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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.21 no.2 São Paulo ago. 2016

http://dx.doi.org/http//dx.doi.org/0.11606/issn.1981-1624.v21i2p366-389 

DOI: http//dx.doi.org/0.11606/issn.1981-1624.v21i2p366-389

ARTIGO

 

A face e o verso da adaptação na infância1

 

The face and the back of adaptation in childhood

 

El anverso y el reverso de la adaptación en la infancia

 

 

Rafaela PaixãoI; Zeferino RochaII

IMestre em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Psicóloga do Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem (CPPL). Membro do Círculo Psicanalítico de Pernambuco, Recife, PE, Brasil
IIProfessor da Pós-Graduação de Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Membro fundador do Círculo Psicanalítico de Pernambuco, Recife, PE, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Esse trabalho discute a infância contemporânea, problematizando os efeitos gerados no processo de subjetivação das crianças em decorrência do frenesi cultural da “alta performance”. Para tanto, analisamos os paradoxos contidos na noção de adaptação, a partir da leitura de Winnicott e Sándor Ferenczi, refletindo como a livre expressão das crianças pode se transformar num impedimento psíquico perante as mudanças históricas e os novos regimes sociais. Por fim, defendemos que as tendências contemporâneas à adaptabilidade e à patologização do sofrimento psíquico das crianças têm produzido uma restrição à liberdade criativa na infância.

Descritores: infância; adaptação; patologização; sofrimento psíquico.


ABSTRACT

This paper discusses about the contemporary childhood, problematizing the effects generated in the process of subjectivity of children as a result to cultural frenzy of “high performance”. Therefore, we analyzed the paradoxes contained in the concept of adaptation, from the reading of Winnicott and Sándor Ferenczi's work, reflecting how the free expression of children can become a psychological deterrent front to historical changes and new social arrangements. Finally, we advocate that the contemporary trends to adaptability and pathological psychic suffering of children have produced a restriction on the freedom to be creative in childhood.

Index terms: childhood; adaptation; pathologization; psychological distress.


RESUMEN

En este trabajo se analiza la infancia contemporánea y se discute los efectos generados en el proceso de la subjetividad de los niños debido al frenesí cultural del “alto rendimiento”. Por ello, analizamos las paradojas existentes en el concepto de adaptación, de la lectura de Winnicott y Sándor Ferenczi, reflexionando como la libre expresión de los niños puede convertirse en un impedimento psíquico frente a los cambios históricos y los nuevos regímenes sociales. Por último, hemos argumentado que las tendencias contemporáneas a la adaptabilidad y a la patologización del sufrimiento psíquico de los niños han producido una restricción de la libertad creativa en la infancia.

Palabras clave: infancia; adaptación; patologización; sufrimiento psíquico.


 

 

Introdução

As concepções sobre a infância, o infantil e a vida das crianças podem ser analisadas sob diferentes enfoques, mesmo dentro da leitura psicanalítica. O lugar das crianças e a dimensão das relações entre pais e filhos nas famílias atuais mostram a necessidade de que sejam considerados os efeitos gerados no processo de subjetivação, como consequência das mudanças históricas e dos novos regimes sociais que se presentificam. Interessados em considerar de que sofrem as crianças hoje, lançamos como hipótese que as tendências contemporâneas à adaptabilidade e à patologização do sofrimento psíquico seriam responsáveis pela produção de uma resposta restritiva à liberdade criativa das crianças.

A infância, a historicidade do conceito, suas condições de possibilidade, bem como a pertinência ou não do debate em torno de seu desaparecimento vêm sendo discutidos por diversos autores à luz da psicanálise, entre eles estão Jerusalinsky (1998), Lebrun (2008), Lajonquière (2000; 2006). A posição assumida neste estudo, diferente da perspectiva desses autores, filia­se à tradição psicanalítica de Ferenczi e Winnicott, que compreende o desenvolvimento emocional do indivíduo destacando a relação de interdependência entre o sujeito e o ambiente. Dentro dessa perspectiva, pressupõe­se “a subjetividade como algo permanentemente construída e transformada pelas relações que mantém com o mundo” (Mizrahi, 2010, p. 89); ao passo que entende o desenvolvimento infantil como sendo marcado pela provisão ambiental e pelo viver criativo determinado pelas experiências de vida (Winnicott, 1975). Consideramos que a infância pensada sob esse ponto de vista ganha contornos que de alguma forma ampliam a leitura freudiana da criança, na mesma medida em que produzem uma nova interpretação sobre o sofrimento psíquico delas.

O propósito fundamental deste estudo, portanto, é discutir os possíveis efeitos no processo de subjetivação das crianças, em decorrência do frenesi cultural da “alta performance” responsável hoje por um golpe preciso na autoconfiança dos pais e na liberdade de seus filhos. No centro desse debate, está o reconhecimento de que o sentimento moderno de infância mantém­se em nossa cultura, mas há que se dizer, apresentando­se, agora, de um modo novo. Para além de um período de transição, entre a fragilidade dos bebês e a vida adulta, a infância de hoje destaca­se como um baluarte à civilização. Nossa tendência inicial se assenta no argumento de que os privilégios que ainda recaem sobre a vida infantil decorrem da necessidade urgente de aplacar toda e qualquer demanda das crianças sob os auspícios de uma suposta garantia de progresso cultural.

