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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.21 no.1 São Paulo abr. 2016

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v21i1p218-234 

DOI: http//dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v21i1p218-234

EXPERIÊNCIA INSTITUCIONAL

 

Rua da Fronteira, nº 14: fragmentos da singularidade de uma experiência

 

14, Border Street: fragments of the uniqueness of an experience

 

Calle Frontera 14: fragmentos de la singularidad de una experiencia

 

 

Letícia Vier Machado

Psicóloga. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é relatar uma experiência com a psicanálise aplicada às instituições no estágio profissional realizado na instituição belga orientada pela psicanálise lacaniana, o Courtil. A metodologia de trabalho da instituição se orienta pela perspectiva clínica psicanalítica da prática entre vários, desenvolvida no trabalho em instituições com autistas e psicóticos. O relato se dá em dois tempos, segundo a perspectiva da estagiária: no primeiro momento, explora-se a dinâmica institucional e os lugares ocupados por ela; depois, privilegia-se sua posição subjetiva nas experiências clínicas e no cotidiano com as crianças.

Descritores: psicanálise aplicada; autismo; psicose; prática entre vários.


ABSTRACT

This article aims to report an experience with psychoanalysis applied to institutions during a professional training in the Belgian institution guided by lacanian psychoanalysis, the Courtil. The institution's methodology is guided by the psychoanalytic clinical perspective of the practice shared by many, developed in the institutional work with autistic and psychotic patients. The report takes place in two moments, from the perspective of the intern: at first, it explores the institutional dynamics and the places occupied by her; second, it emphasizes her subjective position in clinical experiences and in everyday life with the children.

Index terms: applied psychoanalysis; autism; psychosis; practice shared by many.


RESUMEN

Este artículo tiene el objetivo de presentar una experiencia con el psicoanálisis aplicado a las instituciones, desde la formación profesional realizada en Le Courtil, institución belga que sigue el psicoanálisis lacaniano. La metodología de trabajo de la institución se basa en la perspectiva clínica psicoanalítica de la práctica entre varios, desarrollada en el trabajo en las instituciones con autistas y psicóticos. El relato ocurrió en dos etapas, desde la perspectiva del practicante: en el primer momento, se exploró la dinámica institucional y los lugares por ella ocupados; en el segundo, se enfatizó su posición subjetiva de las experiencias clínicas y de la vida diaria con los niños.

Palabras clave: psicoanálisis aplicado; autismo; psicosis; práctica entre varios.


 

 

Para Mary, Safia, Émile, Yacine, Nathan, Théo e Jacky, para todas as crianças, estagiários e toda a equipe do Courtil.

 

Introdução

Toda escrita é uma elaboração. Escrever é, ao mesmo tempo, uma tentativa de inscrever pedaços de Real no registro Simbólico. Mezan (1998, p. 33) nos diz que “é impossível discutir psicanaliticamente um tema qualquer sem que venha a se abrir uma janelinha ali onde normalmente ela permanece fechada”. Aqui, ao escrever, procuro também inscrever as intensidades e os vetores de uma experiência profissional de fronteira, na fronteira.

Durante cinco semanas, trabalhei como psicóloga estagiária na instituição belga de orientação lacaniana Le Courtil – Institut Médico-Pédagogique Notre Dame de la Sagesse. "Courtil”, em francês arcaico, designa um pequeno jardim ou pátio interno, lugar onde originalmente situava-se a instituição. Hoje, alocada na cidade de Leers-Nord, na Bélgica, precisamente na Rua da Fronteira, o Courtil é um lugar limítrofe: ao mesmo tempo que sela a divisão entre Leers-Nord (Bélgica) e Leers (França), constrói pequenas fronteiras e costura bordas entre o corpo e a linguagem de crianças, adolescentes e jovens em dificuldade de estar no laço social.

A instituição surge do encontro entre a clínica psicanalítica, os ensinos de Freud e de Lacan e de psicanalistas como Maud Manonni, Jean Oury, Bruno Bettelheim e Antonio di Ciaccia (Stevens, 2005). Na década de 1970, Alexandre Stevens, na época jovem psiquiatra, iniciou o trabalho no IMP Notre Dame de la Sagesse, uma instituição ainda de orientação religiosa e católica. No início da década de 1980, Stevens propôs a criação de um pequeno grupo de trabalho orientado pela psicanálise com algumas crianças no seio da instituição, composto por aqueles considerados mais “difíceis” e, portanto, menos “desejados”: os psicóticos. Com a colaboração e o desejo dos psicanalistas, ainda presentes na instituição, Bernard Seynhaeve, Véronique Mariage e mais tarde Dominique Holvoet, nasce o Courtil (Otero & Brémond, 2013).

