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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.19 no.3 São Paulo dez. 2014

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v19i3p398-413 

DOSSIÊ
Estilos da clínica e possibilidades terapêuticas

 

O sistema de encapsulamento: a evolução dos conceitos de formas e objetos autísticos na obra de Frances Tustin

 

The encapsulation system: the evolution of the concept of autistic shapes and autistic objects in the work of Frances Tustin

 

El sistema de encapsulación: evolución de los conceptos de formas y objetos autista en los trabajos de Frances Tustin

 

 

Juliana Araújo FerreiraI; Jorge Luís Ferreira AbrãoII

I Psicóloga. Mestranda em Psicologia e Sociedade pela Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Assis, SP, Brasil
II Docente do Departamento de Psicologia Clínica da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Assis, SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Frances Tustin foi uma psicoterapeuta de crianças de orientação psicanalítica amplamente reconhecida por sua efetividade terapêutica com crianças autistas e psicóticas. Suas contribuições teóricas sobre o funcionamento dinâmico autístico ampliam a compreensão sobre o funcionamento intrapsíquico dessas crianças, suas ligações com seus cuidadores e as possibilidades terapêuticas. Nesse artigo, abordaremos dois dos mais importantes conceitos da autora acerca do encapsulamento autogerado por essas crianças: os objetos e formas autísticos.

Descritores: Frances Tustin; autismo; objetos autísticos; formas autísticas.


ABSTRACT

Frances Tustin was a psychoanalytic oriented child psychotherapist widely recognized for her therapeutic effectiveness with autistic and psychotic children. Her theoretical contributions on the dynamic autistic functioning broaden the understanding of the intrapsychic functioning of these children, their bonds with their caregivers and the therapeutic possibilities. In this paper, we will discuss two of the most important concepts of the author about self-generated encapsulation by these children: the autistic objects and shapes.

Index terms: Frances Tustin; autism; autistic objects; autistic shapes.


RESUMEN

Frances Tustin fue una psicoterapeuta infantil con orientación teórica psicoanalítica ampliamente reconocida por su eficacia terapéutica con niños autistas y psicóticos. Sus contribuciones teóricas sobre el funcionamiento dinámico autista amplían la comprensión del funcionamiento intrapsíquico de estos niños, sus lazos con sus cuidadores y posibilidades terapéuticas. En este artículo, vamos a discutir dos de los conceptos más importantes de la autora acerca de encapsulación autogenerados por estos niños: objetos y formas autistas.

Palabras clave: Frances Tustin; autismo; objetos autistas; formas autistas.


 

 

Frances Tustin foi uma psicoterapeuta de crianças que dedicou mais de 30 anos ao atendimento e pesquisa de crianças autistas e adultos com cápsulas autistas. Suas contribuições teóricas sobre o funcionamento dinâmico desses pacientes ampliaram a compreensão sobre seu funcionamento intrapsíquico, suas ligações com seus cuidadores e as possibilidades terapêuticas. A seguir, discutiremos com detalhes1 dois dos mais importantes conceitos da autora acerca do encapsulamento autogerado: os objetos e formas2 autísticos.

 

Os objetos autísticos

Em sua prática clínica com crianças autistas, Tustin percebeu o uso persistente e idiossincrático de certos objetos, que denominou objetos autísticos (Tustin, 1972, 1975, 1980, 1981, 1984, 1986, 1990, 1992).

Os Objetos Autísticos são objetos concretos, geralmente duros, que as crianças autistas manipulam e que parecem não estar associados a nenhuma fantasia. O que parece ser mais importante para a criança é a sensação que esse objeto provoca em seu corpo. No início de sua produção teórica, Tustin considerava que esses objetos, se não fossem utilizados de forma excessiva ou por um longo período, teriam um importante papel a desempenhar no desenvolvimento normal porque ofereceria à criança uma maneira de lidar com a sensação angustiante da perda da mãe.

Vários objetos no mundo externo podem ser utilizados como objetos autísticos, ou seja, podem ser sentidos pela criança como parte de seu corpo. Dessa forma, as experiências transicionais não podem ocorrer, dificultando ou impedindo, por exemplo, o uso adequado das palavras (já que seu uso requer desenvolvimento simbólico), utilizando-as apenas de forma repetitiva e ecolálica (Tustin, 1972).

