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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.21 no.2 São Paulo ago. 2016

http://dx.doi.org/http//dx.doi.org/0.11606/issn.1981-1624.v21i2p428-454 

DOI: http//dx.doi.org/0.11606/issn.1981-1624.v21i2p428-454

ARTIGO

 

O “aluno estranho”: entre reflexibilidade e atribuição

 

The strange student: between reflexibility and attribution

 

El “alumno raro”: entre la reflexión y asignación

 

 

Françoise HatchuelI; Eric ChauvierII; Elodie KerrienIII; Konstantinos MarkakisIV

IProfessora do Departamento de Ciências da Educação e pesquisadora da equipe “Saber, Relação com o saber e Processo de transmissão” (CREF - EA1589) na Université Paris Ouest Nanterre La Défense, Nanterre, França
IIDoutor em Antropologia pela Université Bordeaux 2. Pesquisador do Centre de Recherche Nantais Architectures Urbanités (CRENEU), École Nationale Superieure d'Árchitecture (NSA), Nantes, França
IIIDoutoranda e pesquisadora do Laboratório “Educação, Discurso e Aprendizagem” (EDA-EA4071) na Université Paris Descartes, Paris, França
IVDoutorando e pesquisador da equipe “Saber, Relação com o saber e Processo de transmissão” (CREF - EA1589) na Université Paris Ouest Nanterre La Défense, Nanterre, França

Correspondência

 

 


RESUMO

Qualificamos como estranho aquele que nos surpreende, que nos remete à diferença, que nos toca. Os quatro autores deste artigo interrogam-se sobre a questão do aluno estranho, isto é, da relação emocionalmente carregada que o profissional da educação pode manter com ou vários alunos em um espaço educativo. Para isso, eles/elas põem em debate seus diferentes trabalhos cuja referência comum ao sentimento de estranho familiar mencionado por Freud constitui a base de troca. A partir das abordagens qualitativas (Hatchuel, Kerrien, Markakis adotam uma abordagem clínica com orientação psicanalítica, e Chauvier se refere à etnografia da comunicação), e eles/elas fazem a hipótese de que considerar o afeto subjacente pode favorecer no sujeito um movimento de aceitação da diferença contra o da rejeição e/ou o da estigmatização.

Descritores: relação professor-aluno; aluno estranho; embaraço; estranho familiar; abordagem clínica com orientação psicanalítica; etnografia da comunicação.


ABSTRACT

W e name as strange the one who surprises us, who refers us to the different, who moves us. The four authors of this article ask about the issue of the strange student, i.e. the relationship emotionally charged that the educational professional could maintain with one or more students in an educational space. For this purpose, they discuss their different researches of which the common reference to the feeling of the worrying strangeness raised by Freud provides them with the basis of exchange. Based on qualitative approaches (Hatchuel, Kerrien, Markakis adopt a clinical approach of psychoanalytic orientation, and Chauvier refers to the ethnography of communication), they theorize that, by taking into account the underlying affect, the subject could assist an internal movement to the acceptance of the difference against the rejection and/ or the stigmatization.

Index terms: student -teacher relationship; strange student; embarrassment; worrying strangeness; clinical approach of psychoanalytic orientation; ethnography of communication.


RESUMEN

El extraño es lo que nos sorprende, nos remite a la diferencia, nos mueve. Los cuatro autores de este artículo plantean el tema del alumno raro, es decir, de la relación emocionalmente cargada que el profesional de la educación puede entablar con uno o varios alumnos en un marco educativo. Para hacerlo, debaten sus diferentes trabajos cuya referencia común al sentimiento de la inquietante extrañeza evocada por Freud constituye la base del intercambio. Desde enfoques cualitativos (Hatchuel, Kerrien, Markakis adoptan un enfoque clínico de orientación psicoanalítica, y Chauvier se refiere a la etnografía de la comunicación), formulan la hipótesis de que la tomada en consideración del afecto subyacente puede favorecer al sujeto un movimiento de aceptación de la diferencia contra el del rechazo y/o de la estigmatización.

Palabras clave: relación profesor-alumno; alumno raro; confusión; inquietante extrañeza; enfoque clínico de orientación psicoanalítica; etnografía de la comunicación.


 

 

Introdução

Em setembro de 2012, Konstatinos Markakis defendeu sua tese de Master 2, pesquisa intitulada “Approche clinique d'orientation psychanalytique du rapport à l'élève étrange: l'étude du discours d'un enseignant spécialisé en Clis 1 (Classe d'inclusion scolaire, destinée aux élèves atteints de troubles des fonctions cognitives ou mentales)” [Abordagem clínica com orientação psicanalítica da relação com o aluno estranho: estudo do discurso de um professor especializado em Clis 1 (classe de inclusão escolar, destinada aos alunos com transtornos das funções cognitivas ou mentais)] sob direção de Françoise Hatchuel. Esse título e, principalmente, o sintagma de “aluno estranho” resultaram de uma longa “negociação” com o intuito de levar o “aluno” a melhor “identificar seu objeto de pesquisa”, tendo este respondido, obstinadamente, que as categorizações propostas (loucura e deficiência) não o satisfaziam, pois eram as da instituição, diferentes na França e em seu país, Grécia, e não permitiam apreender suficientemente o que poderia estar em jogo para um sujeito perante essa “diferença”1. Ao mesmo tempo, o trabalho de Kerrien (2012), ainda sob direção de F. Hatchuel, conduziu à conclusão de que a figura da criança cigana, para um(a) professor(a) que jamais havia encontrado uma criança dessas, poderia constituir o arquétipo da alteridade e do risco da rejeição, apreendido em termos de desinvestimento no sentido de Piera Aulagnier (1982).

