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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.19 no.3 São Paulo Dec. 2014

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v19i3p436-450 

DOSSIÊ
Estilos da clínica e possibilidades terapêuticas

 

A fala criativa das crianças e os efeitos poéticos: recortes a partir da clínica psicanalítica com crianças

 

The creative speech of children and the poetic effects: scraps from the psychoanalytic treatment of children

 

El discurso creativo de los niños y los efectos poéticos: recortes del tratamiento psicoanalítico de niños

 

 

Paula Oliveira SobralI; Terezinha de Camargo VianaII

IPsicóloga. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil
IIProfessora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB). Pesquisadora bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Brasília, DF, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo propõe uma reflexão a respeito da relação entre a fala criativa das crianças e os efeitos poéticos, a partir de recortes da clínica psicanalítica com crianças. Tomamos como base os textos: "Escritores criativos e devaneios", no qual Freud estabelece uma relação entre a forma como a criança constrói seu mundo de linguagem e de brinquedo, as fantasias do adulto e a questão poética; e "A função criativa da palavra", no qual Lacan toma a palavra em sua função criativa e criadora, enfatizando a linguagem como estruturante da subjetividade. Nosso intuito é identificar elementos participantes da constituição subjetiva da criança.

Descritores: fala criativa; efeitos poéticos; fantasia; linguagem; clínica.


ABSTRACT

This article proposes a reflection on the relationship between the creative speech of children and the poetic effects, from scraps of the psychoanalytic treatment of children. For this, we took as a basis the texts: "Creative writers and daydreaming", in which Freud establishes a relationship between how the child constructs its world of language and toys, the fantasies of the adults and the poetic issue; and "The creative function of the word", in which Lacan takes the word in its creative function, emphasizing the language as a structuring of subjectivity. Our aim was to identify elements that participate in the subjective constitution of the child.

Index terms: creative speech; poetic effects; fantasy; language; clinic.


RESUMO

El artículo propone una reflexión sobre la relación entre el discurso creativo de los niños y los efectos poéticos de las partes del tratamiento psicoanalítico de niños. Por lo tanto, se toma como base los textos: "Los escritores creativos y soñar despierto", en el que Freud establece una relación entre la forma en que el niño construye su mundo de la lenguaje y de juguetes, las fantasias de adultos y las cuestiones poéticas; y "La función creadora de la palavra", donde Lacan toma la palabra en su función creadora y creativa, con énfasis en el lenguaje como una estructuración de la subjetividad. Nuestro objetivo es identificar los elementos que participan en la constitución subjetiva del niño.

Palabras clave: discurso creativo; efectos poéticos; fantasia; lenguaje; clínica.


 

 

O artigo propõe uma reflexão a respeito da relação entre a fala criativa das crianças e os efeitos poéticos, a partir de recortes da clínica psicanalítica com crianças, tendo como norteadores os textos "Escritores criativos e devaneios", em que Freud desenvolve a aproximação entre a forma como a criança constrói seu mundo de linguagem e de brinquedo, as fantasias do adulto e a questão poética; e "A função criativa da palavra", no qual Lacan enfatiza a função da linguagem como estruturante do psiquismo e como lugar de criação. Ao brincar, a criança articula elementos fundamentais à estruturação psíquica. O movimento pulsional do seu corpo passa a se estruturar em um ato de fala e as palavras, como significantes, são usadas em sua potência criativa. Nomeando, a criança pode situar seu desejo em uma fala, no laço com o outro.

Em "Escritores criativos e devaneios", Freud (1908[1907]/1980) aproxima a fala e a brincadeira infantil da questão poética e adianta que essa aproximação trata de uma investigação a respeito das fantasias, material constitutivo do psiquismo e fonte onde os escritores vão buscar material importante para suas produções. "Nós, leigos, sempre sentimos uma intensa curiosidade... em saber de que fontes esse estranho ser, o escritor criativo, retira seu material, e como consegue impressionar-nos com o mesmo e despertar-nos emoções das quais talvez nem nos julgássemos capazes" (p. 135).

