensa nesse período, pois demorou a receber o bebê. Ela nomeava-se para o menino como "mãe do coração" e nas entrevistas referia-se a ele como "filho do coração". Durante a espera para a adoção, ela desenvolveu uma gravidez psicológica e chegou a produzir leite, entretanto João não o aceitou, sofrendo de desnutrição.

não obstante, ela não conseguia impor limites ao filho por dó da criança e medo de perdê-la. Concluiu que espelhava a agressividade do menino e vice-versa. O grude mãe-filho era corroborado pelo fato de o pai viajar a trabalho e estar ausente a maior parte do tempo. Falar sobre tudo isso nas sessões de terapia levou a mãe a constatar que era preciso que João conquistasse sua própria liberdade.

João, por sua vez, ao longo das sessões, simulava rebeldia, projetando no analista uma mãe perseguidora e que o abandonara; ao mesmo tempo, o menino simulava não saber que sua mãe era adotiva. A criança apresentou resistência para entrar na sala em muitas sessões, e a transferência seguiu pelo campo da agressividade.

Após algumas sessões, a analista superou a resistência de João ao entrar na sala marcando seus movimentos e os interpretando; por exemplo, entrar e sair amiúde da sala de atendimento. O que a analista marca para ele, em determinada sessão, como sendo uma questão acerca de sua origem e seu destino: "Será que um dia você já foi e veio de algum lugar? De onde será que você veio?" Além disso, o analista fez uma oferta, procurando com isso criar uma demanda: "Se você ficar aqui dentro comigo, eu posso te ajudar a descobrir sua origem e seu destino".

Houve diversos momentos em que a analista precisou fazer esse tipo de manejo para aproximar-se de João. O menino aceitou a ajuda do analista, elegendo-o como seu intérprete em momentos que variavam entre acordo e desacordo. João, segundo o analista (Carreira, 2004), avançou em sua análise, passando por questões fundamentais sobre sua origem, diferença entre sexos, identificação ao masculino, ou seja, os que têm falo, e a morte, inclusive a da analista, que se tornou nada.

Em certo momento da análise, o menino decidiu não mais comparecer. O questionamento levando pela analista é se a análise de João havia chegado ao fim. A reposta a essa questão pareceu ser a que se trata de algo, caso o menino volte.

 

Transferência, analista e angústia

A transferência é o meio pelo qual a análise se torna possível e, ao mesmo tempo, o que ameaça inviabilizar o trabalho. Se, por um lado, o sujeito em análise coloca o analista em um lugar de sujeito do suposto saber, não é absurdo, por outro lado, que o analista seja localizado no lugar de quem não sabe. não se trata exatamente de o analista ser colocado no lugar do que sabe ou não sabe para que a análise fique paralisada, inviável, truncada; a análise pode ficar inviável devido à resistência do próprio analista. E essa resistência pode ser causada por diversos fenômenos que a transferência, não raramente, suscita. neste trabalho, a angústia do analista, nodal dentro de uma análise, é analisada dentro do transfenômeno da transferência.

A angústia do analista o toma e o atinge como sujeito. Como lidar com esse fenômeno? O que está em jogo? neste artigo, analisa-se o campo da transferência, a angústia e o discurso do analista, com o intuito de discutir certas questões que implicam o analista em sua prática.

"Angustiada, eu interpreto demais e ele fica mais agressivo ainda, pois pareço atuar no lugar de uma mãe perseguidora, que o abandonou." (Carreira, 2004, p.13). Essa frase suscita o questionamento acerca do que está envolvido na angústia ao perceber-se na posição de analista.

Quanto a isso, Lacan (2005) afirma que:

quando o analista inicia sua prática, não é impossível, graças a Deus, que, por mais que apresente uma ótima disposição para ser analista, ele sinta, desde suas primeiras relações com o doente no divã, uma certa angústia. (Carreira, 2004, p.13)

Lacan (2005) aborda e formaliza essa questão da angústia no analista iniciante e sua relação com o paciente, mostrando que se trata praticamente de condição de iniciante angustiar-se ao estar na posição de analista.

