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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.21 no.3 São Paulo Dec. 2016

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v21i3p548-572 

DOI: http//dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v21i3p548-572

ARTIGO

 

Adolescência e expressões do malestar na escola: estudo de casos

 

Adolescent and expressions of school discontent: cases study

 

Adolescentes y expresiones de malestar en la escuela: estudio de casos

 

 

Cristiana CarneiroI; Lívia Tedeschi Rondon de SouzaII; Luciana Gageiro CoutinhoIII; Raisa de Paula Fernandes da SilvaIV

IPsicanalista. Professora adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil
IIGraduanda do curso de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Bolsista de iniciação científica Faperj, Niterói, RJ, Brasil
IIIProfessora adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil
IVGraduanda do curso de Pedagogia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Bolsista de iniciação científica Faperj, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

O artigo visa a apresentar parte de um estudo de casos de dois adolescentes encaminhados pela escola ao serviço de psiquiatria. A pesquisa realiza interface entre os campos da Psicanálise e da Educação. A partir da metodologia de pesquisa-intervenção, o material recolhido nos anos de 2013 e 2014 foi agrupado para análise, sendo elencadas categorias e subcategorias temáticas extraídas das falas dos próprios adolescentes. Conclui-se que os impasses na área da escolarização são constituídos por múltiplos fatores, que não apenas os de ordem individual, o que se contrapõe à lógica contemporânea da medicalização dos problemas escolares.

Descritores: educação; psicanálise; adolescência; mal-estar; estudo de casos.


ABSTRACT

The article aims to present a study based on two adolescents' cases both forwarded from school to a psychiatry service. The research makes a link between psychoanalysis and educational areas. Methodology used is research-intervention, which allowed us to classify the material collected in 2013 and 2014 in order to analyze their results, that have been listed into thematic categories and subcategories extracted from the adolescents' speeches. In conclusion, the challenges in education are produced by multiple factors, not only individual ones, which juxtaposes contemporary logic of educational problems medicalization.

Index terms: education; psychoanalysis; adolescence; discontent; case study.


RESUMEN

En este texto se pretende presentar un estudio de casos de dos adolescentes enviados por la escuela para el servicio de psiquiatría. El trabajo realiza la interfaz entre los campos del psicoanálisis y la educación. De la metodología de investigación-intervención, el material recolectado en los años 2013 y 2014 se agrupó para análisis en listas de categorías y subcategorías, extraídas de la conversación de los propios adolescentes. Se concluye que el punto muerto en el campo de la enseñanza consiste en múltiples factores, no solo del orden individual, lo que contrapone a la lógica contemporánea de la medicalización de los problemas.

Palabras clave: educación; psicoanálisis; adolescencia; malestar; estudio de caso.


 

 

Introdução

A partir da revisão da literatura acerca das pesquisas em relação ao mal-estar na educação, podemos depreender a existência de um volume significativo de autores que se debruçam sobre esse tema (Pereira, 2009; Kupfer & Lerner, 2014; Voltolini, 2014; Plaisance, 2014; Vasconcelos, Santos & Santiago, 2009; Cortés, 2012; Merletti, 2012; Ferreira & Pereira, 2012; Almeida, 2012; Diniz & Silva, 2012; Oliveira & Almeida, 2012). As abordagens diferem entre si no que diz respeito ao modo de situar o mal-estar, seja de modo mais abrangente, como algo inerente às relações socioculturais que se atualizam no ato de educar no mundo contemporâneo, seja localizando-o mais especificamente como um fenômeno que se produz nas instituições escolares, na prática de gestores, professores e alunos.

Parece consenso que a noção de mal-estar, contraposta ao entendimento comum de bem-estar, sugere um incômodo, algo disruptivo que tensiona e provoca. Entretanto, encontramos na psicanálise uma novidade no que se refere aos desdobramentos dessa definição do senso comum – com uma conotação puramente negativa, posto que o mal-estar não existe enquanto fenômeno natural ou fechado sobre si mesmo, não podendo ser atribuído a partir de uma causa unilateral e/ou individualizada. Na psicanálise, o mal-estar (Freud, 1930/2011) está sempre referido ao outro, à vida coletiva na cultura, podendo ter sua origem tanto na esfera intersubjetiva das relações sociais mais diretas quanto na dimensão intrassubjetiva por meio da presença de seu herdeiro psíquico, o supereu, tendo o ideal de eu como um de seus componentes.

Portanto, quando tratamos das relações entre sujeitos humanos, admitimos que o mal-estar seja inerente à vida social, sendo decorrente do encontro das exigências pulsionais com o imperativo civilizatório (Freud, 1930/2011). Assim, ampliamos a perspectiva de análise na questão da escolarização de crianças e adolescentes quando concebemos que o tal mal-estar não se encontra nesse professor ou naquele aluno destacado, pura e simplesmente como decorrência de um evento isolado que irrompe na escola, mas deve ser tomado como algo constituinte das relações humanas, que se presentifica no cotidiano escolar enquanto prática e discurso.