No início de seu texto, Tustin dá dois exemplos desses objetos: Peter e David costumavam levar às sessões um carrinho e um chaveiro com mais de cinquenta chaves, respectivamente. David costumava apertar seu carrinho tão forte na palma de mão que, quando soltava, deixava uma forte impressão. Ao trabalhar com ele, Tustin percebeu que esse objeto era percebido como se tivesse propriedades mágicas que o protegiam de situações de perigo. Era como se fosse um talismã ou amuleto, com a diferença que, quando David o pressionava contra a palma da mão, esse se tornava de fato uma parte extra de seu corpo. Mesmo que ele colocasse o carro sobre a mesa, a sensação que a impressão do carro havia deixado em sua mão permanecia e era isso que importava. Era como se o carro permanecesse parte dele, mantendo-o a salvo. Assim como David, Peter e seu molho de chaves deu a Tustin a mesma certeza. Ele sentia que seu chaveiro era uma parte extra de seu corpo e se sentia guardado por ele. No entanto, a autora salienta que, enquanto essas crianças se sentiam protegidas pelo uso de seus objetos autísticos, eram impenetráveis às tentativas de ajuda externa. Assim, Tustin considerou de suma importância entender a natureza e a função desses objetos.

Uma marcante característica desses objetos é que eles não são utilizados para o fim a que se propõem. Ao invés disso, são utilizados de maneiras idiossincráticas, peculiares a cada criança. David, por exemplo, não empurrava seu carrinho pela mesa ou brincava no chão como uma criança normal ou neurótica teria provavelmente feito. Peter não utilizava suas chaves para abrir gavetas ou portas, ele apenas as carregava por onde ia. De um ponto de vista realístico, eram utilizados de forma inútil e sem sentido para um observador atento. Do ponto de vista da criança, no entanto, eram absolutamente essenciais. Os trens ou carrinhos duros que algumas crianças autistas levam para a cama e colocam embaixo do travesseiro também não são utilizados de maneira usual, ou seja, como brinquedos. Não se pode dizer que exista algum tipo de fantasia associada a eles. Existe uma qualidade de faz de conta na fantasia e uma percepção de separação corporal do objeto que não está presente no uso do objeto autístico, que têm uma qualidade bizarra e ritualística, e a criança tem uma preocupação rígida e intensa com eles, o que não é uma característica do jogo em que predomina a fantasia. Os objetos que algumas crianças giram obsessivamente têm características similares.

Assim, esses objetos não parecem ter nenhuma fantasia associada a eles ou, se têm, parecem ser de natureza extremamente primitiva e ligada às sensações corporais. Para Tustin, o autismo é um estado dominado pelas sensações e os objetos autísticos são, portanto, objetos dominados pelas sensações. Como resultado da falta de fantasia associada a eles, são utilizados de forma extremamente canalizada e repetitiva. São estáticos e não carregam as possibilidades de aprendizado que levariam a criança a desenvolver novas redes associativas. São círculos viciosos de atividades que se tornam cada vez mais arraigadas no funcionamento global da criança.

Outra característica dos objetos autísticos é a falta de discriminação entre eles. O chaveiro de Peter possuía várias chaves. No entanto, se uma se perdesse, sempre existiria outra qualquer para substituí-la. David não levava sempre o mesmo carrinho às sessões. No início do tratamento, era a sensação que ele lhe proporcionava na palma da mão que era importante para ele e isso qualquer carrinho poderia lhe proporcionar. Tustin relata que algumas crianças psicóticas têm um objeto autístico que é utilizado por um período de forma ritualizada e estereotipada. Esse objeto é, então, descartado, para ser substituído por outro qualquer que será usado de forma similar. Por causa da falta de uma percepção diferenciada da criança autista, qualquer objeto que dá uma sensação definida e que pode se repetir indefinidamente ao longo do tempo, pode ser escolhido e utilizado pela criança.

