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Estilos da Clinica

versión impresa ISSN 1415-7128versión On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.21 no.2 São Paulo ago. 2016

http://dx.doi.org/http//dx.doi.org/0.11606/issn.1981-1624.v21i2p346-365 

DOI: http//dx.doi.org/0.11606/issn.1981-1624.v21i2p346-365

ARTIGO

 

Família acolhedora: o estabelecimento de relações objetais em situação de acolhimento

 

Foster family: the establishment of object relations in fostering situation

 

Familia acogedora: el establecimiento de relaciones de objeto en situación de acogimiento

 

 

Cláudia Yuri Souza KuabaraI; Marcos Leandro KlipanII; Jorge Luís Ferreira AbrãoIII

IAcadêmica de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá (UEM), Maringá, PR, Brasil
IIProfessor do Departamento de Psicologia (DPI) da Universidade Estadual de Maringá (UEM), Maringá, PR, Brasil
IIIProfessor do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), Assis, SP, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

O serviço de Família Acolhedora organiza o acolhimento de crianças e adolescentes afastados, temporariamente, do convívio familiar. Consideramos pertinente discutir e pensar essa prática para além de seus aspectos jurídicos e assistenciais, mas também científico-acadêmicos e psicológicos. Com o objetivo de compreender o estabelecimento de relações objetais nesse contexto específico, foram entrevistados dois adolescentes e cinco crianças que vivenciam ou vivenciaram essa experiência em algum período de suas vidas. As entrevistas foram não-diretivas e partiu-se de uma questão disparadora que estimulasse os depoimentos e contemplasse o método psicanalítico de associação livre.

Descritores: acolhimento familiar; psicanálise; relações objetais.


ABSTRACT

The Foster Family Service organizes the fostering of children and adolescents who have been temporarily removed from family life. We consider relevant to discuss and think this practice beyond their legal and assistance aspects, also considering their scientific-academic and psychological characteristics. In order to understand the establishment of object relations in this specific context, we interviewed two teenagers and five children who have been experiencing or have experienced fostering at some period in their lives. The interviews were non-directive and initiated from a triggering question in order to encourage testimonials and free association psychoanalytical method.

Index terms: foster family; psychoanalysis; object relations.


RESUMEN

El servicio Familia Acogedora organiza el cuidado de los niños y adolescentes retirados temporalmente de la vida familiar. Consideramos relevante discutir y pensar no solo los aspectos jurídicos y asistenciales de esta práctica, sino también científico-académicos y psicológicos. Para comprender el establecimiento de relaciones de objeto en este contexto específico, fueron entrevistados a dos adolescentes y a cinco niños que viven o vivieron esta experiencia en algún momento de sus vidas. Las entrevistas fueron no directivas, y se instaló una pregunta de arranque que estimulase los testimonios y contemplase el método psicoanalítico de la asociación libre.

Palabras clave: acogimiento familiar; psicoanálisis; relaciones objetales.


 

 

Este artigo tem como objetivo divulgar os resultados obtidos em uma pesquisa na qual se buscou compreender, em contexto de acolhimento, o estabelecimento de relações objetais entre a criança ou adolescente e a família acolhedora.

O acolhimento em Família Acolhedora é um serviço de proteção social especial de alta complexidade, de caráter excepcional e provisório, para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, risco ou abandono, afastados do convívio familiar por meio de medida protetiva ou em casos em que a família se encontre impossibilitada temporariamente de exercer sua função de cuidado e proteção (Brasil, 2009).

Essa modalidade de acolhimento é adequada a crianças e adolescentes com possibilidade de reintegração à família de origem, e para que ocorra o retorno ao núcleo familiar, a equipe técnica do serviço é responsável por acompanhar e prestar assistência à família de origem, aos acolhidos e às famílias acolhedoras, visando a manutenção e fortalecimento dos vínculos durante o período de acolhimento (Brasil, 2013).