A questão se torna complexa quando analisamos o modo pelo qual se desdobra o mal-estar, ou seja, como ele é tratado e qual seu lugar na educação e na sociedade. Como lidar com o mal-estar inerente às relações humanas? Qual o lugar da educação tanto em sua produção quanto em seu tratamento? Levando em conta o grande número de encaminhamentos provenientes da escola que chegam até o serviço de saúde mental (Carneiro & Coutinho, 2015), questionamos como tem sido reconhecido e tratado, de fato, o mal-estar na experiência educacional? A partir da psicanálise, podemos pensar em outros destinos para o mal-estar quando lhe é ofertado um lugar de escuta — o que permite que ele seja falado e elaborado (Quintella, 2015). Apenas na medida em que pode se tomar a palavra na relação com o outro, tornase possível encaminhar questões que emergem em decorrência do mal-estar e que estão relacionadas aos aspectos social, institucional e individual. É importante frisar que essas dimensões não existem separadas: elas são constituídas umas pelas outras e devem ser analisadas de um modo amplo e multifocal.

A partir da pesquisa bibliográfica a respeito do mal-estar na educação, é possível notar uma variância dos estudos no que se refere ao recorte dado ao tema. Alguns autores dedicam-se principalmente a pensar o mal-estar na docência na atualidade (Pereira, 2009; Ferreira & Pereira, 2012; Silva 2012), alguns trabalhando mais aspectos que envolvem o próprio funcionamento institucional da escola com seus efeitos nos sujeitos, tanto alunos como nos educadores (Kupfer & Lerner, 2014; Cortés, 2012). Ferreira e Pereira (2012), por exemplo, apontam para os indicadores de malestar nos professores, levando em conta aspectos da realidade social em que estão inseridos e ao próprio exercício da atividade docente. Outros autores centram suas pesquisas nesse fenômeno ligado à educação inclusiva (Voltolini, 2014; Plaisance, 2014) ou, ainda, a determinados sintomas que aparecem de forma recorrente nas crianças e adolescentes (Merletti, 2012, Vasconcelos et al., 2009).

Cada autor sugere, assim, um modo possível de se lançar sobre o amplo campo da educação na abordagem do mal-estar, tarefa essa que se constitui como um importante esforço nos estudos da escolarização e seus impasses. Nesse sentido, a proposta deste artigo é de contribuir para a investigação do mal-estar especificamente no que diz respeito à educação de adolescentes e quais são seus encaminhamentos possíveis para os impasses que aí se fazem presentes.

O artigo parte de algumas produções no campo da educação em interface com a psicanálise que tratam da questão do fracasso escolar relacionando-o aos imperativos do ideal educativo vigente e discutindo algumas especificidades da adolescência nesse contexto. Em seguida, apresenta o projeto de pesquisa "Infância, adolescência e mal-estar na escolarização: estudo de casos em psicanálise e educação", concebido da parceria entre professoras de duas faculdades federais do estado do Rio de Janeiro, cujo objetivo principal é compreender de forma mais ampla como se produz o mal-estar, por meio da análise dos discursos dos diversos agentes envolvidos na escolarização de crianças e adolescentes (aluno, família, escola e especialistas na área da saúde). Acompanhando casos de crianças e adolescentes encaminhados pela escola ao setor de psiquiatria, podemos atestar como a questão do mal-estar na escolarização ultrapassa as fronteiras da escola, e diz respeito a uma pluralidade de saberes, fatores e agentes imbricados.

Apesar de reconhecermos a importância dos discursos dos diversos agentes que participam na produção desse mal-estar, o artigo centrará sua discussão na perspectiva de dois adolescentes acompanhados pela pesquisa, com a proposta de discutir como se dá o encontro do adolescente com a escola através de expressões dadas por esses sujeitos ao mal-estar, incluindo-os na construção de um saber e de um possível tratamento para ele.

 

Adolescência e o ideal educativo

O chamado fracasso escolar tem sido atribuído cada vez mais a um número expressivo de crianças e adolescentes, o que, ainda que venha sendo o alvo de enfrentamento das políticas públicas, não deixa de acarretar grandes prejuízos e desgastes no processo de ensino-aprendizagem. Apesar dos esforços dos programas de intervenção pedagógica e dos programas políticos, nota-se a presença de um ideal normativo em suas formulações generalistas e universalizantes, baseadas na ideia de que o fracasso pode ser eliminado por meio de um artifício técnico ou pedagógico, o que só reforça a segregação. Assim, como salienta Cortés (2012), a questão não está no problema de se ter um ideal educativo, mas em como nos posicionamos eticamente e subjetivamente diante dele, tornando-o um imperativo. Nesse sentido, esse fracasso de alunos – e por que não dos professores e da escola? – pode ser entendido como um sintoma advindo de práticas e discursos no interior da escola (Vasconcelos et al., 2009), mas que também passa pela questão da universalização da educação básica.

Com a universalização, a escola se encontra despreparada para atender um grande número de alunos com suas diversidades, causando exclusão não mais fora dela, mas dentro — aquele que era excluído por não ter oportunidade de acesso agora é excluído por não fazer parte da história da escola e por trazer desafios ao processo de ensino-aprendizagem —, e reprovações seguidas de evasão (Oliveira, 2007). A ampliação do acesso escolar é de suma importância, mas tem que se pensar em como esse acesso está sendo ofertado para a população. O fato de a escolarização estar cada vez mais se ampliando faz que haja heterogeneidade nas turmas, e essa é a grande dificuldade do professor que está em sala de aula: perceber que não há homogeneidade naquele espaço e que um não vai aprender da mesma forma que o outro. Será que os professores estão preparados para lidar com isso?

