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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.21 no.2 São Paulo ago. 2016

http://dx.doi.org/http//dx.doi.org/0.11606/issn.1981-1624.v21i2p479-496 

DOI: http//dx.doi.org/0.11606/issn.1981-1624.v21i2p479-496

ARTIGO

 

Saber fazer com a linguagem escrita: uma travessia pela poética do letramento

 

Know how to do with the writen language: a passage through poetics of literacy

 

Saber hacer con la escritura: un pasaje por la poética del letramento

 

Elaine Milmann

Psicopedagoga clínica. Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e membro da equipe do Centro Lydia Coriat de Porto Alegre, Porto Alegre, RS, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

A poética do letramento é um estudo realizado no campo educacional tecido a partir da articulação entre os territórios da psicanálise freudo­lacaniana e da filosofia da linguagem de Jacques Derrida, propondo um modo de investigação da singular posição na linguagem de crianças em processo de aquisição da escrita. A ênfase deste estudo é colocada na ludicidade e na literatura, destacando a poesia concreta e seus elementos verbivocovisuais como meios de dar a ver o funcionamento do traço, da letra e da escrita através de jogos com o saber fazer com a linguagem.

Descritores: poética; letramento; escrita.


ABSTRACT

The poetics of literacy is a research conducted in the educational studies based on the interrelation between the territories of freudian­lacanian psychoanalysis and Jacques Derrida's philosophy of language, proposing an investigation method for research about the child's singular position regarding language in their writing acquisition process. This study emphasizes playfulness and literature, highlighting the concrete poetry and its verbivocovisual elements as means of showing how trace, letter, and writing through games play with the know how to do with language.

Index terms: poetics; literacy; writing.


RESUMEN

La poética del letramento es un estudio realizado en el campo de la educación, desde la articulación entre el psicoanálisis de Freud y Lacan y la filosofía del lenguaje de Jacques Derrida, y propone investigar sobre la posición singular en el lenguaje infantil en el proceso de aprendizaje de la escritura. El énfasis de este estudio se pone en lo lúdico y en la literatura, destacando la poesía concreta y sus elementos verbivocovisuales como un medio de mirar el trazo, la letra y la escritura de los niños a través de juegos con el saber hacer con el lenguaje.

Palabras clave: poética; letramento; escritura.


 

 

A poética do letramento propõe um meio de investigação da singular posição na linguagem de crianças em processo de aquisição da escrita, com ênfase na ludicidade e na literatura. A poesia concreta é a chave investigativa, pois nela encontramos os elementos verbivocovisuais que fornecem um modo de dar a ver o funcionamento do traço, da letra e da escrita que entram em jogo nos processos de alfabetização e de letramento (Milmann, 2014).

O estudo sobre a poética do letramento foi tecido a partir da articulação entre os campos da psicanálise freudo-lacaniana e da filosofia da linguagem de Jacques Derrida, com a proposta de ampliar a compreensão da complexidade do sistema escrito nas práticas de alfabetização e de letramento, tencionando as bordas traçadas entre o ensino regular e o ensino especial na educação brasileira.

A poética explicita diferentes propriedades da estrutura e do funcionamento da linguagem escrita, muitas vezes pouco visíveis devido à ênfase dada à oralização nas práticas alfabetizadoras. O letramento, ao atribuir importância à dimensão social e cultural na aquisição da escrita, produz um deslocamento desse enfoque: situa a escrita como efeito de linguagem, cuja aquisição depende da inscrição do traço e de seu recorte significante no espaçamento. Assim, a escrita se constitui como um lugar de enunciação do sujeito, na medida em que ele também realiza sua travessia no processo de inscrição na linguagem, dado a partir do laço com o Outro.

O recorte significante do traço é a plataforma de lançamento para o acesso às múltiplas relações de sentido que se estabelecem nos jogos de escrita no espaçamento. A forma de se relacionar com o campo do sentido dependerá da posição ocupada pelo sujeito na linguagem, conforme os seus modos de entrada no código da língua e nos jogos de substituição e deslocamento, engendrando a polissemia. O saber fazer com a linguagem implica a abertura para esses jogos metafóricos e metonímicos, próprios da produção de sentido.

