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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.21 no.2 São Paulo ago. 2016

http://dx.doi.org/http//dx.doi.org/0.11606/issn.1981-1624.v21i2p412-427 

DOI: http//dx.doi.org/0.11606/issn.1981-1624.v21i2p412-427

ARTIGO

 

Os “tempos de autismo” e a clínica psicanalítica

 

The “times of autism” and the psychoanalytic clinic

 

Los “tiempos de autismo” y la clínica psicoanalítica

 

 

Leda Mariza Fischer Bernardino

Psicanalista. Docente aposentada da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Analista membro da Associação Psicanalítica de Curitiba. Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, São Paulo, SP, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo discutimos as relações entre características de nosso tempo e o autismo. Hoje observamos uma passagem da sociedade patriarcal para a sociedade capitalista neoliberal, implicando um deslizamento do discurso do mestre para o discurso capitalista. Apresentamos contribuições teóricas de autores que se debruçaram sobre as profundas mudanças culturais na contemporaneidade. Propomos uma reflexão sobre os efeitos dessas transformações na construção da paternidade e da maternidade e na constituição subjetiva dos bebês. Retomamos situações sociais e clínicas que demonstram os traços dessas alterações no tecido cultural e suas relações com o autismo.

Descritores: autismo; contemporaneidade; sintomas; função paterna; função materna.


ABSTRACT

In this study, we discuss about the relations between some characteristics of our time and autism. We refer the passage of the patriarchal society to the neoliberal society and the passage of the discourse of the master to the discourse of the capitalist. We present the contributions of authors who worked about the deep cultural changes in the contemporary. We propose to think about the effects of these changes in the construction of maternity and paternity and to the subject constitution of babies. We present clinical and social situations, which show traces of these changes in the social structure and we relate that with the autism.

Index terms: autism; contemporary; symptom; paternal function; maternal function.


RESUMEN

En este artículo proponemos la discusión sobre características de nuestros tiempos y el autismo. Hoy observamos un pasaje de la sociedad patriarcal para la sociedad capitalista neoliberal, implicando un deslizamiento del discurso del amo al discurso capitalista. Presentamos y discutimos aportes teóricos de autores que se dedican al estudio de los profundos cambios culturales en la contemporaneidad. Proponemos una reflexión sobre los efectos de estas transformaciones en la construcción de la paternidad y de la maternidad, así como en la constitución subjetiva de los bebés. Retomamos situaciones sociales y clínicas que demuestran los rasgos de estas alteraciones en el tejido cultural y sus relaciones con el autismo.

Palabras clave: autismo; contemporaneidad; síntomas; función paterna; función materna.


 

 

Hoje, num contexto cultural em franca transformação, homens e mulheres que se aventuram na procriação vão fundar sua família e construir-se como pai e como mãe em relação a um bebê1. A estrutura simbólica, marcada por essas transformações, está presente desde antes do nascimento do bebê e é em relação a ela que vai ocorrer seu processo de tornar-se sujeito.

Pretendemos situar neste trabalho os desafios da dupla construção: maternidade e paternidade, por um lado; e constituição subjetiva do bebê, por outro. Faremos esse percurso a partir de vários estudos que analisam o alcance dessas profundas mudanças culturais que hoje vivenciamos, para então discutir algumas observações clínicas, com seus impasses.

Como observação clínica preliminar poderíamos citar o inquietante aumento dos diagnósticos de autismo na atualidade: em 2002, uma a cada 150 crianças apresentava autismo; já em 2008, o número passou a ser de uma a cada 88 crianças − ou seja, em apenas seis anos houve um aumento de 70% nessa incidência (Centers for Disease Control and Prevention, 2010). Trata-se de uma discussão bem mais ampla, que envolve diversas hipóteses, desde modificações dos critérios diagnósticos até imprecisões diagnósticas, ou mesmo uma epidemia hiperdiagnóstica. Não entraremos nesse debate com profundidade, mas interessa-nos aqui discutir a relação possível entre esse aumento de diagnós ticos e as condições simbólico-culturais que hoje se apresentam para as famílias e seus rebentos no início da vida destes últimos.