Antes de prosseguir, é interessante a tentativa de diferenciar a ansiedade da angústia. A primeira, concebida como algo que se move e faz mover para alguma direção, pode ser considerada como uma concentração de energia, uma precipitação, no sentido de acúmulo, uma emoção, algo da ordem da volição. A angústia, por sua vez, representa algo que barra, algo que impede o sujeito, e que se encontra em outro campo, diverso ao da emoção (Lacan, 2005). Qual seria, então, o território da angústia?

No dia a dia, a linguagem falta em dar conta do mundo, e dentro de um processo analítico não é diferente. Então, o que ocorre com o analista para que possa emergir sua angústia?

Lacan (2005) relaciona a angústia à fantasia e ao desejo do Outro, bem como à identificação narcísica. O autor não oferece, a priori, explicações diretas e simples para essas relações; o que faz é desenovelar o campo da angústia. Lacan explora alguns fenômenos que ocorrem sob o nome da angústia e toma como referência o texto freudiano de 1926 sobre "Inibição, sintoma e angústia".

Com base nas palavras do título da obra de Freud, inibição, sintoma e angústia, Lacan (2005) elabora um esquema, a fim de articular os fenômenos que emergem sob o nome "angústia":

 

 

A inibição seria uma manifestação da angústia, ou melhor, uma situação sob o nome da angústia. Lacan argumenta e sugere o uso de outro termo no lugar do termo "inibição", a sugestão do autor é utilizar a palavra "impedimento", pois:

Nossos sujeitos ficam inibidos quando nos falam de sua inibição, e nós mesmo o ficamos ao falar em congressos científicos, mas, no dia a dia, eles ficam mesmo é impedidos. Estar impedido é um sintoma. (Lacan, 2005, p. 19)

Considerando a etimologia, Lacan (2005) contextualiza a troca da palavra "inibição" pela palavra "impedir". Impedicare, do latim, significa ser apanhado na armadilha. Freud fez o uso da palavra "inibição" atrelando-a ao significado de algo que impede o movimento; Lacan (2005), por sua vez, afirma que o impedimento não é o movimento, mas o próprio sujeito. O que impede o sujeito é uma armadilha na qual o sujeito é pego.

Esta armadilha, afirma Lacan (2005), é a captura narcísica:

O impedimento ocorrido está ligado a este círculo que faz com que, no mesmo movimento com o que o sujeito avança para o gozo, isto é, para o que lhe está mais distante, ele depare com essa fratura íntima, muito próxima, por ter-se deixado apanhar, no caminho, em sua própria imagem, a imagem especular. É essa a armadilha. (Lacan, 2005, p. 19)

Outro termo utilizado dentro do campo da angústia é o "embaraço". Ainda utilizando a etimologia como arrimo de sua argumentação, Lacan pontua que "O embaraço é, em termos muito exatos, o sujeito S revestido da barra, |S, porque imbaricare faz a mais direta alusão à barra, bara, como tal" (2005, p. 19). O "embaraço", então, está relacionado com a castração, com o sujeito barrado.

Segundo Lacan (2005), o "impedimento" suscitaria o "embaraço", logo suscitando o barramento do sujeito; o "embaraço" seria, então, a forma leve de angústia.

Na análise, às vezes existe o que é anterior a tudo o que podemos elaborar ou compreender. Chamarei a isso a presença do Outro (A), com A maiúsculo. Não existe autoanálise, nem mesmo quando a imaginamos. O Outro (A) está ali. É nesse caminho e com o mesmo intuito que se situa a indicação que já lhes dei acerca de algo que vai muito mais longe, ou seja, a angústia. (Lacan,2005, p. 31)

Com base nesse apontamento, Lacan (2005) assevera que o desejo do homem é sempre o desejo do Outro e relaciona a angústia com o desejo do Outro. nesse sentido, quando o sujeito deseja, ele é castrado. Só há desejo se há falta; entretanto, onde o Outro entra nesse campo? O sujeito é castrado e deseja. Em que ponto isso pode se relacionar à angústia e à transferência?