A poesia concreta apresenta um terreno privilegiado dos jogos de substituição e deslocamento, proporcionando aos adultos e às crianças o prazer do encontro lúdico com a escrita, assim como novas possibilidades de saber fazer com a linguagem. A experiência poética, através da leitura e de jogos com o traço, com as letras e com as palavras no espaçamento, opera na dimensão significante – desdobramento do brincar com as coisas para os jogos polissêmicos da linguagem. Além disso, a poesia dá a ver os modos de inscrição e funcionamento na escrita, pois comporta paradigmaticamente a extensão do processo de composição e de ativação da linguagem, viabilizando meios de investigar a relação do sujeito com o campo do sentido através da escrita.

 

Brincar de poesia

No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu
escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som. Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.
E, pois.
Em poesia que é voz de poeta,
que é a voz de fazer nascimentos –
O verbo tem que pegar delírio (Barros, 2010, p. 301).

Vamos nos aproximar da ideia – “a poesia é a infância da língua” (Barros, 2010, p. 2). O poeta, como a criança, usa as palavras fazendo nascimentos – renovando-as – mas, paradoxalmente, busca encontrar a antiguidade de quando as palavras eram mais próximas às coisas. A poética não diz respeito somente à poesia, como já mencionado, ela comporta paradigmaticamente a extensão do processo de composição e de ativação da linguagem escrita. O escritor moçambicano Mia Couto considerava seu pai um poeta: em plena guerra colonial, ele catava pedrinhas brilhantes no trilho do trem:

Percorria a ferrovia e ciscava no chão catando pedrinhas que eram minérios brilhantes que tombavam dos trens.... O mundo rasgava-se ao meio e havia esse homem que coletava pedrinhas ao longo das linhas. De repente, eu descobria em meu pai um outro em mim.... Dava-lhe tanto prazer que eu percebia que, esgravatando entre o chão, não eram exatamente pedras que ele encontrava, havia ali um tesouro que não tinha nome.... Desse modo, ele criou em mim uma relação com as coisas desvalidas, com essas pequenas coisas que só têm brilho porque nós lhe emprestamos um pedido qualquer interior que desconhecemos (Couto, 2014, citado por Dimarch, 2014, para. 25-26).

O verbo “escutar” não serve para cor, as cores não servem para descrever sabores... As palavras não têm uma representação direta e transparente das coisas, assim como suas funções são variáveis nas diferentes línguas. Jogar com a poesia implica entrar na rede simbólica da linguagem, incluindo os aspectos sócio-históricos da aquisição da escrita por uma sociedade – lugar do Outro. A criança, ao longo de seus processos de subjetivação, inscreve-se gradativamente no código da língua e em seus efeitos de sentido, através de jogos metafóricos e metonímicos. O outro/Outro é que oferece o tesouro significante, mergulhado no oceano da linguagem.

Para ler e escrever, não basta aprender o código alfabético, é preciso o sujeito se inscrever simbolicamente, mergulhando na linguagem escrita e construindo um lugar de enunciação para si. No decorrer da alfabetização e do letramento das crianças, podemos ensinar-lhes o código – som/ letra –, mas as senhas do saber fazer com a linguagem, a gramática interior, as relações e sentidos inerentes à escrita, são passíveis de ser transmitidos. Mas como?

Oferecendo o brilho das palavras, como quem cata pedrinhas no trilho do trem: “Histórias e memórias são duas margens de um mesmo rio, que é o nosso tempo interior” (Couto, 2014, citado por Dimarch, 2014, para. 10). Para saber fazer com a linguagem é preciso mergulhar na totalidade da linguagem escrita: contando histórias, lendo de tudo e de diversas formas. A leitura iluminada pela voz do outro/Outro, seus sons e seus tons opera os múltiplos sentidos implícitos na escrita.

O saber fazer com a linguagem se explicita tanto em jogos poéticos como no humor produzido pelo chiste. O psicanalista Sigmund Freud (1905/1974), nos seus estudos sobre o chiste e sua relação com o inconsciente, analisa o porquê de se perder a graça se for preciso explicá-lo. O riso é provocado pela condensação de dois campos de significados que ao se fundirem trazem um sentido implícito e inesperado. O humor está naquilo que ficou fora de sentido, mas, através de uma equivocidade consentida, fez laço ao social, compartilhando o prazer em passar a perna no sentido.