Os principais objetivos do serviço são: promover cuidados individualizados em ambiente familiar, preservar os vínculos com a família de origem, possibilitar a convivência comunitária e apoiar o retorno da criança e/ou adolescente ao núcleo familiar de origem (Brasil, 2009). As famílias que se disponibilizam a participar do serviço de acolhimento em famílias acolhedoras são selecionadas, capacitadas e acompanhadas pela equipe técnica do serviço e necessitam atender a critérios específicos, como disponibilidade emocional e afetiva, motivação, flexibilidade, padrão saudável das relações de apego e desapego, estabilidade emocional, entre outros.

A prática do acolhimento familiar se justifica pela importância de um ambiente familiar afetivo e favorável às necessidades da criança e do adolescente como base para o desenvolvimento saudável do indivíduo ao longo de sua vida, mostrando­se adequado no sentido em que esses indivíduos terão cuidados contínuos em um ambiente familiar de apoio e figuras de referência e afeto, diferentemente do que possa ocorrer em instituições como os abrigos. É no ambiente familiar que os indivíduos constroem seus primeiros vínculos afetivos, além das crenças, regras, valores, significados, obrigações, limites e direitos, que são aprendidos no seio familiar e contribuem para a constituição subjetiva e capacidade de relacionamento com o outro e com o meio (Brasil, 2013).

A base teórica de nossa pesquisa foi pautada em autores da Psicologia do Desenvolvimento, de orientação psicanalítica, como Winnicott (1980, 1999), Spitz (1979) e Bowlby, citado por Berthoud (1998a), que enfatizam a formação objetal ao longo do primeiro ano de vida e a importância dessas relações para o desenvolvimento saudável do indivíduo, além de autores e pesquisadores contemporâneos que se dedicam ao estudo de famílias acolhedoras em seus aspectos psicológicos, a fim de termos uma visão geral a respeito da produção científico­acadêmica sobre o tema.

Tomamos para nos auxiliar a afirmação de Freud (1915/2010) de que o objeto libidinal pode ser mudado diversas vezes, de acordo com as vicissitudes e necessidades do indivíduo, no sentido de verificar a formação de relações objetais e vínculos afetivos fora de uma família nuclear e posterior ao primeiro ano de vida.

Por relações objetais entende­se o que Laplanche e Pontalis (1983) definem como

Expressão usada ... para designar o modo de relação do indivíduo com o seu mundo, relação que é o resultado complexo e total de uma determinada organização da personalidade, de uma apreensão mais ou menos fantasmática dos objetos e de certos tipos privilegiados de defesa. (Laplanche & Pontalis, 1983, p. 576).

Já Spitz (1979) trata da gênese das relações objetais utilizando­se da definição de objeto libidinal proposta por Freud:

O objeto do instinto é aquele com o qual ou pelo qual o instinto pode alcançar a sua meta. É o que mais varia no instinto, não estando originalmente ligado a ele, mas lhe sendo subordinado apenas devido à sua propriedade de tornar possível a satisfação.... Pode ser mudado frequentemente, no decorrer das vicissitudes que o instinto sofre ao longo da vida; esse deslocamento do instinto desempenha papéis dos mais importantes. (Freud, 1915/2010, p. 43).

A partir da definição psicanalítica de objeto libidinal e apoiados no caráter mutável do objeto libidinal, buscou­se compreender como ocorrem a mudança e o estabelecimento dessas relações objetais em um contexto fora do modelo tradicional de família – modelo tradicional que, sabemos, ajudou a formar esses conceitos psicanalíticos clássicos.

 

Caracterização do estudo

O tema de nossa pesquisa pode ser entendido como uma psicanálise extramuros, definida por Mezan (2001) como teses que tratam de assuntos que fogem do contexto clínico e inserem­se no social e cultural, no qual o analista não tem um lugar de atuação definido, como equipes multidisciplinares ou em instituições que possuem uma dinâmica mais flexível (residência abrigada, hospital­dia), ou seja, não pretende diretamente uma intervenção terapêutica.