Se, no início, a instituição acolhia apenas autistas e “débeis moderados” (Stevens, 2005, p. 26), a expansão da estrutura redirecionou a clínica para jovens psicóticos que falam e para crianças mais socializadas, que seguem o curso de sua escolarização em uma estrutura anexa ao Courtil – a escola especializada La Goélette. O trabalho clínico feito no Courtil não é caracterizado como um atendimento de urgência, tampouco como tratamento crônico: o tempo médio de permanência das crianças na instituição é entre dois e quatro anos (Stevens, 2005).

Do ponto de vista de sua organização, o Courtil subverte a lógica das instituições. Alexandre Stevens ressalta que se as instituições “paranoicas” possuem um regulamento que vale para todos e se orienta pela ideia de um bem para o sujeito, de um “ideal” a partir do qual trabalha, o Courtil se situa antes do lado das instituições esquizofrênicas, “suficientemente desorganizadas”, que aceita alocar o saber do lado da criança e se utiliza da psicanálise como elemento perturbador (Machado, 2014).

A estrutura do Courtil compreende diversos dispositivos. Há, por exemplo, o Centro para jovens e adultos (CPA), os centros de semi-internato (Centre de jour) e a hospedagem integral para crianças e adolescentes escolarizados, divididos em três grupos (La une, la deux, la trois) e reunidos na grande equipe La demi-clé. Neste artigo, refiro-me aos dois espaços pelos quais circulei, o Centre de jour e o grupo La une, responsáveis pelo acolhimento de crianças, francesas e belgas, em sua maioria entre sete e onze anos. Contei com a supervisão semanal de uma analista experiente, escolhida por mim, que me acompanhou durante todo o trabalho.

Na impossibilidade de captar a totalidade da experiência, limitar-me-ei a fornecer uma noção do funcionamento institucional. Em seguida, explorarei alguns efeitos subjetivos que essa prática “entre vários” produziu em mim, jovem psicóloga e analista em formação.

 

1. Dinâmica institucional e os “entre vários” lugares de estagiária

Há consenso sobre uma psicanálise possível de ser exercida nas instituições. Ela torna-se pensável a partir do respeito a determinadas condições éticas que orientam o discurso analítico em qualquer espaço fora do setting tradicional pelo qual ele circule. Entre elas, a sustentação da escuta analítica e do lugar vazio do não-saber, destituindo-se da posição de mestre; a renúncia às especializações, de um lado, e às generalizações, de outro.

No Courtil, a prática psicanalítica (de orientação lacaniana) se dá sob a modalidade clínica “entre vários, dispositivo desenvolvido para o trabalho com autistas e psicóticos em contexto institucional, e assim nomeado por Jacques-Alain Miller (Di Ciaccia, 2005). A prática entre vários pode ser entendida como uma variante da psicanálise aplicada, ou seja, tem como princípio que a existência de uma experiência psicanalítica não depende de duração, de lugar ou de ritual pré-estabelecido, senão da operação do analista com a palavra sobre o gozo, de modo que o enquadre é posto a serviço da psicanálise, e não o contrário (Guéguen, 2003).

Duas são as condições para que haja psicanálise aplicada à terapêutica no contexto das instituições: primeiro, a rejeição ao princípio segregativo ou universalizante que rege as instituições, separando os sujeitos pela especialização de seus sintomas – a psicanálise trabalha com a lógica do caso a caso; em segundo lugar, como consequência do primeiro, o trabalho orientado para o sujeito (dividido) e não para o indivíduo (uno e identificado exclusivamente pelo seu sintoma) (Brousse, 2003; Guéguen, 2003).

Assim, a prática entre vários tem suas raízes na instituição para crianças autistas e psicóticas Antenne 110, próxima à cidade de Bruxelas, na Bélgica, no ano de 1974. Atualmente, a Antenne 110 integra, junto do Courtil e com uma série de instituições francesas de orientação lacaniana (Centre Thérapeutique et de Recherche de Nonette, hospitais-dia de Podensac, L'île Verte, La Demi-Lune, Aubervilliers), o Réseau International des Institutions Infantiles (RI3), vinculado ao Campo Freudiano (Laurent, 2014). Essa modalidade clínica se ancora e se desenvolve com base na afirmação de Lacan de que a criança autista está na linguagem, mesmo que não esteja no discurso1 (Di Ciaccia, 2005).