O fracasso escolar, como já apontado, é também atravessado pelo ideal de aluno compartilhado pelos educadores. Acaba-se por se idealizar demais como o aluno deve ser e isso gera uma grande pressão para que ele se comporte, aprenda e aja de determinada maneira. Com o tempo surgem indícios de que algo não vai bem, o que acaba refletindo em sua aprendizagem, e é nesse ponto que os rótulos de aluno "fracassado" aparecem.

A psicanálise, entretanto, nos adverte que não se trata de extinguir a experiência do fracasso escolar, pois ele faz parte daquilo que não cessa de se inscrever na pedagogia. Como observam Vasconcelos et al. (2009), na perspectiva da psicanálise, o fracasso não é entendido como patologia, embora o não aprender possa aparecer como um sintoma. Assim, não há aprendizagem sem algum fracasso, na medida em que, se há sujeito, há sempre saber não todo, fruto de sua divisão constitutiva.

Na pesquisa em questão, trabalhada neste artigo, a proposta é analisar o que dizem os adolescentes a respeito da escola e mais especificamente de sua experiência escolar, dando voz àqueles que não aprendem, de modo a averiguar o espaço vazio em que o sujeito emerge, não sem mal-estar, a partir de seu encontro com o Outro (Gutierra, 2003). Afinal, o mal-estar que aparece na relação ao Outro se relaciona ao modo de resposta dado por cada um para as exigências do viver em sociedade. Ao trabalhar o reencontro com o Outro na adolescência, Gutierra (2003) marca que a escola é um espaço privilegiado para os jovens, que representa a construção de um lugar no mundo adulto, de sua inscrição na esfera pública, por ter o contato com o saber culto, pelas atividades pedagógicas, pela relação com os professores e colegas, que trazem efeitos no campo da subjetividade.

Sabemos quão importante e conflituosa é a travessia do adolescente no que se refere ao trabalho subjetivo exigido para isso, permeado por transformações biológicas e pelos impasses no encontro com a própria alteridade e com o real do sexo (Coutinho, 2015). Produto da relação com o Outro, o bebê humano experimenta o mundo por meio dos cuidados do Outro primordial, aquele que o toma como seu objeto de desejo e a quem o bebê recorre contra seu desamparo fundamental. Mas, em algum momento, a criança precisa desvencilhar-se dessa posição de objeto alienado ao desejo dos pais e perceber as falhas nesse Outro primordial idealizado. Assim, como define Alberti (2004), a adolescência é um trabalho de elaboração das escolhas e da falta no Outro. Nesse sentido, como marca a autora, para que a elaboração das perdas possa ser operada, a presença da figura dos pais é de extrema importância, pois a função de separação só pode ser realizada se aqueles a quem o adolescente está alienado estiverem presentes. É o processo de separação dos pais imaginarizados que possibilitará ao adolescente assumir uma posição desejante apenas na medida em que reconhecer que não poderá escapar ao desamparo constitutivo do ser humano, ou seja, que nenhum outro será capaz de protegê-lo diante das exigências da pulsão. Essa operação — na qual todo sujeito precisa se haver com sua falta para constituir-se enquanto sujeito desejante — é entendida pela psicanálise como castração.

Portanto, esse movimento que está na base da subjetivação, se opera na relação que se modula entre alienação e separação ao Outro – e promove a possibilidade de lançar-se ao próprio inconsciente como recurso simbólico, e não mais colocado exclusivamente na relação aos pais. Segundo Alberti (2004, p. 13), "um parâmetro determinante para estabelecermos o final da infância: a definitiva incorporação do Outro da infância de maneira que o sujeito não seja mais dependente da idealização dos pais da sua infância". Ou seja, a elaboração simbólica da falta do Outro, da queda do ideal dos pais, é tarefa pela qual o adolescente precisa passar para constituir-se enquanto sujeito.

De fato, a perspectiva da psicanálise vai de encontro à noção de um ideal a ser seguido, tanto no que diz respeito a um modelo de pais como de método de educação, considerando a realidade do inconsciente que aí se faz presente. Partindo disso, Gutierra (2003) retoma Freud para dizer que a educação em essência traz a marca do impossível quando se situa num ideal de perfeição.

A autora estabelece três impossíveis no que se refere à educação dos adolescentes. O primeiro impossível é o embaraço do ensino da ordem social, em que o professor se encontra sozinho na transmissão e sustentação da cultura, sem o auxílio de uma rede simbólica e social. O segundo impossível se refere à questão estrutural do ideal de educação perfeita, que não pode ser alcançado — como já mencionado. O terceiro, por fim, pode ser entendido com base na relação do aluno com o professor e o saber.

A relação professor-aluno para os adolescentes, de modo análogo à relação com os pais, passa também pela queda de ideais e pelo desligamento da figura paterna, trazido por Freud (1914/1987), ainda que o mestre não se coloque diante de seus alunos como "figura paterna" suficientemente eficaz (Gutierra, 2003). Assim, no âmbito da educação, o adolescente pode tanto se identificar com o mestre quanto desqualificar sua autoridade. Essa relação de transferência aparece sob a forma de uma ambivalência do aluno em relação ao professor e, por outro lado, no educador, de um mal-estar inerente à prática educativa com adolescentes.

