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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.19 no.2 São Paulo ago. 2014

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v19i2p325-338 

ARTIGO

 

Da escrita no corpo à escrita no papel: os caminhos do aprender a escrever

 

Written on the body to the writing on paper: the ways of learning to write

 

De la escritura en el cuerpo a la escritura en el papel: las formas de aprender a escribir

 

 

Carla Cervera SeiI; Simone MoschenII

IPsicanalista. Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), extensionista da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e membro participante da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), Porto Alegre, RS, Brasil
IIPsicanalista. Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pós-doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), professora de pós-graduação em Educação e em Psicologia Social e Institucional na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), Porto Alegre, RS, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este escrito pretende pensar, sustentado pela psicanálise, o lugar que a aprendizagem da escrita pode ter na infância ou ainda no tratamento de crianças em estruturação autística ou psicótica. Somos marcados pela linguagem no mundo e é a partir dessas marcas inscritas em nosso inconsciente que marcamos o papel. Para melhor compreender a escrita como efeito da posição do sujeito na linguagem e desde aí desdobrar seus efeitos na clínica, retomamos os conceitos freudianos de inscrição inconsciente e o conceito lacaniano de letra, fundamentais para este tema.

Descritores: escrita; infância; inscrições primordiais; letra.


ABSTRACT

This writing aims thinking, holding by psychoanalysis, the place that the learning of writing can have in childhood or in the treatment of children in autistic or psychotic structuring. We are marked by the language in the world and it is from these marks that have entered into our unconscious that we mark the paper. To better understand the writing as the effect of position of the subject in language and since then deploy their effects in the clinic, we return to the Freudian concept of the unconscious inscription and the Lacanian concept of the letter, fundamental to this matter.

Index terms: writing; childhood; primordial inscriptions; letter.


RESUMEN

Este escrito pretende pensar, sostenido por el psicoanálisis, el lugar en que el aprendizaje de la escritura puede tener en la infancia o en el tratamiento de los niños en la estructuración autista o psicótica. Somos señalados por la lengua en el mundo y es a partir de estas huellas en nuestro inconsciente que vamos a señalar el papel. Para entender mejor el efecto de la posición del sujeto en el lenguaje y desde entonces desplegar sus efectos en la clínica, volvemos a los conceptos freudianos de registro inconsciente y el concepto lacaniano de letra, fundamentales para este tema.

Palabras clave: escritura; infancia; la letra.


 

 

1. Situando a questão

Em seu livro Nacimiento y renacimiento de la escritura, Gérard Pommier diz: "não superarei a angústia da folha em branco graças a uma técnica aprendida" (Pommier, 1996, p. 7, tradução nossa).

Assim ele começa seu livro, marcando de início que aprender a escrever está para além de dominar uma técnica ensinada na escola.

A criança, antes de estar em condições de formar palavras, já levou a cabo operações muito mais complexas e consistentes do que fazer corresponder um som a um signo (Pommier, 1996, p. 11). Se não pode ainda escrever, é porque há um caminho subjetivo a ser percorrido.

A referência teórica para pensar esse caminho vem de Freud e Lacan. Estes autores pensam o sujeito numa anterioridade – em um discurso que o precede e que o constitui. Esse sujeito que ao nascer é só um "pedacinho de carne" será constituído a partir das marcas psíquicas nele inscritas e é a partir delas que ele irá marcar o papel.

 

1.1 Situando a questão a partir da clínica

Mário é um menino de 15 anos que chega à clínica com diagnóstico de autismo. Inicialmente se mostrava muito colado à própria imagem e buscando também uma colagem junto a meu corpo. Ao longo do tratamento, ele foi experimentando diversas atividades: passou muitas sessões tirando fotos de si mesmo, em outras tantas gravando suas falas desarticuladas ou filmando suas imitações de apresentadores de TV; outras, ainda, olhando os ônibus pela janela e escrevendo os números destes na lousa; em raríssimas sessões pediu para desenhar, e, ao fazê-lo, mostrou que conhecia as letras e a escrita. Lia decodificando e não conseguia usar a escrita em sua função de comunicação, apesar das tentativas que fiz para que ele mandasse bilhetes, escrevesse listas de colegas ou de programas de televisão que ele apreciava. Também passamos muito tempo no pátio brincando de esconde-esconde, polícia e ladrão, futebol, corrida – até que chegamos ao uso do computador. E nesse momento o vejo utilizando a escrita de forma interessante. Ele usa a escrita para buscar o que gosta de ver na rede: seus desenhos favoritos, as jornalistas que admira, os apresentadores, os comediantes e os videoclipes de música que acompanha cantando e dançando.