Freud indaga se não devemos procurar na infância os primeiros traços de capacidade imaginativa. Para ele, a criança se ocupa dos brinquedos na criação de um mundo adequado a sua imaginação, organiza os elementos da forma que melhor a agrade e investe nisso uma grande quantidade de emoção. A irrealidade de um mundo criado ou imaginado é habitada, também, pelo escritor e traz consequências importantes "para a técnica da sua arte, pois muita coisa que, se fosse real, não causaria prazer, pode proporcioná-lo como jogo de fantasia, e muitos excitamentos que em si são realmente penosos, podem tornar-se uma fonte de prazer para os ouvintes" (Freud, 1908[1907]/1980, p. 150).

O jogo de fantasia é um desdobramento do jogo infantil: em vez de brincar com objetos reais, o adulto fantasia. Freud atribui à fantasia lugar crucial no funcionamento psíquico: ela é uma criação do sujeito para dar conta do enigma relativo à cena primária. Na experiência de nascimento, o sujeito depara com algo traumatizante, que o retira do todo homeostático no qual se encontrava no útero materno e no qual se mantém por algum tempo no laço com a mãe. Esse algo é o encontro com a linguagem denunciadora, de partida, da impossibilidade de inscrever essa experiência de forma completa em uma fala, dividindo-a em ditos e impossíveis de serem ditos.

Lacan (1998a), ao falar sobre o estádio do espelho, aborda essa divisão por meio da separação entre o eu – registro imaginário – e o sujeito do inconsciente – instância simbólica – e atribui a essa divisão a condição do sujeito de ser desejante e a criação de uma realidade condizente com o desejo – a realidade psíquica, repleta de fantasia. A instauração dessa divisão se dá pela incidência do Complexo de Castração e do Complexo de Édipo, leis instauradoras da impossibilidade existente na relação imaginária – relação dual estabelecida com base na ilusão de completude, encenada primeiramente pela mãe e o bebê.

Na forma de objeto de desejo da mãe, o bebê ao nascer, é parte integrante da fantasia materna e é enredado nessa fantasia na qual é confundido com o objeto perdido, que retorna para essa mãe em seu ventre para restituí-la – o falo. Lacan explica que o bebê, ao assumir o valor de falo, equivale ao significante do desejo da mãe, posição que tornaria os dois – mãe e bebê – um. Entretanto, a criança não pode ser tomada como o objeto que irá preencher a falta da mãe, uma vez que esse objeto só existe enquanto perdido. É função do pai, da lei que ele porta, instaurar um princípio de separação da unidade mãe-bebê, convocando dois sujeitos em posições e com subjetividades diferentes. A criança passa então a destacar-se do lugar de objeto e a interessar-se por objetos exteriores a seu corpo.

O estudo do Fort-da, brincadeira infantil observada por Freud (1920/1980), demonstra o ensaio do movimento materno de ir e vir, feito pela criança com o carretel, uma produção diante do vazio deixado pela ausência da mãe. "Pois o jogo do carretel é a resposta do sujeito àquilo que a ausência da mãe veio criar na fronteira de seu domínio – a borda de seu berço – isto é, um fosso, em torno do qual ele nada mais tem a fazer senão o jogo do salto" (Lacan, 1998b, p. 63). O fosso é um lugar de morte subjetiva. A ilusão de uma célula única mãe-bebê parece indicar que o desaparecimento da mãe (sua ausência) implicará necessariamente no desaparecimento do bebê, tendo em vista ser sem saída, a relação dual, pois gera o impasse da submissão de um ao outro – daí a morte subjetiva. A criança submetida inteiramente ao desejo da mãe fica sem acesso a uma subjetividade própria, explica Checchinato (2007).

O salto, então, se faz necessário, é uma separação, um não cair no fosso. A criança, diante desse fosso, salta dirigindo-se para os objetos exteriores a seu corpo, os brinquedos, investindo neles traços e palavras, pois isso é o que resta a ela diante do vazio deixado pela ausência da mãe. Assim, a criança sai da passividade da experiência para atividade do jogo (Freud, 1920/1980) – no Fort-da é o desejo da criança que conduz a ação de ir e vir do carretel, ela é o sujeito da ação.