Enquanto psicanalistas é importante que possamos refletir sobre os efeitos de nossa época na estruturação dos sujeitos, principalmente a partir do que a clínica nos apresenta, para estarmos à altura dos dilemas e sofrimentos que acolhemos com nossa escuta e para que o trabalho psíquico requerido possa por nós ser acompanhado com sensibilidade e direcionamento. É importante também que possamos contribuir amplamente para a discussão desses temas na pólis.

São vários os teóricos que abordam a suspensão das certezas e as transformações drásticas que tocam a experiência humana contemporânea.

Zygmunt Bauman (2009) refere-se a nosso tempo como o de um “interregno”. Esse significante é utilizado por Gramsci (1971, p. 275-276, tradução nossa) para discutir a crise da autoridade: “o velho está morrendo e o novo não pode nascer; nesse interregno uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”.

Este interregno marca a experiência de vida da família atual: estamos situados numa particular escansão entre dois tempos – o da sociedade patriarcal, em processo de desaparecimento, e o da sociedade pós-moderna, cujos pilares ainda restam a definir, mas que já produziu um grande sintoma, o discurso tecnocientífico.

Gilles Lipovetsky (2004), em Os tempos hipermodernos, refere-se a uma sociedade liberal, caracterizada pelo movimento, pela fluidez, pela flexibilidade, indiferente aos grandes princípios estruturantes, que precisaram adaptar-se para não desaparecer. Ele aponta que o indivíduo hipermoderno está frágil; as obrigações e exigências que o definem são mais pesadas do que nunca; a liberdade, o conforto, a qualidade e a expectativa de vida não eliminam o trágico da experiência, pelo contrário, tornam mais cruel a contradição. Segundo ele, nessa transição da pós-modernidade à hipermodernidade, passou-se do gozo à angústia.

Dany-Robert Dufour (2005, p. 149) afirma que “o sujeito pós-moderno se representa como não engendrado, no sentido em que ele se vê na posição de não dever mais nada à geração precedente. Muito pelo contrário até, tudo se passa como se tudo lhe fosse devido”. O autor mesmo tira a conclusão decorrente, referindo-se à “inversão da antiga dívida simbólica” (p. 149). O sujeito moderno, à contramão do movimento típico do final do Édipo, ao romper com a tradição e com os valores das gerações que o antecederam, pretende agir como um self made man e, ao mesmo tempo, cobra do mundo que a satisfação que busca lhe seja dada, estando na posição de cobrar seus direitos perante a sociedade, mas muito pouco disposto a cumprir seus deveres.

Também no campo da psicanálise, vários autores se debruçaram sobre essas transformações. Jean-Pierre Lebrun (2004, p. 125) se refere à falência da função paterna, e à “promoção da mesmidade por nossa sociedade”, como o que dá “cada vez mais lugar ao funcionamento desvairado da pulsão de morte”, que é a pulsão incestuosa por excelência, e abre caminho para o reforço da “colusão das forças destrutivas” (p. 126). A consequência disso no plano social-político é que vai se instalar “um poder no qual a autoridade não está mais assegurada por um ao-menos-um, mas virtualmente, em todo caso, por todos” (Lebrun, 2004, p. 159), no qual “a inexistência do Outro é a regra” (p. 161).

Além disso, o autor ressalta o papel atual do discurso da ciência de rompimento com o equilíbrio da família, pois a ciência se instalou como o lugar de saber último, desqualificando a cena familiar como lugar por excelência da elaboração da realidade psíquica do sujeito e base para sua vida social. No lugar do saber inconsciente, transmitido por gerações, e que sustenta a identidade dos sujeitos de desejo, instala-se o discurso da ciência, em que o sujeito não precisa mais assumir as consequências que o falar implica.

Esse chamado “cientificismo” passa a constituir a autoridade contemporânea, com dois traços predominantes: a retirada da categoria do impossível – a ciência vai dar conta de todo o real (se não agora, num futuro próximo), e a perda da relação espontânea com o mundo. Os riscos são: a perda do sentido do limite e a perda do senso comum.