Ao longo de um determinado período, pode haver uma sucessão de objetos utilizados com uma intensidade que bloqueia a consciência da existência de qualquer outra coisa. Se um objeto dessa natureza é perdido ou tomado da criança, ela entra em um estado de completas aflição e angústia. Os pais, os educadores e os psicoterapeutas conhecem bem as crises de desespero e raiva de uma criança autista quando essa é privada de seus objetos autísticos. A criança se vê obrigada a se confrontar com seu pior pesadelo, o trauma original de estar separado e, portanto, em uma solidão enlouquecedora e com um aparato neuromental precário e sem condições a sua disposição para enfrentar tal situação. Tustin nos alerta para o fato de que a criança tem a sensação de ter perdido parte de seu corpo. Nesses casos, o objeto é rapidamente substituído por outro que é experimentado como sendo o mesmo. Relembrando que não só Tustin, mas também Winnicott (1958) e Mahler (1961) entendiam que a inabilidade dessas crianças para tolerar a perda desses objetos advém do fato de terem experimentado intensa angústia diante de uma perda ilusória e precoce de uma parte instintivamente fundamental da mãe e que era sentida como sendo parte de seus corpos. Dessa forma, a perda é sentida como parte do próprio corpo e não como a perda da mãe e seu seio nutridor. Para Tustin, essa seria, portanto, a situação original que leva ao uso obsessivo dos objetos que seriam utilizados como partes de seus corpos indefesos.

Em geral, distinguimos os objetos uns dos outros baseados em diversos elementos. O estado dominado pelas sensações em que vivem essas crianças significa que elas apreendem o mundo baseadas tão somente na sensação que a forma dos objetos lhes proporcionam. Seu foco é no contorno, e o significado e a função dos objetos não são levados em conta.

Outro fator característico discutido por Tustin é que, em crianças autistas, as modalidades sensoriais não são claramente diferenciadas umas das outras. Assim, ver e ouvir são frequentemente vivenciados de forma tátil, como se estivessem sendo tocadas pelo objeto. Palavras escritas que são parecidas são sentidas pela criança como sendo as mesmas. Isso também se aplica aos objetos, imagens e sons e são o exemplo da natureza concreta da experiência autística. Tustin relata que, quando David começou a emergir de seu autismo, disse-lhe que sentia que as palavras "Tustin" e "Austin" deveriam ser a mesma coisa porque tinham a mesma forma quando tocavam seus olhos ou ouvidos.

Tustin salienta que um importante dado ao tentar modificar o uso dos objetos autísticos por estas crianças parece ser a percepção por parte de seus cuidadores (sejam os pais, educadores ou terapeutas) de que esses objetos não são vivenciados pelas crianças como substitutos das pessoas das quais as crianças sentem falta. Para elas, esses objetos são a pessoa, porque proporcionam a sensação que desejam. Essa sensação não é localizada em nenhuma parte específica do corpo. Por exemplo, se o carro de David lhe dava a sensação agradável na palma da mão era como se estivesse também na boca, indiferenciadamente. A autora faz uma ressalva em relação ao uso dos termos "sentir falta" e "desejar", que tornam a comunicação inexata. A criança autista não parece se tornar consciente de necessidades, vontades e desejos porque têm pouco ou nenhum aparato psíquico para lidar com a frustração que esses afetos despertam. Ao invés disso, utilizam objetos autísticos que têm como função ajudar a evitar o suspense da espera. Tustin nos alerta quanto à maneira como essas crianças provocam os outros no ambiente para estarem tão preocupados quanto elas em ter um objeto autístico sempre disponível, é uma demonstração do poder que essas crianças têm em manter seu autismo sempre ativo e conseguir que os demais sejam coniventes com isso.

Como o uso dos objetos autísticos é dirigido à sobrevivência corporal, trazem sempre satisfação instantânea e impedem a vivência, por parte da criança, da espera e da antecipação da realização. Essa experiência, à medida que possa ser tolerada, leva às atividades simbólicas como fantasias, memórias e pensamento. Sem esse desenvolvimento, a criança continua a viver baseada apenas em seu corpo, limitando seu desenvolvimento psíquico. A autora aponta que é por essa razão que algumas crianças aparentam ter deficiência mental quando vistas pela primeira vez em situações de avaliação clínica. O uso patológico de certos objetos perpetua a falta de confiança básica da criança em seus cuidadores, já que impedem que elas experimentem sentir necessidade do outro.

A dureza é uma característica marcante da maioria dos objetos autísticos. É isso que dá à criança a sensação de estar salva. A criança autista, por não ter a experiência de desenvolver relações civilizatórias com outros seres humanos, sente-se constantemente sob ameaça de ser atacada ou machucada. Parece sentir que seu corpo indefeso é alvo de ataques brutais e selvagens. Fica clara a necessidade intensa do uso dos objetos, já que têm como objetivo principal repelir as ameaças corporais e a aniquilação. A sensação de dureza auxilia a criança com seu corpo mole, indefeso e vulnerável a se sentir segura em um mundo que parece repleto de perigos aterradores que provocam um terror indescritível. Esses objetos impedem a percepção de separação corporal e promovem a ilusão de que os choques insuportáveis advindos do mundo externo foram obstruídos. A criança foca sua atenção em sensações corporais familiares ao invés do estranho mundo exterior.