Para Eric Chauvier, quarto autor deste artigo, estaríamos aqui remetidos aos eixos filosóficos desenvolvidos por Wittgenstein (1961, p. 150­151) em relação à linguagem comum. Esses eixos podem fornecer estruturas teóricas pertinentes ao mostrar, por um lado, a ilusão descritiva no uso que fazemos das categorias (aqui “deficiência” ou “loucura”) com uma confusão entre as regras de uso e a natureza da coisa; e por outro, a importância de voltar a essas regras (em outras palavras, às trocas linguísticas e aos contextos de fabricação dessas categorias).

Esses eixos representam uma das estruturas de seu trabalho antropológico na observação de uma instituição de acolhimento familiar, onde o confronto com a “estranheza” da voz de uma adolescente pensionista de uma instituição de acolhimento familiar leva­o a recolocar em questão suas próprias categorias analíticas − ver Chauvier (2008). Isso significa admitir que a “estranheza” é exigência de refinamentos categoriais, tanto pelo fato de voltar às situações de observação quanto sobre a própria trajetória do pesquisador, como ele fará no artigo que prolonga este trabalho em um dossiê coordenado por F. Hatchuel para a revista Adolescence. É essa proximidade no questionamento que nos levou a reunir − depois dessa primeira colaboração centrada na noção de instituição − nossas abordagens sobre a questão específica do “aluno estranho”.

 

Da categorização à sensação

Quem são essas crianças qualificadas uma por uma de “débeis”, “deficientes”, “ladras”, “abandonadas”, “vagabundas”, “boêmias”? As terminologias evoluem. Como no campo escolar, as crianças deficientes tornaram­se as crianças “com necessidades específicas”. A metade do século XX vê surgir a expressão “infância desadaptada”. Nossa proposta não será a de discutir diferentes classificações estabelecidas pelos modos e pelos tempos, mas a de tentar compreender por que algumas crianças trazem problemas para a escola republicana e para as instituições de acolhimento, e por que não sabemos lidar com essas crianças. Parece­nos que se o sintagma de “alunos estranhos” tocou­nos de modo tão unânime é porque ele está ligado ao sentimento de estranheza despertado pelas crianças e a nosso próprio sentimento de estranheza, de que evidentemente não há neutralidade no fato de que ele tenha sido formulado por uma estrangeiro (no sentido da nacionalidade). Veremos adiante, na parte mais consagrada de seu trabalho, de que modo esse sintagma pôde emergir para ele. Assinalemos por enquanto que este não designa um perfil de alunos, mas uma relação emocionalmente carregada que o profissional da educação, considerado como um sujeito na interação e em suas próprias contradições, pode manter com um ou vários alunos dentro da instituição escolar.

Antes de tudo, gostaríamos de questionar a noção de categorização. De Lévy­Bruhl (1922) a Descola (2005), passando por Lévi­Strauss (1962), todo um ramo da antropologia mostrou a necessidade do ser humano de categorizar para dar sentido ao mundo e orientar a ação humana. Seria necessária toda uma obra para tentar compreender de que modo, para cada cultura e para cada sujeito, essa modelização do mundo foi considerada como sendo o próprio mundo ou somente como uma representação deste, ou, mais exatamente, para tentar compreender de que modo o pensamento e o psiquismo evoluem entre essas duas acepções. Entretanto, em alguns casos, essa categorização constitui um poderoso apoio psíquico. Hatchuel (1997) mostrou, dessa forma, até que ponto a categorização dos alunos poderia constituir um ponto de apoio para ajudar os professores(as) a enfrentar o caos da classe e, portanto, poder trabalhar. Mas, se a categorização constitui um instrumento precioso, ela pode rapidamente tornar­se um objetivo em si, como mostram numerosos trabalhos recentes sobre a hipermodernidade − ver, por exemplo, La passion évaluative (2009), sobre a “paixão avaliadora”, ou o trabalho de Diet (2003) −, negando, dessa forma, a distância entre a modelização e o real, em uma perspectiva que não se pode deixar de ligar ao neoliberalismo.

Essa aparente “evidência” deveria ser categorizada, diferenciada, determinada, regulada e questionada. Consideramos que o estranho é o que resiste a esse movimento, e que devemos aprender a acolhê­lo como tal, isto é, como o que não pode ser nomeado e que, no entanto, está ali. Como Dionísio em Tebas − ver Vernant (1980), por exemplo − é no centro das práticas que o estranho deve encontrar seu lugar. Esperamos mostrar a seguir de que modo nosso trabalho nos permitiu abordar essa questão.

