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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.21 no.1 São Paulo Apr. 2016

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v21i1p189-199 

DOI: http//dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v21i1p189-199

ARTIGO

 

Uma acompanhante terapêutica para duas

 

A therapeutic companion for two

 

Una acompañante terapéutica para dos

 

 

Cristiana Kehdi Gerab

Psicóloga e acompanhante terapêutica. Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Membro da Equipe de A.Ts do Instituto A Casa, São Paulo, SP, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo descreve um trabalho de acompanhamento terapêutico com uma adolescente que possui deficiência intelectual. Mas é sua posição subjetiva que está em jogo e é relevante neste trabalho. Discute-se a escuta psicanalítica dos pais enquanto questão essencial para que o acompanhamento com esta adolescente possa acontecer.

Descritores: acompanhamento terapêutico; deficiência intelectual; escuta psicanalítica.


ABSTRACT

This article describes a therapeutic accompaniment work with a teenager who has intellectual disabilities. It is her subjective position, however, that it is at stake and it is relevant in this work. We discuss the psychoanalytic listening to parents as a key issue for this accompaniment to happen.

Index terms: therapeutic accompaniment; intellectual disability; psychoanalytic listening.


RESUMEN

En este artículo se describe un trabajo de acompañamiento terapéutico con una adolescente que tiene discapacidad intelectual. Es su posición subjetiva la que está en juego y que es relevante para este trabajo. Se discute la escucha psicoanalítica a los padres como un tema clave para que pueda ocurrir el acompañamiento con esta adolescente.

Palabras clave: acompañamiento terapéutico; discapacidad intelectual; escucha psicoanalítica.


 

 

O psicanalista de crianças deve ou não ocupar-se dos pais? . . . no dialogo psicanalítico, os pais, ou um deles, estão sempre presentes se soubermos reconhecê-los através do discurso do sujeito. A questão de saber se eles tem ou não que aparecer na cena analítica é um falso problema pois, aconteça o que acontecer, eles sempre irromperão. (Mannoni, p. 84)

 

O caso

Há 16 anos diz que sua vida está “parada”. Já teve trabalho e independência, hoje se sente completamente refém da vida familiar. Lava, passa, cozinha, faz compras no mercado, cuida das despesas do dia a dia enquanto o marido passa suas horas trabalhando fora. Quando muito, vai até a vizinha ou à casa da mãe visitá-la. Suas merecidas saídas são as idas ao médico: estas lhe são de tamanha indispensabilidade, que a Sra. A. é capaz de conduzir variadas manobras na vida cotidiana para que a filha mais velha a substitua em sua ausência.

Essa é a vida da Sra. A. Reclama, mas entrega-se passiva à crença de não poder encontrar uma saída. É evidente que algo contribui para a manutenção desta imobilidade: a maneira que encontrou para ser mãe de sua filha Valéria. Além de ter a filha mais velha, com quem divide uma parceria, ela é mãe de Valéria.

A psicóloga é chamada para iniciar um trabalho de acompanhamento terapêutico com esta filha. Quem sabe assim, ela imagina, Valéria será mais cooperativa, menos rebelde. Chama de rebeldia o então persistente oposicionismo que Valéria vem fazendo à mãe especialmente, recusando-se a sair de casa para ir à escola, a trocar-se, tomar seu banho, escovar seus dentes – atitudes que vem complicando a convivência familiar.

Quem sugere o acompanhamento é a escola, e os pais acatam, convencidos de que um olhar de fora ao que se passa na casa pode ajudá-los a entender e cuidar melhor da filha caçula. Talvez inseguros e ávidos por orientação. Talvez em busca de uma solução mágica, um outro que “saiba” o que lhes é incompreensível. Talvez, passivamente obedientes ao que a escola lhes diz, na tentativa de remediar os erros que crêem estar cometendo, fracassados enquanto casal parental.