Definido o objetivo, eis o roteiro que seguiremos: primeiramente serão trazidas algumas reflexões sobre o sofrimento psíquico das crianças, retomando brevemente o debate acerca da infância e o lugar social das crianças em nossos tempos, assuntos que serão tematizados com base em quatro documentários; em seguida, analisaremos os paradoxos contidos na noção de adaptação refletindo, a partir da leitura de Ferenczi e Winnicott, como a livre expressão das crianças pode se transformar num impedimento psíquico diante das mudanças históricas e sociais.

 

Notas sobre a infância hoje

O cenário do referido frenesi cultural é facilmente reconhecido por cada um de nós. Num turno, a escola privada, noutro a lista infindável de atividades extracurriculares compostas por esportes, cursos de inglês, reforço pedagógico, aulas de música, especialidades clínicas. No caminho dessas atividades, pais, motoristas e babás revezam a agenda do dia. A que horas chegarão em casa? Livros e tarefas escolares, internet e jogos eletrônicos, redes sociais e programas de TV. Quanto tempo ainda falta para o dia terminar?

Num turno, a escola pública. Será que o professor virá? A caminho de casa, rostos de todos os dias, o contato com a comunidade (amigos dos pais, dos avós, amigos da rua). Livros e tarefas escolares, internet e jogos eletrônicos, redes sociais e programas de TV. Quanto tempo ainda falta para o dia terminar?

Num turno, a rua. Semáforos, quiçá, vidros de carros desembaçados, chicletes vendidos. A caminho de casa, incertezas, o que terá para comer, onde irá dormir? Livros e tarefas escolares, internet e jogos eletrônicos, redes sociais e programas de TV, acessíveis e inacessíveis. Quanto tempo ainda falta para o dia terminar?

A infância segue acelerada e sob pressão. De um lado, as escolas buscam desenvolver talentos, inspiradas pelas novas tecnologias pedagógicas e neurocientíficas; de outro, a família certifica­se de que seu gerenciamento e o da sociedade estão funcionando. Conectadas 24 horas, por celular ou pela internet, as crianças seguem sob nova direção. O que lhes define na contemporaneidade, afinal?

O século XXI nos convoca a repensar o sofrimento infantil, a rever o lugar das crianças na família e a problematizar como essas relações corroboram a produção de um mal­estar na infância. Na medida em que encenam o que gostaríamos de ser e explicitam uma suposta garantia de continuidade para a existência humana, as crianças foram levadas a assumir relevância e privilégio antes nunca observados. Perante o destaque que passaram a ter, novos arranjos sociais se constituíram e, entre eles, a ênfase na proteção. Segundo Ariès (1981), a infância passou a ser vista como um tempo a ser protegido das necessidades e desejos da vida adulta desde a Modernidade, quando o “sentimento de infância” inaugura uma afeição inteiramente nova para com as crianças e promove transformações em suas relações com a sociedade. A ficção em torno da infância, entretanto, parece se complexificar ao longo do tempo, cabendo­nos perguntar: como a contemporaneidade interpreta as figuras do infantil2?

Em Sob Pressão, Honoré3 (2009) analisa os planos para a infância construídos pela família, pelo Estado e pela publicidade em países como Finlândia, Itália, Estados Unidos, Hong Kong, Brasil, Buenos Aires e Londres. Sua tese fundamental é que, neste século, vivemos a “Era da Criança Gerenciada” – um traço cultural presente não apenas entre os pais da classe média, nas quais esse gerenciamento é mais visível, mas também entre os pais menos favorecidos. Para o autor, o fenômeno da direção das ações diárias da criança, a partir de um monitoramento constante, tem implicado uma administração cotidiana causadora de significativo grau de ansiedade. Tentando relacionar a forma como, atualmente, os pais respondem às demandas socioculturais, seja na maneira de educar, seja na maneira como participam da vida de seus filhos, Honoré (2009, p. 16) mostra pontos em comum, mesmo quando se trata de realidades tão diferentes:

Em sua forma mais extrema, essa marca registrada de educação de crianças tem nomes diferentes em todo o mundo. Educação helicóptero – porque Mamãe e Papai estão sempre pairando em cima da cabeça dos filhos. Hipereducação. Os escandinavos fazem piadas sobre “os pais varredores” que vão freneticamente varrendo o gelo à frente de seus filhos. No Japão, “mães educativas” devotam todos os segundo em que não estão dormindo a monitorar suas crianças por meio do sistema escolar.

Esse monitoramento não aconteceria sem razão: sua intenção fundamental seria possibilitar, sob a cortina de proteção e valorização da vida infantil, a potencialização daqueles que representam o futuro da humanidade, ou seja, que as crianças ofereçam seu melhor. Para Honoré (2009), a criança estaria se transformando em um grande projeto para seus pais, cujo objetivo principal é oferecer os estímulos necessários para os pequenos se transformarem em superfilhos.