Inicialmente, os pesquisadores entraram em contato com as instituições que mantém o Programa Família Acolhedora no município de Maringá (PR) para inteirar a equipe técnica responsável a respeito de nossa pesquisa e de seus objetivos e solicitar a permissão para a sua realização no ambiente institucional.

Os encontros e entrevistas se deram com o auxílio e colaboração das instituições e suas equipes técnicas, psicólogas e assistentes sociais e aconteceram em espaços reservados nas sedes das instituições. Os dados foram obtidos a partir de uma questão disparadora, contemplando o método psicanalítico de associação livre. As conversas foram gravadas para posterior análise e apagadas com o término da pesquisa.

Antes de iniciarmos as entrevistas, coletamos informações com as equipes técnicas sobre a família de origem, a família acolhedora, o histórico de vida de cada entrevistado, os motivos do afastamento, tempo de acolhimento, relações dos acolhidos com ambas as famílias, possibilidades de retorno à família biológica e particularidades de cada caso. Em posse de tais dados, a entrevistadora pôde organizá­los de forma a balizar a conversa e complementá­los com a fala dos participantes.

Não foi estabelecido um número exato de horas para cada entrevista com criança/ adolescente, e houve apenas um encontro com cada participante, uma vez que as entrevistas só puderam ser realizadas após a aprovação do Comitê de Ética. Devido a essa restrição no número de encontros, pensamos ser conveniente que o participante falasse sobre suas experiências livremente, da maneira como lhe fosse mais confortável, sem que a entrevistadora necessitasse tocar diretamente no assunto, mas apenas norteasse a conversa.

O conteúdo das entrevistas foi analisado a partir da teoria psicanalítica estudada, Psicologia do Desenvolvimento, e de produções científico­acadêmicas. As informações obtidas foram suficientes para alcançar os objetivos propostos e o material de estudo nos forneceu base para compreender como se dão as relações objetais nesse contexto específico e sua importância para o desenvolvimento saudável dos indivíduos, e as entrevistas nos permitiram vislumbrar como cada criança e adolescente vivencia e significa sua experiência de afastamento da família de origem.

 

Os participantes

Os participantes, aqui identificados com nomes fictícios para a preservação de sua verdadeira identidade, são as crianças Giovanna (cinco anos), Marcelo (três anos), Lucas (seis anos), Miguel (três anos), Murilo (dez anos); e os adolescentes Pedro (treze anos) e Carol (treze anos). Entre eles, Giovanna e Marcelo são irmãos, assim como Carol e Lucas. Como os entrevistados, os nomes dos pais e irmãos também foram alterados.

Giovanna e Marcelo estão acolhidos há três anos por famílias acolhedoras diferentes. As crianças tiveram a guarda solicitada pelo pai, passam os finais de semana na sua casa e estavam em processo de reinserção.

Lucas está há quatro anos em acolhimento, com possibilidade de reintegração familiar. Lucas é irmão da adolescente entrevistada Carol, e espera para retornar à sua família de origem. Sua reinserção acontecerá se a mãe se demonstrar estabilizada com o retorno de Carol.

Miguel, acolhido há 23 dias em uma família com  seu irmão Dudu, de dois anos, e sua irmã Silvia, de um ano. As crianças foram afastadas do convívio familiar por negligência da mãe, que é alcoolista. A mãe foi encaminhada para atendimento no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas e será acompanhada. Há possibilidade de retorno à família de origem, a depender da reabilitação da mãe.

Pedro estava acolhido há seis meses com o irmão, Iago, então de dezessete anos. Os irmãos não têm possibilidade de reinserção familiar, mas tem­se buscado trabalhar a autonomia de Iago, que completou dezoito anos no início de 2014, para que cuide do irmão mais novo.