A autora nos adverte de que essa é a visão sofisticada do observador e que tem como objetivo encontrar coerência ao se referir a estados tão primitivos e indiferenciados através do diferenciado mundo das palavras. No entanto, é importante discernir a experiência do observador da muito diferente experiência de uma criança que vive em um estado relativamente indiferenciado. O observador tem a nítida consciência de que é um objeto que provoca a sensação. Mas, para a criança que está funcionando em níveis tão elementares e concretos, o objeto é uma sensação que toca seu corpo. É de suma relevância que se tenha isso em mente ao estabelecer contato com essas crianças e ao tentar compreender tais fenômenos por meio dos meios simbólicos.

A proteção ilusória que os objetos proporcionam à criança impede que desenvolvam formas protetoras mais genuínas já que, ao impedir o contato com outros seres humanos que poderiam ajudar a mitigar seus terrores mais básicos, a criança fica presa em um estado de completa desolação, envolvida por terrores primitivos e com nenhuma forma autêntica de alívio ou transformação.

Tustin relata que, por meio do material clínico, foi possível perceber que a origem desses objetos patológicos parece estar em atividades autossensuais escondidas que se iniciam na infância precoce ou até mesmo no útero. Crianças psicóticas com frequência sugam suas línguas ou o interior de suas bochechas ou ainda comprimem as nádegas para sentir as fezes em seu ânus. Todas essas observações foram coletadas na situação analítica nas quais as crianças demonstravam ao terapeuta o que estavam fazendo ou, quando já podiam falar, contavam-lhe. A autora salienta que é possível que existam várias outras coisas que as crianças fazem e que passam despercebidas pelos que as rodeiam já que, em geral, não podem vê-las. Isso significa que essas atividades autossensuais se tornam cada vez mais desviantes e perversas, já que o mundo externo não pode modificá-las simplesmente porque não as percebem. Os objetos autísticos que as crianças utilizam mais tarde parecem ter sua origem nesse comportamento precoce.

A noção de espaço parece ser perturbadora para essas crianças. Tanto o espaço mental quanto o físico não se diferenciam. O espaço entre as expectativas inatas e instintuais dessas crianças e a ocorrência de acontecimentos que se ligam a essas expectativas, como o ato de mamar, por exemplo, parecem impossíveis de serem vivenciados. Esses espaços insuportáveis devem ser imediatamente fechados através do uso excessivo de sensações corporais por meio do qual a criança poderia sentir que teria uma mãe perfeita sempre à disposição, dando-lhe satisfação imediata. As respostas, portanto, à mãe nutridora e seu seio ficam bastante perturbadas com a consequente distorção do desenvolvimento sensual. Os objetos, além de proporcionar satisfação instantânea, também servem ao propósito de obscurecer a devastadora solidão do crescer, com sua necessidade de separação corporal e transformações que levam ao desenvolvimento de uma identidade própria. Como o contato com o mundo externo fica obliterado, os meios de comunicação, interpretação e aperfeiçoamento interpessoal que se desenvolveriam com esse contato não se desenvolvem e a solidão não pode ser realisticamente enfrentada, assim como as possibilidades de reparação que só as relações humanas podem proporcionar.

Em um desenvolvimento considerado normal na infância, a criança desenvolve uma série de artifícios para suportar a ausência da mãe. Tustin observou que muitas crianças não passaram pelo estágio de sugar objetos que lhes permitiria criar uma simulação do seio e aprimorar suas habilidades para que façam uso eficiente do seio real quando esse lhe é apresentado. Para a autora, essas crianças perderam o trabalho criativo de ajustar as ilusões à realidade e desenvolver fantasias. Citando a obra de Winnicott (1958), Tustin aponta para a inestimável contribuição dos fenômenos transicionais no estabelecimento de uma ligação entre fantasia e realidade. Ao invés da ponte que poderia ser estabelecida, essas crianças formam barreiras rígidas e impenetráveis. Em suma, ao invés de criar simulações válidas do seio, desenvolvem artefatos falsos que os substituem e pelos quais não necessitam esperar.