Por outro lado, segundo Gutierra (2003) quando o saber e o ensinar passam pelo desejo, dá-se a transmissão de um desejo de saber, ou seja, quando o professor tem o desejo de ensinar e trocar conhecimento, isso aguça o desejo de saber, de aprender por parte dos alunos, faz que aquilo que poderia ser chato passe a ser interessante, pois o professor mostra esse desejo e está imbricado dentro do processo de ensino-aprendizagem. Para o adolescente isso parece ser importante, pois ali há a possibilidade de construção de algo novo a partir de conteúdos "engessados". Nesse sentido, a autora traz um ponto importante que é o lugar de referência que professor ocupa quando está no lugar de mestre, diferenciando-se do aluno, mas que ao mesmo tempo está transmitindo algo da ordem da aposta, ou seja, dando espaço para que o sujeito adolescente possa ali enganchar seu desejo — o que remete também à possibilidade de construção de um lugar no laço social. Isso se torna fundamental, pois, quando os professores se preocupam em abrir um espaço de fala para que os alunos possam ser ouvidos sobre a adolescência, sem necessariamente abrir mão do conteúdo formal, o efeito que incide sobre os alunos favorece a aprendizagem e instiga o desejo de saber.

 

A pesquisa

A pesquisa surgiu a partir de uma parceria entre o Núcleo Interdisciplinar de Estudo e Pesquisa para a Infância e Adolescência Contemporâneas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Nipiac/UFRJ), as faculdades de Educação da UFRJ e da Universidade Federal Fluminense (UFF) e o Instituto de Psiquiatria da UFRJ (Ipub), no Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência (Spia), onde o trabalho se realizou.

Em seu projeto piloto, realizado em 2012, no Spia, a equipe responsável pela pesquisa fez um rastreamento das queixas ligadas à escolarização dos casos que eram atendidos na triagem do serviço. A partir disso, constatou-se que havia muitas queixas de dificuldade de aprendizagem e agitação. Essas duas queixas foram eleitas como categorias e se tornaram critérios de seleção para os casos que seriam estudados. O grupo elegeu sete casos que atendiam a essas categorias, que foram observados durante os anos de 2013 e 2014, mas somente cinco permaneceram até o final. Seu objetivo principal foi investigar o mal-estar na escolarização de crianças e adolescentes por meio da interdisciplinaridade a partir da metodologia de pesquisa-intervenção e estudo de caso1.

Ventura (2007) aponta que o estudo de caso tornou-se uma das principais modalidades de pesquisa qualitativa em ciências humanas e sociais, indo para além das áreas médicas e psicológicas. O estudo de caso é uma investigação empírica que lida com condições contextuais que são pertinentes ao fenômeno de estudo. Além disso, compreende um método abrangente que abarca o planejamento, as técnicas de coleta e análise de dados (Yin, 2005).

O que a pesquisa se propõe é buscar compreender como se dá o mal-estar, e não somente constatá-lo. Porém, o objeto estudado, dentro da perspectiva da pesquisa-intervenção, já é modificado pela inserção do pesquisador no campo, havendo uma inter-relação entre os agentes envolvidos. Assim, a relevância da pesquisaintervenção estaria no fato de ser uma atuação como "operador que permite observar e definir diretamente um objeto e, simultaneamente, agir sobre ele e mudá-lo" (Ferrari, 2008, p. 88).

Para tentar responder e entender como o mal-estar era visto/falado, foram construídos eixos de análise, dos quais faziam parte os discursos dos diversos sujeitos presentes em cada caso. Foram quatro eixos formadores da pesquisa: o sujeito (crianças/adolescentes), a família, o especialista e a escola. Os dados foram coletados durantes os anos de 2013 e 2014, a partir de reuniões mensais com os pais (família), com os especialistas (psicólogos, psiquiatras, musicoterapeutas e fono), com as próprias crianças/adolescentes, idas à escola das crianças/adolescentes e de seus prontuários. As técnicas utilizadas para a produção do material foram as gravações realizadas de todas as reuniões e, posteriormente, suas transcrições, relatórios anuais de cada eixo e leitura dos prontuários. Na análise do material escolhemos trabalhar aqui com o eixo sujeito, e dentro deste elegemos categorias e subcategorias de acordo com a convergência e a divergência das falas dos adolescentes. Vale notar que nessas falas o mal-estar está situado no campo relacional do adolescente, permitindo-nos vislumbrar já de saída a importância central do outro na escolarização.

O eixo sujeito, que será analisado neste trabalho, contempla as falas das crianças e adolescentes em relação à escola, sobre o que gera de alguma forma um mal-estar. As falas foram retiradas de reuniões realizadas com os participantes da pesquisa para que pudessem falar sobre questões que os incomodavam com relação a sua escolarização. O objetivo deste eixo foi justamente proporcionar um lugar de fala para os alunos da pesquisa, já que, ao longo do processo de encaminhamento das crianças e dos adolescentes da escola para o ambulatório de saúde mental, somente o discurso dos pais e da escola vigorava, sendo assim registrados em sua ficha de triagem. Dessa forma, no decorrer do percurso do encaminhamento e da definição dos rumos iniciais a serem dados a seu tratamento a partir da triagem, a criança e/ou o adolescente praticamente não eram convocados a falar.