Murilo estava há quatro anos no serviço e há dois anos na família acolhedora atual. Já foi acolhido em duas famílias diferentes. Sem possibilidade de reinserção familiar, Murilo estava com o processo de adoção em andamento.

Carol foi encaminhada a um abrigo aos três anos de idade, onde permaneceu até os doze anos. Foi acolhida em família acolhedora em 2012 e passou por duas famílias. Havia quatro meses que a adolescente retornara a morar com a mãe biológica.

 

O estabelecimento de relações objetais nos primeiros anos de vida dentro de um modelo tradicional de família

Spitz (1979), ao falar sobre o estabelecimento de um objeto libidinal logo no início da vida do indivíduo, distingue três estágios que se dão de forma sucessiva e gradativa, de acordo com a maturação física e psíquica do bebê, a saber: o estágio pré­objetal, o estágio do precursor do objeto e o estágio do objeto libidinal, propriamente dito. O autor afirma que o recém­nascido é incapaz de sobreviver por seus próprios recursos, e, portanto, suas necessidades são supridas pela mãe. Tal estado acarretará uma relação complementar entre mãe e filho, uma díade.

Para Winnicott (1980), o desenvolvimento emocional da criança no primeiro ano de vida é base para uma vida adulta saudável. Esse desenvolvimento dos anos iniciais da criança se dá na relação com a mãe e tem início desde a gestação. Ao longo da gravidez, a mãe desenvolve uma atitude afetiva que a prepara para os cuidados com seu bebê, e que gradualmente, com o crescimento da criança, vai se perdendo, conforme a criança vai se tornando independente.

Ao nascer, o bebê é completamente dependente de sua mãe, e esta, por sua vez, adapta­se às necessidades de seu filho. A essa característica da mãe, de se voltar inteiramente para seu bebê e ser capaz de saber suas reais necessidades, de forma natural e espontânea, Winnicott (1999) denominou “mãe dedicada comum”. Quando a mãe é “suficientemente boa”, seu ego está em sintonia, dando suporte ao ego do bebê, ela proporciona ao filho um ambiente facilitador ao seu desenvolvimento emocional e psíquico, um desenvolvimento pessoal e real (Winnicott, 1980).

Berthoud (1998b) concorda com os autores supracitados quando se refere a um padrão de comportamento de apego que se estabelece gradativa e reciprocamente entre a mãe e o bebê ao longo do primeiro ano; relação que se expandirá conforme a criança cresce e se desenvolve. A relação entre mãe e bebê, as trocas mútuas, são fontes importantes no aprendizado dos desejos, preferências e características de cada um. Bowlby, citado por Berthoud (1998a), acredita que é por meio dessa interação adulto­criança que o apego é construído.

Entre o sexto e oitavo mês de vida, a face materna se estabelece como objeto libidinal para o filho, é significada e dotada de qualidades, e o bebê é capaz de diferenciar a face materna entre tantas outras, e recusará com ansiedade contato com pessoas nas quais não reconhece o objeto libidinal. Uma vez estabelecido o objeto libidinal, nenhum outro indivíduo é equivalente àquele; exclusividade essa que permite à criança formar vínculos particulares com o objeto, além de ter um parceiro de referência com o qual poderá estabelecer relações objetais seguras (Spitz, 1979).

Berthoud (1998a) afirma que, após os primeiros seis meses de vida, a criança passa a relacionar­se com os familiares mais próximos, e podem ser substitutivos (figuras subsidiárias de apego, conforme denominado por Bowlby) da figura de apego principal, sobretudo quando esta não está presente. Porém, após o estabelecimento dessa figura, sua presença é desejada e apenas ela proporcionará segurança, e sua ausência será sentida com tristeza.