 

Definições semânticas

Conforme o Petit Robert, “étrange” [estranho] (1967) vem do latim extraneus, que significa “estrangeiro”. É “estranho” o que é “muito diferente do que temos o hábito de ver, de aprender; o que confunde, surpreende”. Os sinônimos propostos são: bizarro, extraordinário, singular, surpreendente. Em sua segunda acepção, “estranho” também significa “indefinível”, “confuso”, “incompreensível”, “inexplicável”. “Estranho” e “anormal” também são postos como sinônimos. “Estranho” remete ao que é incomum, insólito, inquietante. Uma parte deste trabalho irá propor uma leitura desse caráter inquietante e dos movimentos que ele pode despertar no sujeito que sente essa inquietação.

Pelo lado negativo, a definição será o pano de fundo de outra reflexão feita aqui. O contrário desse adjetivo pode ser “banal”, “corrente”, “comum”. Com efeito, é interessante acentuar que, a partir da mesma obra de referência, nem todos fomos sensíveis aos mesmos elementos de definição, à singularidade e aos modos de funcionamento de cada um na direção dos sinônimos e dos antônimos. Também é interessante acentuar a natureza substantiva que pode recobrir “estranho”.

O dicionário etimológico Larousse (1964) nos ensina que, no século XIV, surgiu um novo substantivo, sinônimo de “estranho”: o termo “estranheza” − ao qual voltaremos principalmente a partir do pensamento freudiano. O estranho em si mesmo faz referência a um fato do real e ao sentimento de confusão daquele que o percebe. Poder­se­ia dizer, então, que o estranho remete ao sentimento daquele que se encontra diante de um elemento real. Para Castoriadis­Aulaigner (1975, p. 168),

a nomeação, tão logo diz respeito ao afeto, é ipso facto nomeação do objeto e da relação que o liga ao sujeito .... No registro do afeto, o ato de enunciação designa uma relação e é essa relação que designamos por um único termo.

Desse ponto de vista, “o aluno estranho” propõe transformar “o aluno estigmatizado” em um ponto de partida para questionar a relação com esse aluno, associada ao enquadre institucional − pois é ele que liga o profissional da educação com o aluno.

Em L'inquiétante étrangeté et autres essais, Freud (1919/1985, p. 215) fala do Unheimliche, que poderíamos traduzir por “estranho familiar”, uma impressão de estranheza, que ele descreve assim: “O estranho familiar é essa variedade particular do assustador que remonta àquilo que é conhecido há muito tempo e há muito tempo familiar” (Freud (1919/1985, p. 215). Mas não seria um pleonasmo2 falar em “estranho familiar”? O estranho não é inquietante em si?

O que Freud ressalta aqui é que o estranho não é o diferente. O diferente vem de outra categoria, que podemos decidir deixar de lado, ou para o qual temos a esperança de encontrar um tratamento “adaptado”. O estranho é o que poderia vir dele, mas que, no entanto, não vem. Portanto, não podemos simplesmente ignorá­lo, ele deve, ao contrário, ser afastado. Não podemos deixá­lo como é. O estranho se aproxima de nós e nós o repelimos.

 

A estranheza como condição de saber

Para Chauvier (2006), a questão do “aluno estranho” liga­se à noção de “familiaridade rompida”, que prolonga o tema do estranho familiar questionando o fato de produzir sentido para o reconhecimento de uma familiaridade ameaçada ou perdida em uma situação de violência reconhecida. A partir daí, essa constatação de estranheza constitui uma classificação que também compromete aquele que observa (Bourdieu, 1979). A pesquisa realizada em uma instituição de acolhimento familiar ilustra essa ideia a partir da observação do comportamento de uma das adolescentes da instituição e, particularmente, o caráter desafetado de sua voz.

Essa jovem resiste a qualquer classificação a priori do observador, conduzindo­o à sua própria trajetória familiar e profissional, bem como às resistências que ele elaborou, às vezes de modo não consciente, para transpor, ocultando­as, situações familiares ou profissionais. O indivíduo estranho é, consequentemente, indissociável da estranheza daquele que faz essa constatação. Essa observação não é nada assimilável a um fracasso etnográfico ou aos bastidores da pesquisa. Ela faz parte da pesquisa e pode sensibilizar, e até mesmo “iniciar” o observador na questão da observação do sofrimento humano.

O encontro com Hatchuel, e depois com Markakis e Kerrien, permitiu, por meio de seminários e de uma contribuição para a revista Adolescence, problematizar e formalizar a possibilidade de um saber vindo da estranheza e da reflexividade. Sobre esse ponto, o cruzamento da espécie etnográfica e das ciências da educação possibilitou a realização de uma pesquisa transdisciplinar que se revelou frutífera por suas trocas relativas às categorias utilizadas por cada um. À iniciativa instigada pelo “estranho familiar” e, por extensão, pelo modelo do “aluno estranho”, Chauvier articula a iniciativa da “etnografia da comunicação” (Gumperz, 1989; Hymes, 1974).