Se tomarmos o viés da castração, o Outro já se faz presente neste terreno. "a castração corresponde à incapacidade do sujeito obter no Outro a garantia de gozo." (Kaufmann, 1996, p. 81) O Outro é referência para o sujeito tanto na dimensão da satisfação, quanto na incapacidade da mesma. O saldo de tal incapacidade poderia, possivelmente, ser denominado como falta, pois ela parece estar articulada com a figura de uma barreira, ou barra, que impede a pulsão de atingir seu alvo, em que é preciso o redirecionamento e a busca por outros objetos, de outro caminho para o gozo.

Não obstante, o sujeito é inserido na cultura por meio da presença do Outro. Dependendo do posicionamento do sujeito perante esse encontro com o Outro, o sujeito irá habitar a linguagem; ou poderá ser habitado por ela como ocorre na psicose. A linguagem permite o aparecimento do sujeito, e ela aponta logo para a existência de algo intransponível, mas possivelmente manejável: a falta. Então, é com base no lugar que o sujeito se coloca, ao se deparar com a falta, que o leva a ter determinada relação com o Outro. O neurótico recalca a falta, o perverso a desmente, enquanto o psicótico a foraclui (Quinet, 1997).

Com a condição irrevogável de deparar-se com a linguagem, o sujeito passar a buscar algo que poderia aplacar a falta, então ele começa a desejar.

A falta está na linguagem, e o Outro "é concebido como um espaço aberto de significantes que o sujeito encontra desde seu ingresso no mundo" (Kaufmann, 1996, p. 385). Pode-se, então, afirmar que o Outro é a linguagem. O sujeito irá se deparar com o enigma, ao recém-chegar a esse espaço aberto. O enigma pode se estabelecer da questão "O que quer o Outro de mim?" Essa pergunta, denominada "desejo", lança o sujeito a outro patamar: a construção da fantasia que é tanto resposta ao desejo do Outro, quanto proteção em relação à angústia.

A linguagem, ou seja, o Outro, inaugura o sujeito dividido, e promove o surgimento do inconsciente. O sujeito é marcado pela barra do significante e por uma sombra de algo que passou por ali, o resíduo da presença do Outro, o objeto a. Lacan (2005) afirma que o objeto a é o objeto do desejo, é causa do desejo.

Parece que a angústia surge na medida em que, ao se aproximar do objeto de desejo, que poderia encerrar a falta, se encerra também a possibilidade de se desejar. Então, o sujeito, ao estar na posição de objeto de desejo, é reduzido a objeto. A angústia do analista, suscitada por ser colocado em certos lugares na transferência, provavelmente se relaciona com essa ideia de ser colocado em lugar de objeto.

Lacan (2005) se utiliza de uma fábula para ilustrar a relação essencial da angústia com o desejo do Outro:

Revestindo-me eu mesmo da máscara de animal como que se cobre o feiticeiro da chamada gruta dos Três Irmãos, imaginei-me perante vocês diante de outro animal, este de verdade, supostamente gigantesco, no caso, um louva-a-deus. Como eu não sabia qual era a máscara que estava usando, é fácil vocês imaginarem que tinha certa razão para não estar tranquilo, dada a possibilidade de que essa máscara porventura não fosse imprópria para induzir minha parceira a algum erro sobre minha identidade. A coisa foi bem assinalada por eu haver acrescentado que não via minha própria imagem no espelho enigmático do globo ocular do inseto. (Lacan, 2005, p. 14)

Lacan (2005) leva o questionamento "O que o Outro quer de mim?" para um desdobramento a mais. Ao colocar a cena da fábula, ele afirma que não se trata apenas de uma questão do sujeito relacionada ao enigma do desejo do Outro, mas também é uma interrogação a respeito do que o Outro quer do sujeito. nas palavras de Lacan (2005, p.14), "Que quer ele a respeito deste lugar do eu?". Então, o sujeito, ao se deparar com o olhar do Outro, questiona-se acerca do desejo dele e, não obstante, é capturado em uma identificação narcísica, levando-o ao questionamento "Como devo responder a partir deste lugar do eu?"

nesta dialética entre o desejo e a identificação narcísica, a angústia pode emergir no sujeito (Lacan, 2005). Por isso, quando, em meio à transferência, o analista é tomado pela angústia, pode-se afirmar que seu sujeito entrou em cena e se encontra diante do olhar do "louva-a-deus", ou, em outras palavras, que ele está diante do olhar do Outro. Este olhar é aquele em que o olho espelhado do Outro não reflete a imagem do sujeito, e o sujeito não sabe, então, que máscara usar, ou melhor, não sabe que mascara está usando.