Sua mãe insiste para que ele me traga sua produção escolar a cada semestre. Ele parece não gostar dessa insistência, que o leva a ocupar a sessão me mostrando seu material, enquanto ele gostaria de estar no computador vendo seus vídeos prediletos. O que vejo em seu material escolar revela que Mário está muito adaptado ao ambiente escolar, com seu caderno muito organizado e completo, porém vejo apenas letras grafadas sobre o papel, ou seja, uma produção que o situa de forma precária na linguagem, diferentemente do que vejo acontecer quando ele digita no Google suas preferências. Aqui, poderíamos pensar que uma escrita incipiente aparece como possibilidade de abrir espaço para o sujeito advir?

Sabemos que dentro do campo da pedagogia e dos saberes escolares, a aprendizagem da escrita supõe um sujeito do conhecimento, um sujeito epistêmico tomado pela perspectiva das teorias da consciência.

Como seria pensar a aprendizagem da escrita pelo viés da psicanálise e não apenas da pedagogia ou do sujeito epistêmico?

Pelo viés da psicanálise, fundamentalmente, precisaríamos nos perguntar pela posição/função do inconsciente na escrita do sujeito. E também nos perguntaríamos a respeito dos processos subjetivos que a criança precisaria atravessar até poder chegar a uma folha de papel – superfície que se oferece ao traço – e arriscar marcá-la.

A base da escrita alfabética está no escrito inconsciente, isto é, nesse sistema de marcas inconscientes que rege o funcionamento do aparelho psíquico, inicial, fundamental. Esse escrito está na base das manifestações do sujeito do inconsciente; um sujeito pode surgir falando, desenhando, sonhando, fazendo lapsos e ... escrevendo (Kupfer, 2007, citada por Lerner, 2008, p. 145).

Nesta perspectiva, a escrita passa a ser entendida como uma modalidade da linguagem, ou seja, opera como uma linguagem e, nesse sentido, é anterior ao sujeito e participa de sua constituição.

Que relações a psicanálise estabeleceu entre a escrita e a constituição do sujeito? Desde o corpo da mãe até uma superfície de inscrição, que caminhos o sujeito precisa percorrer? Em que lugares uma criança precisará se alojar em seu percurso, em seus processos de subjetivação? "E quantas escritas se precisa escrever antes de dominar a escrita alfabética – carícias, rabiscos, hieróglifos, garatujas?" (Rodulfo, 2004, p. 27).

Estas são as questões que orientam o presente escrito.

 

2. A trama das palavras tece um corpo

A psicanálise parte da ideia de que o animal humano, ao nascer, dada sua prematuridade, situa-se numa radical condição de desamparo e não tem preparo para lidar com os desconfortos impostos pelas necessidades orgânicas como a fome, o frio, as dores, e tudo o mais que lhe advém. Sua única possibilidade é chorar, gritar, espernear. Porém nada disso muda sua situação. A situação de desconforto só se modifica com a intervenção de alguém que venha em seu socorro. É desse encontro, entre esse pequeno "pedaço de carne" que reclama de seu desconforto e um outro que lhe vem socorrer, que se produz uma marca psíquica, um primeiro traço de memória configurando uma primeira experiência de satisfação. Assim, quando o desconforto sobreviesse novamente, o modo de saná-lo seria reeditar a memória dessa primeira satisfação, aquela que teria tirado o sujeito da privação em que se encontrava. A via mais imediata para isso seria alucinar a primeira percepção. A isso Freud chama de desejo, e temos, então, a passagem do campo da necessidade ao campo do desejo.