Se a mãe e a criança se tornam objetos autísticos uma para a outra, passam a viver em um casulo de sensações em que ambas parecem se encaixar perfeitamente e de forma absolutamente previsível, com resultados deletérios para ambas. A característica benéfica da maternagem suficientemente boa, como Winnicott (1958) nos apresentou, é a de fornecer à criança um espaço onde ela pode se deparar com as mais diversas e inusitadas situações que são agentes de transformação e mudança. Se mãe e criança vivem em um estado idílico, impedem a possibilidade de que esse espaço se instale e o consequente desenvolvimento simbólico que advém desse fato. Para Tustin, o pai é peça fundamental nessa situação. Por meio de seu apoio, tanto para a mãe quanto para a criança, a dupla pode enfrentar com mais recursos as dores e as atribulações que vivem o par mãe-bebê e que surgem naturalmente em decorrência da falta de uma perfeita adequação mútua e da percepção de não poder ter o controle absoluto do outro. Além disso, deve exercer a função do terceiro que se interpõe na fusão da dupla, permitindo que tanto mãe quanto bebê possam se desvencilhar do processo simbiótico a que estavam submetidas até então.

A criança autista não experimenta a ausência, mas experimenta sensações de vazio e nulidade. A falta de alguém que a criança necessita é sentida como um buraco concreto que pode ser preenchido imediatamente por seu objeto autístico de escolha. Tustin considerava um grande progresso na terapia quando a criança começava a sentir falta do terapeuta e seu funcionamento anterior começava a ser substituído por lembranças que compensavam essa falta.

Além das diversas desvantagens já elencadas de utilizar um objeto autístico, existe o fato que, em momentos de intensa crise, esses objetos geralmente rígidos e inflexíveis estão propensos a se quebrar e a deixar a criança ainda mais desamparada. São objetos inanimados e não podem, portanto, crescer, transformar-se e serem reparados como pessoas vivas. Seres humanos, a despeito de sua imprevisibilidade e falibilidade, podem se recuperar de estados em que falharam com a criança e reparar seus erros, mas um trenzinho de ferro quebrado não. Esse colapso irreparável é, para Tustin, a fonte do desespero da criança. A rigidez e a dureza dos objetos parecem estar associados à sensação de rigidez corporal, resultado da tensão muscular sentida diante de situações de extremo estresse. Assim, um objeto duro parece ideal para se agarrar em momentos de perigo. Um comportamento que para o observador parece absolutamente insano é, para a criança autista, absolutamente essencial para sua sobrevivência.

A autora nos alerta que é somente por meio da compreensão do que tal comportamento representa para a criança, que se torna possível ajudá-las. Se nos posicionarmos alheios a sua vivência, tenderemos a manipulá-la em direção a nossas formas mais normais de comportamento, deixando intocados a raiva e o pânico que deram origem a esse estado peculiar. Se privarmos precocemente uma criança de seu objeto autístico, corremos o risco de expor uma criança hipervulnerável a um "terror sem nome" (Bion, 1962) para o qual ela não está preparada. Para lidar com isso, a criança pode intensificar seu autismo ou desenvolver características fóbicas, por exemplo. Isso não significa que devamos permitir indefinidamente o uso de tais objetos, mas que essa transição para o desenvolvimento de sentimentos de confiança básica em outros seres humanos exige tato, paciência e habilidade e não deve ser feito bruscamente e de forma mecânica.

Ao se referir aos estados de pânico e raiva com que se deparou no contato com esses pacientes, Tustin percebeu que essas crianças permaneciam em um estado de afetos crus, não modificados pelos cuidados humanizantes de um nutridor e à mercê de padrões constitucionais elementares e primitivos de natureza estereotipada, sem regulação e suscetíveis de serem afetados por elementos atávicos. No material clínico, Tustin se deparou com indícios de que essas crianças se sentiam ameaçadas por bocas e predadores e que sentiam que lutavam desesperadamente por sua sobrevivência. Pareciam sentir que poderiam ser pisoteadas e esmagadas como se fossem insetos.

Quando a frustração se impõe, ataques de raiva tomam todo o corpo da criança indiscriminadamente e a fazem temer um estado de total aniquilamento. Para contrabalançar essa sensação a criança se agarra a algo que a protege e nunca aprende a lidar com suas irritações, sejam mentais ou físicas, através de formas mais elaboradas como, por exemplo, o uso do pensamento. Ao cuidadores, a autora alerta para o fato de que, por trás da aparente ausência de medo que essas crianças demonstram, existe um terror intenso que não pode ser expresso.