A transferência é, no entanto, o que possibilita a existência de uma análise, e suportá-la é fundamental. É uma demanda de amor do analisando ao colocar o analista em uma posição em que este não deve ratificar, porém deve suportar permanecer para depois se movimentar, já que ela é a chancela para o analista ser o intérprete (Carreira, 2012) e, posteriormente, é a que oferece um lugar vazio ao sujeito. Este lugar vazio de que o sujeito poderá utilizar para articular os sinais da existência de seu inconsciente, já que somente ele, o próprio sujeito, pode escrever algum saber, ainda que parcial.

 

Transferência e angústia no caso João

Acerca da transferência, o analista se utiliza de apostas e táticas, calculadas ou não (ato analítico), com o intuito de tornar o canal da transferência mais propício para o trabalho analítico. O caso clínico de João ilustra o modo como isso ocorre: o menino resiste na transferência negativa, não quer ficar na sala e age agressivamente com sua mãe; parece, de acordo com os relatos posteriores do analista, que ele a coloca no lugar de uma mãe perseguidora que o abandonou. Em meio a isso, ocorre a seguinte cena:

João quer que a mãe levante da cadeira para ele sentar, puxa a cadeira, puxa o cabelo da mãe e bate nela.

Neste momento, a analista corta a sessão, dizendo a João:

– Você quer o lugar da sua mãe.

A mãe se levanta. João senta na cadeira e diz:

– É minha.

E a analista diz:

– Agora o lugar é seu.

(Primeira sessão de João)

Logo após o corte da sessão, segue outra cena na recepção da clínica:

João olha para a foto do crachá da analista e diz:

– Olha a foto!

A analista pergunta:

– Quem é?

– Você.

E a analista conclui:

– Você já me conhece.

(Primeira sessão de João)

Na primeira cena, a analista interpreta, marcando o movimento do garoto de querer "expulsar" agressivamente sua mãe de um lugar para poder conquistar o seu espaço, algo que parece ser de sua fantasia, de seu posicionamento perante o Outro. E por meio dessa marcação cria-se a possibilidade de o sujeito atribuir algum saber ao analista. na segunda cena, há relação com o corte de sessão, realizado momentos antes. A fala de João, direcionada ao analista, é o esboço de uma transferência diferente daquela presente momentos antes, que se caracterizava como permeada pela agressividade e sem demanda de saber à analista. O analista ratifica essa abertura ao afirmar "Você já me conhece".

Conforme citado anteriormente, há artifícios que o analista utiliza para lidar com a transferência. Dessa maneira, o analista em sessão com João, o analisante, que demonstrava resistência para entrar na sala de atendimento, busca superar a transferência por meio do uso da interpretação de muitos de seus movimentos. Após algumas interpretações, a criança dirigiu-se ao analista, seguindo-se uma cena indicadora de que houve consequências das intervenções anteriores da analista, que buscou chamar João para o trabalho analítico.

João pega a canetinha e diz:

– O que é isso?

Imediatamente, ele mesmo responde:

– Lápis.

Ao que indaga a analista:

– Você me fez uma pergunta. Você acha que eu sei?

(Segunda sessão de João)

Outra cena semelhante ocorre novamente próximo ao final de outra sessão. Provavelmente o que ocorre é que a criança passa a supor que o analista saiba algo, e o analista pode neste momento ocupar na transferência o lugar de quem sabe. Poderia ser afirmado que a analista ocupou o lugar de objeto a?