Walter Benjamin (1994), por meio de uma contextualização cultural do brinquedo, ressalta a ação imaginativa da criança como aquilo que atribui significância ao objeto, apontando ser o encantamento da criança pelo objeto o que o vivifica. "A criança quer puxar alguma coisa e se transforma em cavalo, quer brincar com a areia e se transforma em pedreiro, quer se esconder e se transforma em bandido ou em policial" (p. 247). Benjamin descreve o jogo com objetos inanimados como uma repetição, um ensaio antes de penetrar na existência dos adultos.

Antes que o amor externo nos faça penetrar na existência e nos ritmos frequentemente hostis de um ser humano estranho, ensaiamos primeiro com os ritmos originais que se manifestam, em suas formas mais simples, nesses jogos com coisas inanimadas. Ou antes, é justamente através desses ritmos que nos tornamos senhores de nós mesmos (Benjamin, 1994, p. 252).

O brincar é um discurso em ato por meio do qual a criança se apresenta para o outro e no qual imperam as leis infantis. Ao contrário do adulto, que se envergonha de suas fantasias, escondendo-as como o bem mais íntimo, a criança não oculta seu brinquedo, se alia ao artista e utiliza a brincadeira como campo propício à criação. O escritor criativo "faz o mesmo que a criança que brinca. Cria um mundo de fantasia que ele leva muito a sério, isto é, no qual investe uma grande quantidade de emoção, enquanto mantém uma separação nítida entre o mesmo e a realidade" (Freud, 1908[1907]/1980, p. 150).

Segundo Freud, a fantasia, assim como a brincadeira, está ligada ao movimento do desejo, que tenta, a todo instante, reencontrar a satisfação original perdida, algo que permita um retorno à situação original. O adulto, aquele que teve e passou por uma infância, é para a criança uma referência de saber. É no adulto que a criança se ancora e é por sua realidade que ela se interessa, na qual há regras e laços feitos à maneira dos adultos.

À medida em que a criança cresce, substitui a brincadeira com objetos reais pelas fantasias – uma passagem árdua, que exige uma mudança de posição. As fantasias são escritas em uma estrutura de linguagem, portanto, essa substituição é atravessada pela assunção de uma fala própria. A linguagem, por seu sistema simbólico, separa o sujeito do objeto, tendo em vista que o significante vem no lugar do objeto, fazendo prescindir sua forma material. Assim, ele mata a coisa e também recria ao invocá-la, como no exemplo dado por Lacan, no qual faz entrar na sala o elefante "por intermédio da palavra elefante... o elefante estava aí a partir do momento em que o nomeamos" (Lacan, 2009, p. 314). É o jogo da linguagem convocando o sujeito a inscrever seu desejo em seu ato de fala no laço com o outro.

A respeito da articulação entre a função poética e a clínica psicanalítica, Ramos (2013) enfatiza a importância da entrada "das combinações de sons, fonemas e escansões para a produção de efeitos de sentidos" (p. 47) no tocante à clínica. Não somente na medida em que essas combinações produzem uma significação, mas, também, no que operam na economia subjetiva, permitindo um alívio nas tensões psíquicas a partir da equivocação que o significante produz.

Na poesia, a linguagem não se submete à significação estática, a palavra se desdobra produzindo efeitos poéticos, uma licença se abre para que algo novo se produza visando um efeito estético e uma abertura à pluralidade de sentidos. Freud apontou o chiste como manifestação do inconsciente que produz um efeito dessa ordem: ao falar algo que aparentemente quebra o sentido do que vem sendo dito, o sujeito provoca o riso em quem o escuta. "A poesia e o chiste são efeitos de sentido, mas também efeitos de furo" (Ramos, 2013, p. 48).