Na análise do material elegemos categorias e subcategorias de acordo com a convergência e a divergência das falas dos sujeitos. Para tal nos utilizamos dos relatórios das atividades de campo e das transcrições realizadas pelas bolsistas de iniciação científica a partir das reuniões gravadas. Nos casos dos adolescentes percebemos que o mal-estar pode ser enunciado de forma mais direta do que nos casos das crianças, que expressam esse mal-estar mais pelo corpo e por outras formas de colocá-lo em ato.

A partir da análise das falas dos dois adolescentes de que trataremos aqui, chegamos às quatro subcategorias (dentro da categoria "mal-estar") seguintes: outro que falta/garante; outro que não reconhece; relação entre pares; e relação ao ideal de saber. As subcategorias puderam ser construídas a partir da análise do discurso dos próprios sujeitos e de um estudo comparado entre suas falas, ou seja, foram criadas a posteriori, a partir de leituras do material em grupo, incidindo sobre discursos recorrentes em mais de um sujeito. Desse modo, pudemos apreender como algumas delas se aproximam entre os dois alunos, na medida em que evidenciam embaraços próprios das questões adolescentes e que aparecem de forma semelhante entre os dois sujeitos – subcategorias convergentes –, e como outras apontam para diferenças em determinados aspectos – subcategorias divergentes.

Por meio das subcategorias "outro que falta/garante" e "outro que não reconhece", temos um desdobramento necessário a partir das diferenças, sobretudo ocorridas no discurso dos adolescentes. Aqui o mal-estar na escolarização aparece articulado àquilo que, segundo os adolescentes, faz falta ou dá garantia nas relações com os outros significativos para eles (pais, professores, colegas), sendo diferente a forma como essa falta se presentifica. Num polo a falta estaria ligada à impossibilidade de garantia, outro "externo" que não fez o que deveria e, portanto, não aponta para alguma implicação do sujeito. Aqui a vitimização e a impotência são predominantes. Já no outro polo, é o outro que não reconhece o sujeito como válido no que produz e é. Diferentemente do anterior, a consequência é a verbalização de não ser escutado ou compreendido.

A subcategoria "relação entre pares" aparece em todos os discursos, seja criança ou adolescente. A escola enquanto instituição socializadora propicia os encontros e desencontros, oferecendo um campo fértil para as relações com os semelhantes. Embora o mal-estar da relação entre crianças/adolescentes e educadores também tenha aparecido, sobretudo no discurso dos adolescentes, a incidência foi menor que entre pares2.

A última subcategoria do eixo sujeito, "relação ao ideal de saber", nos indica que falar em escolarização é inevitavelmente esbarrar em concepções de saber e não saber. Aqui não falamos apenas de aquisição de conhecimento, mas de como o corresponder ou não àquilo demandado pela escola, ou o que se acredita esperado por ela, engendra subjetividade. A relação com o ideal de saber aí forjado é causa de mal-estar tanto no discurso de crianças quanto no de adolescentes.

 

Casos Tiago e Ana: expressões do mal-estar

Seguindo a discussão acerca dos impasses da escolarização e a necessidade de se ampliar a perspectiva de análise do mal-estar no campo da educação, discutiremos um recorte dos casos de adolescentes acompanhados por nós, ao longo dos anos de 2013 e 2014.

O objetivo da exposição do estudo dos casos é trazer para os planos da prática educativa e clínica – ampliando, portanto, a discussão teórica – como se configura o mal-estar na escolarização, bem como seus efeitos, em diferentes âmbitos, seja na escola, na vida dos adolescentes, na relação com a família e com os especialistas que acompanharam os alunos.

É importante ressaltar que a pesquisa reconhece a singularidade de cada sujeito, com configurações de vida próprias que não podem ser generalizadas, mas se faz necessário uma análise comparativa e um agrupamento em torno de seus discursos, porque apontam justamente para o caráter relacional em que se dá a constituição do sujeito e, consequentemente, na produção do mal-estar, visando a superar a individualização das queixas escolares em torno dos adolescentes.

 

Caso Tiago: "O menino que não queria crescer"

Tiago tem 17 anos e mora na comunidade Dona Marta com os pais e uma irmã mais velha. O adolescente foi encaminhado pela escola ao ambulatório de psiquiatria com queixa inicial de dificuldade de aprendizagem e hiperatividade, além da hipótese diagnóstica da mesma síndrome genética de sua irmã. Ainda se encontra no Ensino Fundamental, mas devido às dificuldades do adolescente em permanecer na escola e por demonstrar um desejo de trabalhar, tal como o pai, foi feito um acordo entre o adolescente, sua mãe e as participantes da pesquisa para que ingressasse no Programa de Ensino de Jovem e Adultos, de modo a viabilizar seu trabalho e estudo. Contudo, o adolescente não sustentou o emprego que lhe dava mais autonomia e que dizia tanto gostar, o que serviu para ratificar o lugar em que sua mãe o coloca: o de "especial".

Esse significante, muito marcado pela mãe, é associado a alguém que é incapaz, que não tem condições de se amparar de forma independente e, por isso, não lhe é esperado que tenha sucesso em suas atividades, seja na escola, seja no trabalho. A relação simbiótica, relação estreita entre mãe e filho, é muitas vezes descrita por ela como conturbada. A mãe o tempo todo anuncia e denuncia que o adolescente ainda é apenas uma criança que não tem condições de tentar nada sozinho. As tentativas do adolescente de se descolar desse lugar de objeto materno são insuficientes. Entretanto, estar nesse lugar possibilita ganhos secundários a Tiago, que se conforma em sempre recorrer à mãe e/ou a outro que lhe garanta que não ficará desamparado. Assim, para Tiago se atualiza o seguinte impasse: alienar-se ao lugar de "especial" que ocupa no discurso da mãe, que reproduz e amplifica o discurso médico, do "diferente", ou poder operar certa separação de tal lugar.