Lacan (2008, p. 245) afirma que "A transferência é impensável, a não ser tomando-se partida do sujeito suposto saber". O que isso quer dizer? Lacan (2010), analisando o texto de Platão sobre O banquete, explora o território da transferência, e remete às figuras de Alcebíades e Sócrates. Alcebíades atribui a Sócrates a detenção de algo que pode dizer de seu próprio desejo. O que Alcebíades chama de agalma. Ele quer que Sócrates lhe dê o agalma.

não é absurdo aproximar a cena do caso clínico relatado com a de Alcebíades e Sócrates, pois, na transferência, o sujeito supõe que o analista detém algo; algo que possa dizer do próprio sujeito. Isso se deve ao que Lacan (2008) denomina efeito de transferência, ou seja, o efeito do amor. "É claro que, como todo amor, ele só é referenciável, como Freud nos indica, no campo do narcisismo. Amar é, essencialmente, querer ser amado." (Lacan, 2008, p. 245)

O psicanalista depende dessa ação da transferência para utilizar a própria interpretação. Entretanto, esse mesmo efeito que permite a interpretação também a inviabiliza; haja visto que o amor, neste território transferencial, dá-se como resistência (Lacan, 2008).

Considerando esse efeito, o analista precisa orientar a transferência pelo campo do simbólico. Dessa maneira, a demanda por amor, que a priori está destinada ao analista, pode ser deslocada para o saber por meio do apagamento da presença do analista como mestre. Resta ao analisante, com isso, a escuta de sua fala dirigida ao Outro.

Lacan (2008) aborda a temática da transferência e se remete ao caso clínico de Anna O., em que Breuer, ao se deparar com a potente transferência de sua paciente, foge, recorre ao que Lacan (2010) denomina uma "saída bem burguesa". Freud, por sua vez, deu outro destino à transferência de Anna O.:

À diferença de Breuer, e qualquer que seja sua causa, a conduta adotada por Freud faz dele o senhor do temível pequeno deus. Ele escolhe, como Sócrates, servi-lo [Eros] para servir-se dele. (Lacan, 2010, p. 17)

Faz-se importante questionar, ainda, dentro da temática da transferência, "O que surge na frente do sujeito quando ele se depara com o Outro?" De acordo com Lacan (2005), surge uma imagem autenticada pelo Outro. Porém, algo não pode ser refletido, gerando, portanto, uma falta. Essa imagem, que "orienta e polariza o desejo, tem para ele uma função de captação. nela, o desejo está não apenas velado, mas essencialmente relacionado com uma ausência" (Lacan, 2005, p.55).

 

 

Essa falta proporciona a possibilidade de uma aparição, organizada pelo objeto a, que não é apreensível ao sujeito, mas que permanece próximo dele e é a causa de seu desejo.

nesse campo é que o analista opera: no campo do objeto a. É preciso recorrer ao que Lacan (1992) articula sobre o discurso do analista. Ele afirma que o analista faz-se causa do desejo de seu analisante; assim, pode-se considerar que o analista simula, para o analisante, o objeto a.

 

 

Pode-se conceber o lugar do analista, em relação o analisante, também da seguinte forma:

o analista toma o lugar para desencadear o movimento de investimento do sujeito suposto saber – sujeito que, por ser reconhecido como tal, é fértil de antemão, em seu recanto, daquilo que chamamos transferência. (Lacan, 1992, p. 39)

Ou seja, o analista busca, por meio de manejos da transferência, simular-se sujeito de suposto saber, mas apostando em certos apontamentos acerca do saber do paciente. Esses apontamentos, não raro, são realizados através da interpretação.

A seguir uma passagem do caso clínico de João, para tornar um pouco mais palpável o que a teoria às vezes parece deixar rarefeito acerca da relação analista-analisante:

O analista está sentada no chão de frente para a porta. João senta na cadeira da mãe, do lado de fora, espia a sala e senta na cadeira novamente. O analista acompanha seu movimento dizendo várias vezes:

– Você apareceu! Você sumiu!

João fecha a porta, bate na porta e demora em abrir. Ele a abre e a deixa entreaberta.

O analista diz:

– Você vai e vem. Será que um dia você já foi e veio de algum lugar? De onde será que você veio? Se você ficar aqui dentro comigo, eu posso te ajudar a descobrir.