A condensação de sentidos também reside na poesia, e operando com ela se dá a ver o jogo do traço, da letra e das palavras no deslizamento do sentido no espaçamento. Apostamos nessa ideia: os jogos com o saber fazer com a linguagem propiciam uma travessia do encantamento do adulto ao encantamento das crianças, ampliando o seu enlaçamento ao simbólico. A poesia constrói pontes: do fazer de conta ao saber fazer com a linguagem; do brincar com as coisas ao brincar com o traço, com as letras e com as palavras.

 

Desafios do cenário educacional

O estudo da poética do letramento atualiza e complexifica o debate sobre a histórica problemática da alfabetização na educação brasileira. Segundo os dados do MEC, há conquistas importantes no número de crianças alfabetizadas nas escolas brasileiras. Em 2011, 53,3% dos estudantes alcançaram os patamares desejados em escrita; 56,1% em leitura, e apenas 42,8%, em matemática. Porém, os indicadores que medem a leitura e a escrita apontam para um alto número de alunos que, ao final do terceiro ano do ciclo de alfabetização, ainda não dominam as habilidades relacionadas à compreensão do funcionamento do sistema de escrita. Ou seja, cerca de metade dos alunos que concluíram o ciclo de alfabetização “não atingiram as competências esperadas nas áreas avaliadas” (TV Escola, 2013). Apesar de todos os esforços realizados, mais da metade da população escolar dos três primeiros anos do ensino fundamental, incluindo aqueles que dominam o sistema de decodificação, ainda não são letrados. Priorizando a problemática da alfabetização, o Ministério de Educação, através da Secretaria de Educação Básica e do Departamento de Políticas da Educação Infantil e Ensino Fundamental, lançou, em 2004, um instrumento de orientação para o programa de Ampliação do Ensino Fundamental para nove anos, considerando quatro princípios ao longo do desenvolvimento do trabalho pedagógico:

1. O Sistema de Escrita Alfabética é complexo e exige um ensino sistemático e problematizador;

2. O desenvolvimento das capacidades de leitura e de produção de textos ocorre durante todo o processo de escolarização, mas deve ser iniciado logo no início da Educação Básica, garantindo acesso precoce a gêneros discursivos de circulação social e a situações de interação em que as crianças se reconheçam como protagonistas de suas próprias histórias;

3. Conhecimentos oriundos das diferentes áreas podem e devem ser apropriados pelas crianças, de modo que elas possam ouvir, falar, ler, escrever sobre temas diversos e agir na sociedade;

4. A ludicidade e o cuidado com as crianças são condições básicas nos processos de ensino e de aprendizagem (Brasil, 2015, para. 5).

Tais princípios demandam clareza do que se ensina e como se ensina, assim como das concepções de alfabetização subjacentes às práticas docentes, criticando a reprodução de métodos que objetivem apenas o domínio de um código linguístico. Porém, não basta conhecer as teorias sobre a alfabetização, o professor precisa estar em constante renovação de sua própria experiência com a escrita, ou seja, com o seu letramento, criando, vivendo e oportunizando experiências ricas com o saber fazer com a linguagem.

Paralelamente ao desafio da universalização da educação básica, no cenário brasileiro, através da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 1996) foram traçadas as diretrizes da educação inclusiva, considerando os direitos à educação, à igualdade e à diferença de alunos que constituem público-alvo da educação especial, que passam a ter garantida à preferência de matrícula em escolas regulares. Como pudemos constatar, o problema do acesso ao letramento é mais amplo e anterior ao da inclusão do público-alvo da educação especial, mas se associa a ele, desafiando ainda mais um modelo pedagógico hegemônico e convocando à construção de uma educação de qualidade para todos.

A educação especial nesse cenário foi ressignificada como

uma modalidade de ensino que perpassa todos os níveis, etapas e modalidades, realiza o atendimento educacional especializado, disponibiliza os recursos e serviços e orienta quanto a sua utilização no processo de ensino e aprendizagem nas turmas comuns do ensino regular” (Brasil, 2008, p. 1).

Em 2013, com a Lei 12.796, o termo “necessidades especiais”, utilizado até então para situar o público-alvo da educação especial, foi substituído. Esse público passou a ser definido como “educandos com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação” (Brasil, 2013, art. 4o, alínea III). A busca e a modificação de termos para nomear o público-alvo da educação especial demonstram a dificuldade de situar os parâmetros que definem qual grupo específico se situa fora/dentro da normalidade.