A questão da representação da estranheza pelo professor, tal como a trabalhada por Kerrien, está estreitamente ligada às formas revestidas pela troca comunicacional e a seus índices de contextualização: abertura e fechamento de enunciados, entonação, períodos de pausa etc. O aluno estranho não é considerado como um sujeito isolado, mas como um interlocutor real ou potencial captado em uma ordem interacional e comunicacional extensível a outros alunos e professores. A hipótese é a de que a estranheza vem dessa troca. O etnógrafo estará atento às rupturas e às anomalias que revelam a estranheza, assimilável aqui a um “clima” produzido por interlocutores em situação de copresença. A esse respeito, o interacionismo de Erving Goffman constitui um modo de análise e de interpretação pertinente para reunir esses estados de mal estar comunicacional. Pensamos mais especificamente em seus trabalhos sobre o “embaraço” (Goffman, 1974). A estranheza também pode ser abordada ao modo da etnometodologia desenvolvida por Harold Garfinkel (2007): a estranheza se torna um elemento heurístico, produzindo sentido, mobilizando comportamentos normativos, “evidências” assimiláveis a regras de vida. Nessa medida, o aluno estranho, longe de ser uma “anomalia” ou um sujeito isolado, é aquele que produz sentido, revelando os outros a eles mesmos. Atualmente, três missões realizadas no âmbito da instituição da ação social (acolhimento familiar, oficina escolar para adolescentes “desistentes”, oficina de pais em Seine Saint­Denis”) tendem a mostrar a importância de uma pesquisa das divergências de registro de discursos na produção da norma institucional. Se a norma se expressa por uma linguagem comum e oficial, observam­se diferenças entre as categorias oficiais da instituição e o uso feito in situ dessas categorias pelos educadores e por seus alunos. Por exemplo, pode­se levar uma atenção particular ao uso da palavra “contrato” − essa categoria institucional remete, com efeito, à dificuldade para ajustar­se à experiência vivida. A palavra pode ser utilizada em situações extremamente diversas, e até mesmo contraditórias: lembrar um compromisso selado com a instituição, com o adulto, com os pais do aluno etc.

A etnografia da comunicação permite identificar flutuações atualizadas por esse uso. Nessa abordagem, a estranheza não é mais assimilável a uma anomalia que ameaça a norma, mas a uma insuficiência da linguagem normativa em expressar as experiências de cada um. O aluno estranho torna­se um usuário de categorias inadequadas, categorias que ele funda com o educador ou com o professor.

Por extensão, se convocamos o pensamento do filósofo Wittgenstein (1961), essa norma, expressa de modo insatisfatório, torna­se uma patologia da linguagem que pode ser reabsorvida com uma linguagem refinada. A estranheza não é mais somente o que está “fora da norma”, mas um mau uso das categorias e uma exigência de linguagem mais precisa. Esse argumento, que Wittgenstein atribui às teorias filosóficas, vale em certa medida para as categorias usuais. Do mesmo modo, um uso consensual das categorias leva os locutores a confundi­las com sua experiência do real e, finalmente, a aceitá­las sob o único motivo de uma atribuição a uma autoridade centralizada (como um contrato de vida institucional). No exemplo citado, a palavra “contrato” é usada de forma abusiva para mascarar situações diversas, exigindo precisões contextuais e, assim, uma recategorização da experiência da vida em instituição.

Diferentemente da crítica wittgensteiniana das categorias filosóficas, é preciso, entretanto, admitir que, na vida comum, a categoria adequada nunca existe como adequação. Subsiste apenas uma relação assintótica entre o uso das categorias e as experiências vividas pelos locutores. Assim, a categorização admissível é idealmente aquela em que o locutor é posto em situação de construir ele mesmo com o reforço de perífrases. É assim que o aluno pode transpor seu pertencimento à categoria de “estranho” e que se torna possível dar­lhe voz.

 

A rejeição: um desinvestimento?

O trabalho de Kerrien (2012) permite a identificação do modo como podem operar sentimento de estranheza e rejeição. Com base em entrevistas clínicas de pesquisa3 com professores a partir da instrução “Você poderia me dizer o que significa para você receber crianças ciganas na escola?”, fica claro, principalmente, que não são as próprias crianças, mas a estranheza da qual são depositárias que faz objeto da rejeição. A partir da questão do lugar para essas crianças na escola francesa emergem hoje muitas perguntas: o que permite a um(a) professor(a) investir a tarefa de acompanhar uma criança? Como acompanhar os professores(as) em seu ofício? Como lidar com nossa própria estranheza? Como fazer quando não o conseguimos?

Uma das professoras expressou­se assim:

Aconteceu comigo... não de ter uma criança cigana, mas uma criança que chegava à 1a série sem dominar absolutamente o francês. Portanto, depois de duas semanas ela voltou ao maternal, porque também não havia... não apenas o francês não era dominado, a escrita também não era dominada. A escrita no bom sentido, portanto, ahan... a escrita da esquerda para a direita.

Essas poucas linhas levantam muitas perguntas. Primeiro a da língua, pois além do fato de não dominar a língua, que pode trazer dificuldades em termos de aprendizagem para a criança, para o professor trata­se de uma experiência custosa no plano psíquico. Efetivamente, “em todo caso, o confronto com outra língua situa o sujeito no centro da necessária e incessante construção de si” (Hatchuel, 2006, p. 510). Vem em seguida a questão da escrita, e de modo mais fundamental a da norma, o que não deixa de nos lembrar do terceiro sentido atribuído no dicionário para “étrange”, ou seja, “anormal”. De fato, em francês, escreve­se da esquerda para a direita, mas a expressão “no bom sentido” torna­se uma questão. É bom porque é o da escola ou o da professora?