Valéria tem 16 anos e possui um rebaixamento intelectual por conta de uma síndrome cromossômica que lhe confere um aspecto infantil tanto na aparência quanto no jeito de ser. Eterno bebê da família, uma vez destinado a ela este lugar simbólico, Valéria divide seu tempo entre bonecas, desenhos infantis, o programa Carrossel na televisão e tudo o que lhe diz respeito nas revistas e jornais. A Maísa (atriz que faz sua personagem preferida) é uma espécie de cara-metade, paixão da vida e lugar de identificação. Costuma permanecer imóvel em frente da tela da TV e do notebook, completamente enfeitiçada pela vida que fantasia terem os personagens crianças/adultos que recheiam seus interesses. É como se os personagens da televisão a habitassem integralmente, tomando suas falas e interesses de forma muito intensa, dando a impressão de uma confusão entre fantasia e vida real. Talvez a vivência fantasiada (ou quase alucinada) da satisfação de desejos que lhe são, por ora, impedidos de realização.

A acompanhante terapêutica (A. T.) disponibiliza-se para escutar a Sra. A. nos encontros: por vezes com Valéria, por vezes em uma conversa apenas com ela, ao final do atendimento. A Sra. A. conta que passou toda a gestação de Valéria deitada, uma vez detectado o risco que se apresentava ao feto após um aborto espontâneo anterior. Um pouco antes de engravidar de Valéria, ela perdeu este primeiro bebê e logo após sofreu um acidente na estrada com o marido. Segundo ela, começou a ter síndrome do pânico por conta disso. Nada de grave aconteceu, mas a Sra. A. passou a sentir um medo constante. Pelo que se sentia ameaçada?

Com relação à escuta de pais, Arias (2010) afirma que

Em todas as situações, a tarefa é escutar. O que nos pedem? Quem é esta criança? O que dizem de si? O que diz a criança? Supõem em nós um saber, e nos idealizam por isso. Isto é fonte de obstáculos, mas é indicador, luz reveladora da estrutura familiar em jogo. Nas palavras ou na não-palavra dessa mãe e desse pai aparece a criança fantasmática, esse ser, efeito de um discurso parental, que a situa a respeito de uma linhagem, num processo de devir humano, ainda quando tenha alterações. Quando escutamos os pais aparece a própria historia pessoal, o narcisismo jogando nessa criança, constituindo, por sua vez, essa criança. (Arias, 2010, p. 297)

Perguntas que muito se aprofundem nos meandros psíquicos da Sra. A. não são pauta central do acompanhamento terapêutico de Valéria. Desde o início, mesmo estando claro de que a condição de Valéria sofre os efeitos da modalidade de maternagem que a Sra. A. é capaz de exercer, não é essa a investigação que se constitui como foco principal do trabalho.

É ao lado de Valéria que a A. T. permanece, brincando, lendo e explorando seu quarto com ela durante a hora semanal de trabalho que lhes é destinada. A escuta à Sra. A. está ativa e permeia o trabalho. Neste sentido, tão indispensável quanto a transferência da A. T. com Valéria.

Revela-se ao longo do trabalho uma dificuldade em separar as duas. A Sra. A. e Valéria vivem como que destinadas uma para a outra. Seus corpos confundem-se na mesma aflição e fragilidade, em espécie de busca por um erotismo negado. Em um acompanhamento realizado em pleno verão, a Sra. A. recebe a A. T. conversando sobre o calor intenso e sobre a falta de conforto: “E eu, então, que estou na menô1! Só vivo agora com calores em dobro”. A filhota, trancada no quarto, há dois dias que não toma banho, enquanto a Sra. A. toma dois banhos por dia.

A briga pelo banho é constante desde que se iniciou o acompanhamento. Valéria recusa-se, e não diz por quê. As tentativas da A. T. de decifrar sua recusa concluem um óbvio ululante: enquanto a mãe está na menopausa, Valéria há poucos anos começou sua vida de ciclos menstruais. O corpo de mulher a tomou por completo. No bebê da casa cresceram seios, pêlos e a fértil imaginação sobre o que fazem os namorados. “Quer casar comigo?” foi a pergunta que fez à A. T. quando entrou no seu quarto pela primeira vez.