Se diante do primeiro desprazer o organismo reagiu com o choro em forma reflexa, uma vez instalado o primeiro traço mnemônico do objeto – desconhecido até então – que proporcionou prazer, a atividade intencional irá substituindo cada vez mais a ação reflexa e, paralelamente, irá recortando cada vez mais a realidade do mundo. (Coriat, 1999, p. 147)

Sobre esse ser desamparado, Lacan dirá que ele é nada. Somente após o primeiro movimento em direção ao Outro, como lugar do significante, é que o sujeito se torna algo. Só há um lugar possível para o sujeito: no significante que está no campo do Outro. Isso nos fala da dependência do ser falante em relação à linguagem (Nunes, 2004, p. 47).

Se a constituição do sujeito se dá no campo do Outro, no acesso à linguagem, o Outro, encarnado em uma presença, é quem possibilitará que se deem tais operações constituintes.

É este Outro primordial (a mãe ou quem cumpre essa função) que possibilita a entrada da criança na linguagem, por sua voz que responde e dá sentido ao choro e por seu gesto que toca e marca o corpo do bebê.

É no encontro e na dependência desse Outro primordial que a criança terá suas necessidades encaminhadas, que entrará na linguagem, que terá suas primeiras experiências de satisfação que darão início às primeiras inscrições psíquicas.

 

2.1 As primeiras inscrições: a escrita em Freud

Em seus primeiros estudos, Freud demonstrava interesse em compreender o processo pelo qual as experiências humanas eram inscritas no aparelho psíquico e de que modo essas percepções humanas eram registradas e depois transformadas para dar origem às imagens e ideias elaboradas pelo psiquismo (Bastos, 2009, p. 4).

Por meio de modelos e metáforas gráficas e escriturais, Freud desenvolveu, ao longo de sua obra, uma teoria da escrita para tentar dar conta dessas inscrições e do funcionamento do aparelho psíquico. Inicialmente usada como metáfora do aparelho psíquico, a escrita foi transformando-se em conceito psicanalítico: a imprecisa escrita psíquica, como diz Claudia de Moraes Rego (2006, p. 15).

Freud desenvolveu esse tema em várias de suas obras. Suas sucessivas formulações acerca das metáforas escriturais do aparelho psíquico, bem como as sucessivas formulações de Lacan sobre o conceito de letra, permitem uma reflexão acerca das primeiras inscrições constituintes do psiquismo.

Rego (2006, p.92) afirma que, no estudo sobre as afasias (1891), Freud inaugurou uma concepção do psiquismo fundada na linguagem, já que apresenta o psiquismo como um aparelho dessa. A partir do estudo das afasias, ele busca compreender os processos envolvidos nas atividades de falar e compreender. Para tanto, utiliza as noções de representação de objeto e representação de palavra ao propor a classificação das afasias em verbais, agnósicas e assimbólicas. As representações de objetos e as representações de palavras são complexos de associações compostos por impressões variadas que, ao se relacionarem, produzem sentido. Nesse momento do pensamento de Freud ainda não aparece o traço, apenas representações.

É no "Projeto para uma psicologia científica" (Freud, 1895/1996a) que aparecerá a teoria do traço. Nesse texto, o aparelho psíquico é concebido como uma metáfora neurológica. Freud "desenha um cenário de traços, trilhagens e barreiras, escavadas por quantidades de energia: um cenário de escrita, mas uma escrita ainda apenas cartográfica, marcação de caminhos que serão percorridos em uma segunda vez." (Rego, p. 94). Nesse modelo, o traço mnêmico não guarda correspondência com a coisa percebida, mas com um complexo sistema de inscrições no aparelho.

