SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.19 número3Os tempos da transmissão segundo a lógica de LacanA aventura do outro no contexto escolar índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.19 no.3 São Paulo dez. 2014

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v19i3p515-518 

RESENHA

 

Tratamentos possíveis ao impossível da educação

 

 

Daniela Teperman

Psicanalista. Doutora em Psicanálise e Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), São Paulo, SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 

Retratos do mal-estar contemporâneo na educação
Rinaldo Voltolini
São Paulo: Escuta/Fapesp, 2014, 236p.

Retratos do mal-estar contemporâneo na educação não é um título casual. A ideia de retrato serve para marcar aquilo que é pretensão de congelar o tempo, de fixar alguma coisa que resista a sua fluidez. Condensa, portanto, aquilo que é o gosto neurótico pela nostalgia e a constatação de um mundo no qual a solidez e a durabilidade das coisas parece se desvanecer rapidamente1

 

Em "O mal-estar na civilização", texto de 1929, Freud (1981) demonstrou como civilização é mal-estar, abandonando definitivamente a ilusão de uma harmonia possível entre o indivíduo e o social. No mesmo texto o autor sublinhou que a educação não prepara as crianças para enfrentar a vida: "Ao encaminhar os jovens para a vida com essa falsa orientação psicológica, a educação se comporta como se devesse equipar pessoas que partem para uma expedição polar com trajes de verão e mapas de lagos italianos" (Freud, 1929/1981, p. 3060). A leitura desse pequeno trecho poderia dividir o leitor: será que ali Freud situou o que é estrutural na educação ou fez uma crítica ao modo como se educava na sua época? Penso que o psicanalista deu um tratamento aos dois aspectos, ao estrutural, ao explicitar que educação é mal-estar, e ao que é da ordem da contingência, ou a forma que o educar assume em cada época diante do mal-estar que é a educação.

De acordo com Pujó (2006), uma época se define como "uma resposta específica e elaborada em determinado contexto histórico pela civilização, ao que Lacan formula como a ausência de relação sexual" (p. 62, tradução livre). Assumindo que a desarmonia nos é estrutural, podemos também pensar cada época como a articulação de modos particulares de fazer frente ao mal-estar. Quando nos concentramos no campo da educação, cabe questionar-nos a respeito de como em nossa época o mal-estar inerente à educação se particulariza e, no mesmo movimento, que leituras um psicanalista pode propor diante do mal-estar na educação de sua época, pois, como bem nos lembra Sauret (1998), se o psicanalista não escolhe o lugar em que se impõe, o pedido social – lugar em que é demandado – pode, sim, escolher a sua resposta.

No campo da educação, é frequente que diante do impossível o que se produza seja a impotência. Assim, encontramos do lado de gestores, professores e educadores, queixas em relação às famílias das crianças, à falta de recursos ou de formação específica ou à sobrecarga decorrente da presença de crianças ditas "difíceis" ou dos chamados "casos de inclusão". Deste modo, o espaço que se abre diante do impossível, ao invés de produzir respostas singulares, passíveis de serem aplicadas no caso a caso, ou de habilitar a invenção, como se poderia esperar, produz impotência, queixa e desimplicação.

A impotência vem muitas vezes acompanhada de nostalgia e saudosismo. Se tomamos o campo da família como exemplo, é fácil explicar a que me refiro. Diante das transformações e das novas configurações familiares, não é raro encontrarmos um discurso alarmista (estaríamos em uma crise sem precedentes) e/ou saudosista (como se a família tradicional representasse alguma garantia na criação das crianças, ou como se a operatividade da função paterna fosse uma decorrência natural do patriarcado).

Os autores reunidos por Rinaldo Voltolini no livro Retratos do mal-estar contemporâneo na educação responderam à convocação implicada no título proposto e produziram os textos que integram a coletânea, tratando de temas como a autoridade, a relação escola-família, a inclusão, a filiação e a transmissão. Ao contrário do que costuma ocorrer em uma produção como um livro, em que o texto já existe e o título é acrescentado a ele, neste caso foi a partir do título que se pretendeu suscitar uma produção.

Além do fato de que na referida coletânea a escolha do título tenha antecedido a produção e, mais que isso, tenha pretendido provocá-la, há um outro aspecto a ser destacado: os autores ali reunidos são psicanalistas ou orientam suas pesquisas a partir do referencial psicanalítico. Com isso quero dizer que a orientação psicanalítica implica uma particularidade na autoria dos textos. Acrescento ainda que, para além da particularidade decorrente da orientação psicanalítica, o leitor encontrará nos artigos a marca da singular relação de cada autor com seu objeto de pesquisa e a partir dos autores com os quais dialoga.

No discurso do psicanalista o objeto causa do desejo está no lugar de agente, de forma que o autor que se posiciona desta maneira diante de uma convocação pode produzir um saber a partir do lugar em que se vê causado a trabalhar. A particularidade da orientação psicanalítica permite que encontremos autores capazes de produzir furos nos discursos prevalecentes na atualidade, e, advertidos dos riscos implicados na nostalgia de um passado mítico e da paralisação produzida pela impotência, podem se concentrar em tratamentos possíveis diante do impossível estrutural da educação.

Assim, a vivacidade de Retratos do mal-estar contemporâneo na educação reside no fato de estarmos diante de uma coletânea em que os autores testemunham acerca do modo pelo qual a convocação os causou a partir de seus temas de pesquisa e investigação e dos autores com os quais estabelecem uma interlocução. O livro se constitui, desta forma, em um bom exemplo do que pode ocorrer quando as leituras do mal-estar (do lado da estrutura) se particularizam em produções que trazem a marca singular do modo pelo qual cada autor foi tocado pelo tema em questão (do lado da contingência).

 

REFERÊNCIAS

Freud, S. (1981). El malestar en la civilización. In S. Freud, Obras Completas (Vol. III, pp. 3017-1067). Madrid: Editorial Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1929)        [ Links ]

Pujó, M. (2006). Para una clínica de la cultura. Buenos Aires: Grama Ediciones.         [ Links ]

Sauret, M. J. (1998). O infantil & a estrutura. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise.         [ Links ]

 

 

 

Endereço para correspondência
danitep@usp.br
Rua Ferreira de Araújo, 385
05428-000 – São Paulo – SP – Brasil.

Recebido em agosto/2014.
Aceito em setembro/2014.

 

 

NOTA

1. Texto de abertura do 9º Colóquio Internacional do LEPSI / 4º RUEPSY | Retratos do mal-estar contemporâneo na educação | 18/10/2012 – 20/10/2012.