De acordo com Spitz (1979), o afeto é muito importante na relação da díade. As mães, com sua personalidade madura e estruturada, fornecem ao seu bebê, que possui uma personalidade ainda em formação, um clima emocional favorável ao seu desenvolvimento. Sendo a figura materna representante do ambiente, mediadora entre os estímulos externos e o bebê, é ela quem proporciona as mais variadas experiências, que, acrescidas de afeto, se tornam muito mais ricas para o bebê. Goos (2010) concorda com o autor ao afirmar que a criança necessita de um ambiente estável, seguro, com certa previsibilidade de horários e rotinas, pois um ambiente confuso traz sentimento de insegurança.

Spitz (1979) enfatiza ainda que em nenhuma outra fase da vida os afetos serão tão importantes quanto no início da vida, pois nos primeiros meses de vida estes são dominantes na experiência do bebê, e o afeto materno norteará os afetos do filho, conferindo qualidade vital às experiências da criança.

 

O estabelecimento objetal em contexto de acolhimento familiar

Delgado (2010), França (2010) e Goos (2010) afirmam que o desenvolvimento humano depende das interações que cada indivíduo estabelece com o meio em que vive, e também da qualidade das relações que constrói, e consideram, portanto, o acolhimento familiar uma alternativa de espaço privilegiado para o desenvolvimento de crianças e adolescentes que passaram por situação de abandono, violência ou negligência. Delgado (2010) cita Gimeno (2001) ao defender que, embora o acolhimento familiar seja um contexto de rupturas, mudanças, distâncias e confronto com o desconhecido, é uma experiência que permite contato com um estilo de vida familiar diferente, reorganizar e construir novas bases, estabelecer novas relações, e apresenta uma possibilidade de ressignificação e aprendizagem.

Em relação ao acolhimento familiar como espaço de contato com o novo, de possibilidades, trocas e oportunidades, podemos perceber na entrevista de Murilo, Lucas e Miguel que esses são elementos em comum na maioria dos acolhimentos e compreendem atitudes simples e até mesmo banais, mas que assumem para as crianças e adolescentes acolhidos uma proporção maior, uma vez que são entendidas como forma de atenção para com eles. Murilo nos conta com satisfação as atividades das quais participa, como o teatro; Lucas frequenta aulas de violão e afirma que gosta quando os pais o levam e buscam na escola; e Miguel fala sobre a mãe acolhedora o levar para a creche de carro. O brincar com as mães e irmãos da família acolhedora está muito presente na fala das crianças, pois é o momento de maior interação, trocas afetivas e atenção voltadas à própria relação.

Cabral (2004, p. 8) afirma que a construção dos vínculos afetivos no contexto do acolhimento familiar é uma tarefa que requer dedicação afetiva e emocional recíproca entre a criança e a mãe acolhedora. Para a autora, a importância das relações afetivas vai além do desenvolvimento saudável, possui uma função vital. Com isso, ela defende que os programas de acolhimento familiar são uma forma bastante eficaz para proporcionar às crianças e adolescentes convívio familiar e possibilidades de construir novas relações.

Em relação à disponibilidade afetiva e dedicação recíproca entre a família e o acolhido e seu papel na construção de relações objetais, defendida por Cabral (2004), podemos acrescentar a fala de Pedro, quando se refere à mãe da família acolhedora: “Ela não gosta de mim.... Porque uma vez eu perguntei se ela gostava de mim e ela nem respondeu.” “E você gosta dela? ” “Mais ou menos ”. Com isso, constata­se a real importância do afeto para o estabelecimento da relação afetiva, uma vez que Pedro, não encontrando reciprocidade de afeto na mãe acolhedora, também não lhe dedica maior carinho. Outro aspecto relevante é que, por vezes, o adolescente menciona Márcia e Diogo como mãe e pai, às vezes por “a mulher” e “o marido da mulher”, demonstrando impessoalidade e confirmando o sentimento de não pertencimento à família, relatado durante a entrevista.