Na Carta 52 (1896/1996b), o aparelho psíquico é constituído pela estratificação de inscrições em que as inscrições psíquicas sofrem rearranjos e retranscrições ao longo da vida. A noção de inscrição aqui apresentada redimensiona a concepção do aparelho psíquico, devido ao entendimento dado ao traço mnêmico. Se no "Projeto" o traço era uma marca feita no aparelho que constituía a memória ao trilhar caminhos neuronais que se encontravam mais permeabilizados, aqui o aparelho psíquico passa a ser constituído de signos inscritos e retranscritos. A memória passa a ser entendida como o resultado de muitas inscrições de traços que são permanentemente reestruturados segundo novas configurações e encadeamentos, assegurando que essas transcrições não sejam a cópia do original. Aqui "o traço começa a tornar-se escritura" (Derrida, 1995, p. 192), ou seja, "começa a se fundar no pensamento freudiano a ideia de que a soma da escrita de cada traço cifra um texto, que mais adiante será entendido como o inconsciente" (Fragelli, 2002, p. 33).

No escrito "Uma nota sobre o bloco mágico" (1924/1996c), Freud oferece uma nova analogia entre o sistema de memória e um novo aparelho chamado de "bloco mágico". Esse invento é composto por uma prancha de resina ou cera com uma borda de papel fino e transparente que, por sua vez, é composto por duas camadas. A camada superior é feita de celuloide, e a inferior, de um papel encerado. Para escrever sobre essa folha usa-se um estilete pontiagudo. Nos pontos em que o estilete toca a folha de cobertura, as depressões feitas sobre ela constituem a escrita. Para apagar o que foi escrito, basta levantar a folha de cobertura. Esse aparelho é análogo ao modelo que Freud propõe para o funcionamento do aparelho psíquico em relação à memória. Isso porque ele guarda a possibilidade de conservar de modo permanente os traços mnêmicos, que ficam armazenados na prancha de resina, e tem também a possibilidade de receber novas impressões. Para Freud, a prancha de resina toma o lugar do inconsciente armazenando todos os traços escritos. A cobertura de celuloide e papel encerado que recebe os estímulos seria análoga ao sistema percepção-consciência. Na construção desse modelo, Freud deixa claro que o inconsciente é composto por uma escrita. "A escrita seria o tecido do inconsciente" (Fragelli, 2002, p. 23).

Ao longo dessas produções é possível situar a importância que Freud atribui às metáforas escriturais para descrever o funcionamento do aparelho psíquico1.

Mas como se produzem essas inscrições psíquicas primordiais, que fundam o psiquismo?

Apoiada na Carta 52, Elsa Coriat (1999) dirá que o inconsciente não é dado a princípio, nem aparece de um dia para o outro, instalando-se a partir do nada. Precedendo-o, faz-se necessária a inscrição, na criança-bebê, de toda uma série prévia de traços mnemônicos. Inicialmente, a criança conta apenas com seus órgãos de percepção, biologicamente herdados. As primeiras experiências com o Outro vão deixando sua marca, seu traço mnemônico, imprimindo os signos que causaram impacto, como prazer ou desprazer.

Porém nem tudo aquilo a que o bebê está exposto produz marca. Nos primórdios de sua constituição, o aparelho psíquico está muito mais centrado nos estímulos endógenos, que dizem respeito a necessidades somáticas, do que nos estímulos externos. Por não conseguir satisfazer sozinho os estímulos endógenos, o bebê precisa da ação do outro (a mãe ou quem exerce essa função). O modo como esse outro responde ao bebê é decisivo nos primórdios da constituição do aparelho psíquico, porque, além de propiciar a experiência de satisfação, só pode fazê-la a partir de uma função de interpretação das ações do bebê e dentro do contexto do laço mãe-bebê.

Diversas experiências de satisfação podem produzir marca, mas não é tudo da experiência que se inscreve.

O que se inscreve são traços e, tais traços não guardam correspondência representacional com o que representam, de modo que não guardam correspondência fixa com os objetos do mundo, como o referente, nem tem uma significação intrínseca ... as experiências vividas não são registradas integralmente, já que, a partir delas, se recortam quantitativa e qualitativamente algumas percepções que passam a ser inscritas como traços. (Jerusalinsky, 2011, p. 88)

Dessa forma, a inscrição não é uma marca que se assemelha à realidade, "não é uma cópia direta da experiência que se decalcaria em nosso aparelho psíquico" (Jerusalinsky, 2011, p. 89), mas é uma série recortada de traços que passa por um complexo sistema de registro que exige transcrições e retranscrições entre as diferentes instâncias psíquicas (Carta 52).