Lacan (1998a) discorre sobre a metáfora como mecanismo próprio da poesia e função primordial do significante, essencial às formações do inconsciente e à criação de novos sentidos. Para ele, a metáfora é uma figura de linguagem em que a palavra é deslocada do seu sentido habitual a serviço da criação de um novo sentido. É um jogo de palavras e a substituição de uma palavra por outra evidencia a dissociação entre significante e significado. Assim, ao utilizar o código da língua, o ser falante pode expressar algo completamente diferente do que diz, trazendo à tona a singularidade do inconsciente. Eis "a estrutura metafórica, que indica que é na substituição do significante pelo significado que se produz um efeito de significação que é de poesia ou criação" (p. 519).

A poesia, como a psicanálise, mostra como utilizamos a linguagem e como somos surpreendidos por ela. É no inesperado da frase em que uma palavra irrompe fora de hora, fora da continuidade sintática, que um efeito novo se produz. Pela poesia é possível privilegiar a acústica das palavras, a lalação contida na sonoridade, suscitando inúmeras significações pela homofonia, por associação ou pela imagem. A palavra esvazia-se do seu sentido habitual e com isso suscita algo novo, inesperado.

 

Linguagem infantil e linguagem adult-erada

A psicanálise opera pela linguagem. A regra é falar livremente, associando as palavras de maneira própria e singular para termos o material da análise. Freud, no encontro com as histéricas, formalizou a fala como forma de acesso ao inconsciente. Na fala, aparecem e desaparecem as formações do inconsciente, na forma de equívocos linguageiros (lapsos, atos falhos, chistes), ou ainda, no relato dos sonhos e na formação dos sintomas. Lacan, retornando a Freud, explica a ligação entre a fala e o inconsciente, sendo esse estruturado como uma linguagem, isso é, um sistema que funciona a partir de associações, condensações, deslocamentos, entre outros movimentos semelhantes à estrutura da linguagem.

A linguagem é também o sistema pelo qual se dá o laço social, por meio do qual o sujeito sanciona um pacto com o outro. Em A função criativa da palavra, Lacan (2009) situa a linguagem como uma dimensão fundadora do humano em detrimento ao animal. O grunhido do porco não diz nada por si só. Ele se torna uma palavra apenas "quando alguém coloca a questão de saber o que ele quer fazer crer. Uma palavra não é palavra a não ser na medida exata em que alguém acredita nela" (p. 311). A dimensão da palavra, portanto, exige o engajamento em uma dialética que inclua um reconhecimento. Da linguagem infantil à linguagem adult-erada, o que ocorre nessa passagem?

Em Marcelo, marmelo, martelo, obra infantil de Ruth Rocha (2011), Marcelo, personagem principal, começa a falar uma nova língua. Na língua de Marcelo, leite é suco de vaca, latim é língua de cachorro e sentador é cadeira. O pai de Marcelo decidiu conversar e dizer que todas as coisas têm um nome e essa regra da linguagem precisava ser cumprida, caso contrário, ninguém se entenderia. Mas Marcelo só queria inventar o nome das coisas. Um dia a casa do seu cachorro pegou fogo e Marcelo entrou em casa gritando: "a moradeira do latildo embrasou, está uma branqueira danada" (p. 20). O pai percebia sua aflição, mas não conseguia entender o que dizia. Quando entendeu, a casa já estava toda queimada. Marcelo, desapontado, disse ao pai: "Gente grande não entende nada de nada, mesmo!" (p. 21). Então, seus pais se olharam e falaram: "Não fique triste, meu filho. A gente faz uma moradeira nova pro latildo, toda marronzinha, com entradeira na frente" (p. 22).

O reconhecimento explicitado por Lacan (2009) não se trata das regras da linguagem pelas quais é possível entender o que o outro diz. Marcelo parece pedir o reconhecimento de um traço que o torne singular, destacando-o das demais coisas do mundo e conferindo-lhe um lugar. Assim, a criança pode servir-se da linguagem na criação simbólica de uma delimitação de si como um sujeito de desejo, pois "a palavra é essencialmente o meio de ser reconhecido" (p. 311).

