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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.19 no.1 São Paulo abr. 2014

 

RESENHA

 

Uma aposta na educação

 

 

Cintia Estefanía Montes

Psicóloga e Pesquisadora da Faculdade de Psicologia da Universidade Nacional de Mar Del Plata, Mar Del Plata, Argentina

Endereço para correspondência

 

 

Você fez de minha vida um conto para crianças, em que naufrágios,
perdas e diferenças são pretextos para cerimônias adoráveis.

(Alejandra Pizarnik)

 

Ceremonias mínimas: una apuesta a la educación en la era del consumo
Mercedes Minnicelli
Buenos Aires: Homo Sapiens, 2013, 184p.

Como se sabe, bons livros são feitos de tempos em tempos, e poucas vezes acontecem de um conceito ser escrito com nome e sobrenome, o que considero ser o caso da autora Mercedes Minnicelli na obra Cerimônias mínimas.

Cerimônias mínimas: uma aposta na educação na era do consumo recupera algumas das ideias apresentadas pela autora ao longo de sua trajetória e desenvolvidas parcialmente em diferentes trabalhos, conferências e aulas; acima de tudo, no entanto, cumpre o importante papel de apresentar um exaustivo desenvolvimento da maior realização da autora: o conceito de "cerimônias mínimas".

Mercedes Minnicelli é psicanalista, licenciada e doutora em Psicologia pela Universidade Nacional de Rosário. É diretora da Carreira de Especialização de Pós-graduação em Infância e Instituições, professora e pesquisadora da Faculdade de Psicologia da Universidad Nacional de Mar Del Plata (UNMDP), diretora da Rede Inter-universitária "INFEIES: Estudos Psicanalíticos e Interdisciplinares em Infância e Instituições". Autora de inúmeras publicações nacionais e internacionais, entre elas, os livros Infâncias públicas: não há direitos e infâncias em estado de exceção: Direitos da criança e psicanálise . Também é organizadora e coautora de Infância e instituição (ões) e de Infância, legalidade e jogo na trama da linguagem.

Fiel ao próprio estilo, Mercedes Minnicelli não hesita e anuncia, desde a apresentação, que estamos diante de um livro pretensioso: "Pretende poder dizer a partir do óbvio e fazer dizer o óbvio" (p.11). Com algumas passagens autobiográficas, não apenas para falar do passado, mas também para que, a partir da historicização, possa aplicar seu conhecimento e sua experiência ao que se apresenta como novo (ou assume outros disfarces) e desafiante. O trabalho de escritura da autora seria uma reorganização da memória, convertendo-se em uma narrativa que parece espontânea, mas que é produto de uma intensa reflexão. Podem-se observar segurança e seriedade que conferem a este livro uma poderosa consistência, resultado que abrange os anos de trabalho clínico, clínico-jurídico e clínico educacional da autora, tanto com profissionais como com docentes e operadores do sistema de proteção integral à infância e adolescência; e a descoberta da psicanálise como eixo de sua convicção, em que diariamente se constata que na complexidade do mínimo se encontra a chave daquilo que, estando à vista de todos, passa despercebido.

Com base na imagem da capa, é possível prever que o leitor está diante de um livro que o convida a um encontro com diferentes enfoques e perspectivas. A sobreposição de cores provoca a percepção, resultando em uma tensão, em que se incrementam ou se enfraquecem sequências a partir das posições. Assim, as tensões são não apenas produzidas por contraste, mas também por posições; essas tensões são encontradas ao longo das páginas desta obra, promovendo (ou pelo menos essa é sua intenção) mudanças nas posições que tomamos diante da leitura de diferentes situações, aquelas que denominamos, em que atuamos, com as quais nos implicamos ou nos desentendemos, porém nunca sem consequências.

O livro está estruturado em oito capítulos no intuito de ordenar o material, ou seja, não se trata de compartimentos estanques, mas de um constante colocar-se em relação a algo que nos permite pensar, interrogar e refletir muitas vezes acerca dos conteúdos e de nossas práticas cotidianas de atenção a meninos, meninas e adolescentes. Assim, ao longo dos capítulos, as temáticas, as interrogações e as reflexões são retomadas, permitindo ao leitor estabelecer uma multiplicidade de relações entre elas. Seu método de estruturar o livro e seus respectivos capítulos, utilizando distintos pontos de vista e jogando com o tempo, assim como dando à linguagem uma importância primordial – tanto na escolha das palavras como em seus silêncios –, tudo isso está a serviço da transmissão de ideias, reflexões e da promoção de diferentes e novas interrogações no leitor.

Outro achado de sua técnica narrativa é a eficácia das epígrafes de cada capítulo: desde O pequeno príncipe até Hannah Arendt, diversos personagens nos darão boas-vindas e nos acompanharão na leitura. Também são de se destacar os esforços para compartilhar uma linguagem comum com outros que se ocupam de temas afins.