Observemos que no lugar do falo − referência para a sociedade patriarcal tradicional −, temos a ciência que, ao contrário do falo, não representa a falta, mas anula os limites; e em vez de garantir um pacto simbólico em torno do senso comum, propõe o abandono desse senso.

A consequência mais acabada do cientificismo é a Tecnociência, que implica a submissão da ciência à essência da técnica. Os efeitos desse tecnocientificismo são um meio povoado por objetos produzidos pela ciência e oferecidos pelo mercado aos sujeitos reduzidos a meros consumidores que fazem a cadeia econômica funcionar.

Podemos avançar um pouco mais nessa questão se a tomarmos pela via dos discursos propostos por Lacan, pois o que observamos hoje é um deslizamento do discurso do Mestre para o discurso do Capitalista. Lacan já profetizava esse fato no Seminário 17, O Avesso da Psicanálise, quando ele chega até a utilizar o termo “mutação” para referir-se a esse movimento a que assistimos hoje: “Falo dessa mutação capital, também ela, que confere ao discurso do mestre seu estilo capitalista” (Lacan, 1992, p. 160).

Enquanto o discurso do Mestre se refere às leis da linguagem e ao inconsciente, marcado pela impossibilidade de encontro com o objeto causa do desejo, no discurso do Capitalista esta impossibilidade estrutural, causadora do desejo e da possibilidade de um dizer próprio, é anulada. Como aponta Marc Strauss (2015),

o que era antigamente uma ética, o que integrava o sujeito à sua comunidade, transforma-se em um processo de satisfação imediata, pela apropriação do objeto. Isto transforma cada um em indivíduo isolado... Cada um está às voltas com os objetos fornecidos pela Ciência: os gadgets (comunicado no seminário “O discurso do capitalista e seus efeitos sobre o sujeito contemporâneo, os laços sociais e a psicanálise”, 23 de abril, 2015, IPUSP).

Observamos os sujeitos da contemporaneidade vivendo nessa particular oscilação entre discurso do Mestre e discurso do Capitalista, em que as leis da linguagem e do desejo se veem cada vez mais suplantadas pelo imperativo de acesso a uma satisfação garantida pela mídia e pelo mercado que não passa de um logro, já que cada objeto proposto é imediatamente substituído por um mais moderno e mais satisfatório. É um movimento sem parada, em que o processo metafórico, que permite se encontrar e dar sentido ao mundo ao redor vê-se impedido, pelo movimento metonímico incessante atrás do objeto, que move a economia capitalista.

Passando agora a refletir sobre as consequências disso na família contemporânea, temos Serge Tisseron, psicanalista que pesquisa os efeitos das novas tecnologias sobre os sujeitos contemporâneos. Ele salienta que a família atual é um lugar de perturbações importantes. Segundo ele, no domínio familiar, o campo virtual modifica a percepção que cada um tem de si mesmo e a relação com os outros, com o desconhecido e com as imagens. Ele chama atenção ao fato de que nas famílias, hoje, as pessoas encarregadas de avalizar as identidades dos filhos não são mais preferencialmente os pais. Igual importância tem a influência dos colegas maiores, da mídia e da internet (S. Tisseron, comunicado no seminário “A relação entre a criança e o mundo virtual”, 18 de março, 2008, Universidade Paris 7).

Diante desse estado de coisas, há psicanalistas que se interessam em pensar a família em tudo isso e sua capacidade de resistência. Encontramos no trabalho de Daniela Teperman (2014) o destaque do conceito − que ela encontra em Lacan − de “família como resíduo”. Segundo a autora, “há algo de irredutível na família, algo que independe do momento histórico em que vive o sujeito, que transcende o que é relativo a uma época: a família em sua função de resíduo” (Teperman, 2014, p. 81-82).

Notemos que, para Teperman (2014), assim como para Derrida e Roudinesco (2004), as transformações que vivemos na atualidade não abalam a estrutura simbólica, já que há algo que resta de fundamental na família, para além das mudanças ocorridas.

Trata-se de uma posição diferente das que discutimos anteriormente. Lipovetsky (2004), Dufour (2005) e Lebrun (2004) acreditam tratar-se de transformações estruturais que mexem no próprio tecido simbólico.