A Sra. A. tem dificuldades em ver que a filha precisa de autonomia e tempo para si própria. Nega-se a compreender que há sexualidade na filha: “ela enrola no banho e não limpa nada direito. O cabelo continua ensebado, se eu não entro pra ajudar é como se nem tivesse tomado banho”. A A. T. compartilha com a mãe a hipótese de que sua recusa constrói-se justamente em função da necessidade de separação do corpo da mãe, mas não é bem-sucedida em sua interpretação e a mãe continua obstinada a dar banhos na filha.

Certa vez, Valéria resolve tomar banho enquanto a A. T. está lá. Uma vez que esta, imaginariamente, também tem o posto de “amiga da mamãe”, sua presença funciona para manter Sra. A. entretida. O acompanhamento então acaba sendo destinado à Sra. A., enquanto Valéria ocupa-se do banho. Mas a A. T. está ali com Valéria, uma presença na casa que lhe possibilita essa rara experiência.

Como acompanhar uma relação mãe e filha? Como atuar ativamente em um vínculo tão intenso? Acreditamos que há uma linha tênue que separa a atividade do A. T. enquanto mantenedora dos sintomas que imobilizam os laços familiares e enquanto interventiva neles. Essa linha encontra-se na especificidade da escuta do inconsciente, que na prática do A. T. mostra-se tão indispensável quanto na prática clínica realizada no setting tradicional.

A escuta psicanalítica parte do pressuposto de que há entre mãe e filho uma relação fantasmática. Segundo Mannoni (1999),

O que na mãe não pode ser resolvido ao nível de experiência de castração, vai ser vivido, como eco, pelo filho que, nos seus sintomas, muitas vezes não fará mais do que “falar” a angústia materna. . . . Para a mãe, real ou adotiva, existe um primeiro estado, semelhante ao sonho, em que ela deseja “um filho”: este filho é, a princípio, uma espécie de evocação alucinatória de alguma coisa de sua própria infância que foi perdida . . . quando nasce, isto é, quando a demanda se realiza, cria para a mãe a sua primeira decepção: ei-lo então, esse ser de carne – mas separado dela; ora, em um nível inconsciente, era com uma espécie de fusão que a mãe sonhava. (p. 55)

Em se tratando de uma criança que nasce com uma debilidade como sequela de um quadro orgânico, a mãe será acometida por um choque mais intenso. Mannoni (1999) afirma que

no momento em que, no plano fantasmático, o vazio era preenchido por um filho imaginário, eis que aparece o ser real que, pela sua enfermidade, vai não só renovar os traumatismos e as insatisfações anteriores, como também impedir posteriormente, no plano simbólico, a resolução para a mãe de seu próprio problema de castração. (p. 5)

É a partir desta questão de fundo que buscamos incluir o discurso da Sra. A. neste acompanhamento terapêutico.

O trabalho do A. T. levanta a pergunta sobre a validação das atitudes de rebeldia e recusa de Valéria como tentativas de enfrentar a questão da indiferenciação com a mãe. Em contrapartida, consideramos a hipótese de que incluir a mãe faz com que Valéria seja reconhecida em uma imagem de si, cuja apropriação ainda lhe é frouxa.

A pergunta leva em conta o paradoxo dessa relação mãe-filha de limites difusos: uma moça adolescente tratada como bebê da mamãe e, em certa medida, respondendo à mãe também a partir daí. Muitas vezes, quando a A. T. pergunta algo a Valéria sobre sua semana ou alguma atividade, ela remete-se à mãe, e é por ela que a A. T. fica sabendo dos detalhes. De certa forma, Valéria permanece despossuída de empreender um relato de si mesma, e nas intervenções feitas no acompanhamento terapêutico, a A. T. busca ampliar seu repertório na linguagem com propostas de escrever cada encontro em um caderno que compraram juntas. O mesmo se repete brincando de boneca, quando uma conta histórias para a outra. A intermediação da escrita e da brincadeira é fundamental para o trabalho com Valéria.