Em "Nota sobre a criança", Lacan (2003) enfatiza a importância de um desejo não ser anônimo e credita aos pais essa função: à "mãe, na medida em que seus cuidados trazem a marca de um interesse particularizado" (p. 369), apontando o movimento do seu desejo em relação à criança; e ao pai, na medida em que porta a lei da separação mãe-bebê, instaurando na criança a postura de um sujeito desejante e não de assujeitado ao desejo materno. A nomeação permite à criança fazer uma construção simbólica e, assim, suportar a ausência da mãe, reconhecendo uma falta em torno da qual seu próprio desejo irá se organizar.

Essa passagem é acompanhada pela ancoragem simbólica da criança na linguagem dos adultos, na qual a censura já incidiu e a palavra infantil só aparece nas chamadas manifestações do inconsciente, nas quais o desejo força sua passagem e, em uma brecha de linguagem, faz aparecer sua marca.

Como o exemplo dado por Lacan (2009) sobre a função criativa da palavra, chamamos atenção para o gozo de Antônio, um garoto de 5 anos, ao relatar, no consultório, o desconforto de sua professora em uma situação na qual ela atribuiu à turma o conceito máximo de comportamento estabelecido pela escola, nomeado de Elegante, como forma de elogiar os alunos. A professora então diz: "hoje a turma está Ele..."; e Antônio puxa o coro: "Elefante". A professora então repete: "hoje a turma está Ele..."; e a turma responde com Antônio: "Elefante". Antônio chega irritado, dizendo ter recebido um bilhete da professora e faz a seguinte construção: "É que os adultos gostam de adultar as palavras".

A palavra da criança, como a do poeta, cria outra realidade no lugar daquela já existente, uma realidade imaginada com elementos os quais a realidade concreta não comporta. Nesse sentido, a criança cria um jeito de usar a linguagem, em suas brincadeiras, a favor de seus desejos, inventando confronto entre gigantes, batalhas intergalácticas, ou mesmo, um pai e uma mãe.

Quando se trata do infantil, a brincadeira é mediada pela linguagem e as palavras são usadas como brinquedos. No Fort-da, a criança eleva a falta do objeto concreto ao estatuto de símbolo, podendo evocá-lo em sua ausência. A fala da criança, tentando representar o objeto que se foi e o seu desejo de que ele volte, apresenta um sujeito a enunciar um desejo. As crianças jogam com palavras e obtém prazer com isso. Elas parecem saber que, se não há palavras suficientes para nomear coisas, sentimentos e pensamentos, podem ampliar o sentido delas, produzindo metáforas. São os truques linguísticos feitos pelas crianças, inventando novas línguas e formas sintáticas na expressão de suas fantasias, afirma Freud (1900/1980).

A invenção de certas palavras e a subversão feita pela criança quando desloca um sentido de uma palavra para outra se assemelha à questão dos efeitos poéticos. A arte permite ao humano um jeito sempre inventivo de usar a linguagem, e Lacan (2009) afirma ser, em certa medida, metafórico o emprego de toda palavra, pois a formulação e o uso dela é particularidade de cada falante e constitui um traço de identidade. "É nessa dimensão que uma palavra se situa antes de tudo" (p. 311).

 

O manejo na clínica com crianças

A psicanálise com crianças não se limita a um enfoque teórico sobre o comportamento e as etapas do desenvolvimento infantil, ela prioriza o sujeito do inconsciente, e com as crianças não é diferente. Dar palavra à própria criança é condição para que seja possível acessar seu mundo de brinquedo – sua interpretação a respeito do mundo e das pessoas que a cercam. Entretanto, na clínica com crianças, há uma fala primeira com implicação direta na chegada de uma criança ao consultório: a fala dos pais ou responsáveis.

A fala dos pais

A fala dos pais é fundamental na clínica infantil, permitindo situar o lugar ocupado pela criança no desejo parental e, ainda, situar as expectativas e as fantasias desses pais a respeito de seus filhos. A descontinuidade é marca importante dessa relação, pois um descompasso se dá entre a criança esperada e a criança recém-chegada. Esse descompasso é necessário e, também, estruturante para a unicidade de um sujeito (base da relação com o outro e, portanto, do laço social).