Os objetos autísticos são usados em estados de consciência bidimensionais, em que não há a percepção de dentros e foras. É uma superfície que pode ser agarrada e que, na ilusão da fusão, parece fechar a criança dentro de uma concha protetora, ofuscando completamente a consciência do mundo externo. As pessoas, inclusive os pais, são completamente bloqueadas da possibilidade de estabelecer uma relação com elas.

 

As formas autísticas

A ideia de formas autísticas se materializou aos poucos para Tustin (1984, 1985, 1986), à medida que avançava nos atendimentos à criança autista. A autora começou a perceber que, embora essas "formas" fossem idiossincráticas e peculiares a cada criança, eram uma constante em todos os casos. Ela acreditava que a percepção desse fenômeno era dificultada por dois fatores: o primeiro deles é a falta de correspondência dessa experiência ao observador inserido no mundo simbólico; e a segunda era que essas experiências não eram facilmente visualizáveis. O acesso a esse fenômeno só foi possível graças às crianças que irromperam de seus autismos e foram capazes de contar a Tustin sobre suas vivências em relação às "formas". A simples menção à palavra forma já nos remete a algo conhecido. Por exemplo, ao nos referirmos a uma forma geométrica ou à forma de um objeto ou animal, buscamos imediatamente em nosso acervo mental uma representação partilhada com os demais. Nossa percepção simbólica envolve, portanto, uma imagem e um conceito associado a ela. As "formas" das crianças autistas são de outra natureza: pré-imagéticas, pré-verbais, pré-objetais e, portanto, pré-simbólicas.

As formas autísticas são inteiramente pessoais e o que importa para as crianças é a sensação que lhes causam e não o objeto real que as produz. As "formas" dos sons, cheiros, gostos e visão parecem ser sentidos pelas crianças ao invés de ouvidos, cheirados, degustados ou vistos. O toque supera qualquer outro sentido perceptivo e se torna dominante na vida dessas crianças.

A criança normal teria uma predisposição inata para produzir formas. Essas formas primárias têm, provavelmente, formações vagas de sensação. Elas tendem a equilibrar o fluxo aleatório de sensações que constituem a mais precoce vivência do bebê. Essas "formas" vão ocorrer sem a intervenção das crianças. No entanto, ela logo vai aprender que pode produzi-las através de seus próprios movimentos. Então, apesar de seu surgimento ser espontâneo, vão gradualmente se tornando autoinduzidas. Essas "formas" precoces surgem da sensação de substâncias corporais macias como fezes, urina, muco, saliva, a comida em suas bocas, vômito e qualquer outra que tenha essa natureza. São sensações que se repetem frequentemente para o bebê. No entanto, são as "formas" produzidas por essas substâncias corporais que realmente importam, e não os conteúdos em si. Ao longo do desenvolvimento normal, essa propensão a criar formas logo se torna associada à forma real dos objetos. Isso resulta na formação de perceptos e conceitos que facilitam a comunicação com o mundo externo. Portanto, as formas de sensação normais são os rudimentos básicos para o desenvolvimento cognitivo, emocional e estético.

Nas crianças autistas a propensão para a produção de formas tomou um curso atípico que impede o desenvolvimento psíquico adequado. Por não partilhar suas "formas" com os outros, adquirem um caráter inteiramente pessoal e bizarro, já que não podem sofrer a modificação natural que só a relação com o meio proporciona. São muito mais artificiais que aquelas das crianças normais e o uso de dispositivos de formação e manutenção peculiares lhes dá um caráter afetado e mecânico.

É comum que essas crianças manipulem suas fezes no ânus para criar "formas" na mucosa, sendo que o interior e o exterior do corpo não é claramente diferenciado. Não se trata de desenhar uma determinada forma. É a mera impressão de uma "forma" que essas crianças obtêm nas superfícies corporais. As superfícies da pele também não são diferenciadas, são apenas o meio pelo qual as crianças podem sentir a impressão de suas "formas", sendo que algumas superfícies são mais sensíveis que outras. Algumas crianças disseram a Tustin que contorciam ou balançavam seus corpos para fazerem "formas" a partir de substâncias corporais. O ato de girar em um movimento de rotação ou balançar de forma oscilatória, como se fosse um pêndulo, também as produzia. As crianças também formavam bolhas com sua saliva ou manipulavam o catarro em seu nariz.