(Quarta sessão de João)

Nesse recorte de sessão, o analista informa, interpretando e pontuando, ao pequeno paciente que ela pode ajudá-lo com suas supostas questões. Esse recorte está permeado pelo discurso do analista, que se faz denunciante da divisão do sujeito: há algo que escapa à consciência, resiste, entretanto se anuncia o tempo todo quando o sujeito fala, sonha, conta piadas, faz trocadilhos, comete atos falhos, quando a criança brinca, reage à presença do outro etc. Em suma, o discurso do analista aponta e confirma a afirmação de Freud (1910/2006), a de que o Eu não é tão senhor de seus domínios, ao menos, não o quanto pensa.

O analista, que por meio da transferência faz papel de objeto a, que causa o desejo e ao mesmo tempo denuncia a falta, será aquele que é suposto saber algo, e então o apontador de que há um saber inconsciente. O analista é aquele que não sabe, mesmo sendo colocando no lugar do sábio que irá resgatar os segredos do analisante e devolvê-los decifrados. Se o analista não resgata e decifra o conteúdo apresentado pelo analisante, o que ele faz? Ele se inscreve no discurso analítico, o qual envolve a fala do sujeito, de seus significantes, a qual denuncia a existência de verdades que apenas o próprio sujeito pode ser detentor, já que apenas o sujeito é capaz de rememorar e construir algo com base em seus significantes.

Lacan (2008) afirma que o sujeito do suposto saber é considerado sabedor de alguma coisa, pois é sujeito do desejo. não obstante, na transferência e em seus efeitos (pois é onde o analista pode ser colocado como sujeito do suposto saber), há o encontro do desejo do analista com o do sujeito. Assim, o desejo do analista precisa operar na transferência. Qual é o desejo do analista? Presume-se, talvez, que seja fazer operar o discurso analítico. Como isso acontece é particular a cada analista.

Segue uma cena significante no caso clínico, que demonstra o desejo do analista operando de maneira particular. O analista a narra na primeira pessoa:

Finalizadas as sessões, sempre acompanhava João e sua mãe, na época em que essa ainda entrava na sala de atendimento, até a recepção. Parte do caminho que levava da sala de atendimento até a recepção era uma longa rampa. João, nesse trajeto, costumava vir correndo por trás de mim e bater-me nas costas com força. Sua mãe sempre o repreendia com firmeza, mas isso de nada adiantava.

Todavia, em uma ocasião, já advertida disso, fiquei atenta e, ao notar que ele se aproximava, peguei rapidamente em sua mão e saí correndo, puxando-o e exclamando: "Vamos, vamos, vamos!"

Sua mãe ficou para trás e eu só parei quando chegamos ao final da rampa, já na porta de acesso à recepção. Ele ficou atônito e riu muito. Quando sua mãe se aproximou, João perguntou a ela: "Por que ela fez isso?" A mãe também riu e disse algo sobre eu estar brincando com ele.

Desde então ele nunca mais me bateu, mas, por outro lado, iniciou uma brincadeira que se repetiu inúmeras vezes, acompanhando-nos até quase o final do tratamento: no início da rampa, animado, ele me propunha apostarmos corrida. (Carreira, no prelo)

Nessa cena, o analista, ao pegar na mão do menino e correr, desestrutura a repetição do ato dele e abre para uma pergunta: "Por que ela fez isso?" Que podemos decifrar como: "Qual a intenção dela ao fazer isso?" Desdobrando um pouco mais: "O que ela quer de mim, o que ela quer comigo?" Esse questionamento somente emerge com base na intervenção do analista, em que algo de sua subjetividade (carreira, correr) é colocado no contexto analítico. Por conseguinte, o sujeito analisado toma esse ato de seu analista como desejo. Assim, a transferência toma outro rumo, pois o menino passa a apostar corrida com seu analista, colando-o em outro lugar. Inserindo-o em uma cena em que o Outro está ali ativamente e desejando.