Dessa forma, algumas das formulações familiares acerca do infantil foram sendo trabalhadas. Os pais e a irmã decidiram, antes de minha entrada, bloquear todos os canais infantis da televisão e não comprar mais bonecas para Valéria, já que ela é agora uma “mocinha.” Dessa perspectiva, brincar é visto como regressão, e não como jogo simbólico ainda necessário para a delimitação de seus contornos corporais de forma a lhe conferir autonomia. Da mesma maneira, fazem negociações com ela (como a hora de dormir, ir ou não ir à escola, tomar ou não tomar banho) em que tiram dela algo que gosta quando não obedece, desconsiderando sua possibilidade de escolha e consequente responsabilização por ela.

O corpo de Valéria é manipulado pela mãe de forma muito indiscriminada. Quando está doente, Valéria fica semanas a fio sem ir à escola, em casa, por uma preocupação excessiva da Sra. A. Chama a atenção esse tipo de procedimento materno, uma vez que a queixa inicial dos pais, além da recusa de Valéria a tomar seu banho, era a de ela também estar se recusando a ir à escola.

E por que ocupar-se ou animar-se com Valéria (inclusive durante a raiva – afeto vivo) apenas quando ela responde a partir de um lugar regredido? Como tomar a aparente infantilidade não como regressão, mas como rito de passagem? Faz-se necessário tomar a rebeldia, as recusas e a ocupação do tempo com brincadeiras de faz de conta como maneiras que ela vem encontrando de transcender-se enquanto infans e tornar-se sujeito.

É certo que para que a criança possa crescer, deve haver uma “permissão” para isso no inconsciente dos pais. Valéria conhece de cor a angústia materna ativada nas situações de separação, e para ela fica muito mais difícil investir nesse movimento.

No decorrer do acompanhamento terapêutico, pequenas saídas começaram a acontecer: voltas pela praça, idas à banca de jornal perto de sua casa – todas recheadas de conversas e brincadeiras. Sua brincadeira preferida é a de procurar Maísa pela rua. Em geral, leva um CD ou algo que lhe pertence nas saídas com a A. T., de forma a poder simbolizar a separação da mãe. Há grande valor nesses objetos que ela elege e a transicionalidade que eles portam é indício de sua importância na economia psíquica de Valéria. Aquilo que faz obstáculo na sua aquisição de autonomia, mais do que as dificuldades cognitivas, é a posição objetificada em que parece estar.

 

Entre a dor parcial e a anestesia geral

Em determinado momento do acompanhamento, Valéria precisa ir ao dentista arrancar os dentes do siso e obturar algumas cáries. A Sra. A. conta que Valéria tem “trauma” do dentista há muitos anos, e, envergonhada, admite não tê-la levado ao dentista nos últimos oito anos. Fica evidente a angústia sentida pela Sra. A. ao ver o corpo da filha ser manipulado causando-lhe dor. Em especial, esta parte do corpo, a boca, zona erogeneizada, portadora das primeiras trocas com a mãe e, mais tarde, com o mundo. Quer, entretanto, tentar ajudar a filha a se acostumar ao dentista. Fica dividida entre fazer dessas extrações dentárias uma cirurgia em que Valéria tomaria anestesia geral para “nem ver e nem sentir” e tentar fazer com que Valéria aos poucos vá se reconciliando com o dentista. O pai opta pelo procedimento menos trabalhoso e pede que se faça com a anestesia, cansado e desvitalizado em sua função paterna. É a Sra. A. quem deve decidir e é evidente que ela precisa de ajuda. O posicionamento da A. T., assim, dá voz ao que também fala na mãe: ela sabe que é preciso ajudar Valéria a crescer.

Marca, enfim, uma consulta para fazer, inicialmente, uma limpeza simples, a A. T. as acompanhando. Por alguns atendimentos, vamos explicando a Valéria que ela precisa ir, como todos os outros fazem e no dia D não faltam objetos que Valéria queira levar com ela.