Tentamos mostrar em que essas crianças constituem para os professores “alunos estranhos”, no sentido de “extraordinários”, “fora da norma”. Tratemos agora de ver se eles não seriam constituídos como “alunos estranhos” pelos professores ou, mais precisamente, pelo inconsciente deles? Fazemos a hipótese de que essas crianças são depositárias de nossa própria estranheza e, portanto, a dos professores.

Outra professora nos disse:

E uma criança, um aluno cigano, nada tem de uma criança da escola republicana, e, penso que os professores ficaram fortemente ancorados sobre essa ideia de... do aluno da escola do século XIX. Ainda estamos em... vou ter uma classe... então agora não temos mais certeza. Eles serão todos loiros, bonitinhos, bem limpos, mas ainda assim, portanto, ahn... agora que eles são de todas as cores, tudo vai bem. É aceitável mas, em todo caso, ainda que eles sejam de todas as cores, o objetivo é de que eles sejam todos bem educados, bem codificados e ahn... que consigamos colocá­los todos no mesmo molde, no mesmo saco, e que eles consigam todos a mesma coisa de fato.

Se não podemos negar a injunção institucional relativa aos programas escolares nem a influência da ideologia da escola republicana, podemos, entretanto, nos questionar sobre o fato de que, para essa professora, pareceria que o tratamento igualitário das crianças passa pela negação da alteridade e até mesmo da singularidade. Com efeito, ela acrescenta: “é preciso que os professores pensem que as crianças são diferentes, mas isso se choca com as próprias ideias democráticas da escola”. Mas poderiam as crianças ser, ao mesmo tempo, diferentes e iguais?

Não existiriam razões mais profundas para o fato de querer “apagar” as diferenças? Segundo Filloux (1974/1996, p. 104), “para o professor, a ameaça vem tanto, senão mais, de dentro do que de fora (como isso tende a ser vivido e enunciado) da “criança recalcada em si”, que da “criança a educar diante de si”. Entretanto, o outro continua a representar um perigo. De que modo o professor(a) pode fazer diante dessa ameaça? A negação da alteridade por nós mencionada anteriormente poderia ser um meio, para o professor(a) de reduzir a diferença entre ele/ela e suas crianças. A proposta da professora sobre a diversidade das cores, a repetição dessa formulação e depois a expressão “é aceitável” seguida de uma conjunção de coordenação que introduz uma contradição “mas” convidam a pensar que essa diversidade a confunde. Poderíamos ver aqui a parte de sua personalidade, como na de cada um, que é desestabilizada pelo outro, o estranho, estranho no sentido daquele que remete ao estranhamento, e até mesmo a nossa própria estranheza.

Segundo Giust­Desprairies (2003, p. 54), “é impossível livrar­se das pulsões que ressurgem como estranheza, mas é sempre possível acreditar que delas nos desfazemos afastando aqueles por quem vem o mal ou que dele são projetivamente depositários”. Se, como supomos, os “alunos estranhos” podem representar um perigo para os professores(as), poderia ocorrer que grande número de soluções que eles/ elas propõem para ajudar as crianças seja, na realidade, um meio de “afastá­las”. Com efeito, com mais frequência, essas soluções fazem apelo a outras pessoas: mandar uma criança para uma classe mais baixa, orientá­la para uma classe especializada, atribuir­lhe uma AVS4...

Encontramos aqui processos desde então conhecidos, em que a organização do trabalho libera certos agentes de desafios psíquicos excessivamente invasivos, sob risco de impedi­los de levar a cabo sua tarefa. Muitos autores analisam de que modo, em tais situações, são outros agentes que se encontram em posição de “tratar” dos elementos perturbadores. Desse modo, pensamos no lugar do segundo oficial de um navio, tal como descrito por Jaques (1955), ou, de modo mais geral, em todo esse “trabalho sujo” que ninguém quer fazer e, principalmente, ver − como bem o descreve Molinier (2013), citando, por exemplo, o trabalho de Margaret Cohen (1993), psicanalista em um serviço de neonatologia – que é o de dar uma injeção em um pequeníssimo prematuro, tarefa tecnicamente difícil que lhe seria impossível realizar se ele tivesse consciência de que “o recém­nascido se torce de dor.... Assim, é a psicanalista que, do outro lado da incubadora, dirige­se ao recém­nascido e tenta acalmar seu desamparo” (Molinier, 2013, p. 61). A estranheza é talvez, antes de tudo, o que nos impede de fazer o que pensamos saber fazer e os professores entrevistados nada mais pedem do que ser tratados como comandantes de navio ou como cirurgiões, evacuando a outros o que os impediria de “fazer corretamente” seu trabalho, mesmo quando esse impedimento é imaginado.

A “rejeição” dos “alunos estranhos” aparece assim como uma resposta dos professores(as) diante de sua dificuldade, eventualmente imaginada, de cuidar dessas crianças. Com efeito, muitos deles(as) se sentem incapazes de acolher essas crianças. Isso nos parece ter ressonância com o que também formulamos: “uma definição de Eros como 'capacidade de investir' (no sentido de P. Aulaigner) e de Thanatos como afeto de desencorajamento pode ser pertinente” (Hatchuel, 2012, p. 122).