As subcategorias que foram construídas a partir da análise dos casos são marcadamente referenciadas à relação com o outro, como podemos ver na relação com pares. Essa subcategoria diz de como os laços que o aluno constrói com os colegas de classe durante sua trajetória escolar são importantes, ainda mais na adolescência, em que as relações com os pares são marcantes na constituição de identificações que não sejam referenciadas somente nos pais. Não se trata apenas de aprender conteúdos formais transmitidos pelo professor, mas o engajamento no espaço escolar e com seus pares marca o modo como aquele sujeito se posiciona diante do processo de aprendizagem, como observamos nesse caso.

Tiago não é apenas criança no discurso da mãe, seu porte físico é de alguém muito pequeno, o que o faz ser alvo de chacota dos colegas de turma e, ainda, a recorrer sempre à sua mãe para defendê-lo da implicância dos outros. Podemos depreender isso nas seguintes falas do adolescente:

Eu queria mesmo é recuperar a amizade do meu amigo porque todo dia quando eu vou para a escola eu fico olhando ele brincar com o outro garoto.

Eu também vou ser realista. Sabe por que eu parei de vir para a escola? Porque tem um garoto chamado Lucas na minha sala que quando eu dormia e depois acordava pra fazer o dever, ficava implicando comigo.

Nesta última fala, não há necessariamente uma articulação entre o estar dormindo e a implicância, mas pode-se hipotetizar que Tiago consegue ver na implicância um motivo forte o suficiente para não frequentar a escola — o que é curioso, pois não há nenhum questionamento sobre o dormir na escola. Aqui podemos pensar se é mais visível o mal-estar afetivo entre o semelhante, que de alguma forma é palpável, do que aquele referido a uma instituição consensualmente ideal e obrigatória, diante da qual ele não consegue se situar. O sono, nesse caso, poderia estar aludindo a isso.

A subcategoria "relação ao ideal de saber" também atravessa as questões do processo adolescente. O fracasso em tentar e não conseguir, de uma insuficiência em não alcançar o que é esperado pode ser observado nas frases "Eu já tentei, não consigo" e "Eu tenho 16 anos, mas eu sou pequeno...".

Ainda assim, não se trata apenas do saber escolar, mas do que é necessário para crescer, o que Tiago explicita ao dizer "Não quero..." – crescer ou continuar sendo criança, que demonstra uma ambivalência – e no questionamento: "Será que ainda vou crescer?".

A outra subcategoria destacada da fala de Tiago é a do "outro que falta/garante". Em seu depoimento ele demonstra uma dificuldade de se separar da mãe, recorrendo sempre a outro que o ampare e o sustente. Essa ambivalência entre alienar-se e separar-se, ser ou deixar de ser o objeto da mãe aparece na fala:

Ah, mãe, conta para elas que tem um garoto lá na escola que quis me bater e que a diretora proibiu ele de fazer qualquer coisa comigo... A diretora disse que se ele me pegasse, ela ia fazer não sei o que com ele..., é porque eu sou meio especial, ela disse.

Se esse outro todo-poderoso falta, o deixa desamparado. Em compensação, Tiago apresenta ensaios de um desejo em ter mais autonomia, mas acaba não sustentando e cai no lugar de criança especial que lhe é conferido, como observamos: "E eu quero começar a trabalhar cedo, igual ao meu pai. Quero trabalhar em supermercado, sei lá... eu já tenho carteira de trabalho, identidade, CPF... porque eu já trabalhei uma vez. O que mais eu tenho, mãe?".

A partir dessa fala podemos inferir que é outro que sabe melhor, mais apropriadamente, dizer quem ele é. Atribuição mais comum entre as crianças e mais questionada pelos adolescentes. O menino que não queria/queria crescer talvez não saiba como e a serviço de quê.

 

Caso Ana: "A menina que gostava de livros"

Ana é adotada desde o primeiro ano de vida e ficou com a mãe biológica somente até os oito meses. Possui uma história de abandono e maus-tratos enquanto estava com a mãe biológica. A adolescente tem 15 anos hoje e está no nono ano do Ensino Fundamental em uma escola da rede privada na cidade do Rio de Janeiro. A configuração de sua família é composta por pai e mãe adotivos e uma irmã biológica, que mora em outro estado brasileiro. Ana possui os diagnósticos de Transtorno Opositivo-Desafiador (TOD) e Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), que constam em seu prontuário no SPIA-UFRJ, mas os pais e a escola trazem como queixa também uma suposta dificuldade de aprendizagem.

Por muitas vezes não se sente ouvida e reconhecida, seja pelos pais ou pela escola. Há a questão da comparação com outras meninas; os pais de Ana deixam claro que queriam que a menina fosse como suas colegas. Além disso, verbalizam para a filha o ideal de "aluna nota dez". A questão da nota foi sempre bastante discutida pelos pais nas reuniões com a equipe da pesquisa — tirar um dez era para eles sinal de boa aluna e de que a filha tinha aprendido tudo.

