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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.21 no.2 São Paulo Aug. 2016

http://dx.doi.org/http//dx.doi.org/0.11606/issn.1981-1624.v21i2p264-281 

DOI: http//dx.doi.org/0.11606/issn.1981-1624.v21i2p264-281

ARTIGO

 

Luto fetal: a interrupção de uma promessa

 

Fetal grief: interruption of a promise

 

Luto fetal: la interrupción de una promesa

 

 

Helena Carneiro AguiarI; Sílvia ZornigII

IMestranda em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro, RJ, Brasil
IIPsicanalista. Membro da World Association for Infant Mental Health. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e coordenadora do curso de especialização em Psicologia Clínica com Crianças da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo se propõe a pensar sobre o trabalho subsequente à perda fetal, à luz da teoria psicanalítica. Compreendemos que esse luto contém particularidades importantes, tais como o não reconhecimento do entorno e o estatuto confuso do objeto perdido, comportando tanto um componente narcísico como um componente objetal. Refletiremos sobre algumas questões que surgem como obstáculos ao trabalho de luto e à introjeção da experiência vivida. Apontaremos como a melancolia pode, com frequência, constituir uma reação à perda fetal, aprisionando o sujeito numa busca incessante para recuperar o objeto perdido. Utilizaremos fragmentos clínicos a fim de ilustrar as questões apontadas.

Descritores: luto fetal; trabalho de luto; melancolia; psicanálise.


ABSTRACT

This article discusses the psychoanalytic work carried out after fetal death in the light of psychoanalytic theory. This particular form of grief includes important characteristics, such as the non-recognition of the surroundings and confusion concerning the lost object, comprising both a narcissistic and an object component. A few issues regarding the mourning and the internalization of the experience are discussed. We point out how melancholy can often be a response to fetal loss, imprisoning the subject into a relentless quest to regain the lost object. These issues are illustrated by clinical case studies.

Index terms: fetal grief; grief work; melancholy; psychoanalysis.


RESUMEN

En este texto se propone a reflexionar sobre el trabajo posterior a la pérdida fetal, a la luz de la teoría psicoanalítica. Entendemos que ese luto contiene pormenores importantes, como la falta de reconocimiento de los alrededores y la confusa condición del objeto perdido, que comprende tanto un componente narcisista como un componente del objeto. Vamos a plantear algunas cuestiones que se ponen como obstáculos para el trabajo de luto y la interiorización de la experiencia vivida. Vamos a apuntar como la melancolía puede con frecuencia ser una respuesta a la pérdida fetal, al encarcelar al sujeto en una incesante búsqueda para recuperar el objeto perdido. Vamos a utilizar fragmentos clínicos con el fin de ejemplificar las cuestiones planteadas.

Palabras clave: luto fetal; trabajo de luto; melancolía; psicoanálisis.


 

 

Vida e morte sobrepostas – o óbito fetal1

A representação que temos de nossa existência é que nascemos, envelhecemos e morremos. Contudo, essa lógica é, às vezes, totalmente inversa. Bebês ainda no útero materno podem sofrer uma interrupção de seus impulsos de vida, lançando seus pais na incompreensão. A morte invade as maternidades e espaços onde não costuma, normalmente, ser pensada. E, parece­nos inevitável que vá exigir um trabalho de elaboração psíquica bastante singular, pois a representação do bebê que não nasceu vivo certamente apresentará dificuldades de se encaixar em nossas representações usuais.

Refletiremos especialmente sobre o trabalho que se instaura no psiquismo dos pais após uma perda fetal. Utilizamos a definição do Manual de Vigilância do Óbito Infantil e Fetal e do Comitê de Prevenção do Óbito Infantil e Fetal (2009) para óbito fetal: “óbito intra­útero, ocorrido a partir da 22a semana completa de gestação, ou com peso igual ou superior a 500g, até o momento do parto”.

Para ser considerado um óbito fetal a morte deve ocorrer antes da expulsão ou de sua extração completa do corpo materno. Antes da vigésima segunda semana de gestação se o feto morre considera­se que houve um aborto espontâneo, o que certamente também implicará vivências específicas que poderão ser estudadas em oportunidades posteriores. Da mesma forma ocorre com bebês que morrem pouco depois de seu nascimento.