Ainda no que diz respeito à disponibilidade afetiva, tem­se o exemplo de Murilo. De acordo com o relato da equipe técnica, foi feita uma tentativa de reinserção na família de origem, momento no qual a mãe disse ao próprio filho que não o queria. Após isso, o garoto retornou à família acolhedora e a partir de então teve muitos problemas comportamentais e emocionais, tendo sido encaminhado a atendimento psicológico e psiquiátrico. A psicóloga e a assistente social do Programa enfatizaram que a postura da família acolhedora foi decisiva no auxílio à criança, que atualmente é um menino calmo, comprometido e responsável, na superação de sua perda. A importância da família acolhedora para Murilo é resumida por ele da seguinte forma: “Ah, eu sinto que eu tenho sorte, né? Podia estar na rua me drogando e isso é uma boa, porque eu tenho alguém pra cuidar de mim ”. Tal relato nos mostra que Murilo encontrou na família acolhedora grande disponibilidade e dedicação afetiva, que foram muito importantes para seu desenvolvimento e para a superação do abandono da mãe biológica.

Cavalcante e Jorge (2008) se dedicaram a compreender a importância da figura materna como forma de promover saúde mental em uma relação objetal entre mãe e filho em um contexto provisório de acolhimento familiar. Essas autoras enfatizam que o sentido de mãe é visto como uma função que não possui relação direta com a pessoa com quem se tem um vínculo biológico. De acordo com as mães entrevistadas por Cavalcante e Jorge (2008), o seu papel está vinculado ao cuidado e esse ato de cuidar é um facilitador para a formação dos vínculos. As autoras afirmam ainda que a criança/ adolescente acolhido procura na mãe acolhedora aquilo que não obteve em sua relação objetal com a mãe biológica. E as mães relatam que as demandas dessas crianças e adolescentes contribuem na formação dos vínculos afetivos, posto que a partir dessas exigências as mães se dedicam muito mais aos filhos acolhidos.

Carol, a adolescente entrevistada em nossa pesquisa, relata que na família acolhedora encontrou o carinho e atenção que não obteve da mãe. Mesmo após seu retorno à casa da mãe biológica, a adolescente afirma que a mãe não lhe dá carinho e atenção. No entanto, ela acredita que isso se deve ao fato de seu irmão mais novo, Lucas, estar afastado do convívio com a mãe.

Concordamos com Kelly e Gilligan (2000), citados por Delgado (2010), quando afirmam que a importância do acolhimento familiar reside no fato de proporcionar à criança e ao adolescente a formação de novos vínculos afetivos com a família acolhedora e, ainda assim, manter os vínculos familiares de origem. Junto a isso, Delgado (2010) faz referência a Coelho e Neto (2007), pois, para esses autores, romper vínculos sem oferecer novas alternativas de relações afetivas pode ter consequências danosas para a criança ou adolescente em curto e longo prazo.

Levinzon (2000) relata sua experiência com a clínica psicanalítica com crianças adotivas. A partir do trabalho da autora pudemos perceber aspectos em comum com as crianças acolhidas, que dizem respeito a comportamentos antissociais e atitudes reivindicatórias, observadas pela autora como forma de “testar” (aspas da autora) os pais em sua capacidade e limite de continência e dedicação. Levinzon (2000) afirma ainda que essa conduta da criança pode ser considerada uma forma de demonstrar o quanto a situação de afastamento da mãe biológica, processo de adoção e família adotiva estava sendo sentida como dolorosa.

Observou­se em Miguel, uma das crianças entrevistadas, certa agressividade em suas brincadeiras, deixando seus bonecos de castigo por fazerem bagunça, e também batendo sobre a figura de um corpo humano desenhado em uma folha de papel na qual desenhava dizendo que iria matá­lo. O menino ainda arrancou os cabelos de uma boneca que estava em suas mãos quando a psicóloga da equipe do Programa, que nos auxiliou com essa entrevista, perguntou sobre seu pai; Miguel respondeu que o pai está preso, e embora sua agressividade aparecesse claramente na maneira como manipulava a boneca, seu rosto não tinha qualquer expressão de raiva ou tristeza, ao contrário, manteve o mesmo olhar sereno.