Propomos, assim, a leitura dessa “rejeição” como a manifestação de um desinvestimento por parte das professoras. É preciso então definir que não são as crianças que constituem o objeto do desinvestimento, mas o fato de acompanhá­las, desinvestimento que resulta de um “desejo inconsciente de ver desaparecer esta carga impossível” (Hatchuel, 2012, p. 129).

Para Gaillard (2010, p. 138),

as manifestações da pulsão de morte se declinam sob o modo da colagem, da rejeição, do despedaçamento, da clivagem. Sua violência ameaça sem cessar destruir o profissionalismo dos profissionais do tratamento e do trabalho social, e, ao mesmo tempo, desfazer o laço indispensável entre o profissional e seu grupo de pertencimento; a menos que não seja o laço entre o profissional e o usuário que esteja em perigo, e o usuário que não se encontre expulso do laço5.

Não ocorreria o mesmo como os “alunos estranhos” que assim se encontrariam “expulsos do laço” didático? Aparece aqui o caráter “inquietante” dos “alunos estranhos” − inquietude gerada pelo risco, para o professor(a) de falhar em sua tarefa.

 

Do estigma à aceitação do afeto: construir um espaço potencial

Markakis interessou­se pela relação dos profissionais da educação com crianças que apresentam uma deficiência mental. A dificuldade em comunicar o que ele queria significar com esse termo surgiu, rapidamente, no seminário do acompanhamento de dissertações realizado por Hatchuel.

Depois de ter falado, por meio de histórias de encontros da vida cotidiana, de sua própria dificuldade em defrontar indivíduos supostamente em situação de deficiência mental, ele empenhou­se em ter uma melhor compreensão da deficiência na França. No entanto, a literatura científica e os textos legislativos não permitiram que ele centrasse uma problemática, por exemplo, em relação a uma patologia. Ao contrário, ele esteve mais intrigado pela função global que a noção de deficiência mental detém na legislação e nas práticas profissionais.

Assim, ele começou sua pesquisa por um lugar que lhe parecia mais familiar, ainda que estruturado de modo diferente em relação a seu país de origem e sempre estrangeiro: a escola pública francesa. A entrevista realizada com Paul6, professor especializado em uma Clis 1, espelhou o que o próprio Markakis vivia: “enfim não sei, e você terá um Bronx para desamarrar aí, mas... não sei o que você pensa sobre isso”.

A expressão francesa, que remete a um bairro estranho onde não nos sentimos em segurança, associa­se à imagem de uma escola estrangeira – composta por siglas ilegíveis e por dispositivos desconhecidos, evocados no discurso de Paul – que colocou em perigo seu posicionamento de pesquisador ainda hesitante.

Auxiliado por essa transposição em palavras, ele pôde assim, no ano seguinte, estudar de forma rigorosa a literatura e a legislação para reconstituir a imagem da estrutura escolar na França, assumindo um cargo em tempo integral como AVS coletivo em uma Ulis7 de um colégio. Esse posto permitia a ele trabalhar com os alunos em situação de deficiência na classe, confrontando­se com os alunos ditos “regulares” no pátio de recreio, nas horas depois das aulas ou durante as horas de ajuda nos deveres.

A dificuldade em analisar o discurso de Paul levou­o a reinvestir o conselho de sua orientadora de pesquisa, que ele interpretava, nesse momento, como uma demanda de ser menos “estranho” a seu objeto de pesquisa. Isso não significava negar sua identidade estrangeira, mas transformá­la em um terreno de explorações psíquicas e fonte mobilizadora para construir seu conhecimento para partilhá­lo. Em outras palavras: questionar a imagem do estrangeiro em sua história pessoal; encontrar os elementos que a compuseram ao mesmo tempo como uma “identidade social virtual” estigmatizante − para retomar Goffman − e como ponto de partida para interrogar o mundo a sua volta e colocar essa imagem em relação a meu tema de pesquisa e à imagem da deficiência mental. Para Goffman (1975, p. 12), com efeito, atribui­se um caráter a um indivíduo: “de modo potencialmente retrospectivo, isto é, por uma caracterização 'em potência', que compõe uma identidade social virtual ”. A continência do grupo de orientação de dissertações8 e uma parte da literatura científica permitiram então a Markakis defender e investir essa escolha de pesquisa. O texto de Chauvier (2008, p. 8) falando de sua “posição de estrangeiro na instituição”, a partir da qual foi feita a ele a demanda para que “dessa postura ingênua eu tire tudo o que me surpreende, me choca, me transtorna, em resumo, tudo o que me parece estranho”, veio sustentar sua postura de pesquisador.

Essa iniciativa reflexiva e a experiência da escola permitiram que ele compreendesse que não se tratava da patologia em si que o questionava, mas de uma espécie de relação carregada que se instala com alguns alunos, em situação de deficiência ou não, e que afeta a interação entre as subjetividades. Seu pertencimento ao grupo de orientação, composto por outros profissionais do campo social, e a elaboração coletiva permitiam­no avançar sua reflexão sobre seus encontros no campo da educação e da formação sem nome institucional. Como não pensar nas intervenções de Kerrien sobre a escolarização das crianças ciganas e seu lugar no imaginário dos professores?