A morte de um filho é geralmente vista como um dos mais dolorosos acontecimentos que podem ocorrer a uma pessoa. No entanto, quando falamos em perdas de bebês intraútero observamos certas particularidades. A rede social, que cerca os pais que sofreram a perda, tem dificuldades de compreender a dor que estão sentindo, pois para eles é como se o bebê nunca tivesse existido. Espera­se um período de tristeza, mas normalmente não se atribui o mesmo status de morte de filho. Usualmente escutamos frases como “O tempo vai curar” e “Vocês ainda são novos, poderão ter outros filhos”. Frases como essas mostram como a tendência é uma subestimação ou descaracterização do fato. O não reconhecimento por parte do entorno pode ser muito prejudicial aos psiquismos desses pais, podendo, inclusive, pesar para uma resposta patológica perante a morte do filho.

Após o parto de um natimorto, equipe de saúde, família e amigos tendem a privar os pais, especialmente a mãe, de entender, sofrer e elaborar o luto. Kennell e Klaus (1992) afirmam que quando um bebê morre, geralmente elimina­se rapidamente qualquer evidência da morte, o que torna sua comprovação ainda mais árdua de ser reconhecida e elaborada. Raramente instituições hospitalares oferecem práticas que possibilitem que pais e familiares possam se expressar e vivenciar livremente os sentimentos de luto. Não se costuma incentivar os pais a verem o bebê, nem mesmo a falar sobre o que aconteceu. Normalmente, após um óbito fetal, os pais podem contar com poucas recordações do filho, provocando com frequência uma sensação de irrealidade e vazio. Também observamos ser comum que outros familiares desmanchem o quarto do bebê e se desfaçam de pertences que já tinham sido adquiridos. Dessa forma, os pais (especialmente a mãe) são privados de um importante ritual, possivelmente aumentando ainda mais a solidão experimentada. Há um temor de que os poucos traços que o bebê deixou possam ser apagados.

 

Caso Ana

Ana, uma mulher que sofreu uma perda gestacional aos oitos meses de gestação, procurou terapia meses depois da perda, sem, no entanto, relacionar essa busca de ajuda à morte da filha. Acreditava que tinha aceitado essa perda, pois voltara ao trabalho logo em seguida e vinha conseguido realizar seus compromissos. No entanto, sentia­se diferente e mais distante de seus familiares, mesmo do marido. Ana pediu para amigas próximas no trabalho para que orientassem aos demais a não tocarem no assunto da filha com ela. E assim se estabeleceu um “pacto de silêncio”.

Ana dizia que, de verdade, praticamente não pensava mais sobre isso, queria continuar a viver como se nada tivesse acontecido. Sentia como se tudo tivesse sido um sonho. Disse que todas as roupinhas que havia comprado haviam sumido. O quarto rosa foi pintado de bege. Lembrava­se de roupas que havia comprado, de enfeites para o quarto, do quanto havia pesquisado sobre o carrinho ideal, da quantidade de fraldas que havia ganhado, tudo subitamente apagado. Em terapia, após muito trabalho e muitas lágrimas, não conseguia compreender como tinha ficado calada diante de tamanha violência, na verdade questionava­se como jamais tinha pensado nisso como uma violência.

Tal como aconteceu com Ana, é fre­c quente que amigos e familiares não falem sobre a perda e com o tempo acabem por pressionar essas mulheres a retomarem rapidamente sua vida. As próprias leis trabalhistas corroboram essa urgência a voltar “a vida normal”, estabelecendo apenas um período de duas semanas de afastamento das atividades laborais após uma morte fetal. Os pais não dispõem de espaços, nem de tempo para dividir efetivamente sua dor por seu bebê morto, já que, para a maioria, ele nem chegou a existir.

A dificuldade em lidar com esse óbito afeta todos os envolvidos, especialmente a mãe, o pai, o casal, e quando existem, irmãos e avós. Esses não são, no entanto, os únicos personagens envolvidos nesse drama: a participação dos cuidadores implicados é crucial no impacto do trabalho de luto. Soubieux (2015) afirma que o reconhecimento e elaboração dessa implicação em um espaço reflexivo são essenciais. Tanto em nossa sociedade como durante a formação de diferentes profissionais de saúde, a medicina é colocada como um instrumento de adiamento da morte. Cabe aos médicos e aos demais profissionais de saúde usar toda a tecnologia disponível para tentar impedi­la. Quando esse resultado não é atingido e a doença

agrava, a morte expõe o “fracasso” desses profissionais. Acreditamos que a questão de enfrentamento da morte se torna ainda mais difícil quando relacionada ao início da vida, com vidas que deveriam estar começando. E é diante dessa sensação de fracasso e exposição que os profissionais estarão ao enfrentar a morte de um bebê.