Na sala de espera tudo vai tranquilo e a dentista então a chama pelo nome. Entramos na sala onde estavam a dentista, um grande homem que é encarregado de “segurá-la na cadeira” se for preciso, a A. T. e a Sra. A.

De pronto, ela recusa-se a sentar. Posta-se em frente à janela, de costas a todos. O ajudante pergunta se é melhor ele sair e é Valéria mesma quem responde: “não, pode ficar”. A presença masculina não parece ser o que a incomoda. Continuamos lá, esperando ansiosos por sua cooperação, seduzindo-a com a boneca, fazendo todo tipo de manobra para que Valéria se sente. A Sra. A. sempre muito complacente, portando certa pena no olhar, segurando todo o tempo a mão da filha. Valéria senta-se, mas não permite que a dentista toque nela. Muito tempo se passa e a própria dentista começa a ficar impaciente. O olhar materno é intenso e Valéria se projeta nele ainda como uma criança que não pode sofrer, ou como uma déspota que pode mandar na situação (duas faces da mesma moeda?). O clima vai ficando mais tenso e a A. T., repensando sua função ali, diz em voz alta a Valéria que “acha melhor a A. T. e a Sra. A. esperarem lá fora enquanto ela se resolva com a dentista”. A Sra. A. olha para a A. T. um tanto agoniada e levanta-se em direção a porta, Valéria reclamando e solicitando-a. E é então que o surpreendente acontece: a Sra. A. esbraveja, ordena que ela se sente, e Valéria assim o faz. Um pouco amedrontada, naturalmente, permite enfim que a dentista faça seu trabalho. E festejos é que não faltam: fotos dela na dentista, muitos parabéns de todos os lados.

A Sra. A. pôde, enfim, com sua atitude, com o corte naquela cena, fazer valer sua maternagem, poder frustrá-la e ao mesmo tempo transmitir a Valéria uma “permissão” de que ela poderia passar por aquilo. Foi um momento emblemático e muito bonito, empoderamento da Sra. A. e Valéria simultaneamente.

Na volta para casa, o pai as aguarda e faz o seguinte comentário: “é minha mulher quem precisa de anestesia geral”. Referiu-se, certamente, à angustia de Sra. A., com a qual, ao que tudo indica, não deseja se preocupar.

 

A dor de Sra. A.

Após esse dia, a relação da Sra. A. com a A. T. se estreitou muito. A escuta da Sra. A. passou a ser cada vez mais fundamental para que alguns elementos congelados em afetos (em sua maioria agressivos ou por demais condescendentes com Valéria) pudessem ser colocados em palavras. E é a Sra. A. quem detém as palavras que faltam.

Depois do episódio do dentista, a A. T. acompanhou a Sra. A. na busca por uma nova escola para Valéria, que foi empreendida a partir de uma percepção do pai: “Valéria parece ser a mais afetuosa e esperta de sua classe, ela leva os outros, por isso está desinteressada, não há nada que a estimule”.

Uma conjunção de fatores, desde a restrição orçamentária do casal para investimento em uma nova escola para Valéria até a real carência de escolas econômicas, especiais ou regulares, que tenham profissionais dispostos à inclusão, dificultou muito encontrar esta procura. A mãe acabou por reunir-se com a coordenação da escola atual para tentar algumas mudanças para o ano seguinte: sair do período da manhã e retornar para o da tarde e estar em uma classe com mais meninas, o que de alguma forma teve efeito positivo.

Por alguns meses, tudo corre tranquilamente com Valéria, que retoma a frequência à escola. É a filha mais velha quem decide se casar e passa a estar menos presente na casa, o que vai levando Sra. A. a estar constantemente angustiada.