A crítica do autor faz parte de sua interpretação sobre a contemporaneidade acelerada e excessivamente preocupada em responder ao frenesi cultural da “alta performance”, que tem sido responsável por um golpe preciso na autoconfiança dos pais e na liberdade de seus filhos. Interessado em identificar uma forma de suavizar a ansiedade que paira em torno das crianças, o livro discorre sobre a infância, a educação, o consumismo e a segurança em uma tonalidade descontente com o rumo que estamos seguindo. Ora seu livro mostra­se provocativo e propositivo, ora assume uma formulação que o aproxima de um best­seller de autoajuda.

Apesar disso, sua leitura é rica em detalhes, traz reflexões interessantes sobre a vida infantil na contemporaneidade e, sobretudo, é capaz de levantar questões sobre a necessidade de possibilitar que as crianças vivam por sua própria conta, no sentido de assumirem a liberdade de construir a si mesmos. No livro, mesmo demonstrando insatisfação, ainda que timidamente, pois dedica à questão apenas um curto capítulo, Honoré (2009) sinaliza a necessidade de uma mudança social como saída para o excesso de gerenciamento e pressão vividos pelas crianças neste século. Mostrando­se otimista, ele escreve:

Como em qualquer processo de mudança social, forjar novas formas de infância e de condição adulta será conseguido por milhões de pequenos atos de coragem. Sempre que alguém decide deixar uma criança ser ela mesma, as escalas culturais se inclinam levemente – e fica mais fácil para os outros seguirem o exemplo. Levará tempo, mas a mudança valerá a pena. (Honoré, 2009, p. 343).

Em nosso estudo, longe de analisar todos os aspectos que compõem a vida das crianças, abastadas ou desfavorecidas, posto que o hiato entre essas duas realidades pode se apresentar maior do que se demonstra, acreditamos ser possível elencar pontos convergentes no universo infantil contemporâneo. A caracterização de um estado de pressão (Honoré, 2009), parece­nos um interessante ponto de partida para pensar as vicissitudes de ser criança na atualidade, porque nos conduz a uma reflexão sobre a noção de adaptação, que será mais bem debatida no tópico seguinte.

* * *

Sob enfoques diferentes, alguns documentários recentes tematizaram o campo da infância, levando­nos a pensar sobre as formas de sofrimento infantil na cultura do consumo, dos excessos e da medicalização da vida. O que pretendemos, aqui, não é esgotar os temas debatidos em cada documentário citado, tampouco discutir as modalidades de sua execução, mas tomá­los como exemplos de leitura contemporânea sobre o lugar da criança na sociedade de nosso tempo.

Em A invenção da infância, documentário dirigido por Liliana Sulzbach em 2000, a infância, comparada às grandes descobertas, é apresentada como parte do sonho de se fazer um mundo melhor. Retratada como sendo “a idade de ouro”, às crianças caberia brincar, ir à escola e ser criança. Tentando definir o termo infância, o documentário mostra as diferentes realidades entre crianças abastadas e crianças pobres – que cedo tornam­se parte do sustento de suas famílias. A ênfase principal desse curta­metragem é mostrar que ter infância não significa necessariamente ser criança. Longe de uma discussão profunda sobre o tema, esse documentário destaca a atualidade da questão, mostrando como a experiência de ser criança não necessariamente traz consigo as insígnias da experiência de ter infância.

Noutra perspectiva, alguns documentários tendem a tomar aspectos das transformações socioculturais como elementos de impacto na vida das crianças e vice­versa, ou seja, como as crianças vêm modificando as relações familiares e socioculturais. Em A infância perdida – documentário produzido e dirigido por Scott Harper e exibido no Brasil em 2010 pelo canal GNT. doc. – o autor apresenta outra face da infância, aquela cuja marca é o controle e a organização escolar das crianças. Nesse documentário, é possível encontrar expressões das significativas mudanças na relação entre pais e filhos, agora submetida a um excesso de segurança e a uma busca desenfreada pelo sucesso pedagógico, destacado pelos pais que se tornaram verdadeiros rastreadores de seus filhos. Interessante notar como, apesar da posição de questionamento dessa cultura do medo, o documentário é marcado pelo cientificismo contemporâneo, que se apresenta pelas tentativas constantes de justificar cientificamente os aspectos pedagógicos e neurológicos. É o que acontece quando tenta dar respaldo às experiências de ter tempo livre, de recreação e de brincadeira, por exemplo. A experiência do brincar tal como se apresenta é elevada a um valor máximo conforme atestado por provas científicas, além de ser tomada como veículo de acesso para uma vida intelectual e socialmente melhor, como se, por si só, isso já definisse sua importância. Cabe­nos destacar: a brincadeira, olhada com ênfase puramente pedagógica e psicomotora, parece perder de vista sua dimensão transicional (Winnicott, 1975), prejudicando a liberdade criativa das crianças e favorecendo ações restritivas na infância. Aqui consideramos importante destacar que, desprovida de sua condição de espontaneidade, a brincadeira perde sua condição de fruição da liberdade de criação, repercutindo de maneira significativa na experiência de constituição do eu (self).