 

Caso Mariana e Félix

O casal vivia uma gestação com muita alegria e envolvimento até, em um exame de ultrassonografia ao final da gravidez, o médico não pôde escutar os batimentos cardíacos do bebê, sendo constatada a morte fetal. Foi indicada uma cesariana de emergência e os pais muito abalados foram ao hospital encontrar com o obstetra que vinha lhes acompanhando. O médico manteve a cabeça baixa, dizendo apenas que “isso é mais frequente do que podemos imaginar”.

Diante do choro desesperado de Mariana e soluços sufocados de Félix, a equipe de saúde começou a atendê­los, explicando que seria mais apropriado que o pai não participasse da cirurgia, pois seria muito difícil para ele. Também foi explicado que Mariana seria sedada, pois estava muito nervosa e isso poderia ser muito prejudicial para ela, que ela precisava ser forte. Mariana, em seu desespero, ainda tentou pedir a presença do marido, mas não tinha forças para argumentar e logo a anestesia começou a fazer efeito e nada mais se lembrava. Quando acordou, estava tudo “limpo”, nada que pudesse fazer referência à existência de seu bebê. Logo pôde ver seu marido e sua mãe, que a seu lado lhe confortaram e lhe disseram que “tudo estava resolvido e que tudo ficaria bem”. Não houve um momento posterior com o médico para que pudessem entender o que havia acontecido.

Infelizmente, casos como esse são comuns e mostram não só o sofrimento do profissional como um despreparo e uma tendência a escamotear o verdadeiro sentido da perda. Sedar a mãe e tirar o pai da cena diminuem o sofrimento dos profissionais: sem o desespero dos pais poderão trabalhar mais tranquilos, sentindo-se menos expostos em sua fragilidade. Dificilmente há uma reflexão sobre o que experienciaram, e, assim, pouco podem contribuir efetivamente com as famílias envolvidas em perdas. Os profissionais de saúde, com suas condutas diante da mortem, podem dificultar a instalação do processo de luto dos pais.

Mariana e Félix puderam dispor de pouquíssimos resquícios de seu bebê para iniciar seu processo de luto. Quando Mariana fala que tudo estava “limpo”, referia­se à falta de algo que marcasse a existência de seu filho. Podemos pensar o quão difícil foi para esses pais iniciar seu trabalho de luto diante de uma perda não vista, não nomeada, não lembrada.

Por maior que seja o sofrimento nesse momento, podemos pensar que seria desejável que houvesse tido uma explicação para a morte, que os pais pudessem compreender as etapas de tudo o que ocorreu, que pudessem ter participado das decisões da escolha do tipo de parto que teriam, ainda que com o bebê morto, que pudessem ter visto seu bebê e escolhido se quisessem tê­lo segurado no colo ou lhe vestido.

Lewis (1979) enfatiza a importância de se estabelecer a identidade do natimorto e nos lembra que uma morte sem um corpo (que não tenha sido visto por seus pais) parece irreal. O luto após o nascimento de um bebê morto não conta com experiências a serem relembradas após o parto, sendo privadas de lembranças necessárias para a entrada no trabalho de luto. Esses pais são invadidos por um senso de não existência, que supomos ser ainda maior em mulheres que estão maciçamente sedadas durante o parto.

 

Interrupção da promessa

O nascimento de qualquer bebê já configura um momento de crise e traz consigo a necessidade de um trabalho de alguns lutos. Acreditamos que diante da crise existencial que a gravidez convoca, a perda de um bebê nesse cenário aumentará desmedidamente a intensidade dessa crise e, portanto, exigirá remanejamentos ainda mais complexos. Soubieux e Caillaud (2015) indicam que a morte e a passagem por um terrível momento de crise e de perturbação da identidade, multiplicam ao infinito os efeitos conhecidos do pós-parto, configurando um verdadeiro traumatismo.