O recuo e a elaboração possibilitados pelas férias escolares permitiram que ele tomasse consciência de que a “deficiência mental” tal como ele evocava finalmente era apenas a identidade virtual estigmatizada que ele atribuía a esse tipo de relações afetadas. Várias questões daí decorrem: que mecanismos ou que processos psíquicos e/ou mentais permitiram, em um plano imaginário, o laço entre o afeto e a noção de “deficiência mental”? De que modo sua formação na clínica com orientação psicanalítica permitiu a ele tomar consciência de sua própria relação com a noção administrativa da “deficiência mental”? Qual é a relação entre a teoria e as elaborações pessoais nesse processo de pesquisa? De todas essas perguntas abordadas na dissertação, destacaremos aqui a do laço entre o que Goffman chama de estigma e o afeto daquele que atribui essa identidade virtual.

Retomemos então o discurso de Paul. A síndrome de Down aparece aí, várias vezes, como associada à desordem e à agitação: “Não é porque você tem síndrome de Down que você pode fazer qualquer coisa”; “Se eu começar a aceitar que um portador de síndrome de Down faça qualquer coisa na sala...”. Em seguida, Paul conta seu próprio encontro com um aluno com síndrome de Down: “Eu tive um menino com síndrome de Down que chegou no primeiro dia e que... penso na síndrome de Down porque tive esse caso... e no primeiro dia, quando chegou na sala, ele abriu os braços, jogou tudo no chão e me disse 'sai daqui'. Portanto o primeiro dia de aula é estranho para um menino de oito anos”. Markakis faz então a hipótese de que esse encontro, emocionalmente carregado, não encontra palavras para expressar­se, encarnando­se em uma atividade virtual − a síndrome de Down − com uma qualidade próxima do estigma.

Depois da defesa, a pesquisa ampliou­se a professores(as) de classe regular que haviam tido a ocasião de trabalhar com alunos com deficiência. A instrução tornou­se a seguinte: “Vocês são professores(as) e tiveram a experiência de receber em sua classe alunos com transtornos das funções cognitivas ou mentais, como se diz atualmente. Vocês poderiam me falar dessa experiência?”. Para Christine, primeira professora entrevistada, a associação livre das ideias leva­a a recolocar o problema assim:

então de fato tudo depende se se trata do campo da deficiência ou não, mas às vezes é muito... é... é, estamos entre os dois. É isso que é complicado. Concordo, quando estamos no campo da deficiência há o estabelecimento de dispositivos, a criança é acompanhada, a dificuldade vem quando a criança não é absolutamente acompanhada.

Christine elabora todo um discurso para explicar que quando a criança vem do campo da deficiência, há uma colaboração com outros atores que permite a ela discutir, refletir, reconsiderar sua intervenção − em resumo, ela consegue partilhar a dificuldade com a qual se confronta. Mas há alunos com os quais ela se sente “sozinha”: “É catastrófico pod... ficar sozinha diante de... com os alunos com dificuldades”. O exemplo que volta várias vezes em seu discurso diz respeito a duas meninas que

são como objetos colocados na sala, muito bem vestidas. Cuidamos delas, elas têm todo o necessário materialmente, mas enfim... elas não são solicitadas em casa certamente porque a linguagem não é desenvolvida. Não há nenhuma autonomia, são duas menininhas completamente atordoadas na sala.

O sentimento de solidão diante dessa relação, a impotência institucional e, finalmente, a identidade virtual seguem­se: “estamos desmunidos em relação a isso, o que fazer... estamos construindo aí uma debilidade, uma debilidade que eu diria mais leve”.

 

O embaraço

Assim talvez possamos dizer que a criança estranha é aquela diante da qual nos sentimos sós, e para a qual nada vem nos ajudar. Em O quinto filho, romance que poderia ser qualificado como “hiper­realista” na medida em que utiliza o fantástico para fazer ver uma situação finalmente muito comum, Doris Lessing mostra uma família ideal inexoravelmente em dificuldade com a chegada de um quinto filho, “diferente”. A força de Doris Lessing é a de nunca colocar em palavras essa diferença, mas de conter­se na descrição de um comportamento (que começa in útero: a criança é agitada, cansativa, difícil de carregar, preocupante...) e no modo como as pessoas a sua volta respondem a esse comportamento. Todos acabam por baixar os braços, até a instituição em que Ben foi colocado e que o deixa praticamente no abandono, colocando sua mãe diante da responsabilidade última: deixá­lo morrer ou aceitar a solidão do fardo.

Reencontramos aqui a noção de “embaraço” acima mencionada com Goffman. Em uma perspectiva psicanalítica, essa noção também é desenvolvida por Adam Philips (2009, p. 21), para quem somos todos “embaraços”, ou, mais exatamente, nosso comportamento é sempre passível de ser recebido com tal: “o apetite da criança, poderíamos pensar, só é um embaraço se tratado como tal pelos adultos de quem a criança depende. Mas, se for o caso, a criança deve, para sobreviver, assumir ser um embaraço e persistir diante da impaciência, da exasperação, ao contorno”.