O abalo desses contornos – normal/anormal – borra as bordas traçadas entre o campo da educação regular e especial, ampliando a reflexão e o debate sobre o uso diagnóstico baseado em classificações sustentadas por categorias dicotômicas. Aproxima-se, assim, a problemática da alfabetização e do letramento, como ensinam/ aprendem a metade de alunos “analfabetos funcionais” nas escolas regulares, à da educação especial, como ensinam/aprendem alunos com problemas orgânicos e/ou psíquicos frequentando as mesmas classes escolares.

O estudo da poética do letramento se propõe a ir além da abordagem de uma concepção de alfabetização ampliada pela noção de letramento. Sua proposta consiste em relevar a importância das experiências com o saber fazer com a linguagem escrita, ampliando a compreensão da complexidade dos processos de alfabetização e letramento. Nesses processos entram em jogo a estrutura de funcionamento da linguagem escrita e as formas de expressão de suas propriedades: polissemia, deslizamento, mudança de estatuto das unidades conforme o estatuto da diferância que se estabelece entre elas. Tais propriedades se dão a ver pela poesia concreta.

 

Alfabetização e letramento e a problemática da estrutura e funcionamento da escrita

A díade alfabetização e letramento é utilizada para acentuar o questionamento de práticas pedagógicas institucionalizadas e sustentadas no fonocentrismo e no logicismo. É preciso evidenciar as concepções alfabetizadoras subjacentes às práticas docentes com a intenção de ressignificar a noção de alfabetização e de redimensionar a própria noção de escrita utilizada no sentido corrente, a fim de diversificar as relações entre oralidade e escrita, modificando as expectativas sociais em relação à aprendizagem da linguagem escrita e redefinindo as possibilidades sociais e cognitivas dos chamados analfabetos.

“Letramento” é um neologismo que no início da década de 1980 foi introduzido como uma tradução de “literacy ”, da língua inglesa (Tfouni, 2010). É um termo interessante, pois faz um contraponto ao considerar a dimensão política e ideológica da leitura e da escrita, distinguindo-se da noção de alfabetização que apresenta embutida em si uma relação de subordinação da escrita à oralidade (Maraschin, 1995).

A tese da professora Cleci Maraschin trouxe uma reflexão importante a respeito do fracasso escolar ao analisar o estímulo à fonetização da escrita comumente realizado pela escola. Para a pesquisadora, o centramento de atividades escolares na oralidade contém as sementes do iletrismo. A ênfase dada no ensino à relação entre fonemas e grafemas é denominada fonocentrismo escolar: “A escola contribui para o acesso a uma subjetividade iletrada porque ensina a escrever a partir de uma ecologia cognitiva oral” (Maraschin, 1995, p. 28).

Essa ecologia oral é efeito da concepção logocêntrica, caracterizada por um conjunto de pressuposições em que se assenta a cultura ocidental, marcado por um grupo de conceitos estabelecidos em categorias opositivas: mente/corpo, essência/circunstância, verdade/mentira, afirmando o valor de um centro, em detrimento de seu oposto (Derrida, 1967/1999). A metafísica atribui ao logos a possibilidade de afirmação da verdade e a própria explicação da origem do ser. Há uma hierarquização que afirma a superioridade de um termo em relação ao outro e o elemento privilegiado é proposto como um centro inquestionável, única possibilidade, em termos absolutos, de explicação da realidade e de explicitação da verdade.

A ideia da prevalência da voz sobre a escrita levou a práticas cujo centro está na fonetização da escrita. Nelas fica implícita a crença na capacidade de penetrar sob as aparências e de se ser levado pela razão ao encontro das leis de composição da estrutura. As abordagens psicológico-funcionalistas   substancializam a linguagem, assimilando-a como veículo de conteúdos ou significados, assim como os seus níveis de funcionamento e as formas de que se constituem, como os sons.

As práticas empiristas decorrentes dessas abordagens também são sustentadas pelo pensamento logofonocêntrico, colocando a escrita como secundária à língua, mera representação da oralidade. Nessa linha, as atividades tradicionalmente propostas aos alunos priorizam exercícios de habilidades de codificação e decodificação, visando à transposição do oral ao escrito, à segmentação fonética e à memorização. O exercício de repetição do traçado gráfico, a cópia, assim como a fonetização das letras e a apresentação das famílias silábicas fazem parte dessas atividades.