Lewis (1979) observou que após o parto de um natimorto, a mãe experimenta um senso duplo de perda. O vazio é experimentado, naturalmente pelas mães após o parto, mesmo com o nascimento de uma criança viva. Mas a sensação de perda é consolada pelo bebê real que vai lhe ajudar a superar a estranheza de perder seu bebê de dentro.

Com o natimorto, no entanto, a mãe deverá lidar com um vazio tanto interno quanto externo. Esse vazio se instaura nesse delicado momento existencial, no qual o narcisismo dos pais é convocado à cena, alimentado pela esperança de rever feridas narcísicas de um tempo inicial em suas histórias. Porém, ao mesmo tempo que o filho traz consigo expectativas de reparar falhas da história parental, provoca também a reativação de fantasmas edípicos. Assim, é comum que o pai se sinta excluído da díade mãe­bebê e vivencie o bebê como um rival, reativando sua própria vivência infantil de se sentir excluído da relação dos pais, ou que a mãe se sinta inadequada na função materna por não conseguir abrir mão de um modelo idealizado (Zornig, 2010).

Se a ambivalência está presente durante todo o tempo da gravidez, o nascimento sem problema “renarcisa” a mãe ao lhe oferecer um bebê saudável que a tranquiliza e a gratifica (Mathelin, 1999). No entanto, diante de um bebê nascido morto, a mãe não encontra algo que lhe conforte, que lhe mostre que seus sentimentos hostis não prejudicaram seu bebê. Ao contrário, a realidade reencontra seus medos e fantasmas.

 

Caso Bárbara e Matheus

Em uma maternidade, fomos chamadas a atender um casal que acabara de constatar a morte de seu filho durante uma consulta na emergência. Diante de muito sofrimento e choros descontrolados, Bárbara não parava de culpar­se pelo ocorrido. Culpava­se por não ter reduzido sua carga de trabalho, de ter usado salto­altos, de não ter marcado uma nutricionista. Matheus, seu marido permanecia a seu lado, tentando lhe dar suporte.

Bárbara precisou ser internada para se submeter ao parto, sendo necessário que ela permanecesse no hospital por quinze dias para um tratamento com antibióticos. Nesse período, Bárbara continuou a ser atendida pelo serviço de psicologia e pôde começar a falar um pouco sobre seus fantasmas. Diz que adiou muito o desejo da maternidade, pois tinha medo de perder seu espaço na empresa onde trabalha. Relata que mesmo tendo ficado mais de um ano tentando engravidar, quando descobriu a gravidez ficou muito assustada e chegou a pensar que seria melhor não ter engravidado. Achava que esse sentimento poderia ter prejudicado seu bebê.

Outra fala que marcava sua ambivalência e a fazia sentir culpada foi a descoberta do sexo do bebê. Bárbara e Matheus sempre quiseram um filho homem e na ultrassonografia decepcionaram­se a descobrirem que seria uma menina. Tinha medo de que a filha tenha se sentido rejeitada.

Esse casal, ao viver a morte de sua filha, reencontrou seus medos e fantasias hostis em relação a ela. Não tiveram reafirmada sua capacidade de fazer viver a filha e lhes compensar narcisicamente. Seus sonhos e suas ilusões depararam com a violência da realidade. A morte veio sinalizar o fracasso e a impotência desses pais. Mathelin (1999) afirma que o bebê deixa a mãe sozinha diante de sua angústia, ele falta ao encontro da reparação.

O encontro com o filho real requer o abandono das representações idealizadas. Segundo Stern (1997) após o nascimento a mãe começaria a reconstruir essas expectativas baseadas no que lhe é oferecido pelo bebê real. Nos casos de óbito fetal, o contato com o bebê real só pôde ser vislumbrado nas ultrassonografias, não tendo ocorrido efetivamente um contato com o bebê real – o que aumenta a dificuldade da elaboração do luto do filho imaginário. Uma situação contraditória é evocada entre o intenso investimento psíquico do feto durante a gravidez e o imediato desinvestimento que é imposto após o anúncio da morte.