A circulação e a descontinuidade ordenada dos “entre vários” parceiros das crianças autistas e psicóticas permite que elas não se fixem em um único parceiro, ao mesmo tempo que possibilita a cada um da equipe abandonar a ilusão de ser o único parceiro da criança (Di Ciaccia, 2005). Instala-se a circulação regrada, mais ou menos livre: uma liberdade calculada, que possibilita alternar e ampliar o repertório de interesses e desejos da criança. No Courtil, essa alternância regida se materializa nos quadros de horários fixados em cada grupo, que permite às crianças saberem quem estará com elas hoje, quem estará na próxima tarde e no dia seguinte, ou quem as acompanhará em cada ateliê proposto: entre vários, porém sempre os mesmos, sem perder de vista certa regularidade.

O entre vários só funciona na medida em que haja um intercâmbio entre os membros da equipe, e até mesmo uma circulação do discurso analítico para além da instituição: o intercâmbio é justamente o elemento que diferencia essa prática de qualquer outra prática em equipe (Di Ciaccia, 2005). No Courtil, esses “vários” se multiplicam para além dos muros da instituição: há, por exemplo, os funcionários do supermercado e da tabacaria situados ao lado da instituição, nos quais todos os dias as crianças são acompanhadas para fazer as compras para o jantar, preparado por elas, pelos estagiários e pelos interventores2, ou são acompanhados até a tabacaria após o almoço para comprar um bombom de sua escolha com o dinheiro economizado por eles na instituição. Esses funcionários provavelmente não têm formação psicanalítica porque, em tese, não fazem parte da instituição, eles estão ali para servir a comunidade local da pequena cidade de Leers.

Contudo, sua sensibilidade para com as crianças, sua maneira de se portar, sem lhes demandar nada – nem “o que vocês precisam?”, tampouco “não mexa nos produtos” – e o conhecimento que vão adquirindo sobre cada uma das crianças – por exemplo, Thierry3 sempre compra uma bandeja de carne para fazer seus hambúrgueres, Victor precisa circular pelos corredores para dar consistência ao espaço, e Asif faz o reconhecimento do supermercado andando por cada seção antes de escolher seu objeto – é o que permite às crianças circular para além do Courtil, ampliando seus repertórios e suas possibilidades de construção de laço social: “acredito que trazendo Tony ao supermercado, neste supermercado todas as semanas, ele, que não consegue circular pelos corredores sem revirar as prateleiras, poderá um dia sair para fazer suas compras sozinho”, (comunicação pessoal) diz uma interventora .

O intercâmbio entre vários nas reuniões de equipe tem como objetivo a construção de um discurso sobre a criança, tornando-a efeito de um discurso, e ainda relativizar o saber que cada um acredita ter obtido sobre ela (Di Ciaccia, 2005). Essa troca acontece ainda nos espaços criados pelos próprios estagiários (ou por um grupo singular de estagiários, que me acompanhou durante minha estadia). A cada fim de jornada, nos lugares partilhados pelos estagiários – cozinha e salas da hotelaria colocadas à disposição para a hospedagem desses “estrangeiros” –, o intercâmbio acontece: quem participou de qual ateliê, que textos do ensino de Lacan podem subsidiar nossa ainda incipiente atuação, ou quem esteve com tal ou qual criança naquele dia, o que a criança disse ou como ela manipulou seu corpo. São esses pequenos encontros que permitem sustentar o desejo de estar no Courtil, assumindo com leveza e certo humor o lugar simbólico e a posição subjetiva do “saber não saber” (Di Ciaccia, 2005).

O psicanalista na instituição não deve assumir o lugar de um especialista em meio a outras especialidades. Se uma instituição de cuidados se organiza em torno de especialidades definidas formalmente (psicólogos, enfermeiros, médicos, fisioterapeutas etc.), ainda que possua certo grau de articulação entre seus membros, não é esse lugar de mais um especialismo que deve assumir o psicanalista, senão o lugar da falta: “Ao caso geral conhecido pelos especialistas ele deve responder com o caso particular. Ao universal a que visa a instituição, deve responder com o singular do discurso do paciente. Em outros termos, mesmo estando dentro, deve estar fora” (Stevens, 2005, p. 29). Mais além, não é o psicanalista instituído que encontramos no Courtil, mas antes “analisantes civilizados”, que estão em seu próprio processo de análise pessoal e atuam orientados pela lógica analítica (Stevens, 2005).