A obra de Winnicott confere lugar central à criatividade na constituição psíquica. Em sua tentativa de localizar a experiência cultural, o psicanalista formulará a noção de espaço potencial, como área intermediária entre o indivíduo e o meio ambiente. Sua hipótese inicial é de que a primeira possessão não­eu do bebê, o objeto transicional, representa uma primeira criação do bebê: o seio imaginado. Entre o autoerotismo e a escolha de objeto, Winnicott considera a existência de uma área intermediária que contribui tanto à realidade interna quanto à externa. O processo de subjetivação da criança é marcado, portanto, pela função estruturante do cuidado e por uma maternagem suficientemente boa, oferecida pela mãe a seu bebê. Grosso modo, diríamos que perante a provisão do ambiente, a criatividade primária alçaria voo na inscrição do sujeito na experiência cultural − o que significa dizer, que o processo de subjetivação da criança guarda relações diretas com a experiência criativa, manifesto já nas primeiras brincadeiras da díade mãe­bebê, seguido pela experiência de brincar sozinho na presença do outro, para só então ser possível o brincar compartilhado. Por essa razão Winnicott (1975, p. 147) escreve: “o brincar conduz naturalmente à experiência cultural e, na verdade, constituiu seu fundamento”.

Na pesquisa sobre a infância e sobre a clínica com crianças, uma leitura crítica dos modos de produção da subjetividade precisa ser levada em consideração sem se perder de vista o impacto das biotecnologias, dos desenvolvimentos científicos, do consumismo e de todos os aspectos culturais que incidem nossa constituição. É também fundamental que a análise dos efeitos na vida psíquica das crianças, referida ao registro da cultura e ao momento histórico, considere a complexidade das questões que circulam sobre a vida das crianças.

Esse é o caso de outro documentário que demonstra filiação à perspectiva cientificista e mostra­se afinado com esse discurso sobre a segurança: Infância sob controle: medicalização na infância (L'enfance sous contrôle) (Jaury, 2009). Partindo de recentes pesquisas sobre a identificação e prevenção precoce da violência, somos levados a conhecer trabalhos (controversos, obviamente) que vêm sendo realizados em diferentes partes do mundo com o intuito principal de identificar e combater os germes da delinquência. A infância é vista sob controle, na medida em que os argumentos fundamentam­se em ações que vão desde o rastreamento médico dos delinquentes futuros a uma busca estatística pela normalidade dos comportamentos. Esse documentário apresenta pesquisadores que atribuem às patologias mentais a razão das condutas que fogem da normalidade, da mesma forma que mostra profissionais avessos a essa extrapolação abusiva de normas preditivas próximas à lógica de controle e poder dos indivíduos. Podemos dizer que, por meio dele, somos convocados a assumir uma postura crítica sobre a concepção determinista do indivíduo, cujo objetivo maior é prever todos os comportamentos humanos.

Citamos ainda o vídeo Criança a alma do negócio, dirigido por Estela Renner e produzido por Marcos Nisti (2007), cujo tema discutido é a relação entre a infância e o mercado consumidor, incluindo ainda uma análise sobre a propaganda infantil. Lançado no Brasil em 2007, o vídeo discute a padronização da cultura, perante a busca desenfreada pela aquisição dos produtos comuns à faixa etária e mostra um verdadeiro bombardeio, sofrido pelas crianças e suas famílias, de mensagens que estimulam o consumo. A infância, aqui, é considerada como uma fase que precisa ser protegida (com legislações que regulem a publicidade dirigida às crianças). E, ao mesmo tempo, ela é apresentada como tendo uma influência maciça na vida da família. É o que nos mostra Ana Lucia Vilella (Presidente do Instituto Alana), cuja participação nesse documentário afirma que 80% da influência para a compra de uma casa vem das crianças. Novamente o campo da infância apresenta­se marcado por questões complexas e de impacto significativo na vida cultural contemporânea.

Outro interessante retrato da realidade das crianças no século XXI mostra­se no recente documentário Muito além do peso (2012), também dirigido e produzido respectivamente por Estela Renner e Marcos Nisti. Considerada uma pandemia, a obesidade infantil, que cresce de forma alarmante, é o tema principal do documentário, que também problematiza a indústria de alimentos, a publicidade dirigida às crianças, bem como a responsabilida de da sociedade, da família e da escola, na qualidade de vida dos pequenos. Com histórias reais, o filme impacta ao mostrar a relação das crianças com os alimentos industrializados. Aqui, a perspectiva do consumismo na infância é problematizada, mas sem ser desenvolvida em profundidade. O foco do documentário é o debate sobre a obesidade das crianças no Brasil e no mundo, apontando as repercussões do consumismo, da má alimentação e os impactos disso na saúde das crianças.

O acento desses dois últimos documentários, sendo um dedicado à publicidade dirigida ao público infantil e o outro destinado ao debate sobre a obesidade na infância, parece­nos compartilhar do mesmo argumento: a criança que responde ativamente às demandas do meio sociocultural e é influenciada pelo mercado consumidor e pela vida familiar. Analisando o impacto dessas transformações culturais sobre as construções identitárias das crianças, Castro (1998, p. 48) afirma que:

Desta forma, não mais como “futuros cidadãos”, os novos sujeitos consumidores usufruem de reconhecimento social, e de um lugar indisputável na cultura, agora não mais invisíveis por não poderem trabalhar ou produzir, mas eminentemente agentes, porque podem consumir. Neste sentido, a criança e o jovem aparecem, adquirindo potência e agência, enquanto novos atores no cenário da cultura contemporânea.