O óbito fetal ocorre justamente no momento em que estão sendo traçadas as primeiras formas de relacionamento entre a mãe e o bebê – portanto, um período de oscilação de dimensões de indiferenciação e de diferenciação. Por isso, acreditamos que o óbito nesse período é potencialmente problemático e tende a ser vivido como traumático, uma vez que o objeto de amor perdido não está firmemente reconhecido enquanto um objeto real. O que é perdido é um objeto virtual, uma relação de objeto virtual, vivida com muita ambivalência.

Missonnier (2004) apresenta o conceito de objeto virtual, que muito nos vem esclarecer o que se passa nesse momento, já que o que ocorre é uma relação com um objeto que, por não poder ainda ser considerado real, é marcado por uma virtualidade. O feto ainda não configura um objeto distinto da mãe, mas já aponta para a possibilidade de vir a ser. Antes de sua concepção a criança existe em potencial para seus futuros pais, o feto surge como uma promessa da criança que virá.

Nesse contexto, a relação entre os pais e o bebê durante a gestação é marcada pela virtualidade, ou seja, pelas projeções dos pais, expectativas e sonhos. Essa virtualidade é, contudo, também atravessada por algo do bebê, que, aos poucos, dá sinais de algo que lhe é próprio. Esse modo de relação particular é um processo dinâmico e adaptativo que envolve comportamentos, afetos e representações em torno do feto.

Quando o bebê morre nesse momento, a mãe é lançada num grande conflito, pois terá que se haver com suas identificações com a criança que foi (que foram convocadas) diante da interrupção da constituição de uma identidade parental. Angústias edipianas e de abandono estarão presentes sem que haja a compensação vinda da vinculação com o filho. A mulher não terá afirmada sua capacidade de manter a criança viva, não poderá investir no feto.

Refletimos, então, que a singularidade desse trabalho de luto comporta um duplo componente: narcísico e objetal. Fazer um luto do bebê é também fazer o luto de partes infantis de si mesmo, de conflitos não resolvidos, das relações idealizadas, fazer o luto de ser pai e de ser mãe diante da sociedade, fazer o luto de tudo o que foi projetado naquele bebê que não nasceu. O lugar do feto morto, no psiquismo dos pais, não será o mesmo em todos os casos. Os embriões e os fetos são para cada pai, cada casal, um objeto de investimento singular entre as polaridades de investimento narcísico (um prolongamento de si) e investimento objetal (uma criança estrangeira).

Cada família e cada história apresentarão suas particularidades e suas “bagagens” que irão predispor a rumos diferentes. Algumas mães, mesmo diante do conhecimento de uma má formação ou diante de uma ameaça de parto extremamente prematuro, poderão desenvolver a sensibilidade exacerbada para conseguirem se identificar com seu filho, já no final da gestação. Nesse caso, essas mães que atingirem o estado de preocupação materna primária estarão descentradas de si e identificadas com a fragilidade e dependência do filho. Suas próprias defesas estarão comprometidas e viver a morte do filho será algo extremamente penoso.

Winnicott (1956/1978) sinalizou que esse estado seria patológico em qualquer outro momento, fora dos últimos meses de gestação e primeiros dias do recém­nascido. Quando o bebê morre prematuramente, a mãe se vê obrigada a desligar­se desse estado bruscamente. Caso não consiga, sua saúde estará em risco.

 

Trabalho subsequente a perda do objeto de amor

No texto “Luto e melancolia” Freud (1917/1974) descreve o processo de luto como o trabalho subsequente à perda de um objeto de amor, uma reação diante da perda de um objeto querido. No luto, a perda do objeto provoca um desinteresse pelo mundo externo, com exceção dos que são relacionados ao objeto de amor perdido. Apenas os objetos que evocam o objeto perdido despertam interesse, dessa forma não será possível a escolha de um novo objeto de amor.

O trabalho de luto bem sucedido, segundo Freud, começa com o teste de realidade, a constatação de que houve a perda. Só através dessa constatação é que se pode conscientizar de que o objeto amado já não existe e, consequentemente, toda libido deverá ser retirada de suas ligações com esse objeto. No entanto, conforme observa Garcia­Roza (2004), a partir da leitura de Freud, “ninguém abandona de bom grado um objeto de amor, pelo menos de maneira imediata”. A exigência de retirar a libido das ligações com o objeto perdido provocará uma grande oposição, que só poderá ser superada pouco a pouco. Freud pontua que cada uma das lembranças e expectativas isoladas, através das quais a libido está vinculada ao objeto, deverá ser evocada e hipercatexizada, e o desligamento da libido se realizará em relação a cada uma delas. Quando o trabalho de luto se conclui, o ego ficará novamente livre para novos investimentos.