Lembremos como Freud analisa o pequeno Hans e funda conceitos a respeito da sexualidade e do universo infantil. A partir do relato do pai de Hans, Freud começou a localizar as relações entre a fobia de um menino de cinco anos e as posições e fantasias que permeavam os membros de sua família. A questão surgida aqui refere-se ao manejo de uma clínica na qual o sujeito em foco não é o da enunciação, mas sim do enunciado: uma criança enunciada por seus pais. Como pensar a clínica quando o sujeito chega trazido, falado pelo outro?

Desde antes do nascimento, os filhos são falados a partir dos desejos de seus pais, os quais, por sua vez, são carregados de familiaridades com as vivências infantis deles próprios. Lajonquière (2010) sublinha a carga com a qual a criança é dotada em sua chegada ao mundo, uma vez que ela porta uma verdade inquietante sobre a lacuna existente entre filho real e o filho ideal. Essa defasagem crucial entre o que a criança é e o que os pais esperam dela, funda a relação de amor entre os pais e esse estrangeiro recém-nascido, portador de traços tão familiares. Por estarem, ainda, privados do ato da fala, os bebês são marcados por uma enxurrada de significantes (ritmos, palavras, carinhos), os quais, pouco a pouco, se tornarão seus, isso é, serão eleitos pela criança para expressar seus desejos. Jerusalinsky (2002) ressalta o saber materno e paterno como narrativas que situam aquilo que os pais têm a dizer sobre o seu filho, "pelo menos até que, num segundo momento, este filho possa, a partir de ter sido falado, tomar a palavra" (p. 99).

O percurso de uma análise com crianças visa o aparecimento de um sujeito capaz de falar a sua maneira, buscando uma forma de articular seu desejo que, por vezes, se apresenta em uma descontinuação em relação ao desejo de seus pais. O descontínuo incomoda e tira, muitas vezes, os pais do sério. O adulto, então, convoca a criança a entrar em sua lógica e, descontinuamente, ela responde como a criança fora de sério, ou fora de série (escolar, por exemplo), em uma insistência em se fazer um, como diz Téo, um menino de 5 anos, explicando sua irritação com a peça de teatro da escola: "eu não quero ser uma arvorezinha qualquer, eu quero ser o sol brilhante, porque sol, só tem um".

Ao procurar uma análise para o filho, os pais instituem o psicanalista como interlocutor entre eles e a criança, a quem endereçam uma suposição de saber estritamente necessária ao tratamento. Supõem que o analista sabe como é possível proceder com essa criança que apresenta um traço enigmático em forma de demanda. Entretanto, o psicanalista nada sabe sobre as marcas que a história faz no sujeito, a não ser que o sujeito fale, então, se oferece como destinatário da fala dos pais e, acima de tudo, como destinatário do sofrimento da criança, podendo oferecer a ela o lugar de falante, de sujeito da enunciação.

Assim, o analista é convocado a sustentar duas posições, a primeira, de um lugar suposto, instituído pela transferência e não condizente, portanto, com sua pessoa. Desse lugar, opera sem produzir uma resposta, mas levantando questões: qual o lugar ocupado pela criança no desejo dos pais? O que um filho paga pela própria existência? O lugar vazio de respostas permite que os pais possam, eles mesmos, questionarem-se quanto à estranheza e quanto ao enigma do desejo.

A segunda posição se refere à relação transferencial com a criança. O lugar, portanto, não é o de um adulto que sabe sobre a criança, mas de um escutador disposto a ouvir sua singularidade em meio a tantas demandas. "Rafael fica enganchado nas palavras", diz sua tia ao levá-lo para um acompanhamento psicanalítico. "Enganchado nas palavras de quem?", indago. "Nas dele mesmo, ele é gago", responde. Alguns meses depois, na fala de Rafael: "Eu venho aqui porque e-e-eu re-re-repito as palavras. Viu? Engraçado é que quando eu estou aqui isso não acontece, mas quando estou lá fora acontece". "Por que será?", pergunto. "Ah, não sei, é porque aqui eu estou em treinamente". "Treina-mente?", repito pausadamente. "É um treino para minha mente, só eu falo e você me escuta", me responde. "Ah, aqui você pode falar sozinho, com as suas palavras, que eu escuto", digo a ele. "Acho que você entendeu, você é uma boa escutadora", diz Rafael.