Há ainda que considerar que nem tudo o que se inscreve no aparelho psíquico pode ser evocado, o que nos fala da função do recalcamento. Por meio das formações do inconsciente (sonhos, atos falhos, lapsos de memória) temos acesso às inscrições do aparelho psíquico. Apesar de serem enigmáticas, parte delas pode ser articulada nas associações livres, outra parte, porém, torna-se ilegível.

É no corpo e pelo corpo que se inscrevem as marcas no psiquismo. O aparelho psíquico, em sua articulação com o corpo, põe em jogo a questão da escrita que ali se inscreve; daí considerar a estruturação da subjetividade como uma escrita psíquica. Essas inscrições no aparelho psíquico se dão de forma singular, por meio da relação do sujeito com a linguagem e com o Outro.

O corpo é suporte das funções corporais importantes para a manutenção da vida, e é também um corpo erotizado. O corpo é um grande livro em que se inscreve a possibilidade do prazer. É o processo de erogeneização que determina a singularidade da inscrição no corpo. "Pode-se dizer que uma zona erógena pode ser definida como um lugar no corpo em que o acesso à experiência do prazer que aí se produz fica marcado por um traço distintivo, uma letra, que se pode dizer estar inscrita nesse lugar" (Nunes, 2004, p. 52).

 

2.2 Do significante à letra

Só é possível falar em letra quando o que se provoca no corpo ultrapassa o registro da percepção e se instala como marca de memória. Sabe-se que nem tudo o que produz estímulo, produz marca. Ou seja, há algo no registro da percepção que se apaga, mas há percepções que se guardam como marcas: são aquelas sublinhadas pelo Outro. É por isso que essas adquirem o estatuto de letra, e é com elas que a mãe vai escrever sobre o corpo do bebê, dando-lhe um lugar discursivo.

Como isso acontece na relação mãe-bebê? O que são as marcas sublinhadas pelo Outro que adquirem o estatuto de letra?

Na constituição do sujeito, a letra instala-se num tempo bastante primitivo. Os estímulos recebidos pelo bebê não se inscrevem simplesmente por sua força ou pela insistência da repetição. "Isto pode até produzir uma marca, mas não instaura a mesma como um traço atrelado a um funcionamento significante" (Jerusalinsky, 2011, p. 110). Diante do grito do bebê, é preciso um Outro encarnado que atribua uma intenção de comunicação a esse grito e que, pela interpretação, produza uma ação específica para satisfazê-lo. Se há interpretação, há linguagem na cena. "Mas é evidente que a linguagem não se inscreve por si. " (Jerusalinsky, 2011, p. 110).

Para que o gozo do bebê se atrele ao Outro, como instância da linguagem, é preciso um endereçamento, é preciso um Outro que, ao tomar o bebê desde um desejo não anônimo e a partir do saber simbólico que a linguagem lhe permitiu constituir, opere corte e costura do funcionamento corporal do bebê, levando em conta o que o afeta e fazendo borda a seu gozo. (Jerusalinsky, 2011, p. 111)

Na cena em que o bebê é atendido pelo Outro, a sensação de satisfação é o percebido que será inscrito. Mas, o que marca a diferença dessa inscrição de satisfação de um bebê para outro? "A letra é o elemento que foi considerado por Freud e isolado por Lacan para tratar dessa singularidade do sujeito. É o que, na trama da constituição, marca a diferença mínima entre cada inscrição" (Fragelli, 2002, p. 59).

Como sublinha Nunes (2004, p. 98), as estruturas, para sua formação, dependem da matriz lógica por meio da qual a letra se instalou no corpo do bebê num certo ordenamento. Esse ordenamento está atrelado à decisão do Outro e tem a extensão de toda uma vida.