No Courtil, não se busca um tratamento analítico, mas antes “alocar o discurso analítico no cerne da instituição” (Stevens, 2005, p. 29), isso é substituir o ideal normatizante que rege a lógica da instituição pelo desconhecido do desejo, construindo uma instituição particular para cada criança e jovem acolhido. Não se trata de um trabalho educativo, tampouco psicoterapêutico, uma vez que não se buscam os significados velados, nem se interpreta. Há, antes, um desejo de encontrar respostas ao fora de sentido, ao Real que se apresenta, a partir do trabalho com a desarmonia, com aquilo que manca: “ça ne marche pas”, em francês, é a expressão que designa ao mesmo tempo o “isso” que não anda (portanto, que manca), e o “isso” que não funciona.

A partir dessa orientação que rege a lógica da instituição, de que há um discurso analítico que necessariamente circula entre vários, a formalização dos saberes se dá a partir de uma formação contínua. Nas reuniões dos grupos de trabalho, um caso singular é discutido a cada semana, definindo a direção da intervenção, que pode ser feita “sem todos os elementos de um caso e com algumas pessoas que não conhecem nada da criança” (Stevens, 2005, p. 29). Stevens (2005) esclarece que não se almeja fazer uma síntese de diferentes especialismos técnicos a fim de direcionar as ações, mas à construção do caso, um a um, tal como na clínica psicanalítica. Além disso, seminários de estudo, ateliês de leitura de textos de Lacan4, seminários clínicos e apresentações de pacientes são alguns dos dispositivos de formação do Courtil.

Se o lugar do psicanalista é a superfície, esse lugar êxtimo (Lacan, 2006) que está ao mesmo tempo fora e intimamente dentro, qual é olugar para a estagiária? A estagiária é uma analisante civilizada de passagem, à deriva. Primeiro, de passagem porque ela não se estabelece, segue na errância, transita entre grupos do Courtil, tenta firmar uma rotina, que é sempre provisória: “Vai levar um tempo até que as crianças não te percebam mais como um móvel da sala” (comunicação pessoal), disse-me minha supervisora. À deriva, então, porque o Courtil, as crianças e a equipe estavam ali antes da sua chegada, e ali permanecerão após sua partida. Não é o Courtil que está ali para ensiná-la como fazer, mesmo porque o saber psicanalítico só se dá no après-coup, é uma constante experimentação, mas é ela que está ali para aprender. A dinâmica da instituição é incorporada, absorvida quase que intuitivamente: aprende-se o estilo de cada interventor e de cada equipe ao mesmo tempo que se constrói seu próprio estilo, seus horários, os ateliês dos quais gostaria de participar e, sobretudo, aprende-se sobre a singularidade de cada criança no convívio cotidiano com cada uma.

Di Ciaccia (2005) diz que a primeira condição da prática entre vários é justamente assumir uma autoria pelo próprio estilo,

se portar em nome próprio, com o próprio estilo, com as próprias capacidades, sabendo pôr em jogo a própria imagem, a própria presença e a própria ausência, os próprios interesses, a própria relação teatral com a vida, com o corpo e o desejo próprios. (p. 47)

Essa condição se impõe como barreira para os estagiários do Courtil: assumir a primeira pessoa e a própria responsabilidade, sem se dirigir a um interventor, tomado como suposto saber, a cada vez que uma criança se dirige a nós. Assim, no início, sentia-me aterrorizada na presença de uma criança comigo na ausência de um interventor, recusava-me a me autorizar em meus atos, a iniciar uma brincadeira ou a fazer uma interdição à criança, sem perceber que assim deixava-a livre para se perder em seu gozo mortífero: como Victor, que se põe a arremessar livros que estavam sobre a mesa, depois a mesa, depois as cadeiras... E eu, paralisada, sinto-me incapaz de contê-lo em sua jubilação e solicito a presença da interventora. Aos poucos, descobri meu estilo no Courtil: atenta aos detalhes, oferecendo minha presença e minha ausência livre de demandas, e adepta de uma teatralidade que descobri poder expressar no semblante da estrangeira.

É só partilhando a experiência da temporalidade comMax, por exemplo, durante um trajeto de carro até a cidade para o ateliê de fotografias, que se aprende como é necessário para ele estabelecer marcos que dimensionem o real do tempo, quando ele me pede para acionar o cronômetro e propõe ao motorista que chegue ao destino em menos de trinta minutos. Da mesma forma, é só quando sou solicitada por Thor para “fazer consertos” na sala de brinquedos com ele que percebo que, para ele, é mais importante fazer semblante de operário, jardineiro ou engenheiro, do que a atividade que se executa: “Vamos! Continue! Temos muito trabalho pela frente! Não terminamos!” (comunicação pessoal). Esse saber não é ensinado na chegada, nem está registrado nos dossiês de cada criança.