Em um dia em que Valéria está teimosa (como definem a irmã e a Sra. A.), suja, sem banho há alguns dias e sem ter ido à escola, a mãe é acometida por uma fúria com relação à filha. Quando a A. T. chega ao acompanhamento dessa semana, encontra Valéria muito descuidada e machucada no canto da boca. A Sra. A. explica que é mania dela de se cutucar quando está ansiosa. Acrescenta à explicação o fato de terem “brigado feio” por conta da desobediência de Valéria e diz que é Valéria quem “se bate”.

A A. T. tenta tirar palavras de Valéria, que permanece muito pouco cooperativa nesse dia, vidrada na televisão do quarto e nas revistas compradas na semana anterior.

Quando a A. T. está prestes a ir embora, a Sra. A. a acompanha até o portão e conta que pagou a atividade extra que a escola propôs: uma balada no sábado anterior. Valéria foi feliz e voltou dançante e tagarela. E A Sra. A. parece derrotada nesse dia em que, depois de todo o investimento na filha, não consegue fazê-la tomar banho e levá-la a escola há três dias. Dessa forma, fica “presa em casa”. Ela está farta, e quando a A. T. pergunta sobre a possibilidade de deixar a menina sozinha em casa, ela diz que pode ser presa pela negligência de “deixar sozinha uma incapaz”.

A A. T. pergunta sobre a possibilidade de pagar alguém para que fique na casa quando a Sra. A. precisar sair. E a partir daí, suas queixas com relação ao marido que não a ajuda, à mãe do marido (que também age remetendo apenas à Sra. A. todas as dificuldades da vida de menina) e ao comportamento de Valéria vão se intensificando. A A. T. diz à mãe que é compreensível estar assim quando todas as decisões com relação à Valéria parecem ser só de sua responsabilidade.

Ela cai em prantos e relembra com raiva do dia em que resolveu se casar. A filha mais velha já tinha quatro anos, e é depois do casamento (ou por consequência dele) que ela decide engravidar pela segunda vez, para que o marido “curtisse mais ter um bebê” já que não participou muito dos inícios da vida da outra filha.

Veio Valéria, “incapaz” e certamente não pode assumir o ideal materno de “fazer feliz o marido”. Aqui podemos apontar o fato de haver um terceiro para quem a mãe aponta seu desejo, quebrando, mesmo que não efetivamente, a dualidade mãe-filha. É o que deu a Valéria acesso ao campo da linguagem.

A Sra. A. continua a chorar, e da escuta dessa angústia são inúmeras as falas que se abrem, são inúmeros os processos que se tornam possíveis.

Nunca resulta indiferente uma criança marcada como diferente. Nem aos pais, nem à família, nem ao meio social. O ser intruso, um estranho que ocupa o lugar da criança normal desejada é rechaçado. Sobre ela caem desejos de morte. . . . A possibilidade de que “deste indizível, se fale”, disto que é fonte inesgotável de angústias, será também o que permitirá que um desejo vital se ponha em jogo com este filho. (Arias, p. 295)

Nossa hipótese é de que a A. T. foi chamada para libertar a Sra. A. da aliança com Valéria (que está ameaçada de quebra pela própria Valéria em sua “teimosia” e “rebeldia”). É essa a aliança que, paradoxalmente, mantinha a Sra. A. “casada” com esse marido e que inviabiliza sua vida de mulher. Seria a rebeldia de Valéria um pedido de vida para essa mãe? E essa menina sabe que sua própria vida autônoma só será permitida em consequência disso? Há, enfim, esperanças de que a demanda da Sra. A. possa ser transformada em um encaminhamento para a sua própria análise, em benefício de ambas.

 

REFERÊNCIAS

Arias, M. I. (2010). A escuta do indizível. In A. Jerusalinsky, Psicanálise e desenvolvimento infantil (pp. 294-298). Porto Alegre, RS: Artes e Ofícios.         [ Links ]

Mannoni, M. (1999). A criança retardada e a mãe. São Paulo, SP: Martins Fontes.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua Mesquita, 561
01544-010 – São Paulo – SP – Brasil
crisgerab@gmail.com

Recebido em abril/2015.
Aceito em março/2016.

 

 

NOTAS

1. Referindo-se à menopausa.

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