Em sua argumentação, a autora comenta, indo além das questões relativas ao lugar inalienável (perante a dependência) ainda destinado às crianças, como a dinâmica do consumo modificou a posição delas na sociedade, as quais passaram, a partir de então, a ocupar um lugar de pertencimento e reconhecimento social. Nessa perspectiva, as crianças, como atores sociais, passam a ser tomadas como público consumidor, cujas vontades e escolhas começam a interferir na vida social e familiar, por vezes, regendo comportamentos coletivos, modificando seu lugar no mundo e sendo alvo de interesse e destacada preocupação. Para Castro (1998), a cultura de consumo introduz outra forma de estar no mundo, projetando as crianças para um lugar antes nunca imaginado. Certamente podemos acessar a realidade social e psíquica das crianças de diversas formas, contudo, aqui optamos por exemplificá­las por meio desses filmes, que recortam, de forma oportuna, a vida infantil no Ocidente.

Enquanto possibilidade de reflexão sobre o lugar destinado às crianças em nosso tempo, em cada um desses documentários encontramos a criança assumindo uma função no corpo social e cultural. Desde a perspectiva da infância (enquanto ficção moderna) até ao projeto de industrialização e consumismo da vida globalizada, nesses vídeos podemos encontrar elementos que nos ajudam a compreender de que sofrem as crianças hoje: a experiência paradoxal de sentir­se livre e aprisionado a um lugar de assujeitamento e poder.

 

Sobre a noção de adaptação na infância

Reconhecemos que o imperativo da satisfação e a supremacia dos padrões normalizadores tendem a enquadrar as subjetividades em uma moldura pré­definida, conduzindo a uma ação que forja um processo adaptativo. Isso significa afirmar que podemos supor a existência de dois aspectos peculiares sobre o processo de adaptação na infância: um decorrente das vicissitudes inerentes à condição de ser criança4 e outro que remete às questões contingenciais.

Em princípio, dizer que uma criança é adaptada significa afirmar que ela se ajusta à situação de vida na qual está inserida, que ela responde, no melhor sentido, ao ambiente do qual faz parte, confirmando uma acomodação necessária à vida. O sentido da aco modação, portanto, é parte do processo de desenvolvimento da vida emocional e é extremamente importante para a criança, na medida em que corresponde a uma adequação do indivíduo a seu meio e funciona, como uma resposta, ao acolhimento que pôde receber do ambiente, ao longo de seu processo de subjetivação.

Poderíamos, então, pensar que estar adaptado, corresponderia à capacidade da criança poder seguir seu processo de amadurecimento (Winnicott, 1960/2007), desde que a provisão do ambiente pudesse se fazer presente, oferecendo à criança, em seguida, a capacidade de restaurar seus próprios sintomas. A adaptação à realidade, portanto, é parte desse processo e é comumente facilitado por aqueles que se ocupam do bebê, como nos ensinou Winnicott (1959­1964/2007, p. 116):

Nós agora vemos o ego da criança como algo dependente inicialmente de um ego auxiliar, algo que aproveita a estrutura e a força de um sistema altamente complexo e sutil de adaptação às necessidades, sendo essa adaptação suprida pela mãe ou pela substituta da mãe. Vemos também o interessante processo de absorção, na criança, dos elementos do cuidado com a criança, aqueles que poderiam ser chamados de elementos do “ego auxiliar”.

Nesse sentido, é por meio da experiência com a realidade que o bebê poderá constituir uma possibilidade para si (objetiva e subjetivamente falando). Em outras palavras, o contato com a realidade torna­se uma aquisição no processo de amadurecimento do bebê, sobretudo quando a confrontação com o mundo é feita em pequenas doses.

Na obra de Winnicott, a experiência de ser é estabelecida gradativamente a cada ritmo empreendido pelo par; as falhas que se dão no cuidado, impossíveis de não existirem, quando acontecem de maneira espaçada e gradual, não representam impedimento ao bebê, que desde cedo começa a se adaptar ao mundo, paulatinamente. Diferente disso, quando a falha na provisão do ambiente ocorre de maneira significativa e descontínua, o bebê não tem a oportunidade de experimentar, a seu tempo, a integração das experiências com a realidade e a tendência é de que haja uma precariedade da constituição subjetiva. O avesso da conquista decorrente das experiências relacionais precoces, portanto, corresponde a uma fragilidade na constituição do sentimento de existência, levando à irrealidade de si (falso self) ou mesmo a patologias.

Winnicott (1960/2007, p. 134) conclui que a mãe que não pode se adaptar suficientemente bem favoreceria a uma relação de submissão ao meio.

Através deste falso self o lactente constrói um conjunto de relacionamentos falsos, e por meio de introjeções pode chegar até uma aparência de ser real, de modo que a criança pode crescer se tornando exatamente como a mãe, ama­seca, tia, irmão ou quem quer que no momento domine o cenário. O falso self tem uma função positiva muito importante: ocultar o self verdadeiro, o que faz pela submissão às exigências do ambiente.