Enquanto psicanalistas, sabemos pelas questões que recebemos das escolas, das próprias famílias e dos sujeitos em análise que a maneira de enfrentar essas profundas alterações no tecido social tem sido diferente da observada, por exemplo, no tempo de Freud e de suas descrições dos sintomas de sua época.

Para contribuir nesse debate, gostaria de apresentar algumas observações clínicas, a partir de alguns traços que passarei a destacar. Em relação à escuta de mães de crianças com graves problemas psíquicos, bem como à escuta de grávidas e puérperas em dificuldade, é notável um significativo aumento da neurose obsessiva nessas mulheres.

Essa constatação encontra ecos na observação de Charles Melman (2002) sobre as novas configurações clínicas na atualidade. Ele aponta uma inversão da relação neurose/sexo, mostrando uma maior incidência da neurose obsessiva nas mulheres e da histeria nos homens, exatamente o contrário do que Freud encontrou em sua época.

O que tenho observado em minha clínica é que mulheres que se estruturam de modo neurótico obsessivo acabam tendo muita dificuldade na construção de sua identidade como mães. Algumas hipóteses podem ser lançadas para tentar compreender essa dificuldade. Primeiramente, poderíamos pensar que o falo para elas se situa claramente na questão da produção (erotismo anal-fálico). Assim, ao lado das realizações do trabalho, ou na continuidade dessa série, ter um filho para elas é cumprir mais um item da lista de tarefas que lhes demanda o Outro: precisam tê-lo para poder “ticar” esse tópico da lista e, muitas vezes, o desejo de filho não chega a ultrapassar essa função... São, portanto, mulheres que, ao se tornarem mães, dedicam-se, sobretudo, a fornecer ao filho os cuidados básicos quanto a suas “necessidades”. Em segundo lugar, tendem a viver a demanda por parte de seus bebês como insuportável, uma vez que devem atender (ao estilo obsessivo) a todas elas. Então, os filhos as esgotam... sem que o elemento erógeno se torne presente, para lhes trazer algum prazer nessa experiência. Não é no âmbito de ser mulher que a experiência da maternidade lhes toca, é muito mais no âmbito de ter um filho para atender às exigências de produtividade.

Temos, nesse caso, uma série de consequências, que vão desde as mais graves – quando nenhum erotismo (ou muito pouco) se presentifica para permitir a entrada do bebê no circuito pulsional –, até o risco possível de um retraimento relacional do bebê que pode se associar a patologias graves na sequência de seu desenvolvimento. O retraimento relacional é definido como o fechamento sobre si mesmo, o movimento do bebê de se afastar para se defender, para se preservar; quando durável é associado frequentemente a uma patologia grave, como o autismo e outros distúrbios globais do desenvolvimento, bem como à depressão do bebê (Guedenay & Jeammet, 2002).

Outra possibilidade ainda seria quando os bebês investem no plano cognitivo-intelectual, posto que é a via do pensamento, da racionalidade, que atrai a atenção da mãe. Bebês que são tomados como tarefas a cumprir por suas mães obsessivas podem tentar reparar a pobreza afetiva das experiências com o outro por meio de um superinvestimento desses aspectos cognitivos, entrando em contato com o campo simbólico de modo direto, sem a intermediação imaginária. Essa superexposição aos estímulos sem a dilatação imaginária permitida pelo brincar e pela significação do contato com o outro pode provocar tanto um quadro psicótico quanto, com menor gravidade, uma dificuldade psicomotora como a hiperatividade ou um déficit cognitivo na atenção − ou isso pode levar a outra ordem de distúrbios, ligados à relação com os limites, também muito difíceis para a estruturação das crianças, quando todas as demandas destas são obturadas: tornam-se exigentes, tirânicas, tudo que pedem tem que ser providenciado imediatamente; as crianças que, segundo Bernardino e Kupfer (2008), poderiam ser chamadas de “mestres do gozo” da família atual.