Retomando uma crônica de George Orwell (1933/2001) sobre a mendicância, este nos mostra que o embaraço é o próprio motor de nossas sociedades. “Você tem que se tornar um embaraço para avançar” (Philips, 2009, p. 24­25). Com efeito, são as consequências do embaraço que provocamos em outrem que nos situam socialmente. Orwell fala de que modo pagamos uma dívida para nos esquecer daquele que emprestou, damos ao mendigo para nos livrar dela etc. Assim, prossegue Philips (2009, p. 25): “fazer de si um embaraço é um convite para que os outros o impeçam de ser... um mendigo que se torna um embaraço lucrativo: tal é a pessoa moderna segundo Orwell”. Em seguida, a partir de um texto de Winnicott (1945/1994) sobre as crianças que voltam para casa depois de um afastamento durante a guerra, ele fala da necessidade de assumir o ódio à criança e que esta resiste a isso: “De modo diferente do trauma, o embaraço é para Winnicott a medida correta de instabilidade” (Philips, 2009, p. 31).

Assim, a fronteira é mantida. Até onde o estranho familiar é aceitável, e, principalmente, o que pode nos ajudar a suportá­la? É sobre esse fio da navalha que parece­nos importante e possível agir. Por que a criança é aceitável para um(a) e não o será por outro(a)? De que modo se constrói, para cada um, a figura do possível e do não possível? Se pensarmos, com Aulagnier (1986) que “lidar” com o aluno estranho é poder dar­lhe um lugar psíquico, este será evidentemente tão mais fácil de construir quanto exista um lugar social. A contrario, o lugar social irá depender, bem entendido, dos diferentes lugares psíquicos ocupados pelo sujeito.

Por isso não se deve desprezar a dimensão cultural como cada sociedade ou grupo social ensina seus membro a “lidar” com alguns modos do outro, mais ou menos desviantes, isto é, finalmente o modo como cada grupo se define e assina com o sujeito de quem ele acolhe esse contrato narcísico de que nos fala Aulagnier (1986) e que se faz entre a criança e o grupo: o “conjunto”, como diz o autor, aceita e sustenta a criança, em troco do que esta irá contribuir para perpetuá­lo. O aluno estranho talvez seja aquele de quem pensamos não poder constituir um apoio suficientemente confiável para garantir a perpetuação do grupo, pelo menos a que cada um projeta. A questão do aluno estranho também incita a pensar em um grupo que não seja a imutável sua repetição, mas que traz em si as condições de certa mobilidade, e a distinção de Houzel (2005) entre estabilidade fixa e estabilidade estrutural pode nos ajudar.

Na verdade pensamos que as rotulações, tão preciosas em um primeiro tempo para os profissionais para diferenciar o que lhes diz respeito e o que não diz e reduzir assim um pouco, ao menos no plano fantasmático, a amplitude da tarefa a realizar (Hatchuel, 1997), resultam da estabilidade fixa. Estes correspondem a uma organização do mundo que, certamente, assegura, mas não deixa lugar para o “resto”, essa “7a face do dado” belamente descrita por Molinier (2013, p. 72) corresponde à

sétima face do dado é a possibilidade do que se apresenta como impossível, que cai do lado de fora de nosso espaço euclidiano, de nossos recortes ou nomeações, para constituir um espaço “atraente” que desregula a aparência das coisas e dos seres, de tudo o que, em nossa percepção restrita, aparece como “informe”9.

Essa aceitação do informe, do não nomeado, do não definido, parece­nos tocar na questão da relação com o saber para cada um, e também no trabalhar as expectativas profissionais em termos de “competências”, de “eficácia” ou de “especialização” que desejamos contribuir. “Lidar com o estranho” também é aceitar que o não saber tem um lugar no centro do profissionalismo.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
36 rue de l'église
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Recebido em janeiro/2016.
Aceito em julho/2016.

 

 

NOTAS

1. Todas as aspas aqui mostram, bem entendido, até que ponto a linguagem nos leva a endurecer nosso pensamento.
2. Em francês, “Unheimliche” é traduzido como “L'inquiétante étrangeté”, que literalmente significa “uma inquietante estranheza”. Portanto o pleonasmo se refere a esses termos, que são interpretados pelo autor como semelhantes. (N.E.)
3. Ver Yelnik (2005) para a metodologia e Blanchard-Laville et al. (2005) para a epistemologia da clínica com orientação psicanalítica nas ciências da educação.
4. A sigla AVS remete a auxiliaire de vie scolaire, equivalente ao profissional especializado em lidar com pessoas com deficiência (PCD) no ambiente escolar. (N.E.).
5. Notemos que, neste artigo, a carga são os cuidados feitos por uma família para uma criança doente.
6. Sempre segundo a metodologia da entrevista clínica de pesquisa anteriormente citada, a partir de uma instrução convidando-o a expressar sua vivência − “Você trabalha em uma Clis 1. Você poderia me falar de sua experiência?” −, o primeiro nome está modificado.
7. Unité localisée pour l'inclusion scolaire (Ulis) são unidades especializadas em inclusão escolar. (N.E.)
8. A noção de “continência” deve-se ao psicanalista de grupo Wilfried Bion. Esta foi desenvolvida nas ciências da educação por Claudine Blanchard-Laville.. Nessa perspectiva, Hatchuel conduz seu seminário de orientação das dissertações.
9. A metáfora, creditada a Georges Hugnet e Marcel Duchamp a partir de trabalhos matemáticos, data de 1936 e é retomada por Jean Oury.

 

 

Tradução: Inesita Machado

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