No caso de Ana, as subcategorias eleitas dentro da categoria geral que é a descrição do mal-estar por cada sujeito, foram "outro que não reconhece", "a relação entre pares" e a "relação ao ideal de saber".

A primeira subcategoria, o "outro que não reconhece", diz respeito à relação que Ana possui com o outro que não a permite voz e um lugar próprio dentro do ambiente que ocupa. Podemos verificar esse tipo de relação, em que a menina não é reconhecida naquilo que diz ou faz, com a família e também com a escola: "É só segunda e quarta, criatura. Segunda e quarta. Segunda e quarta, criatura. Gravou? Segunda e quarta, segunda e quarta, segunda e quarta. Não tem nada sexta. Quer eu pegue o papel pra você ver? Não vai tá lá".

Nessa fala Ana tenta dizer pra mãe que a aula de dependência é só segunda e quarta, mas a mãe não acredita no que a filha diz e ela precisa repetir várias vezes e até recorrer ao papel em que está anotada a informação para que acreditem nela. Os pais e a escola não reconhecem a fala da adolescente, ela fica sem voz, sem espaço para poder falar aquilo que julga necessário.

Sério. O professor de Geografia me pegou e me colocou virada de cara pra parede e disse que eu não podia mais sair de lá... aí eu fui e disse: "Professor, eu não fiz nada". Aí eu fui sentar na minha cadeira, aí ele foi e me mandou descer. Aí na aula dele eu comecei a zoar ele. Aí que eu ganhei essa mancha de garota bagunceira. Eu fiz ele se demitir.

Esse é mais um exemplo de como Ana se diz não ouvida e reconhecida. Tanto na escola como com os pais, parece haver falta de espaço para que ela possa ser ouvida, para que ela possa falar, se explicar. Ou então não legitimidade em ser reconhecida como sujeito confiável. Tudo leva a crer que isso acaba por se fazer de forma indireta, através da bagunça e da revolta, modo pelo qual ela é efetivamente reconhecida e que ela faz questão de marcar em sua fala.

Na segunda subcategoria, a "relação entre pares", pudemos verificar como que esse tipo de relação é importante dentro do ambiente que Ana frequenta. Seja na escola ou em casa, ela mostra que há algo que a incomoda, e coloca no outro a responsabilidade por seus atos: "Tem um menino na minha sala que é muito chato. Toda vez eu tenho que descer na coordenação por causa dele".

Essa fala retrata a relação que ela tem com seus pares dentro da escola. Pudemos perceber que Ana faz essa ligação de que desceu por causa do menino e não por ela também estar fazendo algo inadequado dentro de sala de aula: "Já. Mas eu já repeti o terceiro ano. Já era pra estar no nono. Repeti pela mesma coisa nesse ano, pessoal começa a implicar comigo e eu não sabia o que fazer e brigava".

Mais uma vez, falando de seus colegas de turma, diz que, por não saber o que fazer, brigava e isso fez que ela repetisse o ano. Ela aqui diz em uma das únicas vezes que não sabia o que fazer, e assim se implica nos conflitos que vive na escola.

A terceira subcategoria que destacamos do discurso dos adolescentes, "a relação ao ideal de saber", aparece no caso de Ana já que a idealização dos pais e da escola a respeito de dela é grande (como "ela sabe e não faz", "tem preguiça" e "precisa de surra") e parece colaborar com que a menina acabe não correspondendo àquilo que tanto desejam que ela seja. O que predomina no discurso da família e da escola sobre ela é um ideário de "má vontade", que pode dar conta de tudo e não quer, e que tendo tanto tempo poderia tirar dez. Ao mesmo tempo tudo que realiza parece pouco, insuficiente, diante do que poderia estar sendo. Ana, por exemplo, é uma leitora voraz de livros de vampiros e crimes, mas essa leitura tão importante para ela parece não ser reconhecida como válida, nem pelo discurso dos pais ("fica lendo essas besteiras"), nem pela escola, que jamais incluiu qualquer aspecto de seu saber mesmo tendo ciência disto (informação obtida a partir de reunião com a coordenação da escola).

Por que eu arrumava muita confusão na escola, não copiava, não fazia os deveres, mas eu tô melhorando. Agora tenho todos os vistos no caderno, tenho tudo em dia. Vou pra escola sozinha, passeio com o cachorro. Já ganhei quatro pontos na aula de artes e em português, dois por um trabalho.

A relação ao ideal de saber, no caso de Ana, passa por essas questões que a adolescente traz da escola, tais como a cobrança e o fato de ela não copiar o conteúdo, o que parece contribuir para algumas dificuldades na aprendizagem. O que notamos é que nossa presença (pesquisadoras trabalhando com questões escolares) parece interferir na produção de um discurso que nos é dirigido no sentido de vermos como ela está melhorando, ("mas eu tô melhorando"), que algo também pode ir bem de alguma forma.

Eu falei que tirei nota baixa em Ciências. Mas a professora falou que eu tô me dando bem, só que eu não consegui pegar direito. Porque, quando ela tava fazendo a averiguação no quadro, eu tava respondendo direito, mas quando eu fui fazer a prova eu senti dificuldade. Mas ela falou que vai fazer trabalho bimestral pra mim.