O que fazer? Como se inserir na dinâmica institucional? Como me vincular às crianças? Como intervir, se devo intervir? “No meu primeiro dia, senti-me como um legume, imóvel e inanimado” (comunicação pessoal), disse-me uma estagiária. “Você deve fazer alguma coisa, não pode ficar aí parada, observando!” (comunicação pessoal). Esse foi o único direcionamento que a interventora me deu no primeiro dia de estágio, sem nunca delimitar o que poderia ser esse alguma coisa – foi preciso inventar e reinventar, constantemente. Circular, cantarolar, desenhar, preencher o vazio insuportável com linguagem: no Courtil, o estagiário é pura intensidade e movimento.

Por outro lado, para as crianças o estagiário no Courtil assume o lugar do objeto, do seu objeto. É a criança quemdetém um saber sobre o estagiário e o coloca em ação, usando-lhe: pede para que o estagiário abra as portas que não são autorizadas (o estagiário recebe um molho de chaves na sua chegada), riem dos nossos erros e incompreensões, e se irritam quando assumimos que não compreendemos, ou que não sabemos (Marraccini, 2012). Contudo, é justamente por se configurar como um elemento estranho e errante que os estagiários se tornam objeto de interesse para as crianças, abrindo-se a possibilidade de estabelecer um vínculo entre eles. O objeto, então, não é um objeto a serviço da criança, que a autoriza em sua pulsão, mas antes um semblante que barra o gozo mortífero e abre para ela a possibilidade de transformação (Marraccini, 2012).

Outras crianças sentem-se atormentadas pela presença do estagiário (Marraccini, 2012). O silêncio da observação e da habituação inicial podem ser insuportáveis e demasiadamente enigmáticos para outros, causando uma rejeição violenta a esse outro intrusivo. Foi assim no meu primeiro encontro com Victor: seu sorriso cativo e seu olhar difuso me capturaram de tal modo que não conseguia parar de observá-lo. Não demorou muito para que ele se levantasse da mesa e, em um só golpe, se dirigisse até mim, arrancando os óculos dos meus olhos e tapeando minha face, como se dissesse: quem é essa? O que ela faz aqui? Será que ela está aqui para gozar de mim?

Era preciso questionar, e não supor um a priori. Acima de tudo, foi preciso sair da posição estagiária, porque na prática entre vários a estagiária é também um-vários, um entre-iguais: participa das reuniões de equipe, das atividades cotidianas, dos estudos de caso e é convocada à ação, ainda que com menos responsabilidades e maior liberdade do que os interventores.

No Courtil, o ensino de Lacan tornou-se para mim palavra viva: vi o Real na expressão facial de Asif, o gozo nas estereotipias de Victor, o objeto a nas eleições de objeto de Thor. Pude experimentar o trabalho com a singularidade. Essa experiência veio em momento oportuno, se considerarmos que na última década a psicanálise tem sido interpelada por vários discursos, sobretudo pelo discurso da ciência, a respeito dessa orientação um a um de sua prática5.

Foi assim, por exemplo, na reunião de equipe em que foi colocado em questão o caso de Joe e sua relação com seus óculos de grau: Joe gostava de usar os óculos, desde que lhe arrancasse as lentes. A construção de hipóteses para trabalhar com o caso de Joe se fazia com base nessa singularidade: será que Joe não vê demais com os óculos? Será que a armação dos óculos não constitui, para ele, uma borda no olhar? Será que os óculos não estão próximos demais dele, portanto insuportáveis, já que colados ao seu corpo? Não era a mesma relação de Jean com seus óculos: Jean suportava ver o mundo através das lentes, desde que fosse para fazer as tarefas da escola.

É nesse ponto que a psicanálise fricciona a instituição, ao subverter sua dinâmica, substituindo a universalidade pela ética do singular: “a psicanálise subverte as relações que o sujeito sustenta com seus ideais. Enquanto a instituição fornece à estrutura um valor universal, válido para todos, a ética analítica faz valer o particular, o mais singular do caso” (Stevens, 2005, p. 28). Dito de outro modo, a singularidade que orienta a ética da psicanálise é confrontada à universalidade dos valores que orientam a instituição, que geralmente buscam a cura, a melhora e o bem do paciente (Stevens, 2005).