Essas "formas" também são produzidas por objetos não corporais e por processos externos que são, contudo, sentidos pela criança como se fossem parte de si e lhe proporcionam sensações na superfície de seus corpos. Os objetos e os processos do mundo externo estão completamente a serviço dos propósitos idiossincráticos das crianças autistas, assim como suas substâncias corporais são meros agentes de produção de "formas" e não têm nenhuma outra função ou existência para elas. Tustin aponta que algumas crianças estão tão inconscientes da existência real dos objetos que tentam andar através deles como se não existissem. Da mesma forma, ouvem a voz das pessoas não com função comunicativa, mas como um autoenvelopamento por "formas" tranquilizadoras. Tustin acreditava que seria essa a razão de serem frequentemente consideradas deficientes auditivas antes que fossem diagnosticadas como autistas.

Os equivalentes não corporais que podem ser equiparados às substâncias corporais são, por exemplo, lama, areia, massinha, argila, água, tinta e outros similares. Brinquedos também podem ser utilizados dessa maneira. Tustin apresenta um caso de uma menina de 13 anos que utilizava operações aritméticas como produtoras de "formas" e um rapaz de 18 anos que usava letras do alfabeto para tal. A qualidade necessária a todos esses equivalentes é que sirvam ao propósito de ser onipotentemente manipulados pelas crianças. Nesse processo, nenhuma atividade psíquica ocorre. A criança está permanentemente presa a esse funcionamento circular e toda sua atividade no mundo se resume a esses rituais alienantes.

Para melhor compreender essa ideia, a autora convida seu leitor a realizar um experimento. Sentado em uma cadeira, pede para que a esqueça como objeto real. Ao invés disso, deve se concentrar em sentir os glúteos pressionando o assento. Isso criará uma "forma". Se os contrair, a "forma" mudará e será inteiramente particular a cada pessoa. Essa é a vivência da criança autista. Ela se torna tão focada nessas "formas" particulares que a cada cadeira em si não tem a menor importância, embora possa ter uma vaga sensação de sua existência e, inclusive, saber seu nome.

Nas crianças autistas, o processo de produção de "formas" é repetitivo e não está sujeito a modificações, como acontece no desenvolvimento normal. Formas espontâneas e inesperadas que possam eventualmente surgir e que fujam ao controle dessas crianças são perturbadoras e indesejadas e devem ser neutralizadas através dos dispositivos autísticos. As crianças autistas lutam arduamente para manter as formas inesperadas à distância, tentando manter as familiares em fluxo constante e repetitivo. Para elas, é insuportável perder o controle e os movimentos corporais são sentidos como altamente poderosos para a produção dessas "formas" conhecidas. Seu caráter onipotente é o que dá a essas "formas" o poder tanto de tranquilizar a criança como de perturbá-la a ponto de fazê-la perder o controle. As "formas" têm, portanto, um poderoso efeito sobre o humor dessas crianças. Elas sentem que a existência das "formas" mágicas depende de suas atividades e que elas próprias dependem da presença mágica dessas "formas" para lhes dar um senso de existência.

As formas são o meio pelo qual construímos tanto nosso mundo interno quanto externo. O problema com as crianças autistas é que essa construção é indevidamente peculiar. Elas utilizam a propensão da mente humana para criar formas para seu próprio modo idiossincrático de criar o mundo. A evolução de suas construções não pôde ser modificada pelas inter-relações com outras pessoas e se tornam impregnadas de uma autossensualidade crua. Um círculo vicioso as aprisiona e só o que podem manipular parece real.

 

Diferenças entre as formas e os objetos autísticos

Tustin considerou importante fazer uma correlação entre as formas autísticas e os objetos autísticos. Os objetos autísticos também surgem por meio das sensações corporais autoinduzidas, das atividades autossensuais engendradas por essas crianças. A diferença é que os objetos autísticos são estimulados por substâncias corporais duras, como fezes enrijecidas, muco endurecido, musculatura rígida, língua ou parte interna das bochechas. São vivenciados como um aglomerado de sensações duras. Nessas ocasiões, o corpo da criança fica igualmente tenso. Mais tarde, objetos duros como carrinhos, trens de brinquedo, chaves e similares são usados como se fossem parte do corpo da criança para lhe dar a mesma sensação antes proporcionada pelas substâncias corporais duras já citadas. Como já enfatizamos, os objetos não importam, apenas suas superfícies e contornos rígidos e estáticos. Isso é bem diferente das sensações macias e amorfas das formas autísticas, sempre maleáveis e fluidas.