O fato de a menina ter respondido certo durante a averiguação não é o suficiente para ser usado como algo que mostre que ela sabe a matéria, somente a prova vai medir o quanto ela sabe — mas sabemos que a prova como mecanismo de avaliação pode acabar tendo resultados ruins por toda a pressão que o aluno sofre.

 

Conclusão

Podemos concluir que o mal-estar, inerente às relações sociais, pode se apresentar de diversas formas no que diz respeito à escolarização de crianças e adolescentes. Nos casos apresentados, o mal-estar pôde ser enunciado por meio das falas dos sujeitos e assim pudemos verificar que aquilo que não vai bem na escola também é singular e é dito de forma diferente por cada um dos adolescentes.

A partir da análise e discussão do material do eixo sujeito da pesquisa com adolescentes, podemos entender como o desdobramento e as expressões do malestar na escolarização estão para além de uma queixa ou diagnóstico atribuído. A relação com o outro e seus impasses é expressiva em ambos os casos, nos convidando a refletir sobre questões mais complexas que envolvem todo o processo de aprendizagem e como os agentes envolvidos (escola, família e especialistas) estão nele implicados.

As expressões do mal-estar passam por questões diferenciadas nos casos de Ana e Tiago. O que pôde ser observado é que no caso de Ana o mal-estar se configura prioritariamente na perspectiva de outro que não a reconhece em sua singularidade, naquele que não lhe dá voz. Como exposto pelas falas Ana, segundo seu discurso, não é reconhecida nem pelos pais e nem pela escola, ela precisa estar o tempo todo reforçando aquilo que diz para que seja ouvida.

No caso de Tiago o mal-estar se configura prioritariamente na perspectiva de outro que falta/garante, pois ao mesmo tempo que, segundo ele, esse outro falta pra ele e não dá aquilo que ele precisa, o adolescente está sempre por esperar que alguém o ampare, que lhe garanta algo. Garantia no sentido de Tiago sempre precisar e querer alguém por perto para poder lhe dar um suporte, ou até agir em seu lugar. Supõe-se, assim, que a dependência de outro está presente de forma mais contínua e não questionada, outro que deveria prover/suprir/resolver quase onipresentemente.

Essa diferenciação se dá por meio das subcategorias que elencamos e elegemos como divergentes nos dois casos. Ana é uma adolescente que se reconhece, de alguma forma, naquilo que faz, com seu estilo mais desafiador e bagunceiro; já Tiago precisa de alguém para lhe ajudar e dar suporte, sempre na indecisão de querer crescer ou não. As questões de Ana passam mais por uma liberdade e independência, não quer ser vista como uma menininha e nem comparada a outras meninas de sua idade ("detesto rosa", "entendo sobre vampiros e morte" e "não faço parte daquele grupinho"). Tiago fica na indecisão de continuar criança ou de crescer, o que é incrementado pelo fato de ser um adolescente baixo e com feições bem mais novas do que sua idade cronológica. Além disso, ele parece se deixar valer dessa situação para poder sempre contar com sua mãe, que está a todo momento perto dele.

A partir desta discussão podemos retomar Freud (1914/1987) naquilo que ele aponta como uma tarefa difícil para os adolescentes que é o desligamento das autoridades parentais, correlata à queda de ideais que até então balizavam a trajetória do sujeito. Este trabalho não passará ao largo da escola, mas, justamente, envolverá não só a relação professor-aluno, mas todos os laços construídos no processo de escolarização. Assim, a pesquisa, quando entende o mal-estar como relacional, aposta em determinada posição política, na contracorrente de certo discurso científico contemporâneo que atribui diagnósticos e rótulos sobre os sujeitos escolares, sem adentrar na complexidade que envolve os sujeitos implicados em suas relações.

Desse modo, interpretações simplistas e intervenções pontuais e descontextualizadas podem ser superadas quando partimos da perspectiva psicanalítica que reconhece não haver como solucionar "totalmente" e "imediatamente" esse mal-estar, mas que o mesmo pode, sim, existir, ser expresso e incluído numa relação em que possa ser escutado. O confronto com algo incógnito ou que tensiona o modo pelo qual estamos habituados a compreender o mundo e nos inserirmos nele, pode questionar e transformar o modo como nos situamos nas relações sociais. Nessa perspectiva, o mal-estar pode ser motor de produção e diferença, indo num sentido contrário de "doença" a ser suprimida pela saúde mental.

Ademais, estaremos sempre às voltas com tudo isso, todos nós, educadores, psicanalistas, alunos, pais, especialistas etc. Mais do que equacionar os problemas, que possamos reconhecê-los em sua complexidade para cuidar deles na medida em que se faz possível para nós. A tarefa de podermos expressar aqui o mal-estar nessas linhas finais é apenas o disparador de muitas outras questões que nos colocam em trabalho.

 

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Recebido em fevereiro/2016.
Aceito em agosto/2016.

 

 

NOTAS

1. A pesquisa em questão teve a autorização do Comitê de Ética (número do parecer: 789.946) e da CRE (Coordenadoria Regional de Educação), que nos possibilitou a entrada nas escolas municipais, onde algumas das crianças/adolescentes estavam estudando durante o período de sua participação da pesquisa.
2. Podemos formular hipóteses de que a presença de pesquisadoras adultas possa ter influenciado nas respostas.

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