O logocentrismo conecta-se com outro fundamento da metafísica: a presença, ligada à forma matricial do ser e à sua identidade. Ao restaurar a dimensão da escrita, o filósofo Jacques Derrida realizou também uma crítica à noção de representação e ao predomínio do registro da voz como presença e verdade: “A essência da phoné [substância fônica] estaria imediatamente próxima daquilo que, no 'pensamento' como logos, tem relação com o 'sentido', daquilo que o produz, que o recebe, que o diz, que o reúne” (Derrida, 1999/1967, p. 13).

Descentrando da racionalidade e das dicotomias próprias do pensamento moderno, encontramos a noção da escrita como linguagem, sem reduzi-la meramente ao espelho da língua. Com isso, também a noção de alfabetização passa por uma virada conceitual, levando à poética do letramento. Para isso acontecer, foi preciso enfrentar alguns obstáculos epistemológicos:

• a crença de que alunos marcados por diferenças sociais e/ou orgânicas não aprendem a ler e a escrever;

• a crença na biologização dos problemas de aprendizagem;

• a crença na noção de representação;

• a concepção de que a escrita é o espelho da língua e de que a leitura se restringe à sua decodificação;

• a naturalização da relação entre a imagem e a escrita.

Ao enfrentar tais obstáculos, chegamos à ideia de que a aquisição da escrita implica a complexidade dos processos sociais, subjetivos e educacionais, cuja conscientização demanda o enfrentamento de nossas concepções logofonocêntricas. O domínio dos signos linguísticos escritos pressupõe uma experiência social que o precede: uma leitura de mundo, proposta tão cara ao inesquecível filósofo e educador Paulo Freire.

A professora e pesquisadora Sonia Borges (2006), apesar de não optar pela distinção dos termos “alfabetização” e “letramento”, realizou sua pesquisa a partir de uma experiência de dois anos com um grupo de crianças no início do ensino fundamental, analisando as concepções de alfabetização a partir da mesma crítica à noção de representação. Articulada aos trabalhos da psicanálise, a pesquisadora colocou em xeque as práticas alfabetizadoras que desconsideram formas não alfabéticas de escrita na aprendizagem. A pesquisadora denominou as formas iniciais de escrita, quando ainda não se configuram dentro do ordenamento alfabético, de resíduo, uma escrita “excluída da possibilidade de interpretação por suas características de heterogeneidade e indeterminação categorial” (Borges, 2006, p. 40).

Acompanhando nessa pesquisa a operação de importação conceitual do campo da psicanálise, produziu-se um deslocamento na relação entre sujeito e objeto, tido impossível nas circunstâncias de crianças com comprometimento orgânico e/ou psíquico, quando o sujeito se constitui em uma posição singular na linguagem e seus jogos polissêmicos.

A poesia concreta foi privilegiada no estudo da poética do letramento devido às evidências oferecidas sobre o funcionamento metonímico e metafórico da escrita, operando através da relação de substituição tanto pela concorrência de entidades simultâneas quanto pela concatenação de entidades sucessivas, pela seleção e combinação de unidades linguísticas. Há sempre uma função metonímica associada à metáfora; isso é, o essencial do fator significante, fora de sentido, depende de seu lugar em relação aos outros. Aí também reside o recurso criador da linguagem, explicitado pela poesia, a via por onde propomos avançar.

Para o poeta Manoel de Barros (2010, p. 2), “a poesia é a infância da língua”, como mostra em seu verso, “sapo é um pedaço de chão que pula”, um de seus desenhos verbais. Mas, afinal, de onde vem a poesia? E indo ainda mais em direção ao inalcançável, onde começa a linguagem?

A linguagem verbal é definida por sua capacidade de representar as coisas. No entanto, esse representar é de certa maneira impossível, pois a linguagem sempre produz o objeto ao momento mesmo em que acredita estar conhecendo-o. Sendo assim, não há como saber o que veio antes – o objeto ou a linguagem – e nos encontramos todos no campo do erro ou da errância, da significação. Há um impossível da representação.

Em sua forma primária, a origem da linguagem se confunde com a origem da poesia, num passado mítico em que havia integridade entre o nome e a coisa. A partir de diferentes línguas, torna-se mais fácil compreender essa relação entre a palavra e a coisa. O tupi e o chinês, por não usarem o verbo ser, têm uma linguagem mais sintética, telegráfica, que aproxima o nome da coisa: água boa, ao invés de essa água é boa. É como se, em vez de se referir às coisas, a linguagem as apresentasse. O chinês é uma língua isolante, sem flexões. Quanto menos gramática exterior, mais há uma gramática interior inerente, cuja forma é de pura relação. Para os chineses, a mesma palavra pode exercer diferentes funções – de adjetivo, verbo, ou advérbio –, sem nenhuma indicação de alteração de sua categoria gramatical. A função tradicional das mutações lógico-gramaticais é preenchida pela ordem das palavras.