A fala das crianças

A criança nasce na condição de infans, isso é, desprovida de uma fala própria e, por isso, marcada por uma fala vinda dos pais ou dos cuidadores. Essa fala dirá a inscrição da criança na linhagem familiar, bem como das primeiras marcas de sua história. Os pais, com suas palavras e projeções, marcam o bebê em seus circuitos, em suas atividades, nos toques e gestos de carinho, nos interditos e regras. Nesse momento, a criança depende do olhar dos pais, de suas suposições, e se apresenta como efeito daquilo que fazem dela.

Entretanto, há um momento de duplo corte, no qual a linguagem, com seus símbolos, divide o sujeito e, ao mesmo tempo, ele coloca uma barra na linguagem, parcializando-a. Nesse momento, um objeto é extraído e perdido. Essa perda coloca a criança no circuito da linguagem. Quando um bebê ensaia os atos de fala (por meio de lalações, choros ou gritos) a mãe, o pai ou aqueles que operam em suas funções passam a atribuir significância a esses atos, seja reconhecendo ali algo já vivido por eles mesmos, seja reconhecendo um apelo ao outro, uma tentativa de comunicação: "O que é que o bebezinho está chorando? Será que é fome? Mamãe vai preparar uma mamadeira". A mãe nomeia o choro e essa inscrição permite à criança, posteriormente, entrar no jogo da nomeação e poder ela mesma nomear os objetos.

A criança chega à análise narrada a partir do desejo de seus pais e o trabalho psicanalítico convoca-a a narrar a partir de seu inconsciente. O psicanalista oferece sua escuta – condição da fala da criança – e, com isso, reconhece nela um ser de linguagem, não um objeto, afirma Lacan (1998a). O psicanalista escuta ali um discurso, um ato de palavra em forma de brincadeira, de som ou de desenho. Rabelo (2004) ressalta o frescor, próprio da infância, trazido pelas crianças para a clínica, o qual torna surpreendente cada um de seus atos, seja pela opacidade, pelo enigma ou pela forma (des)regrada e, portanto, denunciadora com que a criança se coloca e se desloca no universo das palavras.

Na clínica acontece a seguinte situação: um jogo de adivinhação no qual, por meio de um desenho feito pela criança, tento descobrir a palavra sorteada. O desenho feito por ela é o de uma mula sem cabeça. Peço que me dê dicas e tento adivinhar a palavra, mas não consigo. Ela, então, gargalhando me diz: "mãe". "Como?", interrogo. "A palavra que eu sorteei foi mãe", me responde. Questiono: "Mas qual a relação entre mãe e mula sem cabeça?" e ela me responde sem conseguir parar de rir: "a letra m".

Entre palavras e brincadeiras, o psicanalista convoca a criança para o jogo, apontando haver um mais além do objeto e que esse mais além está nos limites da linguagem – suas linhas e suas entrelinhas. A criança fala brincando, seja interpretando sua realidade, seja criando outra mais condizente com seu desejo infantil. A fala é estruturante para a criança, a fala livre na qual o sujeito possa se experimentar, à qual não se coloca obstáculos à declaração do desejo. Essa é a fala que interessa à experiência psicanalítica (Lacan, 1998a).

A fala do poeta

Freud (1908[1907]/1980) questiona se é realmente válido aproximar as brincadeiras de linguagem das crianças e a questão dos efeitos poéticos, sinalizando que para a psicanálise, no estudo das fantasias, se fez frutífero pensar tal aproximação. Mas adianta ser essa uma comparação insuficiente no tocante à questão de saber qual a origem de uma criação poética, pois não há como saber quais fatores determinam internamente as escolhas de um escritor.