De todo modo, são crianças que geralmente não são convocadas a brincar. Seu imaginário tende a se tornar pobre e a relação com a realidade tende a ser direta ou desviada para os objetos virtuais (sempre mais intelectualizados). Essas mães de estilo obsessivo não sabem brincar e têm muita dificuldade de estabelecer, entre elas e seus bebês, um espaço transicional, que lhes permitiria adentrar o campo Imaginário. Sabemos, desde Winnicott (1975), com seu conceito de objeto transicional e desde Lacan (1966) com sua descrição da operação do estádio do espelho, o quanto o registro imaginário é central para a constituição do eu, da imagem corporal e para a elaboração da separação eu/ não eu, bem como para o enfrentamento da dura realidade diante da situação real de desamparo própria à primeira infância.

Outra questão que marca a clínica atual e que está ligada às alterações da estrutura simbólica é a exacerbação do narcisismo dos pais. Assistimos hoje a uma série de situações sui generis, desde brigas de pais em frente à escola dos filhos − porque seus filhos brigaram entre si − até processos movidos contra instituições, porque a forma como estas agiram não estava em consonância com o que os pais esperavam para proteger o filho. Ou mesmo pais que invadem as redes sociais para defender o filho diante de alguma provocação feita por um dos pares deste último.

Não se trata simplesmente do que Freud (1914/2004) situou como “His majesty the baby”, condição necessária e estrutural para o filho ter seu lugar na história dos pais e estabelecer seu próprio narcisismo, tampouco se trata de ter um filho para que ele próprio, em sua história pessoal, possa resgatar o narcisismo perdido dos pais, reparando ou superando suas falhas edípicas, ideal também apontado por Freud como um dos fundamentos do desejo de ser pai ou mãe.

Trata-se de um fenômeno diferente, em que sintomaticamente deparamos com um exagero. Como esses pais atuais não renunciaram a sua “criança narcísica”, eles não se reconhecem como castrados, estão eles mesmos em uma posição de onipotência fálica. São os filhos – estes sim – que vêm lhes apontar uma falta, que os pais encaram como falta imaginária, ou seja, um defeito a ser consertado. Esses pais extremamente narcísicos se interessam por filhos objetos, que eles encherão dos objetos oferecidos ao consumo infantil pelo mercado, para que a falta seja sempre escamoteada.

Vemos então um narcisismo que se transmite de pais para filhos, sem que a questão da diferença e da falta seja transmitida. As consequências disso são a não entrada ou a extrema dificuldade de estar no campo do desejo, bem como a não resolução edípica que mudaria a posição do sujeito.

Se paradoxalmente vemos no campo social o conceito de infância – enquanto tempo de quarentena e de proteção – desaparecendo, no que se refere à constituição da subjetividade, os sujeitos estão cada vez mais cristalizados no infantil.

Por outro lado, no avesso desse narcisismo exacerbado, temos a clínica da depressão materna ou mesmo da melancolização materna, que aponta para o que Claude Boukobza (1998) chamou de “hemorragia narcísica”. A autora refere-se a essas mães cujo narcisismo “é extremamente frágil”, mulheres que “nunca puderam investir e assumir uma imagem unificada de si mesmas” (Boukobza, 1998, p. 67). Para essas mulheres a experiência da maternidade pode ser vivida de modo muito difícil, pois o parto e a chegada de um bebê são duras provas que podem abalar sobremaneira uma identidade fragmentada. Depressão e melancolia são patologias que podem aparecer em situações de forçamento de mudança identitária, como, por exemplo, tornar-se mãe. Atualmente, contudo, com a falta de uma rede familiar mais ampla − e mesmo social − a sustentação da função materna para os bebês − enquanto essas mães estão às voltas com seu narcisismo fragmentado e tomadas por sintomas mórbidos − não encontra nenhum agente substituto. Os efeitos sobre os bebês se fazem sentir às vezes de modo drástico.

Vemos que em muitos desses casos não há encontro mãe/bebê, mas mau encontro ou mesmo desencontro. Bebês que entram no mundo tendo que lidar com mães depressivas, até mesmo melancólicas, podem tentar enfrentar essa situação sendo eles próprios hipervigilantes e extremamente precoces, tentando reparar um ambiente que lhes aparece como precário; ou, de modo mais grave, podem se fechar ao contato com esse ambiente, sendo totalmente submissos aos cuidados que recebem, mas sem cobrar por eles e sem se interessar por ninguém. Temos o risco, no primeiro caso, das chamadas personalidades “falso self ”, como situava Winnicott (1975), e no segundo, o risco pode levar ao retraimento relacional em relação ao outro, que pode, em muitos casos, ser diagnosticado equivocadamente como autismo, quando se trata muito mais de uma depressão do bebê, que também implica um retraimento muito prejudicial à interação necessária dos primeiros meses.