Tustin cita os trabalhos de Bick (1968) e Meltzer et al. (1975) em que descrevem a maneira pela qual crianças não integradas sentem a superfície de sua pele aderir a outras superfícies de modo a neutralizar seus terrores de desmoronar-se ou de derramar-se. Tustin nos diz que os objetos autísticos servem a esse propósito. A criança pressiona a superfície de sua pele contra a superfície dura de qualquer objeto e a sensação resultante bem definida de dureza lhe proporciona um senso de definição corporal, assim como a faz se sentir segura e a salvo de qualquer perigo.

Como o corpo da criança se torna equacionado aos objetos duros aos quais aderem, Tustin acreditava que o termo "equação adesiva" seria mais adequado para nomear o fenômeno em questão que o termo "identificação adesiva", como foi sugerido por Bick (1968). Tustin relata que a própria Bick, em comunicação pessoal (Tustin, 1986), declarava-se insatisfeita com o termo e julgava que "identidade adesiva" fosse mais apropriado. A autora cita, ainda, o trabalho de Eugenio Gaddini (1969) em que utiliza o termo "fusão imitativa", o que Tustin considerava ser também bastante apropriado para representar tal fenômeno.

É importante salientar que não só estados de fúria intensa desequilibram essas crianças. Estados de êxtase também o fazem. O que parece ser o elemento desestabilizador é a intensidade da sensação produzida na criança relacionada a afetos extremos, que as ameaçam enlouquecer de excitação. A criança se esforça arduamente para manter tudo em condições de marasmo e mesmice enervantes para o observador externo, mas absolutamente tranquilizantes para elas. Essa é a função das formas autísticas que, além de desviar a atenção da criança do mundo exterior, também têm o objetivo de acalmá-las de afetos muito estressantes. Assim como a utilização de objetos autísticos duros as dotam de uma sensação de segurança e de proteção nesses momentos.

Com a passagem do tempo e o uso maciço desses dispositivos autistas alienantes, o mundo exterior vai se tornando cada vez mais estranho e inundado de perigos para essas crianças. Tustin considerava que, ao estudarmos a dinâmica das formas e objetos autísticos, estaríamos nos aproximando da "anatomia da loucura" (1986, p. 132). A autora considerava que insights acerca desses fenômenos nos proporcionariam uma forma de compreender e adentrar o mundo dessas crianças e, talvez com muito tato, promover mudanças nele.

 

Considerações finais

Nesse artigo, apresentamos as contribuições teóricas de Frances Tustin acerca do encapsulamento autogerado pelas crianças autistas através da utilização dos objetos e formas autísticos. Dessa forma, procuramos ampliar o conhecimento dos estudiosos da psicanálise e outras abordagens acerca das ricas e originais concepções da autora sobre o complexo funcionamento dessas crianças, focando nos processos dinâmicos que dão origem às bastante conhecidas características externas dessas crianças.

 

REFERÊNCIAS

Bick, E. (1968). The experience of the skin in early object relations. International Journal of Psychoanalysis, 49 (2), 484-486.         [ Links ]

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Endereço para correspondência

julianapsi2010@gmail.com
Rua Paulino Liboni, 243/247
14406-340 – Franca – SP – Brasil.

abrao@assis.unesp.br
Avenida Dom Antônio, 2100
19806-900 – Assis – SP – Brasil.

Recebido em dezembro/2013.
Aceito em fevereiro/2014.

 

NOTAS

1. Este artigo é baseado na dissertação de mestrado Nomeando o inominável: a evolução das contribuições teóricas de Frances Tustin acerca do funcionamento dinâmico autístico em crianças e adultos, defendida na Universidade Estadual Paulista – UNESP/Assis por Juliana Araújo Ferreira sob a orientação de Jorge Luís Ferreira Abrão, com financiamento CAPES.

2. Utilizaremos "formas" entre aspas para nos referirmos às formas autísticas e somente quando não vier acompanhada do termo que a qualifica, ou seja, formas autísticas serão escritas sem aspas.