É no campo da transferência que o desejo do analista deve operar, afinal somente é possível que o discurso analítico tenha validade dentro desse campo. Com base no discurso do analista pode-se argumentar sobre o surgimento da angústia no analista. Quando o analista encarna o objeto a, ele também pode encarnar aquele que aponta para a falta do sujeito. Ora, estando neste lugar, o analista não está livre de ser tomado como objeto de desejo, haja vista que o objeto a é causa do desejo (Lacan, 2005). E é nesse ponto que a angústia pode surgir no analista, ao ser tomado por objeto e a impossibilidade de ser qualquer outra coisa, senão o objeto desejado pelo sujeito. O analista se angustia por, ao se ver nesse jogo transferencial, não suporta permanecer na posição de analista.

Lacan (2008, p. 47) afirma, acerca da angústia do analista, que "na experiência, é necessário canalizá-la e, se ouso dizer, dosá-la, para não ser por ela submerso. Aí está uma dificuldade correlativa da que há em conjugar o sujeito com o real".

A angústia ronda, portanto, a experiência analítica como um todo; não se pode tomar como regra a presença da angústia do analista em seu ofício, por outro lado ela surge frequentemente. E parece surgir, como Lacan (2008) pondera, em torno da conjugação do sujeito dividido e o real.

Haja visto que o real é o que não se inscreve, ou seja, não é passível de simbolização, há algo de real presente na relação do analista com o analisando, sem que eles possam codificá-lo; nessa relação há o que não se pode simbolizar, portanto não se pode processar, não é analisável. Essa condição é, então, terreno fértil para a angústia.

O analista deve fazer uso de manejos para dosar e não ser submerso pela angústia. Isso implica considerar a demanda do analisando, pois, ao se seguir uma análise, o analista se depara, sucessivamente, com todas as manifestações e ligações que o sujeito faz de sua demanda; com base nisso, o analista deve responder, não do lugar onde é localizado na transferência, mas do lugar de simulação de objeto a (Lacan, 1958/1966/1998). E responder por meio da interpretação, não visando a demanda, mas considerando a lógica do significante para provocar o surgimento de algo novo.

"Assim, o analista é aquele que sustenta a demanda, não, como se costuma dizer, para frustrar o sujeito, mas para que reapareçam os significantes em que sua frustração está retida" (Lacan,1966/1998, p. 624).

Considerar a demanda é se deparar com o desejo que, mesmo estando para além, fica visível; pelo manejo, o analista deve situar os efeitos da demanda em relação ao lugar do desejo. A demanda não é o desejo, porém oferece pistas de seu lugar (Lacan, 1966/1998). E é dessa maneira que o analista pode manter ou retornar a seu lugar.

O sujeito demanda algo ao chegar à análise. O analista não deve responder a isso. É o desejo que deve ser ouvido, além de ser impossível responder à demanda. E qual é o motor? O que abre para a possibilidade do processo analítico? A demanda do analista. O analista demanda que o sujeito fale, pois é na cadeia de significantes que o desejo se mostra; basta o sujeito falar. O analista demanda a fala do sujeito porque é o campo onde a análise age, afinal "O desejo só faz sujeitar o que a análise subjetiva" (Lacan,1966/1998, p. 629).

Nesse viés, é possível contornar a angústia do analista, já que ele empresta sua presença e paga com ela, pois, é ela o "suporte aos fenômenos singulares que a análise descobriu na transferência" (Lacan, 1966/1998, p. 593).

Parece que a dimensão do desejo do analista seja algo além, singular a cada analista, com consequências e lugar único em cada processo analítico. De modo geral, esse desejo é necessário para que se possa enfrentar angústia quando ela surge.

 

REFERÊNCIAS

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NOTA

1. Artigo elaborado a partir de pesquisa de Iniciação Científica do Projeto "Psicanálise com crianças: teoria e clínica", financiado pela Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP) e coordenado pela Profª. Dra. Alessandra Fernandes Carreira no curso de Psicologia.

 

 

Endereço para correspondência
Av. Costábile Romano, 2.201
14096-900 – Ribeirão Preto – SP – Brasil
rafaelc.dorado@hotmail.com

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14096-900 – Ribeirão Preto – SP – Brasil
afcarreira@gmail.com

Recebido em novembro/2012.
Aceito em fevereiro/2014.