Freud (1917/1974) aponta que a melancolia também pode constituir uma reação à perda de um objeto amado. Mas na melancolia não se está claro o que foi perdido, como no luto. Freud afirma que “mesmo que o paciente esteja cônscio da perda que deu origem a sua melancolia, mas apenas no sentido de que sabe quem ele perdeu, mas não o que perdeu nesse alguém” (Freud, 1917/1974, p. 277). Mostra­nos assim que a melancolia está relacionada a uma perda objetal retirada da consciência, desconhecida.

Outra diferença apontada por Freud entre a perda objetal que caracteriza o luto e a que caracteriza a melancolia é que no luto é o mundo exterior que perde o interesse, na melancolia é o próprio eu. O melanocólico se desvaloriza e se degrada, afetando diretamente sua autoestima. Na melancolia, em vez da libido investida no objeto perdido ter sido deslocada para outro objeto, foi recolhida para o eu e serve para estabelecer uma identificação no eu com o objeto abandonado. Portanto, o que no luto era uma perda de objeto, na melancolia transforma­se em uma perda do eu (Garcia­Roza, 2004). Freud define como uma sombra do objeto que cai sobre o ego.

No óbito fetal, faltam dados que comprovem não só a realidade da perda, mas da própria existência do bebê. Ele não chegou a nascer e, portanto, o teste de realidade fica bastante comprometido. Não há a revelação, por parte da realidade, que o objeto de amor não existe mais. Como vimos, o objeto perdido não foi um objeto real, mas um objeto em potencial, virtual ainda. Somado a isso, tem o fato do bebê não ter tido sua existência compartilhada com outros familiares que acabam atribuindo um descrédito a dor que os pais sentem. A realidade, em vez de exigir a retirada da libido das ligações com o objeto perdido, os lança em um estado de confusão, sendo ainda mais penoso abandonar sua posição libidinal. Nos casos em que não se consegue iniciar o trabalho de luto não será possível a recuperação da libido investida no objeto bebê perdido e tampouco o redirecionamento do interesse ao mundo externo.

A referência a uma perda desconhecida na melancolia nos faz lembrar do estatuto virtual do objeto perdido nos casos de perdas fetais. Através de observações clínicas, notamos como o conhecimento do que foi perdido com a morte do feto é confuso. A mulher e o homem não sabem exatamente o que perderam quando seu bebê morre antes de nascer. Nessa criança esperada havia muitas representações, projeções e expectativas. Quando são tomados pelo vazio da morte, os pais perdem tudo o que o bebê significava e com frequência são tomados por um sentimento de inferioridade, de fracasso, indignidade e mesmo vergonha.

Se esse vazio não passar por elaborações, tal experiência de morte poderá retornar em outro lugar.

A melancolia se apresenta como um caminho às mães que perderam seus bebês e não conseguiram iniciar um processo de luto. Podem lançar mão assim, de outro trabalho interno, que apresenta certa similaridade ao luto, mas que não libera seu ego para fazer novos reinvestimentos. Nesse caso, a libido livre não será deslocada para outro objeto, mas retirada para o ego, estabelecendo­se uma identificação do ego com o objeto perdido. Numa tentativa de não reconhecer a perda, observamos a frequente incorporação do objeto perdido no ego da mãe como uma sombra, tal como descrito por Freud (1917/1974) no conceito da identificação melancólica.

Outro ponto que nos faz pensar na saída pela melancolia é o fato desta supor uma relação com o objeto complicada devido a uma ambivalência. Como vimos anteriormente, o feto desempenha para mãe uma série de representações carregadas de ambivalência. Na melancolia, Freud (1917/1974) aponta que se travam inúmeras lutas em torno do objeto, nas quais o ódio e o amor se enfrentam no inconsciente. O ódio pelo objeto perdido será dirigido ao próprio ego.