Em resumo: na tentativa de dar conta de uma experiência insuficiente de cuidado, como forma de sobrevivência psíquica, a criança se submete às exigências do meio à custa de sua subjetividade.

Considerado a influência pós­freudiana mais poderosa exercida sobre Winnicott (Graña, 2007), Sándor Ferenczi contribuiu, de maneira expressiva, para a valoração positiva da ação do outro e, por essa razão, é importante citá­lo neste momento. O húngaro Ferenczi desenvolveu em sua obra a temática da adaptação da família à criança, modificando a perspectiva de entendimento do tema ao antecipar essas questões.

No ensaio intitulado A adaptação da família à criança, escrito em 1928, Ferenczi (1928/2011) lembra os aspectos biológicos da adaptação e, retomando o termo no sentido de Darwin e Lamarck, diferencia a explicação fisiológica da psicológica. Ele atribuiu um papel fundamental à família na provisão de um ambiente acolhedor e capaz de reduzir os danos na fase de adaptação da criança aos códigos sociais, desde o asseio pessoal até a sexualidade. Sobre isso, declarou: “a essa ajuda fisiológica cumpre adicionar o instinto dos pais, que os impele a tornar a situação do recém­nascido tão agradável quanto possível” (Ferenczi, 1928/2011, p. 5).

O psicanalista húngaro deu um incremento necessário ao estudo da adaptação em psicanálise, na medida em que destacou a dialética presente nesse processo. Para ele, a forma como a família responde às adaptações da criança aos códigos que a realidade impõe tem relação direta com a possibilidade dos pequenos evoluírem emocionalmente. Sob o enfoque do traumatismo, ele problematizou algumas das repercussões sofridas pela criança perante seu ingresso na sociedade e destacou o desmame, o asseio pessoal e a passagem da criança à vida adulta, como momentos fundamentais nessa travessia.

A reflexão sobre a adaptação à luz de Ferenczi e Winnicott permite­nos, portanto, destacar a importância do cuidado na construção do psiquismo. Ao discorrer sobre os processos de maturação e o papel do cuidado nesses autores,

É importante salientar que a adaptação se desdobra na série de cuidados disponibilizados pelos adultos primordiais, considerando o próprio ato físico de segurar e manusear o recém­nascido. Expressa­se, ainda, na atmosfera do ambiente, envolvendo diferentes aspectos, tais como temperatura, luz, som, mímica, postura e ritmo, comportando, também, a maneira como o bebê é visto. É indispensável, portanto, que os pais se ajustem ao filho, aproximando­se do seu mundo interno e engajando­se na tarefa de partilhar o seu estado de ser. (Mello, Féres­Carneiro & Magalhães, 2015, p. 270).

A ênfase dada à presença sensível dos pais na vida das crianças reforça seu lugar no processo de subjetivação, conferindo ao ambiente uma participação interdependente na constituição do psiquismo. A adaptação, portanto, corresponderia à capacidade do indivíduo de responder ao meio, sem ser engolfado por ele, ou seja, sem que sua expressão criativa seja interrompida.

Contudo, a tendência contemporânea à adaptabilidade pode ultrapassar essa modalidade inicial e apresentar uma versão problemática. Nessa nova perspectiva, a criança, mais do que adaptada, parece viver uma hiperadaptação à família e ao ambiente, produzindo uma espécie de restrição de suas capacidades, o que a converte numa fiel representante de seu entorno. Nessas ocasiões, as crianças mostram­se pouco ou nada criativas e tendem a repetir um padrão definido pela família ou pela sociedade. Os sintomas podem variar e, apenas para exemplificar, estão entre os mais citados: o TDAH, a inibição, a exacerbação da sexualidade, o transtorno alimentar e do sono, a apatia ou mesmo a hipervigilância.

Isso nos faz rever o conceito de adaptação, considerando agora as duas faces de uma mesma moeda. Uma delas corresponderia à criança adaptada como sinônimo de uma criança com capacidade de se ajustar ao ambiente, usufruindo do mundo para desenvolver suas habilidades. A outra corresponderia à adaptação enquanto assimilação desimplicada, representada pelas crianças que, acomodadas ao lugar social, familiar e/ou subjetivo, incorporam o entorno e se adaptam à expectativa social e familiar, de tal forma que se revelam a si mesmas como livre expressão dessa expectativa, o que se transforma num impedimento psíquico. Assim, a face e o verso retratam o seguinte paradoxo: adaptar­se é parte de todo processo de subjetivação, na mesma medida que pode também constituir­se num entrave a sua expressão.

Pelo viés de uma hiperadaptação das famílias ao universo de suas crianças, um novo regime cultural começou a se tornar presente, estabelecendo mudanças nas configurações sociais. Nesse novo regime, as crianças, mais do que ajustadas ao meio, estariam superinvestidas de autoridade e assumindo um lugar de destaque nas famílias. Hoje é possível encontrarmos crianças que se transformaram em verdadeiros imperadores de suas casas, ditando regras de funcionamento e demonstrando uma postura contundente na busca pela realização máxima de todos seus desejos.