Isso não quer dizer que a psicanálise deseje o mal, mas também não significa que ela deseje o bem: ela simplesmente suporta a demanda, acolhe o outro naquilo que ele é, sem desejar nada: “não estamos aqui para amar” (comunicação pessoal), diz-me a supervisora. Péra-Guillot (2003) utiliza-se da feliz expressão “suportar não querer o bem” para definir o lugar do analista diante da ideia do bem-estar. Ademais, acolher o outro em sua singularidade, livre de demandas, é também considerar que o trabalho com a psicose se guia pelas possibilidades dessa estrutura, seja por meio da elaboração de um delírio pela vertente paranoica, seja pela construção de um eu imaginário pela vertente esquizofrênica (Stevens, 2005), mas não uma responsabilização do sujeito por seu desejo, como é a visada do trabalho com a neurose.

 

2. “Tu n'as pas les yeux dans les trous” [“Você não está com os olhos nos buracos”]

Às quintas-feiras, fazíamos nossa tradicional soirée na hotelaria do Courtil, um espaço de hospedagem com quartos individuais e banheiros coletivos colocados à disposição dos estagiários, já que a pequena cidade de Leers-Nord é ligeiramente distante de grandes centros, e as longas jornadas de trabalho – entre dez e doze horas diárias – dos estagiários dificultam o ir e vir todos os dias. Essa confraternização era o momento em que aqueles que desejavam, entre estagiários e interventores, compartilhavam suas experiências de vida. Ainda que não fosse o objetivo do encontro, considerávamos esse um momento importante de elaboração clínica. Assim, em um desses bons encontros, eu tentava explicar aos estagiários belgas e franceses que, apesar de gramaticalmente a língua francesa não ser um empecilho para mim, algo da ordem da espontaneidade e da leveza que o trabalho com crianças pede se perdia no meu estrangeirismo.

Eles decidiram me ensinar algumas expressões belgas, familiarizando-me com uma linguagem corriqueira. Eis que surge a expressão: Tu n'as pas les yeux dans les trous [Você não está com os olhos nos buracos], quer dizer, você não está bem colocada, você quer ver, mas os olhos não estão mirando nos buracos... Era isso. Não era nos buracos que eu não estava olhando, nos trous... Não seriam os furos?

O estagiário, no Courtil, é esse lugar do furo. Ele é incompleto, desconhece a instituição, os horários, os nomes, as regras e é exatamente dessas fendas que ele faz uso para fazer laço: é o não-todo6 do estagiário que permite suplantar o furo da língua, por exemplo, pela presença de corpo, pela mímica, pelos gestos e pelos desenhos que visam alcançar lá onde a palavra foi sequestrada (Marraccini, 2012). Assumir o lugar do “saber não saber” era renunciar ao desejo de ser toda, de saber qual chave abriria qual porta, de ler os dossiês completos de cada criança, de se vincular a todas e a cada uma delas: ter os olhos nos buracos era ter que testar, experimentar a cada vez, qual chave caberia naquela fechadura, contando com a possibilidade de que a porta pudesse permanecer fechada.

2.1. Estrangeira

Comecei a me questionar sobre meu estrangeirismo. Com efeito, éramos todos estrangeiros, se considerarmos que o estrangeiro é aquele que não é do “pedaço”. Nenhum de nós, estagiários, éramos do pedaço... Mas estrangeiros a quê, ou a quem?

Lembrei-me da lição de Lacan no trabalho com as psicoses: “comecem por não crer que vocês compreendem. Partam da ideia do mal entendido fundamental. Aí está uma disposição primeira, na falta da qual não há verdadeiramente nenhuma razão para que vocês compreendam tudo e não importa o quê” (Lacan, 1981, p. 30). Não se esforçar para compreender, já que a compreensão é uma miragem, é inapreensível.

Se o equívoco fundamental da língua tolhia minha espontaneidade, “cante em português, reaja em português, comunique em português” (comunicação pessoal), disse-me a supervisora. O estrangeiro deve se impor como alteridade radical, não procurar se imiscuir no outro, não ser intrusivo, não querer tomar como seu o que é do outro: no Courtil, cada um com sua singularidade, “son truc”, dizíamos em francês: o truc de Sophie era o aparelho dentário, o de Thor, o latido do cão, o de Elsa, as cadeiras de rodas e máscaras de oxigênio, o de Henry, os caminhões Scania. É a partir do truc que cada um poderia produzir sua invenção sintomática, que lhe permitiria se estabilizar e produzir sua própria solução (Stevens, 2012). O estrangeiro não deve se colar ao outro, como um duplo... Tive que sair em busca do meu próprio truc.