Carol também apresentou comportamentos antissociais enquanto estava acolhida. Como a própria adolescente nos relatou: “comecei desrespeitar, comecei xingar, fugir de casa, quase ia começar a beber, por um triz não comecei fumar cigarro ”. Segundo ela, esses comportamentos foram influenciados por uma amizade. No entanto, pudemos perceber que a atitude da mãe acolhedora em interditar a amizade e impor limites fez Carol deixar de se comportar de tal maneira, o que nos faz pensar em uma forma de exigir a continência relatada por Levinzon (2000).

Contudo, não se pode afirmar até que ponto os comportamentos de Miguel e Carol são reflexos do acolhimento ou da separação da mãe biológica. Deve­se considerar a história de vida desses indivíduos e também as dificuldades já enfrentadas por eles desde uma idade tenra. No caso de Carol, tem­se ainda a questão dos comportamentos próprios da fase da adolescência, que incluem a atitude reivindicatória e de conquista por um espaço no mundo, que devem ser pensados quando se analisa seu relato.

 

Considerações finais

Com a realização desta pesquisa constatou­se que as relações objetais, pautadas na reciprocidade, cumplicidade e amor, se constroem no contexto da família acolhedora na medida em que a criança ou adolescente é capaz de confiar no outro, afastando o fantasma da violência e da negligência, por meio do carinho, atenção, convivência e dedicação que lhes são direcionados.

Ao analisar a história de Lucas, que após algum tempo de acolhimento pediu à mãe acolhedora para chamá­la de mãe, demonstra o estabelecimento de uma figura de apoio e confiança. O menino diz ainda que prefere continuar morando com a família acolhedora e que não quer retornar para a casa da mãe biológica.

Foi possível ainda verificar as diferentes maneiras encontradas pelos acolhidos para lidar com o afastamento de sua família e com as vicissitudes do acolhimento: Murilo diz procurar não pensar na mãe biológica; Giovanna e Marcelo não quiseram falar sobre o assunto; Carol sempre sonhou em voltar a morar com a mãe, que, acredita, cuidará melhor dos filhos com o retorno do irmão Lucas; Lucas prefere a família acolhedora; Pedro não se sente parte da família, busca ganhar atenção e carinho, mas acredita que somente Iago, seu irmão biológico, é capaz de compreendê­lo; Miguel afirma que a mãe está doente e por isso foi para o médico, mas logo estará presente novamente.

Ao longo deste estudo e com a finalização da pesquisa, pode­se constatar que assim como o estabelecimento do objeto libidinal para o bebê está fortemente relacionado aos cuidados que lhes são dispensados, pois o cuidado é repleto de carinho, dedicação e amor, com a criança e com o adolescente em situação de acolhimento não é diferente. Os cuidados com os acolhidos obviamente são outros, mas, da mesma forma que são necessários elementos básicos na primeira infância para o estabelecimento de um objeto libidinal, no contexto de acolhimento tais elementos também precisam estar presentes e ser percebidos: a segurança, o cuidado, a função materna de ajudar a construir e organizar a realidade, o apoio emocional, dedicação, confiança, amor, e outros diversos fatores apresentados pelos autores estudados e apresentados anteriormente.

Com a realização das entrevistas foi possível perceber que a relação que se estabelece entre a criança ou adolescente e a família acolhedora não substitui aquela construída com a mãe nos primeiros anos de vida. Embora alguns participantes afirmem o desejo de continuar morando com a família acolhedora, podemos perceber o carinho que mantêm pelas mães biológicas. A família acolhedora, para os acolhidos, possui um lugar de carinho e gratidão, algumas vezes reconhecida como a própria família. E, como Freud (1915/2010) afirmou, as relações objetais são passíveis de mudanças e remodelamentos, o que não significa, no entanto, que são passíveis de esquecimento ou substituição.