O estudo, portanto, não iguala a criança e o poeta, tampouco equipara suas ações. Seu objetivo consiste no estudo das fantasias e Freud encontra, no material da obra criativa e, principalmente, em seus efeitos, aproximações e descrições semelhantes às fantasias do mundo adulto, originadas no brincar infantil. Se a brincadeira e a linguagem infantil remetem à questão poética, isso acontece na medida em que elas – na tentativa de nomear sensações, imagens e ações – criam outra realidade, e é por desconhecimento do mundo e da linguagem que as crianças o fazem, buscando se colocar perante o mundo. O escritor criativo, por sua vez, faz o mesmo que a criança ao brincar, mas não por desconhecimento e sim por trabalho: um trabalho que se dá na fronteira entre o que é possível ser representado pela linguagem e o irrepresentável, a partir do jogo entre o que palavra representa na língua de um povo e o potencial criador contido nela.

O fato de a função criadora da palavra ser mais notória na fala infantil e na poesia que na fala do homem comum, adulto, está relacionado ao efeito da censura no desejo desse. Da mesma forma, a não incidência dessa censura, a priori, no brincar infantil e na licença poética do escritor criativo é o fator responsável pelos efeitos poéticos.

Para Freud (1908[1907]/1980), a verdadeira ars poetica está no trabalho estético do escritor criativo capaz de provocar no leitor a liberação de tensões mentais a partir de sua obra. O homem comum envergonha-se de suas fantasias e, mesmo se quisesse comunicá-las ao invés de escondê-las, não causaria prazer em quem ouve, "mas quando um escritor nos apresenta suas peças, ou nos relata o que julgamos ser seus próprios devaneios, sentimos um grande prazer, provavelmente originário da confluência de muitas fontes" (p. 158). Manoel de Barros (2003), poeta brasileiro, escreveu o livro Memórias inventadas: a infância. Na fala do poeta:

Uso a palavra para compor meus silêncios. Não gosto das palavras fatigadas de informar. Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão tipo água pedra sapo. Entendo bem o sotaque das águas. Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim esse atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo. Sou um apanhador de desperdícios: Amo os restos como as boas moscas. Queria que a minha voz tivesse um formato de canto. Porque eu não sou da informática: eu sou da invencionática. Só uso a palavra para compor meus silêncios.

 

"Conflusões"

Conflusões, diz Maria, de 7 anos, depois de contar uma história. E segue: "É confuso, confuso concluir uma história". "Bem, talvez possa ser com-fluxo", arrisquei na homofonia significante. Ela sorri e diz: "É, combina!". As combinações e os jogos de palavras libertam os significantes de atender a função de um significado específico. Não necessariamente com-fluxo dilui ou quebra as conflusões de Maria, mas indica que o combinar afasta o esgotar.

A fala criativa das crianças nos ensina, assim como a poesia, que as palavras podem ter combinações infinitas, a partir do instante em que o desejo do ser falante corta as cadeias linguísticas. Retomamos os apontamentos de Freud, em Escritores criativos e devaneios, acerca da relação entre o brincar infantil e a questão poética, para enfatizar o lugar fundamental da imaginação e da linguagem na constituição subjetiva da criança. Essas reflexões recaem sobre a clínica psicanalítica com crianças, na medida em que a escuta analítica abre espaço para a fala, para a construção de narrativas que veiculem algo do universo psíquico da criança. Um momento em que as crianças dispõem de um espaço para construir histórias, entre palavras e brincadeiras, apostando que ao contá-las, possam cada vez mais emergir como sujeitos da própria história.

 

REFERÊNCIAS

Barros, M. de. (2003). Memórias inventadas: a infância. São Paulo: Planeta.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
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Campus Universitário Darcy Ribeiro – Instituto Central de Ciências Sul
70910-900 – Brasília – DF – Brasil.

Recebido em outubro/2013.
Aceito em setembro/2014.