 

2.3 Retomando o caso clínico

Quando Mário chega à clínica para atendimento, sua mãe conta que o pai do menino se suicidou quando ele era bebê. Por volta dos 3 anos, Mário era muito agitado, corria para todos os lados, parecia aflito por não conseguir se comunicar. Não interagia com outras crianças. Algumas pessoas diziam que ele era diferente, mas ela não aceitava e ficava magoada. Na creche, a professora e a diretora conversaram com ela sobre as dificuldades de Mário e pediram exames médicos e tratamento psicológico. Seu primeiro diagnóstico médico foi de debilidade mental. Em seguida, de autismo. Por volta dos 5 anos, Mário abraçava figuras masculinas na rua e chamava de pai. A psicóloga disse que ele queria saber sobre o pai e a mãe lhe contou que ele estava com o "papai do céu".

Aos 7 anos, Mário foi encaminhado a um serviço com atendimento escolar, psicológico e terapêutico, onde passava o dia todo. Com o tratamento realizado nesse local, Mário começa a se acalmar. Em seguida, começa a frequentar uma escola especial onde aprende a ler, a escrever e participa de oficinas de marcenaria, computação, entre outras. Ao completar 13 anos foi encaminhado à clínica onde começo a atendê-lo.

Mário situa-se de modo muito precário na linguagem. Assim como buscava uma colagem a meu corpo no início do tratamento – que por vezes retorna –, sua fala é muito colada aos anúncios da televisão e do rádio. Apesar de poder escrever todas as palavras ortograficamente, percebo que essa produção situa-o de maneira precária na linguagem. Ele tem domínio da "técnica", mas a possibilidade do sujeito Mário aparecer na escrita, bem como na fala, fracassa em sua tentativa de se dizer.

Porém ao longo do tratamento foi possível acompanhar, em determinados momentos, o que eu chamaria de "emergência não especular" em sua produção. Foram pequenos acontecimentos durante as sessões, como quando ele chegou à sala e me convidou para deitar no chão e brincar de cócegas: "Vamos 'se' atirar no chão e brincar de fazer cócegas?". E ao fazermos, Mário divertiu-se como um menininho de 3 anos. Ou quando chegou à clínica, num dia chuvoso, com seu enorme guarda-chuva e disse: "Eu tenho uma espada!", e saiu lutando com seu guarda-chuva, que virou espada!

Em outra sessão, descobre na internet a possibilidade de ver um comercial que o deixa muito excitado, onde uma modelo sai do carro e diz: "O primeiro beijo a gente nunca esquece!" Mário pede para ver esse comercial várias vezes, mas quando inicia o vídeo ele sai de perto, se agita, sacode os braços, ri, fecha os olhos com as mãos. Quando termina, pede para ver de novo. Passa dias procurando tudo sobre essa modelo na internet. Mais adiante, passa várias sessões vendo casais de jornalistas. Quando revê os vídeos da modelo preferida, diz: "Sou homem, ela é mulher. Não quero mais falar disso".

Durante uma de suas pesquisas na rede, vê seu nome numa página da internet e diz: "Ó, meu xará!" Em seguida, vê a data 1996 e diz: "Nasci em 96!".

Poderíamos pensar, por esses momentos, que Mário vem fazendo uma tentativa de se apoiar em alguns significantes da escrita para tentar se dizer?

Ao fazer uso da escrita na internet para buscar o que quer, estaria ele apontando para uma posição do sujeito na linguagem distinta daquele que não pode fazer coisa alguma com a escrita? Parece que, com a escrita para pesquisar na internet, algumas possibilidades de se dizer vão se articulando: dizer-se homem e reconhecer a modelo como mulher, dizer-se este e não aquele que tem o mesmo nome que ele, reconhecer o ano de seu nascimento.

Poderia a escrita ocupar uma função na constituição de crianças com estruturação singular, como no caso de Mário? Se sim, como isso poderia se dar e quais funções a escrita teria? Segundo Bastos (2009, p. 1) no trabalho com a escrita, no tratamento psicanalítico de crianças com transtornos graves, pretende-se que as crianças possam colocar em marcha a operação significante que, ao construir uma escrita, as constrói. Os resultados obtidos demonstram ser bastante positivos.