2.2. Semblante

Chego à supervisão da terça-feira relatando meu sentimento de impotência diante das crianças, minha incapacidade em contê-las, minha condição de objeto. Exemplifico: Alicia disse-me para abrir o banheiro, ela precisava fazer suas necessidades, e assim eu a acompanhei. Quando tento fechar a porta, Sophie, que me desafiava constantemente, se coloca entre mim e a porta, usa de toda sua força para entrar com Alicia no banheiro. Eu insisto, dirijo-lhe a palavra: Sophie, não é você quem quer ir ao banheiro, é Alicia. Deixe-me fechar a porta! Ela me leva ao limite, grita, insiste que quer ir ao banheiro com Alicia (quer ser Alicia), é tomada no discurso do outro e, naquele instante em que não havia sujeito, coloca-me na posição do dejeto.

A supervisora me orienta: “é preciso que haja um distanciamento entre o que você quer dizer, e o que de fato diz. Um distanciamento de si mesma, que vai ajudá-la a não entrar no limite: é preciso ser um pouco teatral, fazer semblante” (comunicação pessoal). Não assumir sozinha o lugar do sujeito da enunciação, mas antes permitir que a fala circule, sem se dirigir ao real da criança, ainda que tenha que se referir a um terceiro ausente: “Veja você, interventora (ausente), como Sophie se perdeu em Alicia! Ela acredita ser Alicia e, então, acredita que quer ir ao banheiro, mas não... é Alicia quem quer ir ao banheiro, não Sophie!”

Assumir o estilo do fazer semblante, ou seja, trocar um pouco a realidade pela ficção, pela brincadeira e pela teatralidade, foi encontrar o meu truc. O meu semblante era o da estrangeira, e eu não deveria fazer nada para me livrar dele, ao contrário, deveria alimentá-lo, brincar com ele: “ela não é daqui! Olha, como é engraçado o sotaque dela!” O que me incomodava de início foi o que me permitiu criar vínculo com algumas crianças, suscitando seu interesse quando eu lhes contava sobre esse mundo distante do qual eu vinha, como era bonita a ilha em que eu vivia, como soavam esquisitas as palavras em francês para mim!

Para Di Ciaccia (2005), “A experiência ensina que mesmo a criança autista e psicótica pode entender a fala pela via do semblante, sob a condição de que, inicialmente, a escorva da potência mortífera de sua vertente real seja desativada” (p. 40). Nessa mesma direção é que Véronique Mariage, diretora terapêutica do grupo La demi-clé, coordenava às sextas-feiras o ateliê Semblante.

Os ateliês no Courtil são espaços de invenção e de elaboração, orientados pela criatividade dos interventores que os conduzem livremente. As condições para que haja um ateliê são simples: é preciso ter um nome (ateliê de cozinha, ateliê criação, ateliê fazendinha, ateliê fotografia etc.), um ou dois interventores para conduzi-lo e um objeto de uso, mas sem objetivo delimitado (Stevens, 2012).

Assim, o ateliê de cozinha não visa o aprendizado da culinária. No ateliê de cozinha, Victor se interessava em jogar um punhado de farinha sobre seu corpo, assisti-la se esvanecer no espaço como pequenos flocos de neve, que constituíam borda ao seu corpo e consistência ao espaço, enquanto Raphael usava o ateliê de cozinha para dar a forma de seu próprio corpo a um montante de farinha em uma vasilha, e Max cozinhava pães com gotas de chocolate. A finalidade do Courtil não é pedagógica ou normativa, mas antes proporcionar espaços de criação (Stevens, 2012).

O ateliê Semblante, por sua vez, era ligeiramente distinto. Ele tinha um objetivo mais ou menos delimitado, que era permitir às crianças ingressar na dimensão do semblante, do jogo, tornando as palavras menos reais (Stevens, 2012). No ateliê Semblante, pela construção de narrativas e sua encenação, o real é temporariamente velado, tornando a vida mais suportável. É como o caso deWally, que precisa estar fantasiado ou mascarado para que o sujeito possa emergir. No ateliê Semblante, durante a encenação, o interventor brinca com Wally, que se esconde atrás da porta, e pergunta-lhe: “Tem alguém aí? [Il y a quelqu'un?]”, e Wally responde: “Tem, ninguém! [Il y a personne!]”, pois é ao se ausentar no semblante que ele pode, enfim, estar presente.