As palavras, em estado de língua no dicionário, intermedeiam nossa relação com as coisas, impedindo o contato direto com elas. Mas a poesia, como infância da língua, restitui os laços mais íntimos entre os signos e seus referentes: “A linguagem poética inverte essa relação, pois, vindo a se tornar, ela em si, outra coisa, oferece uma via de acesso sensível mais direta entre nós e o mundo” (Antunes, 2014, p. 25).

A palavra “poeta” vem do grego “poietes”, “aquele que faz”. E faz o quê? Faz linguagem. O poeta não trabalha com o signo, ele trabalha o signo verbal. O poeta Décio Pignatari (2006) conclui ser a poesia como um corpo estranho nas artes das palavras, parecendo estar mais do lado da música e das artes plásticas e visuais do que da literatura.

A poesia está mais perto da música, a mais irrepresentável das linguagens – pois a música não representa nada. Poeta, letrista, filósofo e escritor, Francisco Bosco chama atenção para uma ocasião em especial da música, quando os shimbalaiés e tchubarubas, palavras sem sentido – puro fonema – invadem a letra da canção e se tornam o seu clímax. Esses shimbalaiés – passagem da palavra ao som, passagem da transitividade do semântico à intransitividade do melódico –, vêm da autonomia da melodia de toda canção. Na história da música brasileira há exemplos frequentes e empolgantes: Hobálálá, de João Gilberto, Têtêtétérete, de Benjor, passando pelo Le-le-lu-le-laio-li-lom, de João Bosco.

“Shimbalaié é um momento em que a linguagem verbal não se aguenta e deseja ser música, deseja livrar-se do fardo de representar, de ser outra coisa, senão ela mesma. É como se a palavra não resistisse à alegria da música e se transformasse em música. É como se ela se desse conta de que aquilo que a música está sentindo não se pode expressar de outro modo, não há palavra que chegue, (pois a palavra nunca chega, ela sempre perde o trem) (Bosco, 2012, p. 75).

A linguagem verbal carrega o fardo de ser sempre outra coisa, mas assim como se perde na alegria do sem sentido dos shimbalaiés, também encontra no poeta um ferrolho para descansar de sua função de representar, e, no poema, um oásis no deserto da referencialidade (Antunes, 2000). Então, se a poesia é como um corpo estranho nas artes das palavras, o é por ser sua intenção reinventá-las.

No extremo da (im)possibilidade da linguagem em dar conta de seus próprios limites, a linguagem coisa da poesia concreta surgiu buscando incessantemente novas soluções formais na dimensão verbivocovisual. Modernamente, explorando outros territórios de linguagem, o escritor e poeta Mario de Andrade operou uma ruptura do verso comum melódico para o verso harmônico, formado de palavras sem ligação entre si, gerando com isso harmonias – combinação de sons simultâneos, através da justa-posição de duas ou mais palavras –, formando pequena paisagem verbivocovisual ou pequena paisagem ideográfica.

O verso harmônico levado à sistematização acaba por destruir o verso como unidade rítmico-formal do poema, e por seu contínuo fracionamento espacial passa a interferir na estrutura, conduzindo ao poema espacial, visual – o verbal se poetiza através do código visual. O espaço passa a ser elemento que qualifica a estrutura, o poeta associa formas e não ideias. A sintaxe visual é afetada por fatores de proximidade e semelhança, relacionando palavras no espaço tendo em vista a simultaneidade. O movimento tende à simultaneidade e à multiplicidade de movimentos concomitantes (Pignatari, 2006).

Inspiradas no fazer poético, as intervenções com as crianças em processo de aquisição da escrita produzem um deslocamento da fonetização das letras para um jogo com o traço, as letras e as palavras. Márcia, aos 8 anos, ao tentar ler ora enunciava o nome das letras, ora fonetizava seus sons, perdendo o sentido da leitura. Durante o acompanhamento, ao escrever seu nome no quadro, a psicopedagoga circula a sílaba mar em seu nome e escreve, no quadro, “o mar de Márcia”. E assim, sucessivamente, buscam palavras dentro de palavras, que a partir de um recorte significante ganham sentido e graça na leitura.