As famílias acolhedoras permitem que a criança ou adolescente possa reorganizar sua realidade, elaborar seu sofrimento e construir ou reestruturar suas expectativas e planos futuros com auxílio de figuras de referência, inserido em um ambiente familiar de apoio, aprendizagem e trocas afetivas. Um contexto provisório, mas que pode contribuir de forma favorável para o desenvolvimento saudável desses indivíduos.

Embora nossa pesquisa não tivesse como objetivo uma intervenção psicanalítica direta, e não apresentasse um tema que se insere em um contexto clínico psicanalítico tradicional, em nossas entrevistas buscamos preservar o método da associação livre, no qual o paciente fala livremente ao terapeuta sobre o que lhe vem à cabeça, superando suas censuras.

No entanto, sabemos que no decorrer dessa livre expressão de pensamentos e sentimentos podemos nos deparar com a censura, aspecto sobre o qual pensamos ser relevante fazer algumas considerações. O conceito de resistência, na teoria psicanalítica freudiana, diz respeito a obstáculos que surgem durante o tratamento analítico para proteger conteúdos inconscientes que possam revelar­se por meio da associação livre e da fala sem censura.

Considerando o conceito de resistência e sua relação com o método de associação livre e as entrevistas realizadas em nossa pesquisa, podemos perceber como esse mecanismo de defesa se manifestou em alguns participantes. O exemplo mais claro pode ser observado nos irmãos Giovanna e Marcelo, que responderam de forma evasiva às questões da entrevistadora: muitas vezes não respondiam, como se não tivessem escutado, ou simplesmente a ignoravam completamente. Temos nesse caso não somente uma resistência a falar sobre o acolhimento, a família acolhedora e até mesmo o pai biológico, mas também à figura da pesquisadora, que por vários momentos foi ignorada e deixada sozinha na sala de entrevista.

Outro exemplo pode ser encontrado na entrevista com Lucas. O menino falou sobre a família acolhedora como se fosse a única existente e somente no final do encontro nos informou, como se revelasse um segredo: “eu tenho duas mães ”. Ao que a entrevistadora o questiona sobre essa outra mãe, Lucas responde de forma evasiva, afirma querer continuar morando com a família acolhedora e declara não querer falar sobre mais nada.

Outro fator que podemos abordar é a transferência. Devido ao pouco tempo de contato e conversa com as crianças e adolescentes, a transferência não se estabeleceu de forma a colaborar com nossas entrevistas. No entanto, percebemos, em dois casos, indícios de uma relação transferencial com a pesquisadora: na entrevista com Carol, a adolescente falou constantemente sobre a volta do irmão Lucas para casa, afirmando que seu retorno seria benéfico para a mãe, pois esta sentia muito a ausência do filho caçula. Carol enfatizou que se Lucas retornasse ao convívio familiar, a mãe ficaria mais calma e conseguiria cuidar melhor dos filhos, inclusive deixando de agredi­la. Com isso, podemos supor que a entrevistadora foi percebida como alguém que a ajudaria e levaria suas reivindicações à equipe do serviço para que Lucas retornasse aos cuidados da mãe, visto que a audiência para decidir o destino do irmão de Carol estava marcada para dali a alguns dias.

O segundo caso é o de Pedro. No decorrer de nossa conversa, enquanto o adolescente falava sobre a família que o acolhe e como não se sente parte dela, Pedro perguntou à entrevistadora: “Você adotaria uma criança com a minha idade? ”. Podemos constatar que a pesquisadora foi sentida pelo adolescente como uma pessoa que poderia ser uma figura de apoio, uma vez que estava ouvindo suas histórias e como se sentia em relação a tudo o que vinha vivenciando.

No entanto, para finalizar, esclarecemos que a resistência deve ser analisada a partir da transferência, e como esta não aconteceu de forma clara e satisfatória não foi possível a realização de análises mais aprofundadas.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em julho/2015.
Aceito em maio/2016.

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