2.3. A despedida

Eis que numa sexta-feira gelada do inverno belga, chego ao fim do meu estágio. Eu já vinha anunciando para as crianças a minha partida de volta para o Brasil ao final daquela semana. Max me pediu para que eu o filmasse lançando aviões de papel (o avião que eu pegaria em poucos dias), Jack insistiu para que eu comprasse sua passagem de avião também, Henry me deu um abraço um pouco constrangido, Elsa me pediu um desenho para colar na parede do seu grupo, Joe reproduziu a versão original da canção que costumávamos parodiar juntos, e Sophie festejou a minha partida.

Meu último dia no Courtil foi marcado por um acontecimento de corpo, um arrepio na espinha dorsal ao ver o sorriso de Asif se abrir enquanto pulava numa cama elástica, quem eu costumava ver chorando em seus frequentes encontros com o Real. Parti com a certeza de que o Courtil, pela liberdade dada à invenção singular de cada um, cria lugares de vida.

 

Considerações finais

A distinção entre psicanálise aplicada, exercida no contexto “extramuros” das instituições, e a psicanálise “pura” que se exerce entre os muros do consultório perde sua consistência quando se considera que o discurso analítico pode e deve transitar entre diferentes espaços, orientado pela ética psicanalítica e pelo esvaziamento do lugar do saber. “Uma psicanálise, padrão ou não, é o tratamento que se espera de um psicanalista”, diz Lacan (1955/1998, p. 331).

Dito de outro modo, independente do que se faça, ou de onde se faça (no consultório ou no jardim, na beira do canal, na fronteira entre Bélgica e França, ou no Brasil), é preciso que os efeitos de tal ou qual ato ou acontecimento discursivo indiquem que ali operou um psicanalista. É a partir dessa lógica que a psicanálise irriga a prática cotidiana do Courtil, pelo trabalho entre vários, sem perder de vista o tripé análise-supervisão-ensino teórico. Por último, como estagiária do Courtil, entre erros e acertos, fui desafiada cotidianamente a sustentar meu desejo pela psicanálise e o desejo de estar ali, na alternância entre presença e ausência que se fazem agora memória viva na superfície da pele.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
leticiaviermachado@gmail.com
Rua Joaquim Nabuco, 120/62
87014-100 – Maringá – PR – Brasil.

Recebido em março/2016.
Aceito em abril/2016.

 

 

NOTAS

1. "Estar no discurso quer dizer, mesmo que não se saiba disso, saber se virar com os diversos laços sociais que se instauram entre os seres falantes". (Di Ciaccia, 2005, p. 34)

2. No francês, "intervenants". Petri (2003, p. 94) sugere a tradução para o português como "interventor", esclarecendo que, no contexto, o termo não carrega as mesmas significações políticas e jurídicas que pode adquirir em outros contextos. Além disso, os princípios da prática entre vários destituem os praticantes de seus especialismos, colocando-os em pé de igualdade sob o significante "intervenant", que significa "aquele que intervém".

3. Os nomes de todas as crianças citadas no texto são fictícios, a fim de preservar sua identidade.

4. O objetivo desses ateliês, intitulados "Première lecture" [Primeira leitura], é de elucidar pontos da teoria de Lacan que, por diversas razões, não constituem uma doutrina propriamente dita em seu conjunto.

5. Foi assim que em 2012, na França, proclamou-se o ano do autismo como grande causa nacional. O tratamento psicanalítico do autismo na França passou a ser questionado nas associações de pais de autistas, tendo como estopim o lançamento do documentário Le mur, dirigido por Sophie Robert (Saget, 2012). No mesmo ano, um relatório da Haute Autorité de Santé (HAS) havia condenado as abordagens psicanalíticas por falta de dados sobre sua eficácia, baseada na metodologia da medicina fundada em evidências. A iniciativa da HAS deu origem ao projeto de lei do deputado Daniel Fasquelle, que visava "proibir as práticas psicanalíticas no acompanhamento de pessoas autistas, a generalização dos métodos educativos e comportamentais e a realocação de todos os financiamentos existentes para esses métodos" (França, 2012).

6. A expressão "não-toda", criada por Lacan, é propositalmente paradoxal. Expressa a necessária condição do sujeito dividido – entre consciente e inconsciente, entre real e imaginário. O sujeito é um ser-entre, que se coloca a meio caminho dos significantes que o representam ao mesmo tempo que escapa à possibilidade de representação. Logo, é, mas não inteiramente: "ser não-todo remete, no fundo, a não-ser! Ser-entre, assim, é ser e não-ser!" (Jorge, 2008, p. 99).

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