Soubieux (2014) ressalta que o lugar do feto morto no psiquismo dos pais não será o mesmo para todos. O tempo do luto será o tempo de conceber que essa vida existiu e deixou de existir. No entanto, por seu caráter narcisista, o luto pode levar a constituição do feto como objeto de melancolia, mas é importante observarmos que esse não é o único destino. A elaboração do luto fetal é possível, mas sempre será carregada de muito sofrimento, e segundo Soubieux (2014) pode passar por um tempo melancólico e depois evoluir para um trabalho de luto.

Quando a elaboração dessa perda se tornar possível, pode permitir uma reconstrução psíquica surpreendente. A autora marca que o luto fetal é paradigmático, pois se reaviva e prossegue durante os acontecimentos da vida e datas de aniversário, mas especialmente durante as próximas gestações (tanto do casal como de pessoas próximas). A reativação do luto, por outro lado, pode não ser problemática e pode gerar um processo criativo, permitindo prosseguir na elaboração.

Quando Freud pensou sobre o trabalho de luto, ele se baseou a priori no luto de um objeto total, distinto de si, enquanto o feto é um objeto legitimamente narcísico e objeto parcial em vias de objetalização (Soubieux, 2015). Os pais que precisam fazer o luto dessa criança virtual não são confrontados com a perda de um objeto externo, o que ocorre na verdade é uma interrupção de uma promessa. Nesse caso, a mãe precisará se identificar não com o objeto externo morto, mas com o objeto interno virtual. E depois, gradualmente, precisará deixar morrer uma parte de si mesma, tal qual uma amputação. Por essa particularidade, a ameaça melancólica é consideravelmente maior nos casos de luto pré­natal do que em outros tipos de lutos clássicos (Soubieux, 2015).

 

Considerações finais

Com essa pesquisa procuramos lançar luz sobre o delicado processo da perda gestacional, alertando para seu potencial traumático e para a dificuldade da instauração do trabalho de luto. A morte nesse delicado cenário pode favorecer o aprisionamento dos pais a uma visão de um ideal, mais difícil de ser abandonada e compreendida em seu real sentido.

Percebemos que, não raro, esses lutos fetais não são vivenciados, mantendo­se uma busca incessante por recuperar o objeto perdido. Essa busca e o não reconhecimento da perda frequentemente sobrecarregam a história de seus familiares. Vimos que a melancolia se mostra, então, como um caminho às mães que não conseguirem iniciar um processo de luto, as quais, como tentativa de não reconhecer a perda, podem recorrer a uma incorporação do objeto perdido em seu próprio ego. As clássicas banalizações tanto da sociedade como  dos cuidadores envolvidos são iatrogênicas ao recusarem o sofrimento objetivo da realidade psíquica parental e por não darem aos pais o direito de escolherem o que desejam diante da morte de seus filhos. Segundo Soubieux (2014) os cuidadores precisam mobilizar uma parte íntima deles próprios para suportarem o desespero dos pais e, às vezes, também suas raivas. Assim, é preciso não se esquecer do sofrimento psíquico dos profissionais do cuidado que também deveriam receber atenção. Ainda segundo essa autora, existe a necessidade de integrar o ensino do luto perinatal nas escolas e universidades, pois só assim os profissionais de saúde poderão verdadeiramente auxiliar as famílias enlutadas na expressão de seus sentimentos e pensamentos relacionados à perda.

Por fim, alertamos para o risco do silêncio que se estabelece diante da perda fetal. Quando o silêncio invade o cenário onde a morte se dá, a elaboração será muito mais penosa. Mathelin (1999, p. 17) enfatiza que o trauma surge na falta de palavras que venham dar sentido ao ocorrido, pois o trauma é “sem fala, ele permanece sem palavras porque é por definição impensável”. Sem que se falem dos fetos mortos e da morte, a entrada dessa experiência na vida simbólica dos envolvidos será um grande desafio, e assim a sombra dessa vida interrompida poderá perpassar gerações.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
Rua Dona Mariana, 66/201
22280-020 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil.
helenacarneiroaguiar@gmail.com

Rua Sara Vilela, 100
22460-180 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil.
silvia.zornig@terra.com.br

Recebido em dezembro/2015.
Aceito em maio/2016.

 

 

NOTA

1. Este artigo constitui parte da pesquisa de mestrado em Psicologia Clínica que vem sendo desenvolvida na PUC-Rio e surgiu a partir de acompanhamentos clínicos com famílias que vivenciaram perda gestacional.

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