Para o poeta Ezra Pound (1974), a poesia é condensação de sentidos, inaugurando um sistema de leitura em que o linear se abre ao prismático. Então, além da palavra quase coisa, há outras senhas do fazer poético. Seus usos comuns, segundo Arnaldo Antunes (2000, 2014), podem se apresentar em forma de paradoxos; duplos sentidos; analogias; ambiguidades; cortes ou junções, ou mesmo espaço sintático. Ou nas diferentes maneiras de fragmentação da linguagem; nos signos dentro dos signos, onde várias alternativas disputam; na exploração constante de procedimentos gráficos (cor, escolha e disposição de tipos) – ao mesmo tempo inserindo obstáculos de leitura incorporados à sua recepção, usados de forma estrutural e não decorativa –; na fragmentação de vocábulos, abrindo possibilidades múltiplas de leitura entre as partes; nas reverberações fônicas que enredam um termo a outro, numa cópula de opostos; nos entrelaçamentos de associações e contrastes de sons e sentidos. Ou na fragmentação do discurso usando as próprias letras, lançadas na direção de quem vê, lê; na sintaxe menos; no quase nada que se converte em pó; no resíduo árduo de um arado; na camada áspera e pontiaguda; nos ângulos prismáticos do silêncio; em anagramas que andam e nadam, migrando para paronomásia – porto e ponto – ou em vozes veladas da aliteração, gerando novas significações dos signos de sempre.

 

Considerações em andamento na travessia da poética do letramento

A poética do letramento se propõe a jogar com as senhas do fazer poético, articulando a conexão inseparável existente entre infância, experiência e linguagem. A infância não é apenas uma etapa cronológica, nem uma idade que possa ser construída de forma independente da linguagem, mas trata-se de uma condição da experiência humana. Na infância é que se torna possível a experiência para que o homem se aproprie da língua inteira, designando-se eu (Agamben, 2005).

A origem etimológica da palavra “infância” é latina, “infantia ”, e significa “não falar”. De fato, as crianças, quando chegam ao mundo, não falam, e irão alcançar a infância indo ao encontro da linguagem e a significando. A criança se constitui como sujeito de linguagem e pela linguagem, e no decorrer de toda a sua vida buscará seus limites na experiência com a própria linguagem. Não é possível ver o homem fora do ato de linguagem nem fora do movimento contínuo de inventá-la, já que sua construção não ocorre apenas nos anos iniciais, sendo ela constitutiva do humano como um ser falante.

O poeta reinventa a linguagem, pois não trabalha com o signo, ele trabalha o signo verbal, fazendo nascimentos, operando jogos de substituição e de deslocamento no espaçamento. Por isso jogar com poesia contribui para uma proposta de formação de leitores/escritores, tanto de alunos como de professores, na travessia do brincar com as coisas para brincar com o traço, as letras e as palavras no processo de letramento. Eis ao que se propõe a poética do letramento: jogar com a poesia, desvelando-a como infância da língua e colocando-a em cena para a compreensão da estrutura do funcionamento da linguagem escrita expressa por suas propriedades: polissemia, deslizamento e mudança de estatuto das unidades conforme o estatuto da diferância que se estabelece entre elas.

A investigação sobre o funcionamento das propriedades da escrita através da poética do letramento proporciona alternativas para enfrentar os problemas encontrados nessa nova aventura da linguagem. O trabalho com a alfabetização e com o letramento implica armar um tabuleiro de linguagem onde o sujeito de enunciação venha a transitar em jogos metafóricos e metonímicos, inscrevendo-se na escrita e experimentando suas diferentes propriedades. Além disso, os professores transmitem o prazer do saber fazer com a linguagem, proporcionado pela experiência viva vivida através da poesia, viabilizando novas vias na sua travessia pela escrita e na de seus alunos também.

 

REFERÊNCIAS

Agamben, G. (2005). Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte, MG: UFMG.         [ Links ]

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Barros, M. de (2010). Poesia completa. São Paulo, SP: Laya.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
Av. Independência, 944
90035-070 – Porto Alegre – RS – Brasil.
elainemilmann@hotmail.com

Recebido em maio/2015.
Aceito em julho/2016.

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