Podemos constatar nesse rápido percurso que a contemporaneidade vem apresentando muitos desafios à família, a referência fálica não sendo mais a baliza principal em muitos casos, e restando a questão: o que faz referência hoje? A precariedade do discurso tecnocientífico? Este parece nada ter a dizer aos sujeitos!

Lacan (2007) no Seminário 23 anteviu de modo vanguardista essas alterações na estrutura que vão além do Édipo e estão aquém do Simbólico. Ele deixou como norte a questão da invenção, mostrando por meio do exemplo de James Joyce um sujeito sem a referência ao Nome-do-Pai que constrói um nome e um ego para si a partir de uma escrita inovadora, como um artesão que monta um artifício e inventa uma arte. Embora este estudo lacaniano visasse à problemática da psicose fora de crise, podemos pensar que hoje, em maior ou menor grau, todos enfrentam essa mesma questão: a ausência da referência fálica como ordenadora das significações.

Em seus últimos seminários Lacan de alguma forma considera essa mutação cultural em curso, ao pluralizar o Nome-do-Pai e, dessa forma, ampliar a referência à função paterna antes reduzida ao modo fálico, propondo que Nomes-do-Pai podem ser encontrados em outros elementos – na vastidão do campo simbólico –, que podem permitir ao sujeito nomear-se e ocupar um lugar social. Entretanto, são soluções singulares, não respaldadas pela organização social de base, que devem se sustentar por si sós, a partir da solução inventiva encontrada.

Apenas poderíamos questionar: a sociedade hipermoderna dá lugar à invenção, oferece aos sujeitos de sua época meios de chegar a essa solução criativa?

Ou esses tempos de autismo tendem tão somente à ausência do Outro, à mesmidade, ao isolamento dos sujeitos, cada vez mais presos às relações com seus objetos, buscando suas referências na internet?

É verdade que o mercado de brinquedos, jogos e entretenimento nos confronta hoje com zumbis, robôs e outros personagens que carecem de subjetividade. Seriam essas representações das crianças do futuro? Para Alfredo Jerusalinsky (2013, p. 169) “o que hoje se ensina a uma criança é o que se deseja que a sociedade seja amanhã”.

Podemos observar, à guisa de conclusão, que as condições simbólico-culturais atuais favorecem alguns sintomas próprios ao quadro autístico, a forclusão do Outro sendo o mais importante deles. A isso vêm se somar as fragilidades contemporâneas de sustentação ao exercício da maternidade e da paternidade. O caminho necessário à constituição do sujeito pode se tornar, muito precocemente, um percurso cheio de obstáculos, diante dos quais os bebês podem apresentar defesas graves, principalmente de fechamento para o contato com o entorno, sem necessariamente se tratar ainda de um quadro autístico – mas que acaba sendo diagnosticado precipitadamente como tal.

Assim, nesses tempos de autismo, torna-se importante visar o Simbólico mais além da presença ostensiva e excessiva de objetos reais, bem como das imagens enganadoras. As leis da linguagem estão aí para nos lembrar da diferença e do desejo. E se, no discurso dominante, a sociedade se defende dessas constatações, ainda restam os psicanalistas para lembrar o poder das palavras e de como são imprescindíveis na constituição dos sujeitos.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
Rua Mateus Grou, 57/42
05415-050 – São Paulo – SP – Brasil.
ledber@terra.com.br

Recebido em maio/2016.
Aceito em agosto/2016.

 

 

NOTA

1. Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada no Colóquio Tratar e Educar em Tempos de Autismo, em outubro de 2015, na FEUSP. Agradeço à interlocução das colegas Maria Cristina Kupfer e Angela Vorcaro que permitiram apresentar aqui uma versão mais elaborada do tema.

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