Em Déspotas mirins: o poder nas novas família, Neder (2012) chamou esse novo regime social de “pedocracia”. Para a autora, estaríamos vivendo no Brasil sob a égide da tirania das crianças, que, investidas de poder, assumem uma postura desmedida de controlar pais, educadores, professores e na sociedade em geral. Por meio de uma pesquisa bibliográfica extensa, que inclui um vasto número de matérias jornalísticas, a autora analisa suas hipóteses e tenta demonstrar que as mudanças, na família brasileira, incluem uma modificação nos modos de subjetivação das crianças.

Recorrendo ainda ao clássico da literatura brasileira “Brás Cubas” como exemplo da crueldade e tirania das crianças, a autora aponta como o tema se complexifica no Brasil, perante o modelo de constituição das relações familiares desde o período oitocentista. Sobre a peculiaridade tupiniquim, afirma: “Nossos pequenos tiranos, nossos imperadores mirins são entregues aos cuidados de escravos ou da mulher: escravidão negra, escravidão feminina, os subalternos no patriarcado em quem desde cedo a criança aprende a mandar” (Neder, 2012, p. 64).

Nesse novo arranjo social, portanto, a supremacia do filho impera, produzindo uma modificação na forma de subjetivação, diante da derrocada do patriarcado e à ascensão dos pequenos tiranos. As implicações são, portanto, as mais variadas, desde remanejamentos familiares e sociais às repercussões psíquicas. Podemos dizer que o déspota mirim, ao ocupar o centro da vida familiar, estaria transformando o cenário social e, mais do que isso, reprogramando a relação entre pais e filhos, entre crianças e adultos.

Portanto, o deslocamento do poder patriarcal para o poder filial estaria transformando os pequenos rebentos em “sem limites” e produzindo subjetividades narcisistas, logo, tirânicas. Esse novo regime social, cunhado pelo nome de pedocracia, estaria promovendo um abalo nos princípios hierárquicos, na medida em que “o adulto passa a agir como alguém muito mais interessado em ser amado pelos filhos do que obedecido” (Neder, 2012, p. 40). Segundo a autora, estaríamos vivendo a chamada síndrome de Kindult – expressão que reúne as palavras kind (criança) e adult (adulto) – que poderia ser definida como a busca dos adultos por agir como crianças. A partir dessas reflexões, somos levados a supor um esfacelamento dos lugares sociais, que estaria produzindo o fim das diferenças entre gerações.

De alguma forma, encontramos a fusão dessas duas etapas de vida, tal como formula Postman (2012) na Era da Televisão. Guardadas as devidas diferenças, o autor também irá considerar o adulto­criança como expressão, na contemporaneidade, da indiferenciação que estaria ocorrendo entre as crianças e os adultos, resultante do que, para ele, é característico da irrelevância da infância na atualidade. Sua tese fundamental de que a criança estaria em extinção é demonstrada a partir do reconhecimento do que ele chamou de um estreitamento da linha divisória entre ser criança e ser adulto, evidenciada pelo alcoolismo, pela criminalidade, pelos altos índices de uso de drogas e, ainda, pela precocidade do início da puberdade. Para ele, os indicadores da infância estariam desaparecendo, fundidos no estilo de vida adulta.

Tanto para Neder (2012) quanto para Postman (2012), a fusão da criança e do adulto é levada em consideração, mas como é possível notar, sob argumentos completamente diferentes. Enquanto a primeira analisa essa fusão em termos de um esfacelamento do poder patriarcal moderno e de sua submissão aos déspotas mirins, o que confere às crianças um lugar de destaque na cultura; o segundo defende a inexistência das crianças, o que se expressa pelo desaparecimento da infância como explicação para as mudanças contemporâneas, ou seja, anuncia o fim da infância perante a informação eletrônica. Entendemos que essas posições colocam as crianças deste século em papéis completamente diferentes. Para nós, mais do que analisar a suposta afirmação de desaparecimento da infância (o que seria uma tarefa muito extensa para ser tratada no momento), interessa­nos demarcar a importância de um estudo como esse e considerar a complexidade do debate acerca da infância. De outro ponto de vista, e ampliando esta discussão, temos ainda o paradigma biologizante, que ao responder ao imperativo da saúde perfeita, vêm invadindo como uma avalanche as interpretações sobre os fenômenos da infância. Sergue e Ferraz (1997), Ortega (2003), Lima (2005), Bezerra & Ortega (2006), Martins (2008) mostram como as mudanças no domínio da saúde têm produzido discursos fisicalistas e medicalizantes sobre o ser humano, favorecendo uma desimplicação do sujeito em seu sofrimento e conduzindo a identidades marcadas por um paradigma biológico, as bioidentidades5 − o que acena para outra vertente de análise dos problemas sociais que, hoje, reduzidos a problemas biológicos, oferecem uma questão para importantes debates sobre a clínica psicanalítica contemporânea.

Essa nova moral cultural, que valoriza a subjetividade somática, estaria contribuindo para que um grande número de famílias volte­se para as práticas de cuidado dirigidas ao corpo e à saúde de suas crianças, promovendo novas formas de sofrimento psíquico na infância, como o aumento do número de crianças submetidas a acompanhamentos psiquiátricos e psicológicos, bem como da medicalização de seus comportamentos mediante a prescrição banalizada de psicofármacos6.