Mercedes Minnicelli nos convida a uma viagem por certas ideias e experiências que mostram que conceitos não são meras abstrações originadas de especulações alheias ao acontecer da vida infantil e das vicissitudes das práticas com crianças e adolescentes. É um convite a adentrarmos os segredos e aquilo que, de óbvio, passa despercebido. Propõe nesta oportunidade que naveguemos nos paradoxos que se configuram no movimento do complexo aparato – discursivo e não discursivo – do dispositivo integral de proteção à infância e adolescência, quando se separam pensamento, práxis e imaginação. Nas palavras da autora:

A proposta deste livro será nos determos para pensar em como nos afetam (e, sim, afetam) e de que modo nos impactam as transformações que se vão produzindo neste tempo chamado de "sociedade de consumo", como sujeitos que habitam este mundo em um momento no qual a narrativa histórica sobre as transformações da noção de infância se faz presente e nos recorda de que a infância não tem sido entendida do mesmo modo ao longo do tempo, tendo se definido como lendas modernas acerca das infâncias. (p. 18)

As cerimônias mínimas, protagonistas desse novo livro de Minnicelli, são entendidas como:

Dispositivos socioeducativos e/ou clínico-metodológicos, clave e chave para múltiplas intervenções possíveis. Servimo-nos delas mais que como um conceito que admite uma única definição, mas uma metáfora, ou seja, um dispositivo para pensar e habilitar alternativas de intervenção não convencionais. (p. 43)

O lugar privilegiado desses dispositivos reside na possibilidade de serem considerados unidades de análise de numerosas pesquisas, e também na possibilidade de intervenção e interferência em uma via dupla:

A respeito de ritualizações rígidas, codificadas, estereotipadas; e a respeito do restabelecimento subjetivo que permite intervir diante do indiferenciado e sem limite. Esta dupla faceta das cerimônias mínimas resulta em chave para significativas transformações ali mesmo onde nada parecia possível. Comprovamos como, por cerimônias mínimas, podem-se operar instâncias de instituição de condições de possibilidade de fazer do dito outros dizeres. (p. 44)

A título de exemplo, o reconhecimento de que não se trata de algo natural, mas instituído, permite-nos operar, intervir, interferir, perguntar, falar, fazer, calar e criar. O processo criador supõe um primeiro movimento de questionamento do constituído, do dado e de algum tipo de abertura a novas interrogações. Cruzar a fronteira do conhecido é um salto no vazio: cheio de incertezas e imprevistos. É o encontro com essa irrupção do impossível como horizonte que se abre a possibilidade de um movimento de criação e invenção, afim de não se alienar do saber do Outro. Todo movimento subjetivo é uma construção em que se volta ao caos original para organizá-lo, dar-lhe forma, revê-lo, e isso não acontece sem questionamentos, sem rupturas, dor ou mal-estar. As cerimônias mínimas não se definem pelo tamanho nem pela envergadura de um ato e, como instância de intervenção, implicam um reposicionamento subjetivo dos adultos diante das crianças e dos adolescentes.

As lendas sobre a infância, ou seja, as crenças e as teorias sobre a infância, os modos de entender e definir ações por parte dos adultos com relação às crianças ao longo do tempo, e as perguntas "O que entendemos por infância?", "Como a definimos?" e "Como a significamos?" atravessam (ainda que sem percebermos) os espaços de formação e o campo de desempenho docente, analítico, profissional e judicial. É por isso que se faz necessária a análise das lendas sobre a infância e de como elas influenciam no exercício das práticas dirigidas às crianças, independente do cenário de ação.

Uma das propostas mais importantes do livro reside na afirmação de que será por meio das cerimônias mínimas que se fará possível, a partir do microssocial – e por sua multiplicação – ancorar modificações na vida cotidiana dos docentes, profissionais e operadores que atuam nas áreas da saúde, da educação, judiciárias, das instituições sociocomunitárias, das equipes de trabalho interdisciplinar, como também nas condições do advento subjetivo das novas gerações.

No primeiro capítulo, encontraremos a apresentação de diferentes lendas sobre a infância: lendas transmitidas na formação docente de nível básico, lendas sobre infâncias diferenciais para crianças e bebês, lendas acadêmicas sobre a infância, lendas em tempos de direitos da criança e do adolescente, tempos de paradoxos na legislação, na diferença substantiva que se configura entre a proteção integral e a arbitrariedade das decisões que se tomam sobre o corpo e a vida das crianças.

Os capítulos seguintes são destinados às cerimônias mínimas como metáfora, ao considerá-las um dispositivo para pensar, cerimônias mínimas ilustradas e articulações conceituais sustentadas em interessantes casos clínicos e relatos da vida cotidiana. Ao finalizar o livro, Minnicelli afirma:

Por meio delas (cerimônias mínimas) podemos nos fazer protagonistas da cena que nos preocupa e ocupa; ao passo em que será nelas e por elas que poderemos dar lugar a outras ficções, a outros jogos de verdade que os estabelecidos; sem mais, será possível fazer do dito outros dizeres. Qualquer mínima forma cerimonial poderá iniciar-se pela renovação das interrogações, pela análise da própria implicação bibliográfica nas intervenções; pelo instante em que se decide reposicionar-se como maior diante das crianças, para dar lugar à palavra e à escuta do sujeito e, de modo substantivo e essencial, colocar em cena aquilo que consideramos a necessária – ainda que admitamos como imprescritível – reflexão ética. (p. 175)

A possibilidade, para cada nova criança que chega ao mundo, de poder escrever uma história, a própria história, de ser parte de um coletivo social, compete inicialmente a nós durante os vários anos em que os recebemos. É por isso que devemos seguir avançando na análise, nos limites de nossa experiência e de nosso saber disciplinar, porque, quando renunciamos a nossa responsabilidade adulta de educar as crianças, deixamo-las à margem e nos convertemos em agentes de infanticídio simbólico.

 

 

Endereço para correspondência
Dorrego, 3727
7600 – Mar del Plata – Argentina
mcintiam@hotmail.com

Recebido em setembro/2013.
Aceito em janeiro/2014.