Tratar uma criança que se encontra numa estrutura autista ou psicótica, implica criar vias de retomada da estruturação psíquica, fazendo surgir possibilidades de circulação social e de dimensão simbólica. Em um grupo de oficina de escrita, esta pode constituir-se como instrumento de tratamento na tentativa de promover, ainda que de forma suplementar, alguma entrada da criança na linguagem, fazendo fomentar a construção de laços e de circulação social, o que minimizaria os danos causados pelas vicissitudes de seu desenvolvimento psíquico.

O trabalho com a escrita promove a ampliação da possibilidade significante, ofertando às crianças com estruturação singular um lugar mais confortável na linguagem e possibilitando uma circulação com menos dificuldade pelo espaço da cultura.

Bastos (2009, p. 6) considera o início da escrita como processo de subjetivação que marca o recalcamento da língua materna e contribui para a construção do corpo e suas bordas. "Trata-se de um processo de mão dupla, em que o corpo precisa estar formado, para poder escrever, ao mesmo tempo em que ganha bordas por meio do ato de escrever. Ao escrever, um sujeito se escreve" (Kupfer, 2007, p. 4, citado por Bastos, 2008, p. 6).

 

3. Palavras finais

Este escrito procurou sustentar o lugar da escrita no tratamento de crianças em estruturação autística ou psicótica.

Desde a psicanálise, o caminho que leva à escrita não pressupõe unicamente a aprendizagem de uma técnica que faz corresponder um som a um signo. Há um caminho subjetivo a se percorrer. O sujeito é constituído a partir das marcas psíquicas nele inscritas e é a partir delas que ele irá marcar o papel.

Para investigar a produção das marcas psíquicas inscritas no sujeito foi preciso retomar a noção de inscrição em Freud e de letra em Lacan. Por meio dos modelos e metáforas gráficas e escriturais, Freud desenvolveu uma teoria da escrita para tentar dar conta das inscrições primordiais e do funcionamento do aparelho psíquico. Lacan instituiu a letra como sendo o que marca a diferença mínima entre cada inscrição.

O aparelho psíquico põe em jogo a escrita que nele se inscreve, daí considerar a estruturação da subjetividade como uma escrita psíquica.

É nesse sentido que a relação da criança com a escrita reflete uma estrutura psíquica, fruto da singularidade com que cada sujeito foi marcado e entrou no simbólico. Para que essa escrita inconsciente se dê, é necessário uma "mão dirigida desde o simbólico e o papel, que é representado pela superfície corporal" (Nunes, 2004, p. 76).

Podemos dizer que a escrita, assim como outras formações do inconsciente, tem uma origem comum que é a própria estrutura do inconsciente, pois é a partir do escrito inconsciente que se organizam as demais escritas: o sonho, o desenho e a escrita alfabética.

A escrita alfabética não é um modo de representação da fala que tem como função única a comunicação. Ela é, assim como a própria fala, um modo do sujeito acontecer na linguagem. Por guardar relações diretas com a escrita inconsciente, a psicanálise atribui à escrita alfabética o estatuto de uma produção do sujeito. O trabalho no âmbito da escrita alfabética se oferece como uma alternativa possível ao sujeito para que ele siga, retome sua constituição, para que ele possa se dizer.

Para Mário, parece que a escrita tem oferecido uma possibilidade, ainda que mínima, de sair de uma cristalização em busca de ampliar as cadeias significantes. Mesmo que se trate de uma escrita bastante incipiente e não se apresente como um recurso de linguagem disponível ao sujeito, é uma escrita que mantém aberta a possibilidade de o sujeito se apoiar nos significantes para tentar se dizer. Quando, em suas buscas na internet, pode se dizer "homem", diferente da modelo que admira e identifica como "mulher", está avançando na produção de uma cadeia de significantes que possa dar chances a sua condição de sujeito.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em outubro/2013.
Aceito em fevereiro/2014.