Nesse momento, introduzimos essas hipóteses com o intuito de demarcar nossa posição sobre o sofrimento psíquico das crianças, que corresponde (também) ao sofrimento de um tempo, sem desconsiderar as expressões singulares e as particularidades de sintomas decorrentes de falhas ambientais comuns na infância.

Avessos ao equívoco de generalizações definitivas, pensamos ser fundamental assumir nosso ponto de vista acerca da capacidade da criança e da sociedade de promoverem gestos espontâneos em torno de suas vidas. Em princípio, as aparentes desvantagens de ser criança no século XXI não nos parece suplantar as infindáveis supostas vantagens de crescer e ser educado na contemporaneidade. O pêndulo que ora aponta para o lado de uma infância induzida e, artificialmente, medicalizada, ora retorna para o lado de um agir autêntico no mundo, marcado pela vontade de ir além do querer fabricar existências. Trata­se, portanto, de considerar o paradoxo contido nas vicissitudes de ser criança.

Muitas crianças e suas novas famílias, diferentes de outras épocas, saem hoje às ruas para reivindicar um lugar para as diferenças, opõem­se aos imperativos do higienismo e fogem de uma moral normativa, dando lugar aos processos de singularização. Na atualidade, as crianças têm a possibilidade de construir coisas novas, de ocupar um papel de ator social e de sujeito de direitos, como nunca antes foi possível. Elas adquiriram o acesso à informação e às tecnologias com uma facilidade invejável, tornaram­se alvo de políticas públicas em todos os segmentos, atingiram uma representatividade social e uma consolidação de direitos específicos (Castro, 2007) antes impensáveis.

As crianças do século XXI passaram a ser escutadas em suas escolas, famílias e sociedades, da mesma forma que conquistaram uma relação parental mais livre e uma educação atenta às diferenças. As privações e os descompassos no desenvolvimento tornaram­se mais facilmente evitáveis, o que não só diminuiu a mortalidade infantil, como fomentou espaços de cuidados efetivos, diferentes daquele exercício ortopédico, que deixou de ser a única possibilidade.

Isso nos permite afirmar que as formas de sofrimento psíquico das crianças se modificaram, porque acompanharam essa necessária transformação cultural. Essas mudanças precisam ser consideradas, mas não podemos deixar de mencionar a dimensão imponderável do ser humano. Ao reconhecermos essa face inapreensível do homem, somos capazes de nos afastar do assujeitamento aos padrões socioculturais e fomentar a expressão da criatividade primária inerente a todo sujeito, tal como ensina Winnicott (1975).

 

Conclusão

Ao considerarmos a face e o verso da adaptação na infância, tentamos elucidar os paradoxos que comportam a constituição psíquica – permanentemente marcada pela oscilação dependência/independência, autonomia/ suporte, liberdade/submissão. Dessa maneira, pensar a adaptação na infância implica a capacidade de suportar a transição das crianças para esses lugares, a partir de um ambiente bastante flexível, para permitir uma adaptação elástica, mas consistente, e bastante fixo para garantir à criança um espaço para a constituição de si.

Talvez, por pensarmos assim, possamos dizer que a defesa da liberdade na infância é um ato de coragem. O aprofundamento dessas questões, bem como o desenvolvimento dessas possibilidades, contudo, exigiria uma análise mais apurada, restando­nos pensá­las como tema para futuras pesquisas. Por ora, trata­se de assegurar que as condições necessárias sejam estabelecidas, afinal, decidir deixar a criança ser ela mesma, favorecendo seu processo identificatório e ampliando os horizontes em seu entorno, exige dos pais, profissionais e da sociedade, em geral, uma atitude sensivelmente implicada e significativamente libertária. Um ato de cuidado.

 

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Endereço para correspondência
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Recebido em julho/2015.
Aceito em junho/2016.

 

 

NOTAS

1. Trabalho derivado de dissertação de mestrado defendida em abril de 2014 na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), desenvolvida com o apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
2. Tomamos aqui de empréstimo o termo usado por Lajonquière (2010) ao definir a psicanálise na vida cotidiana com as crianças.
3. Carl Honoré é um jornalista escocês premiado e considerado o criador do Slow Movement, que trabalha a ideia de desaceleração do comportamento como fórmula para a conquista de uma vida mais saudável e prazerosa. Para saber mais: http://www.carlhonore.com/.
4. A noção de adaptação em psicanálise subverte a ideia de desenvolvimento da psicologia na medida em que desconsidera a existência de uma criança natural. Desse modo, a concepção psicanalítica da infância é marcada pela dimensão desejante atribuída por Freud às crianças; bem como pela suposição da presença da sexualidade infantil.
5. Essa noção de bioidentidades se baseia no critério de normalidade relativo, sobretudo, a padrões biológicos e predicados corporais. Sobre o assunto, ver Ortega (2003).
6. Esperanza (2011, p. 58) escreve: “as substituições operadas são então as seguintes: o transtorno substitui o sintoma, o organismo substitui o corpo, o indivíduo substitui o sujeito e o inconsciente desaparece em favor de comportamentos e condutas a modificar”. Ver também Guarido e Voltolini (2009).

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